Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00029/15.4BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/10/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR ATO MÉDICO;
JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO;
HISTERECTOMIA;
Sumário:1.Mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

2. Em ação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais assente em responsabilidade médica, por atos clínicos e/ou cirúrgicos praticados ou omitidos em estabelecimento do SNS, incumbe ao demandante/autor alegar e provar factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, ou seja: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

3. Nessas ações a ilicitude decorre de o corpo clínico demandado ter, nos atos médicos prestados ou omitidos, infringido a legis artis próprias da sua atividade, atento o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico da arte médica, no concreto momento em que foram prestados ou omitidos os atos médicos ao doente, independentemente do resultado alcançado.

4.O preenchimento do requisito da ilicitude exige que o demandante/autor alegue e prove factos, com poder persuasivo bastante, para que num juízo corrente de probabilidade, se firme o convencimento de que o restado danoso verificado na pessoa do doente (lesado) foi antecedido de atos clínicos cirúrgicos, praticados ou omitidos, com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou científica próprias da atividade médica.

5. Para além de o facto gerador de responsabilidade civil ser ilícito, tem o médico de o praticar com culpa. Para tal, incumbia à autora alegar e provar a existência de uma relação de desconformidade entre o comportamento observado e a conduta devida “ no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes”.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I. RELATÓRIO
1.1.AA, residente na Estrada ..., Edifício ..., 2, ..., ..., moveu a presente ação administrativa contra a Unidade Local de Saúde U..., E. P. E., pessoa coletiva número ..., com sede na Estrada ..., ... ..., com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente de erro médico, pedindo que a ação seja declarada procedente e consequentemente:
«a). Deve reconhecer-se e declarar-se que ocorreu erro médico determinado por culpa grave ou negligência grave e grosseira ou mera negligência, na realização das cirurgias e tratamentos relatados nesta petição, designada e nomeadamente, na primeira intervenção cirúrgica de histerectomia total (extração do útero) a que a Autora se submeteu, e que todas as sequelas clínicas das quais a A. padeceu após tal cirurgia, são resultantes directa e necessariamente desse mesmo erro ou erros médicos.
b). Reconhecer-se que advieram para a Autora as sequelas e danos descritos nesta petição, como resultado directo e necessário do acto ou dos actos médicos culposos ou negligentes.
c). Deve condenar-se o Réu a pagar à Autora as seguintes indemnizações reparatórias dos danos causados:
- € 70.000,00 (setenta mil euros) para indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade parcial permanente;
- € 100.000,00 (cem mil euros) para indemnização pelos danos não patrimoniais ou morais.
- € 1.063,81 (mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos) para reembolso de despesas realizadas pela Autora.
Num total de € 171.063,81 (cento e setenta e um mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos), a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação do Réu até efectivo e total pagamento.»
Para tanto, e em síntese, alega que foi submetida a intervenção cirúrgica, realizada nas instalações e por médicos da Ré, que consistiu em histerectomia total, da qual se veio a constatar ter resultar repuxamento dos ureteres, o que lhe causou infeções urinárias, incontinência e necessidade de se submeter a vários tratamentos e outras cirurgias, para correção, o que lhe causou enormes dores, angústias e desgostos, bem como danos de natureza patrimonial. As lesões que sofreu, e que lhe causaram aqueles danos, devem-se a negligência por parte dos médicos da ré, pelo que deve ser esta responsabilizada pelo respetivo ressarcimento.
1.2. Citada, a Ré contestou, defendendo-se por impugnação, alegando, em suma, a inexistência de qualquer espécie de negligência médica, já que foi explicado à autora o procedimento em causa e os seus riscos, o que aceitou, e dos quais fazem parte a lesão ureteral. Esta lesão nem sempre é detetada no decorrer da cirurgia, e, em todo o caso, está descrita na literatura médica. Refuta, assim, qualquer espécie de responsabilidade pelos danos que a Autora alega ter sofrido.
Conclui, pugnando pela improcedência da ação.
1.3. Realizou-se audiência prévia, em que se proferiu despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Foram ainda admitidos os meios de prova requeridos pelas partes, bem como determinada a realização de prova pericial.
1.4.Foram juntos aos autos os relatórios periciais.
1.5. Realizada audiência final, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, constando da sentença recorrida a seguinte parte decisória:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa comum parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), a
título de danos não patrimoniais;
b) Condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.063,81 (mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais/despesas realizadas;
c) Condeno a Ré a pagar à Autora os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas nas alíneas anteriores, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
d) Absolvo a Ré quanto ao demais peticionado pela Autora.
**
Condeno as partes no pagamento das custas processuais, por terem ficado vencidas, e na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 77% para a Autora, e em 23% para a Ré – cf. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e artigos 6.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, e tabela I-A, do RCP [sem prejuízo, quanto à Autora, do apoio judiciário].
**
Registe e notifique.»
1.7. Inconformada com a sentença assim proferida que julgou a ação parcialmente procedente, a Ré interpôs o presente recurso de apelação cujas alegações encerra com as seguintes CONCLUSÕES:
«1. No presente processo cabe apurar a responsabilidade extracontratual da Ré / Recorrente ULSAM no diagnóstico e tratamento que foi dado à Autora, a qual invoca que na intervenção cirúrgica realizada em 25.10.2013, os médicos da ULSAM terão violado as leges artis a que estão adstritos.
2. Essa imputação aponta para a alegada negligência dos Dr.s BB e CC, na realização de uma histerectomia abdominal total, em resultado da qual ocorreu lesão ureteral provocada por repuxamento dos ureteres da Autora.
3. O sintoma que motivou a consulta foi hemorragia menstrual abundante, e a histerectomia total é o tratamento mais eficaz e efectivo;
4. Existindo, pois, um dever de informação que recai sobre o médico nos termos supra enunciados, resulta de forma clara dos factos provados que este dever de informação não foi omitido, antes tendo sido o Autora informada da cirurgia e quanto aos riscos associados à mesma e tendo prestado o seu consentimento à realização da cirurgia.
5. Riscos esses cujos factores integram, entre outros, a obesidade (a Autora mede 1,68m e à data da realização da cirurgia pesava 90Kg, a dimensão do útero (com 12cm x 6,5cm x 6,5cm) e a anterior realização de uma apendicectomia – cfr. doc. n.º ... junto à contestação.
6. Não se suscitam pois quaisquer dúvidas que o consentimento da Autora se reconduz a uma forma de manifestação da sua vontade, em respeito pelo seu direito, enquanto doente, a decidir sobre a sua própria saúde.
7. Conclui-se assim que a subscrição, pela Autora, do termo de consentimento, configura prestação de consentimento informado, o qual exclui a ilicitude, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 340.º do CC.
8. E ainda que o consentimento da Autora não se verificasse, sempre haveria de ter-se por presumido, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 340.º do CC, segundo o qual «Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível».
9. As lesões ureterais são uma das complicações mais graves da histerectomia e, embora não sejam as mais frequentes, ocorrem em menos de 1% dos casos;
10. A literatura médica refere que até 75% das lesões ureterais iatrogénicas não são identificadas durante a cirurgia;
11. Esta percentagem consta referida a fls. 216 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019 onde se refere expressamente que «Até 75% das complicações intra-operatórias do ureter não são diagnosticadas durante a cirurgia.»
12. Na realização de uma histerectomia abdominal total, pode ocorrer uma lesão ureteral ou vesical sem que sejam violadas as leges artis;
13. O repuxamento dos ureteres verificada após a histerectomia abdominal é uma possível intercorrência deste tipo de intervenções.
14. Como consta referido a fls. 10 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019, de entre os factores de risco associados às histerectomias, destacam-se a obesidade, a dimensão do útero e a anterior realização de cirurgias;
15. Do documento n.º ... junto com a contestação consta que no exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respectiva anamnese:
a) que a Autora apresentava uma altura de 1,68m e um peso de 90Kg;
b) que a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm;
c) que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
16. Relativamente à primeira consulta de ginecologia da Autora nos serviços da Ré / Recorrente ULSAM, importa atentar na seguinte passagem do depoimento da Dr.a DD, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 2:38:28 (h.m.s.) até às 3:11:18 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
(02:44:28 – 02:44:38) Advogado da Ré (AR): Tem o seu nome, tem o dia, tem aqui a hora do atendimento... isto tem aqui uma... uma... uma série de elementos, portanto, fala aqui do peso da Sra., 90 quilos...
(02:44:38) Médica: Sim.
(02:44:38 – 02:44:46) AR: Fala da altura da Sra., 1 metro e 68... fala não, está escrito. Tem a dimensão do útero que está aí referido também.
(02:44:46) Médica: Sim.
(02:44:46 – 02:44:50) AR: Portanto, essa medida que aí está... estes...
(02:44:50 – 02:44:51) Médica: 12 cm.
(02:44:51 – 02:44:52) AR: Isto é cm?
(02:44.52) Médica: Cm.
(02:44:52 – 02:44:53) AR: Este... este...
(02:44:53 – 02:44:55) Médica: 12 cm por 6,5 é centímetros...
(02:44:55 – 02:44:56) AR: Isto é centímetros, não é?
(02:44:56) Médica: Centímetros.
(02:44:56 – 02:44:57) AR: Não tem aqui a... a...
(02:44:57 – 02:44:59) Médica: Não, não tem, mas é cm (vozes sobrepostas)
(02:44:59 – 02:45:10) AR: Temos o peso, naturalmente quilos... (vozes sobrepostas) a altura... e tem esta... esta, portanto... e tem também uma referência a uma intervenção cirúrgica a que a Sra. foi submetida...
(02:45:10) Médica: Sim...
(02:45:10 – 02:45:12) AR: Anteriormente, não tem nada a ver com isto, não é?
(02:45:12) Médica: Sim.
(02:45:12 – 02:45:16) AR: Uma apendicectomia. (vozes sobrepostas) isto, digamos, faz parte do histórico dela.
(02:45:16 – 02:45:17) Médica: Dos antecedentes, sim.
(02:45:17 – 02:45:19) AR: Foi a Dra. que escreveu isto?
(02:45:19) Médica: Sim.
(02:45:19 – 02:45:20) AR: E foi estes elementos...
(02:45:20 – 02:45:22) Médica: Foi isso que ela disse...
(02:45:22 – 02:45:25) AR: Pronto. Mas estes elementos... o peso... isso foi colhido na altura?
(...)
(02:46:57 – 02:47:01) AR: Fazem a anamnese... (vozes sobrepostas) em função aquilo que... dos elementos que tem, os exames...
(02:47:01 – 02:47:04) Médica: Exactamente, sim. E depois também vemos se de facto corresponde, sim.
(02:47:04 – 02:47:12) AR: Muito bem. Em relação a este diagnóstico, a Sôtora disse à Sra. exactamente qual era o... o que é que ela tinha...
(...)
(02:49:39 – 02:49:47) AR: Ser uma pessoa... uma Sra. intervencionada com 1,68 m e que pesava 90 kg, ter 1,68 m e pesar 70 kg, é a mesma coisa?
(02:49:47 – 02:49:59) Médica: Não. Claro, ela já tem critérios de obesidade, é uma Sra. obesa, depois também tem o antecedente cirúrgico, portanto já tem uma cirurgia abdominal. Portanto, uma cirurgia abdominal acrescenta mais um fator...
(02:49:59 – 02:50:00) AR: Também é um factor de risco...
(02:50:00 – 02:50:04) Médica: Exactamente e, por isso, claro, (vozes sobrepostas) não é igual.
(02:50:04 – 02:50:07) AR: E a dimensão do útero? Tem alguma...
(02:50:07 – 02:50:15) Médica: Sim. Este útero, este é o dobro do tamanho normal. Tudo isso altera a anatomia. A anatomia de um... (02:50:15): AR: Muito bem.
(02:50:15 – 02:50:18) Médica: ... que nós vamos encontrar é diferente de um útero pequeno.
(02:50:18 – 02:50:21) AR: Pronto. A Sra., a paciente neste caso, a utente...
(02:50:21) Médica: Sim.
(02:50:21 – 02:50:28) AR: Quando vai tem essas condições, mas ela, se calhar, não sabe que tem estes factores de risco. A Sôtora encarregou-se de lhe explicar...
(02:50:28) Médica: Eu expliquei-lhe, sim.
(02:50.28 – 02:50:29) AR: De dizer...
(02:50:29) Médica: Sim.
(...)
(02:51:08 – 02:51:13) AR: Então esta Sra. tinha, pelo menos, não sei se mais, mas, pelo menos, tinha estes 3 factores de risco.
(02:51:13) Médica: Sim.
(02:51:13 – 02:51:15) AR: Ou seja, a dimensão do útero...
(02:51:15) Médica: Sim.
(02:51:15 – 02:51:18) AR: a obesidade e a intervenção cirúrgica...
(02:51:18) Médica: A anterior.
(02:51:18 – 02:51:21) AR: Anterior. Tudo isto foi dito na altura, foi esclarecido...
(02:51:21) Médica: Sim.
(02.51:21 – 02:51:30) AR: E ela ficou ciente disso. A assinatura desse consentimento, pese embora tenha sido feita nesse dia, foi depois de toda esta conversa.
(02:51:30 – 02:51:33) Médica: Sim, foi no fim da consulta. (vozes sobrepostas) É sempre no fim da consulta.
(...)»
17. Quanto à cirurgia realizada no dia 25.10.2013 nos serviços da Ré / Recorrente ULSAM, muito embora a testemunha DD tenha declarado nada saber, porque não participou no procedimento, importa atentar no seu depoimento, na parte em que, em abstracto, se refere a este tipo de procedimentos, dos quais tem perfeito conhecimento já que se trata de médica cirurgiã, especialista em ginecologia e obstectrícia:
«(...)
(02:53:54 – 02:54:04) AR: Sim. Fala-se aqui no “repuxamento dos ureteres” é uma expressão que é aqui utilizada, inclusivamente, pelos seus colegas que escrevem. Sobre isto pode falar em concreto ou se falar, fala em abstracto?
(02:54:04 – 02:54:11) Médica: É assim, posso falar... não sei o que é que exactamente aconteceu, sei o que é o repuxamento dos ureteres. (02:54:11 – 02:54:14) AR: Ou seja, se disser alguma coisa sobre isso vai-nos falar em abstracto e não sobre este caso.
(02:54:14) Médica: Sim.
(02:54:14 – 02:54:16) AR: Sobre este caso não sabe?
(02:54:16) Médica: Sim.
(02:54:16 – 02.54:23) AR: Portanto, a sua intervenção então foi apenas (vozes sobrepostas) na consulta pré-operatória...
(02:54:23) Médica: Sim.
(02:54:23 – 02:54:26) AR: E no pós-operatório, sem ter nada a ver com a operação?
(02:54:26) Médica: Sim, exactamente.
(02:54:26 – 02:54:29) AR: Apenas por causa do...do... da biópsia que foi feita.
(02:54:29) Médica: Sim.
(02:54:29 – 02:54:36) AR: Então, assim em tese, o que é o repuxamento dos ureteres? Já disse que era uma intercorrência.
(02:54:36 – 02:55:18) Médica: Uma intercorrência significa durante a cirurgia, pronto... pode ser em vários tipos de intervenções, oncológicas ou não, mas os ureteres que... quando entram dentro da bexiga, não é? Passam muito próximo... passam próximo ao útero. Nós sabemos disso e, portanto, somos muito treinados para evitar essas coisas. Pronto, fazemos centenas de histerotomias e isto é uma situação raríssima de acontecer. Raríssima. Já nas situações oncológicas, já não é assim. E, portanto, nas situações oncológicas é boa prática e eu faço isso algumas vezes, eu iden... antes de começar a fazer a cirurgia identifico, mas porque isto é obrigatório.
(02:55:17 – 02:55:19) AR: Ah, a Sôtora também faz intervenção cirúrgica?
(02:55:19) Médica: Sim.
(02:55:19 – 02:55:20) AR: Na sua... na sua...
(02:55:20 – 02:57:20) Médica: Sim, sim. Também faço e identifico porque é obrigatório por causa dos tumores malignos que têm um comportamento diferente e nós não sabemos o que vai acontecer. Ali não era de prever que essas coisas aconteçam, pronto. Porque, habitualmente, nós vemos. Agora, claro que o... o facto de ela ter tido a cirurgia anterior pode ter deixado... a apendicectomia, não sei porque também não temos informações anteriores. Ela foi aos 11 anos, era criança, não sei.... E geralmente, as crianças, muitas vezes, têm peritonites. Muitas vezes. E o que é que acontece? Toda a região pélvica fica com muitas aderências e aderências são uma espécie de...de... são pequenas estruturas que vão se colando e vão repuxando os t... são cicatrizes, digamos, não é? E as cicatrizes distorcem a anatomia do... daquela região pélvica. Portanto, nós pensamos que o ureter está a correr... porque o ureter não é visível logo, o ureter passa... é... pronto, o termo “retroperitoneal”, ou seja, fica por trás quase do útero, portanto, não é ... nós para o encontrarmos temos que o procurar e muito. Temos mesmo muito que procurar, abrir muitas estruturas para o fazer. Portanto, não é uma intervenção que se faça sempre porque isso também acarreta riscos. E, como tal, nós sabemos... é uma situação benigna, é uma histerectomia, em princípio, que não... não oncológica, portanto, faz-se a histerectomia com os cuidados que nós temos... que já sabemos. Nós temos as referências anatómicas, sabemos... sabemos como é que... como é que havemos de fazer para evitar essas...essas coisas. Agora, não prevemos é que haja aderências que não estão ali visíveis e repuxaram aquela estrutura para uma outra localização. Pronto, e isso aí que depois... olhe é o que... depois aí temos as tais intercorrências que estão regis... que sabe-se que existem, embora não sejam frequentes.
(02.57:20 – 02:57:30) AR: A Sôtora quando refere essa... essa situação, dessa... dessa intervenção anterior da apendicectomia ter acontecido aos 11 anos, estamos a falar de uma Sra. ucraniana, penso eu...
(02:57:30) Médica: Sim.
(02:57:30 – 02:57:33) AR: Portanto, digamos que esse histórico clinico dela não estava por cá?
(02:57:33 – 02:57:35) Médica: Não. Não sei de nada.
(02:57:35 – 02:57:37) AR: Vocês não faziam a mínima ideia, não elementos para consulta...
(02:57:37) Médica: Não.
(02:57.37 – 02:57:44) AR: O que acontece, acontece na intervenção, ou seja, o cirurgião, a equipa de cirurgiões é com o que acontece na altura, não é?
(02:57:44 – 02:57:45) Médica: Claro que sim.
(02:57:45 – 02:57:56) AR: E quando a Sôtora refere que os ureteres estão muito por trás, estão muito escondidos, enfim tem que ir quase à procura deles, significa que pode acontecer por aí qualquer coisa em que o cirurgião não se aperceba?
(02:57:56) Médica: Pode.
(02:57:56 – 02:57:57) AR: Pode acontecer?
(02:57:57) Médica: Pode.
(02:57:57 – 02:58:00) AR: Então isso é que é a intercorrência? Portanto...
(02:58:00) Médica: Sim.
(02:58:00 – 02:58:05) AR: É quando uma coisa acontece, que não devia acontecer, mas acontece (vozes sobrepostas), é uma situação inesperada...
(02:58:05 – 02:58:06) Médica: Imprevisível.
(02:58:06 – 02:58:12) AR: Imprevista (vozes sobrepostas) e depois como é que se... como é que se... se digamos... ok, não viram e aconteceu...
(02:58:12 – 02:58:21) Médica: Mas há... podemos... às vezes, pode ser... pode-se mostrar, digamos. Dependendo da localização, aquela estrutura demonstra-se.
(02:58:21) AR: Sim.
(02:58:21 – 02:58:23) Médica: Percebe? Outra vezes, não...
(02:58:23 – 02:58:24 ) AR: Pode não se mostrar...
(02:58:24) Médica: Não.
(02:58:24 – 02:58:27) AR: Mas não se mostrando, acontece a tal lesão... acontece a lesão...
(02:58:27) Médica: Sim.
(02:58:27 – 02:58:42) AR: Não é? Acontece a lesão, o médico não vê, o cirurgião não vê, e ok... a cirurgia termina e aparentemente (vozes sobrepostas) aconteceu... a cirurgia aconteceu sem intercorrências.
(02:58:42 – 02:58:43) Médica: Sem intercorrências, sim.
(02:58:43 – 02:58:46) AR: Mas a intercorrência efectivamente... objectivamente terá acontecido.
(02:58:46 – 02:58:50) Médica: Terá acontecido, mas não foi... não foi... (vozes sobrepostas) detectada, sim.
(02:58:50 – 02:58:53) AR: Portanto, e não há registo de intercorrências porque...
(02:58:53 – 02:58:) Médica: Não, porque (vozes sobrepostas) ... porque para os colegas que fizeram, acharam que foi uma cirurgia linear. Que correu bem.
(...)
(03:00:22 – 03:00:31) AR: Portanto, esta situação que então aconteceu, foi então uma situação que... enfim... não sendo desejável, pois naturalmente nenhuma é, nenhuma situação é... não sendo desejável, pode acontecer.
(03:00:31) Médica: Pode.
(03:00:31 – 03:00:44) AR: E acontecendo, é uma situação que não era uma coisa... como é que eu hei-de dizer... muito... muito estranha que aconteça naquele tipo de intervenção? (vozes sobrepostas) Numa histerectomia, isso pode acontecer?
(03:00.44) Médica: Sim.
(03:00:44 – 03:00:47) AR: Pese embora, (vozes sobrepostas) a percentagem seja baixa, mas pode acontecer?
(03:00:47 – 03:00:48) Médica: Sim. Sim.
(03:00.48) AR: Pode acontecer.
(03:00:48 – 03:00:49) Médica: Pode.
(03:00:49 – 03:01:02) AR: E pode acontecer sem que o ... sem que... digamos... a atuação dos médicos que estão ali a intervir, os cirurgiões, contribua para isso, ou seja, contribua do ponto de vista... não significa que as pessoas foram descuidadas.
(03:01:02 – 03:01:33) Médica: Sim. (vozes sobrepostas) Pode acontecer. É uma complicação que está descrita mesmo tomando todas as... como lhe digo os ureteres são estruturas muito pequenas, são estruturas que não estão dentro da cavidade abdominal... estão na cavidade abdominal, mas para trás, é o espaço retroperitoneal, ou seja, é muito por trás, tem de ser abrir muitas estruturas para chegar lá e, portanto, como lhe digo, não se pode fazer isso em todas as cirurgias. Se não estávamos a aumentar aos morbilidades aos doentes todos. Então aí é que estávamos... não estaríamos a actuar correctamente.
(03:01:33 – 03:01:43) AR: Então diga-me uma coisa, independentemente de os... qual foi objectivamente o problema que aconteceu? Nesta... nesta intervenção, na 1ª intervenção.
(03:01:43 – 03:01:46) Médica: Penso que o problema que aconteceu foi que...
(03:01:46 – 03:01:48) AR: O tal repuxamento dos ureteres, é disso que estamos a falar.
(03:01:48 – 03:01:55) Médica: Sim. O repuxamento dos ureteres poderá ter... a ter havido ali alguma alteração anatómica naquela região pélvica...
(03:01:55) AR: Sim.
(03:01:55 – 03:02:32) Médica: Aliada também a um campo cirúrgico, se calhar também, um bocadinho mais difícil atendendo à obesidade abdominal que a Sra. tinha, porque depois a obesidade não é só o que está por baixo da pele, é também dentro dos órgãos... os órgãos também têm gordura, não é? A gordura... a chamada gordura visceral. Isso tudo ajuda, não é... ajuda... (vozes sobrepostas) contribui para... para a dificuldade e o tamanho uterino também... o tamanho uterino também. Tudo... tudo... todos os órgãos pélvicos e abdominais estão cobertos por um... por um... é tipo uma membrana que cobre e...
(03:02:32 – 03:02:33) AR: Um manto...um manto...
(03:02:33 – 03:02:43) Médica: Um manto, exactamente. E se tem um órgão que está a aumentar, repuxa. Isto é como as grávidas, não é? Vai repuxando e repuxando... todas as estruturas também ficam alteradas. É...
(...)
(03:03:25) Médica: Boa tarde.
(03:03:25 – 03:03:47) Advogado da Autora (AA): Olhe, este repuxamento dos ureteres para além de.... Isto abstractamente falando, na teoria... para além de poder ser causada por... por a situação relacionada com a anatomia da pessoa, pode também... e não estou a dizer com isto que foi o caso... por alguma inadvertência médica. Pode acontecer isso também, não pode?
(03:03:47 – 03:03:50) Médica: É assim, é rar... isso é difícil acontecer.
(03:03:50 – 03:03:53) AA: Mas pode ou não? Eu não estou a dizer que aconteceu aqui.
(03:03:53 – 03:04:33) Médica: Sim. Poder, pode. Mas não... mas não... não acredito que essas coisas aconteçam porque digamos que, nós ginecologistas... só para ter uma ideia, o nosso... desde o 1º ... 1ª vez que vamos para um bloco operatório até acabarmos a especialidade, que são 6 anos, e só ao fim de 6 anos é que estamos aptos a fazer essa cirurgia, portanto essa cirurgia não é uma cirurgia simples ao contrário do que as pessoas acham que histerectomia é uma cirurgia simples... não é uma cirurgia simples. É uma cirurgia complicada, complexa e que exige um grande conhecimento anatómico e aquilo que nos... que estamos quase sempre “olha os ureteres, cuida...”
(03:04:33 – 03:04:35) AA: “Olha...”, vocês dizem sempre “olha os ureteres”.
(03:04:35 – 03:04:37) Médica: Cuidado com a bexiga, os ureteres. Que são...
(03:04:37 – 03:04:39) AA: Ou seja, fazem sempre essa recomendação?
(03:04:39 – 03:04:51) Médica: Sim. E, portanto, aquilo está sempre ali na nossa... na nossa ideia. Quando nos fazemos a histerectomia, aquilo é quase uma check-list. É... tem de que ser isso. Tem que ser as coisas...
(03:04:51 – 03::04:55) AA: Olhe, sabe se neste caso concreto, houve aqui alguma laceração da bexiga, se...
(03:04:55 – 03:04:56) Médica: Não sei.
(03:04:56 – 03:05:09) AA: Não sabe de nada. Disse também que... a Sôtora faz este tipo de cirurgias, não é?
(03:05:09) Médica: Sim.
(03:05:09 – 03:05:16) AA: O que é que... o que é que explica, por exemplo, a existência, no local, de fios de suturação?
(03:05:16 – 03:05:40) Médica: Se... é assim, os fios de sutura podem acontecer se nós acharmos que temos de fazer um reforço da bexiga, pode... pode existir. Isso faz parte até, às vezes, de... da própria cirurgia. De termos que... quando existe dificuldades, quando temos que... que afastar a bexiga à nossa frente, fazemos um reforço. Pode acontecer. São fios absorvíveis e essas situações... desaparecem...
(03:05:40 – 03:05:42) AA: E em que tempo desaparecem, já agora, mais ou menos?
(03:05:42 – 03:05:46) Médica: Depende dos fios. Depende dos fios. 4 semanas, 6 semanas.
(03:05:46 – 03:05:56) AA: Pronto. Olhe, mas vocês, quando há esse tipo de coisas... quando há uma laceração, qualquer tipo de intercorrência, digamos assim. Vocês fazem o registo do que aconteceu, não é? (03:05:56 – 03:05:58) Médica: Sim. Sim fazemos.
(03:05:58) AA: Sempre?
(03:05:58 – 03:05:59) Médica: Sim.
(03:05:59 – 03:06:00) AA: Não tem dúvidas sobre isso?
(03:06:00 – 03:06:05) Médica: Sim fazemos, sim. Fazemos porque isso é muito importante para...
(03:06:05 – 03:06:06) AA: É importante. Vocês fazem o registo disso.
(03:06:06 – 03:06:14) Médica: É importante para depois percebermos porque (vozes sobrepostas)... vamos pass...porque depois a doente não fica sempre connosco. Temos que informar os colegas dos...
(03:06:14) AA: Claro.
(03:06:14 – 03:06:22) Médica: dos cuidados a ter. Até porque depois isso implica outras... outros cuidados.
(...)
(03:06:56 – 03:07:03) AA: E a Sôtora disse-me, há pouco, que na check list uma das coisas mais importantes antes da histerectomia “olhem os ureteres”, é isso?
(03:07:03 – 03:07:06) Médica: Não. Não é “olhem os ureteres”, não é para ir ver os ureteres. Não é isso.
(03:07:06 – 03:07:10) AA: Não. Tenham em atenção, disse a Sôtora. Não é “olhem”, mas é isso. É uma das coisas que...
(03:07:10 – 03:07:22) Médica: Sim. Quando estamos a fazer... porque a histe... a localização anatómica das... da nos estamos a fazer, passamos por muitas estruturas, imensos vasos. Também, “Olha o intestino” porque tem ali o intestino.
(03:07:22 – 03:07:24) AA: Mas eu não duvido. Mas essa é uma das preocupações?
(03:07:24 – 03:07:25) Médica: Sim. Claro que sim. Sim.
(03:07:25 – 03:07:26) AA: Pronto Sotor, não tenho mais nada.
(03:07:26 – 03:07:37) J: Sôtora, só um... pronto, já percebi que a Sôtora relativamente aqui a esta intervenção em concreto, não sabe de nada, não é? Portanto...
(03:07:37) Médica: Pois...
(03:07:37 – 03:07:40) J: Pode falar, em abstracto, como especialista, naturalmente...
(03:07:40) Médica: Sim, sim.
(03:07:40 – 03:07:55) J: Não está isso em... em questão. A Sôtora disse aí uma coisa que... sobre aí um ponto, não é que seja propriamente o mais importante de todos, mas a Sôtora afirmou “não é uma cirurgia simples, é uma cirurgia complexa”.
(03:07:55) Médica: Sim.
(03:07:55 – 03:07:57) J: Que exige muito conhecimento anatómico. (03:07:57) Médica: Claro.
(03:07:57 – 03:08:17) J: Também já explicou aí que... que... pronto, está na cavidade abdominal, mas atrás, portanto tem que... está escondido. É um órgão escondido ou os ureteres são órgãos escondidos ou ocultos. Escondido não, sabe-se onde é que ele está, mas está oculto por trás de outro órgão, pelo menos quando... quando a intervenção é pela parte da frente.
(03:08:07) Médica: Exactamente.
(03:08:07 – 03:08:28) J: Pronto, isso eu compreendi. Mas diz-me que não é uma cirurgia simples. Ahm... aqui diz que é uma cirurgia feita muitas vezes. Isso é verdade?
(03:08:28 – 03:08:29) Médica: Sim, sim.
(03:08:29 – 03:08:31) J: Mas o facto de ser muitas vezes, não quer dizer que seja simples.
(03:08:31 – 03:08:40) Médica: Sim. Fazemos muitas vezes. A nossa principal cirurgia ginecológica é a histerectomia. Fazemos várias histerectomias por semana. Várias.
(03:08:40 – 03:08:47) Silêncio.
(03:08:47 – 03:08:54) J: Portanto, neste caso, o facto de ser muita quantidade, não quer dizer que em termos de qualidade seja das mais simples?
(03:08:54 – 03:09:10) Médica: Sim, também porque dada a variação anatómica. Porque os úteros são todos diferentes, é muito difícil termos... é muito raro, aliás... porque quando nos intervencionamos um útero para uma histerectomia alguma coisa não está bem, e portanto, aí já temos que... que...
(03:09:10 – 03:09:19) J: Só para contextualizar e para... para ficar ciente da matéria. Isso terá que ver com... em primeiro lugar, o útero é um órgão que serve essencialmente funções reprodutoras, não é?
(03:09:19 – 03.09:20) Médica: Sim.
(03:09:20 – 03:09:37) J: Pronto. Portanto, uma mulher que declare que não tem intenção de ter mais filhos, digamos que fazem... optam por ser a cirurgia que garante, em termos de prevenção, nomeadamente em doentes oncológicos... vá lá, uma prevenção mais eficaz?
(03:09:37 – 03:09:38) Médica: Sim, sim.
(03:09:38 – 03:09:40) J: Porque o órgão deixa de existir, e portanto, não há risco de ser...
(03:09:40 – 03:09:42) Médica: Sim, sim. A queixa deixa de existir, exacto. Sim.
(03:09.42 – 03:09:50) J: E, portanto, é por isso. Quando a Sôtora diz que é complexa, também já me falou aqui, apenas para tirar a dúvida, é porque o útero acaba por estar encostado a...
(03:09:50 – 03:09:52) Médica: A muitas... A muitas estruturas, sim. (03:09:52 – 03:10:08) J: A muitas estruturas, nomeadamente, já disse aqui bexiga, os ureteres, os intestinos... Portanto, basicamente o que esteja ali na cavidade abdominal, uns mais próximos que outros, o útero andará ali.
(03:10:08) Médica: Sim.
(03:10:08 – 03:10:40) J: Também já tive aqui, penso que foi numa histerectomia, se não estou enganado... só para eu a seguir... depois vou levar várias injecções de medicina, e portanto, já me estou a precaver. Que o útero é um órgão, penso que foi aí, mas a Sôtora corrigir-me-á, móvel. Portanto, que é uma espécie de membrana que se... ele está no sítio dele, não é? Mas não é estático... se calhar o coração é estático, não é? Ele bombeia aqui, mas está na cavidade dele... e, portanto, está na cavidade dele. Não partilha o espaço assim... está lá no meio dos pulmões, mas...
(03:10:40) Médica: Sim.
(03:10:40 – 03:10:46) J: Está ali na cavidade dele, a seguir às costelas. O útero não. Portanto, é uma membrana que...
(03:10:46 – 03:10:49) Médica: Não. O útero é um órgão móvel.
(03:10:49 – 03:10:50) J: Móvel, exactamente.
(03:10:50 – 03:10:59) Médica: Mas que na... quando... quando é normal mas quando atinge dimensões passa a ser fixo.
(03:10:59) J: Fica encravado.
(03:10:59 – 03:11:03) Médica: Fica pesado, fica encravado na parte pélvica.
(03:11:03) J: Mas se estiver bom...
(03:11:03 – 03:11:04) Médica: É mais móvel, sim.
(03:11:04 – 03:11:06) J: Ele pode andar ali e pronto.
(03:11:06 – 03:11:07) Médica: Sim, sim.
(03:11:07 – 03:11:14) J: Muito bem. Sôtora, da minha parte estou esclarecido é só devolver-me o processo e pode sair e pode ir à sua vida.
(03:11:14 – 03:11:16) Médica: Posso ir aí devolvê-lo?
(03:11:16 – 03:11:18) J: A Sra. funcionária devolve. Obrigado.
(03:11:18 – 03:11:19) Médica: Muito obrigada.»
18. Quanto à cirurgia realizada no dia 25.10.2013 nos serviços da Ré / Recorrente ULSAM, importa atentar na seguinte passagem do depoimento da Dr.a BB, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 3:12:32 (h.m.s.) até às 3:37:30 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
[03:22:40] Advogado da Ré (AR): Portanto, então, agora voltando aquilo que aconteceu. Porque é que isso pode ter acontecido e porque é que os Srs. Drs. não se aperceberam? É difícil aperceberem-se?
[03:22:50] Testemunha (T): É difícil.
[03:22:51] AR: Estavam... distraídos, enfim, temos que perceber o que é que aconteceu, não é.
[03:22:54] T: Obviamente que não. É assim, a fibrose própria que fica de uma cirurgia pélvica anterior faz com que os tecidos fiquem aderentes entre si e, por exemplo, em algumas mulheres a distância dos ureteres as artérias uterinas, não sei se devo estar aqui com termos, mas chega a ser de 5 milímetros. Portanto, nós fazemos, numa histerectomia, obviamente, que fazemos várias laqueações, várias secções de tecidos e estamos a trabalhar junto de outras estruturas que supostamente não devem ser intervencionadas. Mas de facto com o estiramento dos tecidos, com a dificuldade do campo operatório e com o útero volumoso essas estruturas de facto podem mudar ligeiramente, a sua posição e predispor a que haja esse tipo de complicações.
[03:23:42] AR: Pronto, então, basicamente, aquilo que aconteceu, ou seja, o tal [imperceptível] repuxamento dos ureteres pode ter acontecido por causa dessas circunstâncias que a Sra. Dra. falou... [03:23:51] T: Exactamente.
[03:23:52] AR: ... ou seja...
[03:23:54] T: ... cirurgia prévia e útero volumoso, sim.
[03:23:56] AR: Pode ter acontecido... e, portanto, e o facto de não se terem... vocês não se terem apercebido, enfim, não terem detectado essa anomalia... essa intercorrência que é o termo, não é uma coisa assim muito... como é que eu hei-de dizer... vocês não tinham necessariamente que se aperceber daquilo...
[03:24:15] T: Não...
[03:23:18] AR: Aquilo aconteceu como aconteceu, mas podiam não se ter apercebido, como não se aperceberam.
[03:24:20] T: Em 70 e tal por cento dos casos a angulação dos ureteres, e até a laqueação, as vezes eles são laqueados, que não foi o caso, só são diagnosticados no pós-operatório. Mesmo. Há situações específicas, mas que não serão aqui do in... não sei digo eu... como patologias malignas ou doença que alteram completamente a anatomia pélvica que por norma está indicado, até categorizar os ureteres, identificá-los, não neste tipo de situação.
[03:24:47] AR: Nós temos aqui, não sei se a Dra. sabe, se não, se calhar não sabe que está aqui no processo, mas nós temos aqui umas consultas técnico-científicas que foram... foram, enfim, informações técnicas que foram pedidas pelo tribunal ao Conselho Médico-Legal e há aqui uma resposta que diz assim, de uma consulta que foi feita, concretamente para o tribunal interessa saber que é a resposta ao quesito terceiro da consulta de 12 de dezembro de 2018, diz assim “as lesões uretrais e heterogénicas podem não ser identificadas durante a cirurgia”. É isto que a Sra. Dra. quer dizer?
[03:25:17] T: É isso que eu quero dizer, sim.
[03:25:19] AR: Portanto, quando a Sra. Dra. fala naquela percentagem de 70, quanto é que disse?
[03:25:22] T: Cerca de 70 por cento podem não ser identificadas durante a cirurgia.
[03:25:25] AR: Mas isso encaixa-se nisto que está aqui, é isto que está aqui?
[03:23:28] T: Exactamente, exactamente.
[03:25:29] AR: Isso que a Sra. Dra. está a dizer...
[03:25:30] T: É isso que eu quero dizer.
(03:25:31] AR: É isto que está aqui.
(03:25:32] T: Podem não ser identificadas intra-operatoriamente.
(03:25:33] AR: Ou seja, quando nós, quando aqui está dito as lesões uretrais, repuxamento de ureteres é uma lesão uretral?
(03:25:38] T: Sim, no fundo não houve lesão directa, mas foi repuxado. Porque um repuxamento, por exemplo, se eu até tivesse feito uma cistoscopia, que é um exame para visualizar as estruturas urinárias no fim da cirurgia, até poderia nem visualizar esse repuxamento. Ao contrário de uma laqueação que seria logo visualizada, não é, se houvesse uma laqueação de ureter nós poderíamos visualizá-la, o repuxamento até poderia nem conseguir vê-lo.
(03:26:02] AR: Portanto, ou seja, para eu entender, que eu de facto... falamos do repuxamento é digamos... de um reposicionamento foi o termo que de manhã a Dra. EE utilizou, o reposicionamento. Não há, como é que eu hei de dizer, não há uma laceração, não há um corte, não há nada, há um desvio é isso?
(03:26:20] T: Exatamente, um desvio da sua anatomia normal.
(03:26:22] AR: Um desvio e quando a Sra. Dra. tem uma lesão uretral, pode ser só isso..., mas também pode ser uma outra coisa...
(03:26:28] T: uma (impercetível], uma laqueação...
(03:26:31] AR: Uma (impercetível], um corte, qualquer coisa.
(03:26:32] T: ... ou uma laqueação inadvertida com um fio, não é, uma vez que estamos a trabalhar próximo.
(03:26:35] AR: Sim, portanto, ou seja, o repuxamento está incluído nas lesões, mas lesões uretrais não são só repuxamentos, são repuxamento e outra coisa qualquer.
(03:26:44] T: Há várias mais graves.
(...)»
19. Também quanto à cirurgia realizada no dia 25.10.2013 nos serviços da Ré / Recorrente ULSAM, importa atentar na seguinte passagem do depoimento do Dr. CC, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 3:38:40 (h.m.s.) até às 04:10:46 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
(03:43:48] AR: Já lá vão muitos anos. Essa intervenção, como é que correu?
(03:43:53] T: Correu bem.
(03:43:54] AR: Uma como... foi uma intervenção como tantas outras...
(03:43:58] T: Corriqueira como muitas outras, sem qualquer...
(03:43:59] AR: ... teve alguma particularidade
(03:44:01] T: Não.
(03:44:01] AR: ...alguma....
(03:44:02] T: Não. Absolutamente nada.
(03:44:02] AR: Nada.
(03:44:04] T: Não aconteceu nada, quer dizer foi uma histerectomia eu até diria banal.
(03:44:04] AR: Banal. A Dra. BB falou aqui em alguns fatores de risco, nomeadamente a obesidade, a dimensão do útero, nomeadamente...
(03:44:16] T: Exatamente. Isso são condições que aumentam o risco dessa intervenção, não é, nomeadamente a obesidade, como já referiu, aumento do volume uterino, não é, dificulta as condições do campo operatório, vai aumentar o risco, a existência ou não de cirurgias anteriores, criando zonas de... alterando a relação de que... de posição dos órgãos relativamente aos outros, não é, e a presença de aderências também muitas vezes condiciona essa alteração e, portanto, o risco fica aumentado quando essas condições...
(03:44:58] AR: Os riscos eram maiores, mas a intervenção, pese embora esses riscos acrescidos, correu bem.
(03:45:03] T: Correu bem.
(03:45:04] AR: Correu bem. E, portanto, como correu bem, para si significa que não houve intercorrência?
(03:45:09] T: Não.
(03:45:10] AR: E como não houve intercorrências, também não houve registos de intercorrências.
(03:45:14] T: Exatamente.
(03:45:15] AR: Não houve. No entanto, no entanto, no pós-operatório alguma coisa se descobriu e que veio reportar-se à intervenção, falamos aqui, e já estamos aqui a falar disso há algum tempo, de um repuxamento dos ureteres, ou seja, isto que efetivamente aconteceu, no entanto durante a intervenção não houve a perceção de que isso tivesse acontecido e como não houve essa perceção não houve esse registo. No entanto, aconteceu e, então, e depois, o que é que aconteceu daqui para a frente.
(03:45:45] T: Ora bem...ahm... daqui para a frente, não percebi.
(03:45:46] AR: Daqui para a frente verificou-se que a senhora apresentou queixas, foi vista e então fizeram-se exames, eventualmente, e verificou-se que havia esse repuxamento e foram feitos esses registos.
(03:45:58] T: Isso foi depois...como verificou-se o repuxamento dos ureteres, isso é uma situação que normalmente ultrapassa a...simplesmente a área da ginecologia foi pedida a colaboração da urologia.
(03:46:09] AR: E, digamos que a ginecologia saiu de cena relativamente a este tratamento.
(03:46:15] T: Exatamente.
(03:46:17] AR: No entanto, saiu de cena porque passou a ser outra especialidade, nomeadamente, a urologia que passou a tomar conta disto. No entanto, essa situação aconteceu no decurso de um ato de obstetrícia...
(03:46:28] T: Exatamente.
(03:46:31] AR: ...num ato em que o Sr. Dr exatamente o Sr. Dr. interveio juntamente com a colega. O que eu queria e o que nos queríamos aqui saber é, isso aconteceu, como é que isso aconteceu? Porque é que aconteceu? Porque é que vocês não se aperceberam? O que é que determinou que vocês não se possam ter apercebido? É isso que nos queremos saber.
(03:46:49] T: Do ponto de vista anatómico, os ureteres são órgãos que estão... que não são visíveis, macroscopicamente visíveis para quem está a operar. No entanto, conhecemos a anatomia da pele, nós sabemos o sítio por onde eles passam...
(03:47:06] AR: Estão lá!?
(03:47:07] T: Estão lá e com a regulação posicional dos ureteres com o órgão que nós vamos extrair e, portanto, temos sempre o cuidado de não ultrapassar determinados limites porque isso poderia ocasionar lesão desses mesmo ureteres. Portanto, nós não os vemos, mas sabemos que eles estão lá. Eu... a opinião que eu tenho relativamente a esta situação, eu não sei se foi dito aqui pelos colegas, é o seguinte nós na técnica que utilizámos, o colega que está do lado direito faz a intervenção... a histerectomia é uma intervenção que é... como é....
(03:47:49] AR: Um de cada lado.
(03:47:48] T: Um de cada de lado e é exatamente igual de um lado e de outro, quer dizer, o que se faz do lado direito da doente é exatamente os mesmos passos, a mesma técnica que se faz do lado esquerdo da doente. E para facilidade dessa mesma técnica quem está de um lado opera aquele lado e quem está deste lado opera deste lado, portanto, o que me parece, uma vez que não houve intercorrência, que não houve qualquer tipo de problemas durante a intervenção, o que... a única coisa que podia justificar a... esse repuxamento dos ureteres é que ela fizesse... porque...essa técnica foi feita por pessoas diferentes, se fosse a mesma pessoa a executar a técnica dos dois lados, podia-se dizer “olha, não teve cuidado ou fez a coisa mal feita”, mas não, foram pessoas diferentes que ocasionaram o mesmo tipo de repuxamento.
(03:48:44] AR: Portanto, esse repuxamento, só fazer aqui um parêntesis, aconteceu nos dois ureteres.
(03:48:47] T: Nos dois ureteres.
(03:48:48] AR: Portanto, não foi só num...
(03:48:49] T: Exatamente.
(03:48:50] AR: Foi nos dois ureteres.
(03:48:51] T: Isso é que justifica a minha tese de que a senhora deveria ter uma alteração anatómica do posi... inicial do posicionamento dos ureteres relativamente ao útero que justificasse que utilizando uma técnica correta conforme está descrita pudesse ocasionar esse repuxamento dos ureteres porque eles não foram laqueados. Eles foram repuxados.
(03:49:13] AR: Ou seja, o problema que aconteceu foi nos dois. Sendo que em cada um deles a intervenção foi de um cirurgião diferente.
(03:49:20] T: Exatamente. Também não sei se me fiz...
(03:49:24] AR: Sim, eu consegui perceber. Eu consegui perceber. Portanto, essa situação, o Sr. Dr. já referiu que os ureteres não são visíveis macroscopicamente, mas estão lá, portanto, vocês sabem quando estão a fazer a operação, sabem que eles estão por lá e tentam, enfim, evitar e ter o cuidado máximo. Mas aí aconteceu, então, fosse lá porque circunstância fosse, aconteceu isto. Isto é assim mesmo? Ou seja, não é detetável? Ou seja, a lesão, o repuxamento pode estar a acontecer e pode acontecer sem que o cirurgião se aperceba?
(03:49:52] T: Pode, pode. Pode acontecer, aliás vem descrito na literatura, na literatura mundial, vem descrita da especialidade, vem descrito que mesmo utilizando a técnica correta, sem qualquer tipo de intercorrência, muitas vezes até sem grandes fatores de risco, isso pode acontecer, cerca de 2% das cirurgias, pode acontecer. Em que a causa objetiva dessa... dessa lesão não está comprovado, mas acontece, pode acontecer. Sendo cirurgião experiente, sendo a técnica correta, sendo... tudo correndo sem qualquer problema, isso pode acontecer.
(03:50:27] AR: Portanto, digamos que esse tipo de... não é propriamente uma lesão, o repuxamento não é propriamente uma lesão.
(03:50:32] T: Exatamente.
(03:50:33] AR: O repuxamento não é propriamente uma lesão, não é. Pode estar compreendido numa lesão se for uma laceração, uma coisa qualquer é uma lesão, um repuxamento é uma intercorrência não é propriamente uma lesão.
(03:50:40] T: Sim, sim, exatamente.
(03:50:43] AR: E está compreendido naquela percentagem na literatura que prevê...
(03:50:46] T: Exatamente. Aliás, aliás, a proximidade dos ureteres da bexiga ao órgão que se vai tirar que é o útero por isso é que esse são os órgãos mais atingidos nesses 2%. As lesões dos 2% que acontece na histerectomia são... a grande... a grande maioria dos ureteres ou da bexiga.
(03:51:08] AR: Muito bem. Ó, Sr. Dr. durante a intervenção, a intervenção vocês fizeram suturas na bexiga, fizeram suturas, quais foram os órgãos que foram suturados?
(03:51:19] T: São... a bexiga normalmente nós nem queremos nada com ela, nós queremos é, tiramos o útero, suturamos o couto, que fica o couto vaginal, suturamos o couto vaginal e encerramos... e encerramos a intervenção aí. Depois da extração do útero, encerramos a intervenção aí.
(03:51:35] AR: Mas, está aqui escrito também que... a existência de umas suturas que ficaram por lá e depois tiveram que ser...
(03:51:45] T: isso é que ocasionou o tal repuxamento, foi isso...
(03:51:50] AR: E essa... essa... essa sutura ou esse repuxamento, essa sutura, esses pontos, foram feitos em que órgão?
(03:51:59] T: Para nós, foram feitos no couto vaginal, não é, porque se nós soubéssemos que não era o couto vaginal ou que houvesse a interseção de um órgão do outro lado qualquer, nós teríamos na altura, e se isso fosse identificado, nós teríamos na altura que reparar essa mesma sutura.
(03:52:19] AR: Olhe, a senhora quando cá esteve de manhã, disse que alguém lhe disse...
(03:52:24] T: Alguém?
(03:52:25] AR: Alguém não, ela disse quem foi, este alguém, eu é que não quero dizer o nome...
(03:52:28] T: Sim, sim.
(03:52:29] AR: Alguém lhe disse que tinha sido cosida a bexiga à vagina, isto é... isto é possível, não é possível?
(03:52:38] T: Possível é, muitas vezes é, quando essas condições que eu acabei de dizer do aumento do útero, aumento da... da... da... obesidade, a existência de aderências, a existência cirurgias anteriores, etc., etc., dificultando a intervenção, inadvertidamente isso pode acontecer, mas isso também está dentro dos 2%.
(03:52:59] AR: Pronto. Isto não é uma situação, quer dizer, sendo uma situação anómala porque...não devia acontecer, mas acontece, mas não é uma coisa que aconteça por improvidência, acontece porque há fatores de risco que conduzem a isso...
(03:53:11] T: Exatamente, exatamente. Porque senão... isso nós estamos a ver, macroscopicamente nós vemos o que estamos a fazer
(03:53:18] AR: O Sr. Dr. já faz intervenções desta há quantos anos?
(03:53:22] T: Desde que me formei especialista, portanto...
(03:53:23] AR: 40 anos?
(03:53:25] T: Não, 40 não, mas... 30 quase 30.
(...)
(04:02:18] T: Estamos a ver. Agora, o que é preciso compreender é o seguinte... o relacionamento, a posição, posicional... relativamente posicional da bexiga com o sítio onde nós vamos suturar é muito próximo, é muito próximo. Além disso, as condições que eu já mencionei de aumento do volume do útero, aumento da...
(04:02:38] AA: Era aí que ia agora e eu agora vou a essa parte. (04:02:40] T: Pronto, aumento da obesidade, aumento da obesidade, existência de... ela foi operada...
(04:02:44] AA: Há uma maior proximidade de órgãos...
(...)
(04:08:36] J: Digamos que... se bem compreendo, apenas para terminar, o médico que tenha estudado anatomia e em particular anatomia deste... do sistema... não é bem reprod... como está ali perto do sistema reprodutor, não é o mesmo, mas digamos que o médico que tenha estudado anatomia normal sabe onde estão os ureteres e, portanto, assume ao fechar o couto vaginal, como disse, que não está a ofender.
(04:09:08] T: Exatamente, exatamente. E disse bem, o couto... como é que se diz... a anatomia normal.
(04:09:15] J: Por isso é que eu lhe perguntava esta questão que... que, entretanto, foi ganhando acuidade aqui no julgamento de se tratar de uma pessoa obesa, com uma apendicectomia que não se conhecia...
(04:09:27] T: Peço desculpa Sr. Dr. Juiz, é que a obesidade não é só aquela que nós vemos debaixo da pele...
(04:09:32] J: Correto, já aqui foi falado da visceral e tudo mais, pronto. Por isso é que eu lhe colocava a questão, sobretudo esta questão da apendicectomia que não se sabe bem como é que foi feita, quem é que a fez...
(04:09:43] T: Exatamente.
(...)»
20. Com particular interesse também a seguinte passagem do depoimento do Dr. FF, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 4:11:32 (h.m.s.) até às 4:49:22 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
(04:19:25 – 04:19:32) GG, Advogado da Ré (GG): Muito bem. Oh Sotor, mas quando o Sotor diz que esses fios não tinham que lá estar, quer d... quer significar o quê com isso?
(04:19:32 – 04:20:04) Testemunha FF (FF): Ahm... eu não estava na cirurgia que... ginecológica, mas o ponto... teoricamente, os fios de sutura quando se faz uma cirurgia ginecológica não tem de aparecer dentro da bexiga. Às vezes, são muito próximas, a vagina e a bexiga e podem... aquilo não tem propriamente um GPS, não estão a ver. Se derem um ponto um bocadinho mais fundo, podem ir à bexiga. Neste caso, foram numa posição que condicionou a drenagem da urina. Acontece. Não é a primeira vez que nós tratamos isso.
(04:20:04 – 04:20:08) GG: Pronto, mas isso é uma... enfim, é uma situação que acontece inadvertidamente.
(04:20:08 – 04:20:16) FF: Inadvertidamente, sim, com certeza. As pessoas não têm como saber que isso acontece, a não ser posteriormente, quando há queixas do doente por drenar mal e estar com dor.
(04:20:16 – 04:20:17) GG: Muito bem.
(04:20:17 – 04:20:20) FF: Porque, por vezes passa, como contei o episódio desta Sra....
(04:20:20) GG: Sim.
(04:20:20 – 04:20:24) FF: E não é sem... e as coisas até vão ao sítio sem problema.
(04:20:24 – 04:20:40) GG: Sim, quando o Sotor diz... quando o Sotor diz que as coisas acontecem, isso significa que os cirurgiões que tiveram intervenção e tendo feito o que fizeram... e efetivamente, isso terá sido feito por eles, podem ter terminado a intervenção com a convicção de que nada de especial tinha acontecido?
(04:20:40 – 04:20:41) FF: Sim.
(04:20:41 – 04:20:43) GG: Nada de anómalo tinha acontecido naquela intervenção.
(04:20:43 – 04:20:44) FF: Sim.
(04:20:44) GG: Isso é p...
(04:20:44 – 04:20:45) FF: Nessas circunstâncias...
(04:20:45 – 04:20:51) GG: Nessas circunstâncias, isso é possível acontecer? E essa terá sido uma dessas... uma dessas situações. Muito bem. Oh Sotor...
(04:20:51 – 04:21:10) FF: Nós já fomos chamados em algumas cirurgias em que as... tiveram... tinham... Na cirurgia geral ou ginecologia ou o que seja, têm mais dificuldade e chamam-nos previamente ou durante a cirurgia para ir ajudar. Isso acontece. Quando não detetam que alguma coisa esteja menos bem, com certeza que não...
(04:21:10) GG: Muito bem.
(04:21:10 – 04:21:13) FF: Não têm como fazer e, por isso, não sabem que ficou...
(04:21:13 – 04:21:39) GG: Muito bem. Quando... quando o Sotor diz que por vezes chamam-no, significa que se porventura... se porventura, os cirurgiões que fizeram a intervenção desta Sra., portanto, o Dr.... os colegas que antecederam o Sotor, se se tivessem apercebido disso e se fosse uma coisa, como era, do âmbito da especialidade do Sotor, enfim... nessa altura, a urologia teria que intervir. Podia ser chamada a intervir. Poderia ter sido chamada a intervir. Se eles se tivessem apercebido.
(04:21:36 – 04:21:51) FF: Sim, mas também nas circunstâncias que... da descrição que está feita, que eu, na altura, p... quando ... quando me pedem apoio para alguma coisa, vou sempre ver o que foi feito para poder saber com o que conto...
(04:21:51) GG: Certo.
(04:21:51 – 04:21:53) FF: Para fazer o melhor possível.
(04:21:53) GG: Certo.
(04:21:53 – 04:22:02) FF: Uhm... pelo que li da descrição, que me recorde, não havia assim muita forma de... de terem a perceção que aquilo ia acontecer.
(04:22:02 – 04:22:05) GG: Portanto, a não presença de alguém de urologia nessa intervenção...
(04:22:05) FF: Sim.
(04:22:05 – 04:22:08) GG: Não é uma situação (vozes sobrepostas) anómala nem leviana.
(04:22:08 – 04:22:14) FF: Não, de maneira nenhuma. Aquilo... não tinham como saber, naquelas circunstâncias, a não ser no pós-operatório com as queixas da doente.
(...)
(04:39:18 – 04:41:02) FF: Eu vou-lhe... eu vou tentar... aquilo que eu... que o Sotor estava há bocado a dizer, de... o fio só lá aparece dentro da bexiga se alguém se apercebeu que abriu a bexiga, está aberta... está aberta e tenho de a suturar. Suturo a bexiga e descrevo na minha cirurgia “foi, por necessidade aberta ou inadvertidamente aberta e identificada a abertura da bexiga e suturámo-la de tal f... em dois planos ou três planos”, como queira. Fica lá descrito na... na... fica descrito na cirurgia. E normalmente, nestas circunstâncias, como aconteceu na semana passada, os colegas chamam. Se abrem a bexiga, antes de fechar, chamam para um urologista ir lá ver e ver... e ajudar, o que não é caso. Ninguém me chamou, não está descrito que abriram a bexiga porque não se aperceberam. Portanto, esses pontos só podem ter sido dados quando estavam a fechar a vagina. E ao fechar a vagina, se dão um ponto um bocado mais profundo por alguma dificuldade anatómica, alguma coisa que esteja a dificultar, deram um bocado mais profundo e apanharam a bexiga. Porque bexiga está a meio centímetro. Não é problemático. Agora, se o ponto vai um bocadinho mais profundo e eles não conseguem controlar isso a 100% e... entra dentro da bexiga, já temos um problema de.... De ser um material litogênico que ali fica. Portanto, imaginemos que estão aqui assim, se o ponto vai um bocadinho mais profundo, pode passar para este órgão oco que está ao lado. Eles estão colados um ao outro, estão ao lado um do outro. Mas ao fechar isto, estão a fechar a vagina assim e podem dar um ponto um bocado mais profundo e apanhar um bocado a bexiga. O problema que se pôs aqui foi o facto de ter ido mesmo lá dentro e, ao mesmo tempo, ter sido próximo dos ureteres e eles terem ficado, o tal repuxado. Em vez de estarem mais laterias, foram para o meio e dificultou a drenagem da urina.
(04:41:02– 04:41:09) Juiz (J): Ou seja, o ponto... a ter sucedido esse cenário... o ponto foi de tal ordem próximo dos ureteres que acabou também por repuxá-los.
(04:41:09 – 04:41:23) FF: Repuxá-los, exato. Eles não têm... quando estão a fazer essa cirurgia, dali se abr... se a bexiga tivesse sido aberta inadvertidamente e fechassem, eles conseguiam ver lá para dentro. Assim não. Eles não imaginavam que tinham sequer ido dentro da... da bexiga.
(04:41:23 – 04:41:28) J: Portanto, estamos a falar da parte superior da bexiga, ou seja, os ureteres vêm dos rins, ligam... (vozes sobrepostas)
(04:41:28 – 04:41:49) FF: Estamos a falar... isto é assim, a parte superior da vagina que é aquela que eles têm de encerrar ficam, mais ou menos, junto à parte inferior da bexiga... junto à parte do ... trígono... Um bocadinho mais acima, um bocado mais acima. Mas dependendo, anatomicamente, a bexiga está mais vazia ou menos faziam, podem estar... normalmente, fica mais acima, sem problema. Mas às vezes, as pessoas não são todas iguais, não é? Umas são mais gordas, mais magras...
(...)
(04:43:25 – 04:43:40) J: Só para que fique claro, então. E quando aqui, o Sotor leu-lhe a resposta ao quesito da Sra. perita médico-legal, quando se diz “inadvertidamente uma lesão de”, pode ser exatamente isso? Um ponto mal dado. Ou não? Porque o Sotor disse que concordava com a resposta.
(04:43:40 – 04:43:44) FF: Foi um ponto... inadvertidamente foi que não pretendia que aquilo acontecesse.
(04:43:44 – 04:43:52) J: Certo, exatamente. Mas quando o Sotor diz isso (vozes sobrepostas) quando se diz que uma... uma histerectomia não deve ter aquele resultado é porque, em princípio, não é...
(04:43:52 – 04:44:00) FF: Mas mal dado é diferente de fazer inadvertidamente. Inadvertidamente quer dizer que não se queria que tivesse aquele desfecho. Pretendia-se...
(04:44:00 – 04:44:01) J: Certo Sotor, mas...
(04:44:01 – 04:44:03) FF: Atingir (vozes sobrepostas) um objetivo que era...
(04:44:03 – 04:44:04) J: A questão não é essa.
(04:44:04 – 04:44:06) FF: Fechar a vagina, mas não ir à ...
(04:44:06 – 04:44:08) J: Ninguém está a colocar em questão a maldade...
(04:44:08 – 04:44:10) FF: Eu sei, eu sei. Mas eu estou a dizer (vozes sobrepostas) ...
(04:44:10 – 04:44:22) J: Nem que alguém andou a tirar os ureteres a ninguém. Não estou a pôr a questão dessa perspetiva. Só preciso de... o Sotor leu-lhe ali... são as duas hipóteses que é a lesão iatrogénica da bexiga ou inadvertidamente...
(04:44:22 – 04:44:25) FF: Sim, exatamente. Iatrogénica, pela descrição, não houve.
(04:44:25 – 04:44:34) J: Eu só estou aqui a dizer é, em abstrato... eu acho que... que... vai ser sempre muito difícil determinar, só quem lá esteve ou não esteve, se se apercebeu ou às vezes nem se apercebeu, ou seja lá o que for...
(04:44:34) FF: Claro.
(04:44:34 – 04:45:23) J: É difícil. O que eu quero que me diga é, por exemplo, quando se fala desta lesão inadvertida, que é... que é o que está descrito, ninguém está a dizer que foi de propósito, não se colca a questão do ponto inadvertidamente, ahm... o que eu estava a perguntar-lhe era se esse ponto inadvertido, pode ser a tal lesão inadvertida. Ou seja, eu não preciso de pegar num b... o que eu lhe quero dizer é, eu não preciso de pegar num bisturi, seja lá o que for... não conheço outros instrumentos cirúrgicos... e fazer uma laceração. Também seria uma lesão, não é? Estava a cortar e, sem querer, cortei outro órgão. Um ponto mal dado pode ser esta tal lesão inadvertida, ou seja, eu a fechar, não vejo e, sem querer, vou lá e ofendo outro órgão. É isso? Porque o Sotor diz que concorda com a resposta. Eu preciso... não é... de saber em que termos é que o Sotor concorda com a resposta.
(04:45:23 – 04:45:26) FF: Que lhe diga, não estava nessa cirurgia, nem...
(04:45:26 – 04:45:28) J: Ninguém estava. Nenhum de nós.
(04:45:28 – 04:45:42) FF: Eu sei. Nem é... nem é a minha especialidade tirar úteros, mas quando se está a fechar a vagina, nós... tem de se dar os pontos de encerramento da vagina. E, ao dar o ponto, a bexiga está... é um órgão que está muito contíguo.
(04:45:42 – 04:45:43) J: Correto.
(04:45:43 – 04:46:03) FF: Se o ponto for mais fundo, é possível ir dentro da bexiga. A pessoa... é inadvertido porque ninguém quer ir dentro da bexiga. Quando damos esse ponto, normalmente damos com um... o... o arco suficiente para não ir dentro da bexiga. Neste caso, não aconteceu. Foi dentro da bexiga.
(04:46:03 – 04:46:12) J: Eu pergunto-lhe porque o Sotor foi, na realidade, a primeira pessoa a observar internamente a Sra., depois do que sucedeu, não é?
(04:46:12 – 04:46:40) FF: Pois porque se a pessoa quisesse dar os pontos dentro da bexiga, ia ver com a bexiga aberta porque inadvertidamente também se abriu a bexiga ou por necessidade... abriu a bexiga porque estava muito... ahm... colada ao útero e teve necessidade de a abrir para afastar e abriu, e depois suturou-a a ver o que fazia... Isto é uma situação em que pode aparecer o fio lá dentro. A outra é se a pessoa ao fechar a vagina... o ponto ser mais profundo...
(04:46:40) J: Sem querer...
(04:46:40 – 04:47:09) FF: E entrar... e entrar dentro da bexiga. Mas, como lhe digo, nós pref... os ginecologistas preferem que isso não aconteça, não é? Não tenho menor dúvida. Se aconteceu foi porque... pronto, o fio foi mais... foi... foi dado com... um bocadinho mais profundo porque possivelmente, presumo eu, que quisessem laquear alguma coisa...que estivesse a sangrar um bocado e lhe deram mais profundo para o fazer. E neste caso, também... também a...
(04:47:09– 04:47:13) J: Acabaram por ofender outro órgão que não o suposto. Podia (vozes sobrepostas) ... pode suceder isso.
(04:47:13 – 04:47:21) FF: Exato. Pode suceder. Está completamente descrito e, por isso, é que nós estamos lá para podermos ser úteis o mais depressa possível, que foi o que aconteceu.»
21. Como particularmente vincado pela Dr.a BB e Dr. CC, que foram os cirurgiões que realizaram a histerectomia, à data da realização da cirurgia a Autora, com 1,68m de altura, apresentava 90Kg de peso, um útero sobredimensionado e a anterior realização de uma apendicectomia, apresentava três factores de elevado e acrescido risco;
22. Na motivação do juízo que determinou o julgamento de facto, e em relação aos depoimentos de HH e CC, pronuncia-se o tribunal a quo nos seguintes termos:
«São depoimentos a considerar, porque as testemunhas foram os cirurgiões que realizaram a primeira operação, e da qual terão resultado as lesões que a Autora invoca (portanto, realizaram a histerectomia total). Mas também por isso, dado estar em causa a sua atuação, a análise destes depoimentos mereceu-nos particular atenção. Ora, sobre os depoimentos em causa impõe-se dizer que não vemos razão para lhes retirar crédito. Sobretudo na parte em que explicaram o procedimento e o modo como decorreu a cirurgia, e ainda porque, quanto à questão da lesão ureteral pode não ser percecionada no momento da cirurgia, os depoimentos são consentâneos com a prova pericial produzida. Daí que constituam prova suficiente para considerar provados os factos elencados nos pontos 15 e 16. Também serviram os depoimentos em causa para considerar provados os factos 20 e 21, aqui em especial pela consonância com a prova pericial [segundo se apurou, a utilização de cistoscopia apenas é utilizada, por rotina, em cirurgias oncológicas]. Aliás, a testemunha CC admitiu, de forma espontânea, que a sutura originou o repuxamento, e que a única explicação que encontra para ter sucedido é a existência de uma alteração anatómica na Autora (em especial porque o repuxamento ocorreu dos dois lados, i. e., em ambos os ureteres). E a testemunha BB referiu, sem fugir à questão, que os fios encontrados são da operação que realizaram. Daí que não tenhamos dúvida de que não se tratou de uma atuação intencional, ou que tenha sido omitida a descrição: simplesmente, no momento, os cirurgiões não se aperceberam, porque a lesão não se revelava.»
23. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que, como consta referido a fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019, acontece de 0,2 a 0,5% das cirurgias;
24. Como muito bem explicado pelas testemunhas Dr.ª BB, e Dr.s CC e FF, a vagina e a bexiga são órgãos contíguos, e na realização de sutura da vagina pode, inadvertidamente, acontecer que os pontos de sutura acabem por perpassar para a bexiga, quer porque este órgão está oculto, quer pelos factores de risco associados às condições anatómicas da própria intervencionada, designadamente a obesidade;
25. Sendo que, como foi explicado pelos cirurgiões Dr.ª BB e Dr. CC, a técnica utilizada e recomendada pela literatura, implica que a intervenção cirúrgica ocorra sem a visualização dos ureteres, a qual apenas é recomendada no caso de intervencionados oncológicos;
26. Neste conspecto, tal como esclareceu o Dr. CC, na intervenção cirúrgica, não se verificando a visualização os ureteres, o cirurgião segue os passos técnicos exigidos e serve-se dos seus conhecimentos anatómicos, respeitando os limites para salvaguarda dos órgãos circundantes, assim cumprindo as legis artis, como no caso foram cumpridas;
27. Assim, sem que os cirurgiões se tenham apercebido do repuxamento dos ureteres, esta intercorrência não foi verificada durante a intervenção, o que determinou que o respectivo registo não tivesse sido feito;
28. Sendo que, a não verificação pelos cirurgiões durante a intervenção não constitui negligência ou erro médico, pois, conforme esclareceu a Dra. BB em audiência de julgamento, no seu depoimento, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 03:12:32 (h.m.s.) até às 03:37:30 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
[03:24:20] T: Em 70 e tal por centos dos casos a angulação dos ureteres, e até a laqueação, as vezes eles são laqueados, que não foi o caso, só são diagnosticados no pós-operatório. Mesmo. Há situações especificas, mas que não serão aqui do in... não sei digo eu... como patologias malignas ou doença que alteram completamente a anatomia pélvica que por norma está indicado, até caracterizar os ureteres, identificá-los, não neste tipo de situação.
[03:24:47] AR: Nós temos aqui, não sei se a Dra. sabe, se não, se calhar não sabe que está aqui no processo, mas nós temos aqui umas consultas técnico-científicas que foram... foram, enfim, informações técnicas que foram pedidas pelo tribunal ao conselho médico-legal e há aqui uma resposta que diz assim, de uma consulta que foi feita, concretamente para o tribunal interessa saber que é a resposta ao quesito terceiro da consulta de 12 de dezembro de 2018, diz assim “as lesões uretrais e iatrogénicas podem não ser identificadas durante a cirurgia”. É isto que a Sra. Dra. quer dizer?
[03:25:17] T: É isso que eu quero dizer, sim.
[03:25:19] AR: Portanto, quando a Sra. Dra. fala naquela percentagem de 70, quanto é que disse?
[03:25:22] T: Cerca de 60 por cento podem não ser identificadas durante a cirurgia.
[03:25:25] AR: Mas isso encaixa-se nisto que está aqui, é isto que está aqui?
[03:23:28] T: Exatamente, exatamente. (...)
[03:25:32] T: Podem não ser identificadas intra-operatoriamente.
(...)»
29. Acrescentou o Dr. FF, especialista em urologia, que este tipo de intercorrência não chega a ser identificada, pois não apresentam sintomatologia e o organismo repara naturalmente. Portanto, apenas quando apresentam sintomatologia, o que se pode justificar por uma alteração, é que se torna necessária a intervenção da especialidade de urologia, veja-se na seguinte passagem do seu depoimento, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 4:11:32 (h.m.s.) até às 4:49:22 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
“(...)
(04:36:00 – 04:36:46) FF: São casos que estão descritos na literatura, que acontecem e que nós somos chamados a intervir quando eles acontecem. O facto de ter de ir corrigir ou resolver um problema, não significa que houve um erro. Significa que há um problema, que... digamos que, para lhe dar um exemplo como, aliás, dei o exemplo desta Sra. que... que foi há 30 anos que... que lhe passou o fio, mais ou menos, dentro da...da...da bexiga. Mas isto acontece. Raramente, mas se calhar mais vezes do que aqueles que até pensamos. Só que só aquelas que vão causar alterações, que não se resolvem por si próprias, é que nós temos de... de intervir. E são essas que temos conhecimento. São... são poucas, não são muitas. (...)
(04:39:18 – 04:41:02) FF: (...) Ninguém me chamou, não está descrito que abriram a bexiga porque não se aperceberam. Portanto, esses pontos só podem ter sido dados quando estavam a fechar a vagina. E ao fechar a vagina, se dão um ponto um bocado mais profundo por alguma dificuldade anatómica, alguma coisa que esteja a dificultar, deram um bocado mais profundo e apanharam a bexiga. Porque bexiga está a meio centímetro. Não é problemático. Agora, se o ponto vai um bocadinho mais profundo e eles não conseguem controlar isso a 100% e... entra dentro da bexiga, já temos um problema de.... De ser um material litogênico que ali fica. Portanto, imaginemos que estão aqui assim, se o ponto vai um bocadinho mais profundo, pode passar para este órgão oco que está ao lado. Eles estão colados um ao outro, estão ao lado um do outro. Mas ao fechar isto, estão a fechar a vagina assim e podem dar um ponto um bocado mais profundo e apanhar um bocado a bexiga. O problema que se pôs aqui foi o facto de ter ido mesmo lá dentro e, ao mesmo tempo, ter sido próximo dos ureteres e eles terem ficado, o tal repuxado. Em vez de estarem mais laterias, foram para o meio e dificultou a drenagem da urina. (...)
(04:42:46 – 04:43:25) FF: Se estivessem, também na parte de cima, laqueados ou o que fosse, aí digamos que já é um sítio em que eles teriam de se aperceber ou de averiguar onde estava o ureter para não acontecer. Aí acima, próximo do rim. Aí, isto para...para... para o Sotor perceber bem, se tivesse sido aí acima, aí já podíamos pensar que houve um desleixo, se tivessem laqueado ali em cima. Agora, aqui em baixo, não porque está muito próximo do sítio onde estão a trabalhar e é difícil de anteverem ou de saberem com toda a certeza que isso aconteceu. Agora, se fosse na parte de cima, não. Daí ter feito, para ter a certeza de que estava tudo bem para cima e estava. Foi injetado contraste por um lado e por outro, portanto o problema ocorreu cá em baixo.
(...)»
30. Mas ainda que a intercorrência tivesse sido verificada e não tivesse sido registada, não podemos esquecer-nos que a situação que está em análise ocorreu em 2013, numa altura em que os registos das consultas, por não serem obrigatórios, eram incipientes e imperfeitos.
31. E isto porque nessa altura os registos médicos e de enfermagem ainda eram efectuados manualmente (em papel), consumindo mais tempo e recursos aos profissionais, ao contrário de agora, em que os profissionais de saúde têm à sua disposição outros recursos, como programas informáticos próprios, mais modernos, ágeis, rápidos e capazes que tornam a tarefa de registo mais eficaz.
32. Tudo como, aliás, está confirmado na seguinte passagem do depoimento do Dr. FF, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 4:11:32 (h.m.s.) até às 4:49:22 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«(...)
(04:30:11 – 04:30:18) Mandatário Autora: Se o tribunal permite Sotor, é o doc. ... junto com a... com a petição inicial.
(04:30:18 – 04:30:24) FF: Sabe que nessa altura, nós fazíamos as... ainda os registos manuais.
(04:30:24) Mandatário Autora: Manuscritos.
(04:30:24 – 04:30:25) FF: Agora já não, não é?
(04:30:25) Mandatário Autora: Sim, sim, sim.
(04:30:25 – 04:30:26) FF: Graças a Deus.
(04:30:26 – 04:30:27) Mandatário Autora: Este é manuscrito.
(...)»
33. Nos dias de hoje, esse registo é obrigatório nos termos do artigo 40.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos anexo ao Regulamento de Deontologia Médica aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016, de
34. Nos dias de hoje, esse registo é obrigatório nos termos do artigo 40.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos anexo ao Regulamento de Deontologia Médica aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho.
35. Esta obrigatoriedade não era, no entanto, imposta por norma similar no Estatuto Disciplinar dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto, vigente à data dos factos, e nem sequer na Lei n.º 117/2015, de 31 de Agosto, que o revogou, e cujo artigo 135.º, n.º 1 consagra apenas que «O médico deve exercer a sua profissão de acordo com as leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade.»
36. Ora, não vigorando, até à entrada em vigor do Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho, a obrigatoriedade de registo, de forma clara e detalhada, dos resultados relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, nenhum dos médicos da ULSAM podia ter violado, em 25.10.2013, qualquer regra de arte que, à data, lhes impusesse o «registo das complicações intra-operatórias que terão ocorrido.»
37. Sempre se dirá, no entanto, que durante o pós-operatório da histerectomia, logo que a Autora começou a apresentar lombalgias foi reencaminhada para a especialidade de urologia, onde foram de imediato realizados todos os exames necessários, e onde foi verificado o repuxamento / angulação dos ureteres, ou seja, portanto, a ULSAM agiu com o cuidado e a diligência que lhe era exigível.
38. Deverá ainda realçar que na técnica utilizada, os cirurgiões Dr.ª BB e Dr. CC trabalharam em espelho, ou seja um de lado direito e outro do lado esquerdo da Autora, o que permite concluir que o repuxamento de ambos os ureteres não se terá devido ao descuido, desatenção ou imprudência de ambos os cirurgiões, em simultâneo, mas sim que na respectiva actuação ambos se confrontaram com as mesmas dificuldades, para as quais concorreram as condições anatómicas da própria Autora;
39. Os ureteres da Autora, tendo ficado repuxados, mantiveram-se íntegros, ou seja não laqueados, como referiu a testemunha Dr. FF, urologista que fez o acompanhamento da Autora a partir do momento que foi identificada a intercorrência.
40. Quanto à presença de pontos de sutura na bexiga, da Autora, importa ter em conta os esclarecimentos prestados pela Prof.ª Dr.ª EE e pelas testemunhas Dr.ª BB, e Dr.s CC e FF, tendo todos referido que as linhas de sutura são absorvíveis pelo organismo humano, em três ou quatro semanas;
41. Mais disse a Prof.ª Dr.ª EE que em situações excepcionais estes pontos de sutura podem, no entanto, nunca ser absorvidos pelo organismo humano, tendo a testemunha Dr. FF referido um caso de uma intervencionada que, ao fim de 30 anos, continuava a manter os pontos intactos;
42. Quanto à Consulta Técnico-Científica de 12.12.2018, o qual, provindo de um órgão colegial especialmente dotado de conhecimentos técnico-científicos para se pronunciar sobre as questões que lhe são colocadas, alude na resposta ao quesito 6.º ao risco da ocorrência de «lesões ureterais ou vesicais, durante a realização da histerectomia total», esclarecendo na resposta ao quesito 2.º esclarece que «As complicações ureterais são uma das complicações mais graves da histerectomia (...)»;
43. Relevante também a resposta afirmativa e peremptória aos quesitos 6.º «Tal como está descrito na literatura, existe o risco deste tipo de complicações, nomeadamente de lesões ureterais ou vesicais, durante a realização da histerectomia total» que, como se refere na resposta ao quesito 3.º, «podem ou não ser identificadas durante a cirurgia», esclarecendo-se na resposta ao quesito 2.º que «As complicações ureterais são uma das complicações mais graves da histerectomia (...)» e 10.º «Podendo ter múltiplas causas, as fístulas vesico-vaginais podem surgir principalmente após procedimentos ginecológicos e urológicos na cavidade pélvica na região pélvica.»
44. Com interesse também o referido em audiência, pela Prof.ª Dr.ª EE, cujos esclarecimentos constam do registo áudio na aplicação SITAF, com início aos 3:02 (m.s.) até aos 33:38 (m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam:
«[17:59] Perita (P): Mas, sim, pode acontecer.
[18:01] Advogado da Ré (AR): Mas essa situação, a acontecer, a Sra. Dra. diz pode acontecer e eu pergunto, a acontecer, é naturalmente tratada como uma intercorrência, uma situação que acontece... em função, digamos, da intervenção cirúrgica que está a acontecer, não significa que seja má prática, pode acontecer, sem que... pergunto eu, sem que seja má prática. Pode ser depois corrigido ou não.
[18:27] P: Respondendo a essa questão de uma forma direta e simples, pode acontecer, não é considerado má prática, é uma intercorrência da cirurgia e deverá ser detetada atempadamente, mas não é nada...
[18:42] AR: Não é má prática, portanto, aconteceu, depois é retificado, é corrigido, numa intervenção posterior eventualmente, seja o que for, mas não significa que a ter acontecido que seja uma má prática, não significa isso necessariamente.
[18:55] P: Não, se for uma angulação exagerada do ureter por suturas nos tecidos que o rodeiam, não, não é má prática.
[19:05] AR: Muito bem. Olhe, Sra. Dra., voltando aqui, e para terminar, voltando aqui a situação da... inicial, e que falamos da laceração, que a Dra. já referiu que é uma situação que pode acontecer, e referindo agora, quanto a esta questão que coloquei da má prática ou não em relação ao reposicionamento dos ureteres, a laceração também não é uma má prática? O facto de acontecer, não significa que seja uma má prática ou significa? Pode acontecer? A Sra. Dra. referiu até que com cirurgiões muito experientes pode acontecer, não é assim?
[19:41] P: Experientes, não experientes, pode acontecer, sim.
[19:44] AR: Pronto. Bom, mas não experiente, enfim, agora com experientes é que uma... Se a Dra. dissesse que só acontece com não experientes, é uma coisa, agora, se me diz que também pode acontecer com experientes, naturalmente é uma situação que, enfim, que passa ao lado daquilo que é a intervenção... humana. É uma intercorrência, acontece, pode acontecer, é isso, não é Sra. Dra.?
[20:06] P: Sim.
[20:06] AR: Muito bem.
[20:07] P: Sim.
[20:09] AR: Muito bem, não tenho mais nada, Sr. Dr., muito obrigado.
[20:11] Advogado da Autora (AA): Sr. Dr. Juiz, se me permite um pequeno esclarecimento aqui na... na sequência de... Ó Sra. Dra., desculpe, esta questão, que vem na sequência de uma pergunta feita pelo meu ilustre colega. O meu ilustre colega disse e bem... a Sra. Dra. disse e bem que a laceração pode... pode não ser constatada na hora, não é, pode ser posteriormente. Certo?
[20:41] P: Sim.
[20:44] AA: Mas se os fios estavam lá, mas se os fios estavam lá, das duas uma, ou é porque houve uma laceração que foi constatada na hora, ou porque houve uma inadvertência, digamos assim, certo?
[20:58] P: Certo.
[20:57] AA: Pronto, e haver essa laceração constatada na hora que pode ter acontecido, alguém se dá, digamos ao luxo, entre aspas, de não escrever isso no episódio de urgência?
[21:13] P: Pois não, isso é que não está bem.
[21:16] AA: É tudo Sr. Dr. Juiz.
[21:17] AR: Ó Sr. Dr., já agora, mas a má prática aqui é o não registo? A má prática, é o não registo, não é a intervenção propriamente dita
[21:27] P: Sim. Sim, pode existir, sim. A laceração é uma intercorrência, não é má prática.
[21:33] AR: A má prática é o não registo.
[21:36] P: Em princípio, em princípio, pode ser uma intercorrência.
[21:36] AR: Certo.
[21:37] P: ... o não registo é que é considerado má prática.
[21:44] AR: O não registo. Muito obrigada.
(...)
[22:15] Juiz (J): Sra. Dra., na... apenas aqui uma questão para lhe colocar e tem que ver, precisamente, com a resposta a este quesito número 7 do primeiro relatório que elaborou, que já lhe foi aqui perguntado, o relatório de 12 de dezembro de 2018. Eu já percebi daquilo que a Sra. Dra. me disse, que uma laceração da bexiga, aliás, eu já tive outro processo de uma histerectomia e pelos vistos o que é retirado do útero e o útero... vai-me perdoar a expressão, encosta a vários outros órgãos e por isso é uma cirurgia delicada, pode não ser cirurgião a cortar, a simples retirada do útero pode sensibilizar alguns outros órgãos, pelo menos foi aquilo que eu percebi de outros julgamentos que eu já tive de uma histerectomia total. O que eu não compreendo... e também já percebi que se houver uma laceração da bexiga que seja aparente, que seja detetada durante o procedimento, o cirurgião, manda a boa prática, que tenha que a corrigir, isso é óbvio, não é. Pronto, a minha questão aqui tem que ver com esta questão aqui... com este problema dos fios de sutura, que é uma das questões que aqui é falada, a existência de fios de sutura no interior da cavidade vesical... gostaria que a Sra. Dra. me esclarecesse este ponto de... o que é pode explicar então a existência de fios de sutura no interior da cavidade vesical e se isto é norma acontecer mesmo na sequência de uma laceração heterogénica aparente, portanto, seja detetada no momento em que está a decorrer o procedimento cirúrgico. Se é que me faço entender.
(23:50] P: Certo. Sim, eu vou tentar explicar. Durante a cirúrgica de histerectomia há um momento em que o útero encosta à bexiga e nós temos que descolar, digamos, a parte de fora do útero com muito cuidado para não afetar a bexiga... por algum motivo isto pode ocorrer e não é, volto a insistir, necessariamente má prática ocorrer, pode ser uma intercorrência. Se o cirurgião se apercebe que isto ocorreu, que é isto que é desejável, é que o cirurgião, apesar de ter esta intercorrência se aperceba da intercorrência, deve corrigi-la. Para corrigir esta laceração da bexiga, portanto, que é, neste caso, um corte que atravessa toda a parede da bexiga, e vai desde fora até ao interior da bexiga, e, portanto, o cirurgião para resolver este problema tem que suturar primeiro a parte de dentro da bexiga e depois suturar a parte de fora da bexiga. Quando sutura a parte de dentro da bexiga, os fios ficam lá porque mesmo que sejam, e devem ser, absorvíveis, eles demoram habitualmente muito tempo, semanas, a serem reabsorvidos, daí o facto, perante as complicações que esta doente apresentou no pós-operatório, foi feita, e muito bem, uma cistoscopia, que é uma endoscopia na bexiga, dentro da bexiga, e foram visualizados esses fios, que foram certamente utilizados para suturar a bexiga no momento da cirurgia. Não se pode explicar de outra maneira porque não existem fios dentro das bexigas normais. Não sei se consegui responder.
(25:49] J: Sim, sim, penso que sim. Portanto, isso, o que eu queria que a Sra. Dra. me explicasse ou me dissesse muito claramente é, porque eu preciso de perceber esse pormenor, este aparecimento de fios de sutura ainda não absorvidos dentro da... naquela zona onde foram detetados e que deu origem a essa segunda operação cirúrgica que a Sra. Dra. agora referiu, aliás deu mais do que uma, é normal, ou seja, eles ficariam lá durante muito tempo até serem absorvidos? Muito tempo, quanto tempo é que a Sra. considera que os fios demoram a ser absorvidos pelo organismo?
[26:27] P: O normal, eu não sei que fios foram usados, também não está descrito...
[26:29] J: Também não sei...
[26:30] P: ..., mas o normal é até três semanas... três semanas. Mas, pode ser mais depende dos organismos que estão a reabsorvê-los, neste caso, depende do organismo da doente. Há fio reabsorvíveis que na verdade nunca são reabsorvidos.
[26:45] J: Portanto, aqui, diz-se que a Autora foi submetida a histerectomia total no dia 25 de outubro de 2013 e que voltou a entrar no bloco operatório no dia 30 de Outubro, portanto, no mesmo mês. Tendo em conta este espaço temporal de 5 dias, em princípio, os fios ainda lá estariam.
[27:07] P: Ah, claro, sim, sem dúvida.
(...)
[32:00] J: Posso colocar a questão noutro sentido, Sra. Dra., durante uma histerectomia, abstraindo agora a questão da bexiga, qual é a probabilidade de uma lesão nos ureteres? Nomeadamente deste tipo, um repuxamento.
[32:15] P: O repuxamento que o Dr. diz não há, nós não falamos de repuxamento, a probabilidade de laceração ou lesão de um ureter é inferior a 1%, mas existe.
[32:36] J: E uma lesão do... e uma laceração do ureter é suscetível de gerar este problema ulterior que a Autora veio a padecer, portanto, esta... que a Sra. Dra. acabou de descrever.
[32:50] P: Sim é.
(...)»
45. Transportando-nos para o caso desta acção, e tal como consta da motivação do juízo que determinou o julgamento de facto «(...) este relatório (de fls. 366 e ss. do suporte físico dos autos) é muito claro ao afirmar que este tipo de cirurgia “não constitui por si só motivo para existirem fios de sutura no interior da cavidade vesical; tal só é possível no caso de inadvertidamente ou para correção de laceração iatrogénica da parede da bexiga, esta ter sido suturada em toda a sua espessura”.
46. E, como referiu a Sr.ª Perita Prof. Dr.ª EE, o repuxamento pode ter ocorrido por negligência, ou laceração iatrogénica; em face desta declaração, e porque esta última situação não está descrita, nem se veio a apurar ter existido, concluiu o tribunal a quo que «só resta a outra hipótese, ou seja, a de que, correndo tudo pela normalidade, este tipo concreto de lesão não existiria.»
47. Só que, a própria Prof.ª Dr.ª EE esclareceu que, não havendo lacerações espontâneas, estas podem no entanto ocorrer sem que sejam verificadas no momento, não sendo por isso registadas; referiu esta Sr.ª Perita que «pode existir durante uma cirurgia um reposicionamento... ou uma alteração da posição dos ureteres por... suturas à volta, que acabam por angular os ureteres e podem condicionar um ureter-hidronefrose ou, eventualmente, uma doença renal.»
48. Mais esclareceu a Sr.ª Perita que «Se for uma angulação exagerada do ureter por suturas nos tecidos que o rodeiam, não, não é má prática.», situação esta que pode acontecer com cirurgiões experientes e não experientes «(...) pode acontecer, sim.»
49. A primeira consulta de ginecologia da Autora nos serviços da ré, realizou-se no dia 20.06.2013 (facto provado 5.), tendo sido realizada pela Dr.ª DD, tendo sido aí estabelecido e discutido o diagnóstico base (leiomioma intramural do útero) – cf. documento n.º ... junto com a contestação (facto provado 6.), diagnóstico do qual a Autora tomou o devido e esclarecido conhecimento (facto provado 7.), tendo igualmente sido indicado que o pré-operatório e o procedimento cirúrgico seria a histerectomia abdominal total, do que a autora tomou o devido e esclarecido conhecimento – cf. documento n.º ... junto com a contestação (facto provado 8.),
50. Assim, após esta consulta de ginecologia, foi decidido submeter a Autora a cirurgia de histerectomia total, o que a autora aceitou (facto provado 8.);
51. A Autora declarou que compreendeu as explicações que lhe foram prestadas, em linguagem clara e simples – cf. documento n.º ... junto com a contestação (facto provado 11.); declarou, também, que lhe foram esclarecidas todas as dúvidas, e que queria conservar os ovários, caso estes não tivessem alterações – cf. documento n.º ... junto com a contestação (facto provado 12.);
52. No caso dos autos, incumbe à Autora lesada provar a ilicitude e culpa da conduta dos médicos da Ré ULSAM, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquela (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou;
53. Ocorre que na sua petição a Autora limita-se a referir que «claramente ocorreu uma anormalidade na primeira intervenção cirúrgica» (artigo 17.), que a histerectomia foi realizada com «negligência médica» (artigo 41.), com «grave negligência médica» (artigos 44. e 48.), com «negligência médica grave e grosseira» (artigos 49. e 54.), com «grave erro médico» (artigo 101.);
54. Para além disto, a Autora não articula quaisquer factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar por parte da ULSAM, no quadro da responsabilidade civil extracontratual;
55. Alegar como está alegado no artigo 49. da petição inicial que «ocorreu grave e grosseira negligência médica de que resultou repuxamento de ureteres» é praticamente inócuo do ponto de vista da substanciação, ou pelo menos manifestamente insuficiente. Assim,
56. Lendo, com toda a atenção, a petição inicial e analisando o que nela está vertido, permite-nos, sem hesitação, dizer que a mesma não tem a virtualidade de responsabilizar a Ré / Recorrente, seja a que título for pois, não estão alegados factos que permitam a procedência do pedido com base na responsabilidade delitual;
57. É que, sendo imperiosa a alegação e prova dos factos (de todos os factos) integradores dos elementos constitutivos da responsabilidade civil, que são cumulativos, a exclusão de qualquer deles desde logo condena a pretensão da autora ao insucesso;
58. Realça-se aqui que a observância das leges artis consiste na obediência às regras teóricas e práticas de profilaxia, diagnóstico e tratamento, aplicáveis no caso concreto, em função das características do doente e dos recursos disponíveis pelo médico;
59. Ocorre que no caso da Autora, o repuxamento de ambos os ureteres não se deveu ao descuido, desatenção ou imprudência de ambos os cirurgiões, em simultâneo, mas sim que na respectiva actuação ambos se confrontaram com as mesmas dificuldades, para as quais concorreram as condições anatómicas da própria Autora, que apresentava obesidade, sobredimensão do útero e anterior realização de uma apendicectomia;
60. Os depoimentos da perita Dra. EE e das testemunhas, Dra. DD, Dra. HH, Dr. CC e Dr. FF foram peremptórios ao afirmar que o repuxamento dos ureteres é uma intercorrência possível na cirurgia de histerectomia total, que se pode verificar ainda que cumprida a técnica exigível e aplicada toda a diligência, zelo e cuidado, para a qual contribui a complexidade própria da cirurgia, estão em causa várias estruturas e a intervenção cirúrgica ocorre sem a visualização dos ureteres, acrescido dos factores de riscos existentes no caso concreto, pelo que a sua verificação não constitui má prática, erro médico ou negligência.
61. Em face do que precede, é pois manifesto que a Autora não logrou demonstrar que na execução do acto cirúrgico realizado no dia 21.10.2013 os médicos da Ré / Recorrente tenham violado as regras de ordem técnica e o dever geral de cuidado justificados nas leges artis vigentes.
62. Os procedimentos levados a cabo pelos médicos e enfermeiros da ULSAM que consultaram, observaram e de algum modo intervieram no acompanhamento clínico da Autora, foram, portanto, os exigíveis face ao quadro clínico em causa, e especificadamente quanto à presença dos três factores de elevado e acrescido risco atrás descritos: obesidade, sobredimensão do útero e anterior realização de uma apendicectomia;
63. Nessa circunstância, a conduta dos médicos e enfermeiros da ULSAM que consultaram, observaram e de algum modo intervieram no acompanhamento clínico da Autora foi empreendida de acordo com as legis artis, atento o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina suportada na literatura internacional.
64. Assim, e por se tratar de factos com interesse para a decisão da causa, devem, aos factos provados, ser aditados os pontos 6.1., 6.2., 6.3., 6.4., 6.5., 59.1., 59.2. e 59.3. com o seguinte teor:
6.1. No exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respectiva anamnese que a Autora apresentava uma altura de 1,68m, um peso de 90Kg - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.2. Nessa data, a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.3. Ficou igualmente registado que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
6.4. A obesidade e o volume do útero são factores que dificultam a abrangência do campo operatório.
6.5. A histerectomia realiza-se sem visualização dos ureteres.
59.1. Tendo em conta a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), e a história clínica da Autora, com a realização de uma apendicectomia anterior, com a presença de aderências que torna os tecidos mais aderentes entre si, mais fibróticos, tornou mais difícil a dissecção entre planos que envolveu a técnica cirúrgica da histerectomia realizada, a presença de fios de sutura no trígono vesical a repuxar os meatos uretrais constituiu uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
59.2. Intercorrência esta que não foi identificada durante a histerectomia realizada, não tendo por isso sido registada.
59.3. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que acontece de 0,2% a 0,5% das cirurgias - cf. fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019.
65. Por não se demonstrar provado, quer documentalmente, quer na audiência, deve ainda ser eliminado dos factos provados, o ponto 57. com o seguinte teor:
57. Se a intervenção cirúrgica de histerectomia tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, não teria havido necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que a Autora teve de submeter-se;
66. Ainda dos factos provados, deve o teor do ponto 59. ser alterado, passando a ter seguinte redacção:
59. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.
67. Por se encontrar repetido com o ponto 59. antecedentemente descrito, deve também ser eliminado dos factos provados, o ponto 28. com o seguinte teor:
28. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar / laquear os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.
68. Por sua vez deve, dos factos não provados, ser eliminado o ponto K) com o seguinte teor:
K) Não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), a permanência dos fios de sutura na bexiga constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
69. Sendo a Medicina uma ciência não exacta, desde logo, porque perante um mesmo paciente com uma determinada sintomatologia, vários médicos oferecem, muitas vezes, diagnósticos distintos, quer ainda porque acontece, frequentemente, no processo de cura, uma interferência de circunstâncias imprevisíveis, tal não deve constituir argumento justificativo da impossibilidade de comparação da conduta médica, pelas suas características próprias, com qualquer outra actividade profissional, atendendo às suas consequências, muitas vezes, irreparáveis.
70. Na verdade, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o médico apenas está vinculado a uma obrigação geral de prudência e de diligência, empregando a sua ciência para a obtenção da cura do doente.
71. Uma vinculação que apenas exige que o médico assuma um comportamento particularmente diligente, e que o exonera de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior;
72. Como resultou provado, o repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia.
73. Assim, não pode concluir-se que houve aqui, e neste aspecto, a omissão de um comportamento devido, a inobservância das legis artis.
74. Não resultou por isso minimamente provada a omissão, ou sequer o desacerto de diagnóstico, susceptível de ser configurado como negligência médica própria de quem age sem cuidado, sem zelo, sem diligência e sem prudência;
75. Efectivamente, face os provados não pode concluir-se sem margem para qualquer dúvida que na histerectomia realizada tenha sido praticado, ou omitido, algum acto negligente determinante para a verificação do repuxamento / angulação dos ureteres sofrido pela Autora.
76. A sentença recorrida viola, nesta parte, o disposto no Estatuto Disciplinar dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto, e artigos 135.º, n.º 1 da Lei n.º 117/2015, de 31 de Agosto, 340.º, n.ºs 1 e 3, 342.º, 483.º, 487.º, n.ºs 1 e 2 e 496.º do Código Civil (CC), e artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC).

NESTES TERMOS
e melhores de direito, cujo douto suprimento se invoca, e dando-se provimento ao recurso agora interposto, deve a sentença recorrida ser substituída por outra que, julgando a acção totalmente improcedente, absolva a Ré / Recorrente ULSAM do pedido assim se fazendo a acostumada
JUSTIÇA.»
1.8. A Autora contra-alegou, mas não formulou conclusões.
1.9. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso.
1.10. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber:
b.1. se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto por:
(i) não ter levado aos factos assentes a seguinte matéria, que deve ser aditada:
«6.1. No exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respectiva anamnese que a Autora apresentava uma altura de 1,68m, um peso de 90Kg - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.2. Nessa data, a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.3. Ficou igualmente registado que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
6.4. A obesidade e o volume do útero são factores que dificultam a abrangência do campo operatório.
6.5. A histerectomia realiza-se sem visualização dos ureteres.
59.1. Tendo em conta a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), e a história clínica da Autora, com a realização de uma apendicectomia anterior, com a presença de aderências que torna os tecidos mais aderentes entre si, mais fibróticos, tornou mais difícil a dissecção entre planos que envolveu a técnica cirúrgica da histerectomia realizada, a presença de fios de sutura no trígono vesical a repuxar os meatos uretrais constituiu uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
59.2. Intercorrência esta que não foi identificada durante a histerectomia realizada, não tendo por isso sido registada.
59.3. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que acontece de 0,2% a 0,5% das cirurgias - cf. fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019.
(ii) por ter levado aos factos assentes a matéria do ponto 57, a qual por não se demonstrar provada, quer documentalmente, quer na audiência, deve ser eliminada dos factos provados,
(iii) por ser necessário alterar a redação do ponto 59 dos factos assentes;
(iv) por ser necessário eliminar o ponto 28 por se encontrar repetido no ponto 59.
(v) por ser necessário eliminar dos factos não provados, o ponto K) .
b.2. se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito, por ter julgado como incumprida a legis artis, violando o disposto no Estatuto Disciplinar dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 217/94, de 20 de Agosto, e artigos 135.º, n.º 1 da Lei n.º 117/2015, de 31 de Agosto, 340.º, n.ºs 1 e 3, 342.º, 483.º, 487.º, n.ºs 1 e 2 e 496.º do Código Civil (CC), e artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC).
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora nasceu em .../.../1971 – cf. certidão de assento de nascimento junta aos autos;
2. No dia 21.02.2013, a autora dirigiu-se ao Centro de Saúde ..., para uma consulta de planeamento familiar – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial;
3. Apresentava-se com os seguintes exames: ecografia vesical supra-púbica normal, ecografia renal e supra renal normal e ecografia endovaginal anormal, com o diagnóstico de útero multimiomatoso – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial;
4. Na sequência deste diagnóstico, acorreu a nova consulta em 18.03.2013, tendo sido então encaminhada para uma consulta de ginecologia no Hospital ..., da ré, em ... – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial;
5. A primeira consulta de ginecologia da autora nos serviços da ré, realizou-se no dia 20.06.2013, tendo sido realizada pela Dr.ª DD, tendo sido aí estabelecido e discutido o diagnóstico base (leiomioma intramural do útero) – cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6. Diagnóstico do qual a autora tomou o devido e esclarecido conhecimento;
7. Tendo igualmente sido indicado que o pré-operatório e o procedimento cirúrgico seria a histerectomia abdominal total, do que a autora tomou o devido e esclarecido conhecimento – cf. documento n.º ... junto com a contestação;
8. Assim, após esta consulta de ginecologia, foi decidido submeter a autora a cirurgia de histerectomia total, o que a autora aceitou;
9. Trata-se de uma cirurgia que muitas mulheres realizam, sendo um procedimento típico da cirurgia ginecológica, que consiste na retirada do útero, sendo total quando se retira a totalidade deste órgão e o colo do útero;
10. E que, segundo a literatura médica, apresenta um risco inferior a 1% de lesão ureteral;
11. A autora declarou que compreendeu as explicações que lhe foram prestadas, em linguagem clara e simples – cf. documento n.º ... junto com a contestação;
12. Declarou, também, que lhe foram esclarecidas todas as dúvidas, e que queria conservar os ovários, caso estes não tivessem alterações – cf. documento n.º ... junto com a contestação;
13. No dia 21.10.2013, foi realizada a consulta de pré-operatório – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial;
14. A Autora foi submetida a histerectomia total no dia 25.10.2013, realizada pelos médicos-cirurgiões da ULSAM, Dr.ª BB (cirurgião principal) e Dr. CC (cirurgião adjunto) – facto não controvertido;
15. Tendo um destes realizado os passos inerentes à técnica cirúrgica à direita e o outro realizado os passos inerentes à técnica cirúrgica à esquerda;
16. Técnica habitualmente praticada nos serviços do réu, decorrendo o procedimento cirúrgico com a seguinte sequência – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial:
a. Desinfeção, algaliação e colocação de campos cirúrgicos;
b. Incisão de “Pfannenstiel” e abertura da parede abdominal por planos;
c. Inspeção da cavidade abdmino-pélvica constatando-se útero aumentado do tamanho e ovários macroscopicamente normais;
d. Procedeu-se a histerectomia total com conservação dos anexos;
e. Procedeu-se a revisão cuidada da hemóstase;
f. Procedeu-se ao fecho da parede abdominal por planos e da pele com agrafos;
g. Verificou-se perda hemática escassa;
h. Confirmou-se uma correta contagem de compressas;
i. A peça retirada foi enviada para anatomia patológica.
17. Do relato cirúrgico, constam todos os passos normais a este procedimento, sem qualquer referência a intercorrências perioperatórias anormais – facto não controvertido;
18. Porém, no segundo dia pós-operatório a Autora referia náuseas e vómitos frequentes – facto não controvertido;
19. Sintomas enquadrados numa situação clínica de obstrução ureteral parcial, sendo o diagnóstico também suportado pelo aumento da creatinina sérica;
20. Frequentemente, as lesões ureterais não são reconhecidas durante as intervenções cirúrgicas, uma vez que só se manifestam mais tarde, no período pós-operatório;
21. Inexistindo evidência científica que suporte o uso por rotina de cistoscopia intra-operatória para detetar lesão oculta do trato urinário;
22. Em observação realizada nesse mesmo dia, a Autora apresentava um quadro de insuficiência renal aguda, pelo que foi contactada médica de medicina interna, que deu indicação para hidratação, algaliação e ecografia reno-visical – facto não controvertido;
23. Esta ecografia reno-visical evidenciava ectasia leve bilateral dos sistemas excretores, um pouco maior à direita e de significado ainda mal definido, a correlacionar com dados clínicos e analíticos – facto não controvertido;
24. Ou seja, a excreção urinária encontrava-se diminuída por obstrução a jusante;
25. No dia 29.10.2013, a Autora realizou uma TAC renal para deteção do local da obstrução, revelando esse exame dilatação pielocalicial e ureteral bilateral, ligeiramente maior à direita, não sendo possível identificar imagiologicamente a causa obstrutiva, por exame sem contraste endovenoso, não havendo, nomeadamente, evidências de litíase em ambos os ureteres – facto não controvertido;
26. No diário do mesmo dia, é escrito pelo médico Dr. II que a Autora aguarda opinião de urologia – facto não controvertido;
27. No dia 30.10.2013, a Autora entrou no bloco operatório para colocação de cateter duplo JJ bilateralmente via cistoscopia, devido a alegado repuxamento dos ureteres – facto não controvertido;
28. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar/laquear os meatos ureterais – cf. documento n.º ... junto com a petição inicial;
29. Esta segunda operação não constitui uma consequência normal da primeira;
30. Tinha como objetivo permitir o correr da urina sem cortar os fios para evitar hemorragias, esperando que os fios fossem absorvidos pelo organismo;
31. A autora teve alta no dia 01.11.2013 – facto não controvertido;
32. Continuou a não ter quaisquer melhoras e a perder urina pela vagina, constantemente;
33. No dia 12.11.2013, a Autora dirigiu-se a uma consulta no hospital da ULSAM em ..., tendo-lhe sido marcada uma terceira intervenção cirúrgica, devido às queixas e infeções urinárias constantes e por existência de corpo estranho na bexiga, mais precisamente fios de suturação – facto não controvertido;
34. A Autora foi operada pela terceira vez, no dia 27.11.2013, tendo sido realizada nova cistoscopia para secção dos fios de sutura endovesicais peritrogonais decorrentes da histerectomia – facto não controvertido;
35. Isto porque a absorção dos fios de sutura não aconteceu;
36. Nesta intervenção foi, ainda, detetada a existência de uma fístula na bexiga, não sendo percetível onde estava instalada; contudo, por via do exame que foi feito foi possível perceber que saía líquido pela vagina;
37. As fístulas vesico-vaginais consistem em comunicações entre a bexiga e a vagina, levando à perda contínua de urina;
38. Podem ter múltiplas causas, mas surgem principalmente após procedimentos cirúrgicos na região pélvica;
39. A autora teve alta no dia 29.11.2013 – facto não controvertido;
40. No dia 11.12.2013, a autora dirigiu-se ao Centro de Saúde ..., devido a mais uma infeção urinária – cf. documento n.º ...1 junto com a petição inicial;
41. Mesmo depois de medicada, não conseguia suportar as dores, e passados cinco dias, em 16.12.2013, a autora voltou ao centro de saúde devido ao agravamento da infeção urinária e queixas de forte incontinência urinária – cf. documento n.º ...2 junto com a petição inicial;
42. Nesta consulta, a autora lamentou o facto das infeções urinárias contínuas, ficando ainda registado que a autora referiu que a primeira cirurgia tinha corrido mal, tendo sido perfurada a bexiga – cf. documento n.º ...2 junto com a petição inicial;
43. Na verdade, e além das infeções urinárias, a autora sofria, desde a primeira cirurgia, de forte incontinência urinária;
44. Foi, então, decidido realizar uma quarta intervenção cirúrgica, para correção da fístula vesicovaginal via transvesical – cf. documento n.º ...3 junto com a petição inicial;
45. A intervenção cirúrgica ocorreu no dia 12.03.2014, tendo sido realizada uma correção da fístula vesicovaginal, via transvesical – facto não controvertido;
46. Foi realizada nessa data porque havia que aguardar três meses, por ser o período necessário para os tecidos se restabelecerem;
47. O internamento prolongou-se por 15 dias – facto não controvertido;
48. Antes daquela primeira intervenção cirúrgica, a autora não tinha qualquer tipo de problemas de origem urológica;
49. À data da última cirurgia, de 12.03.2014, sucederam-se consultas no Centro de Saúde ..., nos dias 14, 15 e 23 de Abril de 2014 – cf. documentos n.º ...3, ...4, ...5 e ...6 juntos com a petição inicial;
50. Por duas vezes, foi reencaminhada para a urgência do Hospital ..., da ré, em ...;
51. Na 13.ª consulta, em 19.05.2014, é referido que a Autora “fez nova cistoscopia para extração do JJ colocado, no dia 22 de Abril de 2014, sendo certo que a doente continuava a registar perdas urinárias. É escrito, ainda, nesta consulta, que os meatos ureterais estão “ok” mas verifica-se pequeno orifício justa meato à direita a montante. Eventualmente compatível com recidiva, devido ao facto de a doente apresentar bactéria multirresistente e encontrar-se sub-febril, é reinternada” – facto não controvertido;
52. Foi marcada uma quinta operação, para correção da fístula entre a bexiga e a vagina – facto não controvertido;
53. O registo desta cistografia de Maio de 2014 confirma a fístula vesico-vaginal acima dos meatos – facto não controvertido;
54. A quinta cirurgia realizou-se no dia 17.06.2014, tendo a Autora obtido alta dez dias depois, em 27.06.2014 – facto não controvertido;
55. Naquele dia 17.06.2014 porque houve que aguardar o decurso do período de restabelecimento dos tecidos;
56. Sucederam-se outras consultas, e no dia 05.09.2014 foi considerada como doente assintomática – facto não controvertido;
57. Se a intervenção cirúrgica de histerectomia tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, não teria havido necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que a autora teve de submeter-se;
58. De facto, naquela primeira cirurgia resultou repuxamento dos ureteres, o que determinou a necessidade de colocação de cateter “duplo JJ” bilateralmente, via cistoscopia;
59. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais, o que não poderia ter sucedido;
60. No Hospital ..., da ré, foi explicado à autora, oralmente, que lhe coseram a bexiga junto com a cavidade vaginal e que houve perfuração da bexiga;
61. Após a primeira intervenção, a autora passou a sofrer perdas de urina acentuadas, chegando a necessitar de substituir as fraldas “Tena” a cada 5 minutos;
62. A autora esteve de baixa médica desde Outubro de 2013, não tendo podido voltar às atividades normais do quotidiano até ao dia 10.10.2014;
63. Entre 25.10.2013 e 10.10.2014, esteve totalmente incapacitada para todo e qualquer trabalho;
64. Sofreu fortes angústias e dores nos períodos ante e pós-operatórios;
65. Desde 25.10.2013, data da primeira cirurgia, sofreu, todos os dias, fortes dores na bexiga;
66. O grau de dor suportado pode ser fixado em 4, numa escala de 0 a 7;
67. Sentiu-se diminuída, por não poder ter uma vida normal, como pessoa, como esposa e como mulher;
68. A sua atividade sexual sofreu uma perda e limitação;
69. Com efeito, desde o dia .../.../2013 e até cerca de um ano depois, a autora não pôde voltar a consumar o ato sexual de cópula, devido às perdas urinárias que logo surgiam nos primeiros contactos;
70. Desde a primeira intervenção cirúrgica, e devido às sequelas daí resultantes, a autora teve despesas em medicação, consultas e outros serviços, no montante de € 1.063,81, que não teria se aquela primeira cirurgia tivesse sido realizada com normal destreza e atenção – cf. documentos m.º 25 a 99 juntos com a petição inicial.
*
II – Factos Não Provados
Com relevo para a decisão a proferir, não ficou provado que:
A) Não há qualquer registo dos motivos que determinaram a realização da histerectomia;
B) Da segunda cirurgia, realizada em 30.10.2013, que consistiu na colocação de cateter “duplo JJ” bilateralmente via cistoscopia, viria a resultar a formação da fístula;
C) Os médicos assumiram que as infeções urinárias da autora não tinham tratamento;
D) O estado de saúde da autora continua muito deteriorado;
E) A Autora vive em desespero constante;
F) O seu estado de saúde está deteriorado para sempre, como consequência da primeira intervenção de histerectomia;
G) Desde 10.10.2014, as sequelas permanentes de que a autora é portadora determinam incapacidade parcial permanente para o trabalho e, ainda, para toda a sua atividade diária indiferenciada, fixável em 30 pontos;
H) A autora tem dores e sofrimentos muito intensos;
I) A autora não poderá, jamais, recuperar da diminuição das suas funções fisiológicas do aparelho urinário e genital;
J) Vive, sempre, a temer a necessidade de uma próxima cirurgia ou internamento hospitalar;
K) Não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), a permanência dos fios de sutura na bexiga constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
L) As fístulas vesico-vaginais ocorrem especialmente em casos de incapacidade de cicatrização conveniente por parte de organismos intervencionados.
*
3.2. O Senhor juiz a quo adiantou a seguinte motivação para justificar o julgamento da matéria de facto:

III – Motivação
«De acordo com o disposto no art.º 607.º, n.º 5, do CPC “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Assim sendo, exposto que ficou o julgamento de facto, segregando os que foram considerados provados daqueles que não o foram, cumpre motivar esse juízo. Sendo certo que, nessa tarefa, além da posição expressa das partes, o Tribunal considerou, analisando-os de modo crítico e conjugado, e à luz das regras da experiência comum, os meios de prova disponibilizados nos autos, designadamente a prova pericial, as declarações de parte, o depoimento das testemunhas e os documentos.
Desde logo, atendendo à posição expressa pelas partes, em particular o estabelecido no art.º 1.º da contestação, constituem factos não controvertidos e, por isso, plenamente provados, aqueles que se encontram enumerados em 14, 17, 18, 22, 23, 25, 26, 27, 31, 33, 34, 39, 45, 47, 51, 52, 53, 54 e 56. Pelo que, quanto aos mesmos, fica afastado qualquer juízo subjetivo do Tribunal.
Em relação ao facto elencado em 1, foi considerada a certidão do assento de nascimento junta aos autos, tal como imposto pelo Código do Registo Civil.
No âmbito dos presentes autos, também assume importância a prova documental, em particular os registos clínicos referentes às intervenções, internamentos e consultas da Autora. A este respeito, importa desde logo referir que feita a análise crítica dos documentos que foram emitidos por estabelecimentos de saúde [Centro de Saúde ... (à data dos factos) e Hospital ..., ambos sob responsabilidade da ULSAM], quanto a estes não existem dúvidas no que respeita à sua genuinidade ou à fidedignidade do seu conteúdo, pelo que foram merecedores de crédito para efeitos probatórios.
O Tribunal indicou, para melhor elucidação, e a propósito de cada facto elencado (sempre que foi o caso, naturalmente) o documento que, em concreto, firmou a sua convicção. Estão nesta situação, designadamente, os factos provados dos pontos 2 a 5, 7, 11 a 13, 16, 28, 40, 41, 42, 44, 49 e 70 (neste caso, não são emitidos por entidades de saúde, mas foram conjugados com a prova testemunhal, como se verá).
Sendo certo que, sempre que o facto seja referido a propósito de outro meio de prova, significa que foram conjugados para obter aquela conclusão.
Depois, pela natureza da presente ação – emergente de ato médico – a prova pericial ocupa espaço de relevo. Sendo que, no caso, foi determinada a realização de perícia médico-legal, elaborada pelo INMLCF, mas em dois planos, consoante as competências daquele instituto.
Assim, foi elaborada perícia pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Minho-Lima, abrangendo as matérias da repercussão das cirurgias e tratamentos para a Autora. O relatório consta a fls. 379 e ss. do suporte físico dos autos, e foi considerado pelo Tribunal para considerar provados os factos elencados nos pontos 63 e 66, dado que, nessa parte, se apresenta credível e assente em juízo técnico.
Por outro lado, o conselho médico-legal do referido instituto elaborou a consulta técnico-científica [fls. 366 e ss. do suporte físico dos autos], versando sobre questões mais viradas para a intervenção cirúrgica propriamente dita. Tratando-se de um relatório técnico, fundamentado, elaborado por quem apresenta conhecimentos sobre o assunto, como aliás ficou demonstrado pelos esclarecimentos em audiência, foi neste relatório que o Tribunal baseou a sua convicção quanto aos factos provados nos pontos 10, 20, 29, 38, 57 e 58. Também foi neste relatório que o Tribunal suportou a sua convicção quanto à parte final do facto provado 59.
Com efeito, saliente-se que este relatório é muito claro ao afirmar que este tipo de cirurgia “não constitui por si só motivo para existirem fios de sutura no interior da cavidade vesical; tal só é possível no caso de inadvertidamente ou para correção de laceração iatrogénica da parede da bexiga, esta ter sido suturada em toda a sua espessura”. Mais acrescentando, agora na resposta ao quesito 12, que o “repuxamento” nunca seria congénito, mas sim consequência do ato cirúrgico. Nenhuma destas conclusões foi infirmada em sede de audiência final, pelo contrário; aliás, referiu mesmo a Sr.ª Perita que um repuxamento (situação que, de facto, não foi afirmada pela Sr.ª Perita, porque não presenciou, mas está demonstrada por outra prova) seria muito estranho, porque era necessário puxar como que de propósito os ureteres. Na verdade, a Sr.ª Perita esclareceu que só pode ter ocorrido uma de duas coisas: ou negligência, ou laceração iatrogénica; se esta última não está descrita, nem se veio a apurar ter existido (dado que o que veio a constatar-se foi que os cirurgiões suturaram de forma inadvertida os ureteres), só resta a outra hipótese, ou seja, a de que, correndo tudo pela normalidade, este tipo concreto de lesão não existiria.
Veja-se que não falamos de uma qualquer lesão dos ureteres (como seria a laceração, ou seja, cortar ou rasgar), mas de um caso de repuxamento por via de sutura. E daí que a Sr.ª Perita tenha explicado, a nosso ver de forma clara, que este tipo de lesão só podia suceder por negligência ou para resolver outra lesão, porque, caso contrário, não se vislumbra como possível suturar os próprios ureteres, deixando-os parcialmente obstruídos.
Segue-se que a Autora prestou declarações de parte.
Como é sabido, porque assim decorre do art.º 466.º, n.º 3, do CPC, estas declarações são livremente apreciadas pelo Tribunal (salvo se houver confissão, o que não sucedeu in casu, como se constata da ata da audiência).
Ora, ainda que as declarações de parte sejam prestadas por quem tem interesse na causa (o que é inerente à condição de parte), preferimos sempre proceder à sua análise subjetiva, i. e., pelo modo como foram prestadas em audiência, embora sempre com redobrada atenção, dada aquela circunstância objetiva de o declarante ser o interessado na decisão. E, claro, tendo em conta os demais meios de prova.
Partindo desta premissa, temos que as declarações da autora se apresentaram, acima de tudo, espontâneas. Com efeito, a Autora falou, sem rodeios e mantendo sempre o mesmo registo, dos factos que vivenciou, desde o recurso ao centro de saúde, até às intervenções que sofreu e aos tratamentos a que foi sujeita. Particularmente impressivo foi o relato que fez quanto às perdas de urina durante aquele período, e cuja objetividade não questionamos. Tanto mais que, nesse aspeto, o seu relato é totalmente coerente com os respetivos registos clínicos.
Nesta medida, e desde logo, as declarações de parte, por si ou conjugadas com prova documental ou prova testemunhal (que abaixo se analisará) contribuíram para considerar provados os factos elencados nos pontos 2 a 8, 11, 12, 32, 40, 41, 42, 43, 48, 49, 50, 60, 61, 62, 64, 65, 67, 68 e 69.
Prestou depoimento, de seguida, JJ, marido da Autora. Não obstante essa condição, o depoimento mostrou-se claro, objetivo e sem denotar qualquer espécie de comprometimento; pese embora, cumpre dizer, o alcance do seu conhecimento seja limitado, dado que a testemunha se encontrava, aquando da primeira intervenção, emigrado em França (segundo referiu, foi cerca de 15 dias antes da primeira operação, e esteve um mês naquele país; esteve em Portugal cerca de dois meses, para acompanhar a esposa, e voltou para França), pelo que quanto a esse período não é possível considerar o depoimento da testemunha. De todo o modo, referiu-se com precisão e objetividade ao estado anterior da esposa, aqui Autora, bem como que a acompanhou à consulta com o “Dr. KK”, e que aí foi explicado que a bexiga estava cosida juntamente com a vagina; o depoimento versou ainda sobre as despesas incorridas, bem como sobre a afetação da vida sexual conjugal. Em tudo isso – ou seja, na parte sobre a qual a testemunha tem efetivo conhecimento – o depoimento foi por nós considerado credível, espontâneo e livre, pelo que a partir dele se formou a convicção do tribunal quanto aos factos provados 48, 60, 61, 62, 67, 68, 69 e 70.
Pautou-se pelo mesmo registo credível o depoimento da testemunha JJ, filho da autora. Relatou que antes da operação a vida da mãe era normal, e que depois da operação chegou a ter de dormir na banheira, por causa das perdas de urina. Situação esta – de perdas de urina abundante – que terá demorado cerca de 2 ou 3 meses. Acrescentou que “andava sempre a comprar fraldas”, porque a algália não chegava, e que a mãe se queixou de dores mesmo após as operações (durante cerca de um ou dois anos). Como referido, nesta parte em que a testemunha demonstrou ter conhecimentos, o depoimento merece-nos crédito, por ter decorrido de forma tranquila, objetiva e coerente, sem detetar qualquer comprometimento ou parcialidade. Em face do que o depoimento foi considerado para julgar provados os factos elencados nos pontos 32, 40, 41, 43, 48, 61, 64, 65, e 67.
Foi ouvido, seguidamente, e também na qualidade de testemunha, LL, que disse ao Tribunal ter sido o empregador da Autora durante uns anos. Em registo que se apresentou isento, objetivo e coerente, disse que a Autora não apresentava qualquer limitação física antes da operação, mas que, depois desse evento, esteve um “ano e tal sem trabalhar”, e que a via muito mal, continuando a queixar-se; não conseguia, por exemplo, pegar em pesos; trabalhou apenas mais seis ou sete meses, tendo depois partido para França. Pela forma como o depoimento foi prestado, considerou-se credível, nomeadamente para dar como provados os factos que constam dos pontos 48, 62, 64 e 67.
Ainda a respeito de testemunhas arroladas pela Autora, foi ouvida MM, que afirmou conhecer aquela por ter sido sua paciente no Centro de Saúde .... Nesta medida, o depoimento recaiu, no essencial, sobre os factos relacionados com a intervenção daquela unidade de saúde, sendo certo que a testemunha se fez acompanhar dos respetivos registos. Desde logo, quanto aos sintomas apresentados em 2013, descrevendo a Autora como uma pessoa normal e agradável antes da intervenção cirúrgica, sem registo de qualquer problema dos foros urológico ou psicológico. Com base nos registos, afirmou vários diagnósticos de infeções urinárias, após a cirurgia, bem como de várias consultas. Ora, assim sendo, por este âmbito de conhecimento, e dado que o depoimento se pautou por isenção, coerência e objetividade, mereceu crédito, e foi considerado para considerar provados os factos dos pontos 2 a 4, 40 a 42, 49, 65 e 67.
No que respeita à prova testemunhal produzida pela ré.
Começou por ser ouvida DD, médica especialista em ginecologia e obstetrícia, e funcionária da ULSAM. Confirmou ter feito a primeira consulta à autora, bem como o respetivo diagnóstico, e explicou as diligências efetuadas; porém, sobre a cirurgia declarou nada saber, porque não participou no procedimento. Apenas se referiu em abstrato ao procedimento em causa, desconhecendo o que terá sucedido em concreto. De todo o modo, pelo seu âmbito de conhecimento, considerou-se o depoimento quanto aos factos provados em 5 a 9, 11 e 12, dado que não se mostrou afetada pela condição de funcionária da ré, falando de forma livre, esclarecida e circunstanciada.
Seguiram-se os depoimentos de HH e CC. São depoimentos a considerar, porque as testemunhas foram os cirurgiões que realizaram a primeira operação, e da qual terão resultado as lesões que a Autora invoca (portanto, realizaram a histerectomia total). Mas também por isso, dado estar em causa a sua atuação, a análise destes depoimentos mereceu-nos particular atenção.
Ora, sobre os depoimentos em causa impõe-se dizer que não vemos razão para lhes retirar crédito. Sobretudo na parte em que explicaram o procedimento e o modo como decorreu a cirurgia, e ainda porque, quanto à questão da lesão ureteral pode não ser percecionada no momento da cirurgia, os depoimentos são consentâneos com a prova pericial produzida. Daí que constituam prova suficiente para considerar provados os factos elencados nos pontos 15 e 16. Também serviram os depoimentos em causa para considerar provados os factos 20 e 21, aqui em especial pela consonância com a prova pericial [segundo se apurou, a utilização de cistoscopia apenas é utilizada, por rotina, em cirurgias oncológicas].
Aliás, a testemunha CC admitiu, de forma espontânea, que a sutura originou o repuxamento, e que a única explicação que encontra para ter sucedido é a existência de uma alteração anatómica na Autora (em especial porque o repuxamento ocorreu dos dois lados, i. e., em ambos os ureteres). E a testemunha BB referiu, sem fugir à questão, que os fios encontrados são da operação que realizaram. Daí que não tenhamos dúvida de que não se tratou de uma atuação intencional, ou que tenha sido omitida a descrição: simplesmente, no momento, os cirurgiões não se aperceberam, porque a lesão não se revelava.
Sem prejuízo de todos os outros meios de prova produzidos, e já referidos, consideramos que o testemunho de FF assumiu particular importância na discussão. Designadamente pelo seu âmbito de intervenção, já que se trata do urologista que intervencionou a autora no sentido de resolver o problema criado com a lesão dos ureteres, mas também pela forma esclarecida, calma e espontânea como depôs, resultando ausente qualquer razão que o descredibilize – pelo contrário.
Esta testemunha confirmou as queixas apresentadas pela autora e as suspeitas que geraram, desde logo contribuindo para o que consta provado nos pontos 19 e 20. Também foi esclarecedor sobre o estado da autora após a primeira cirurgia, permitindo apurar o que está provado em 24, bem como confirmou a presença dos fios de sutura, detetados na cistoscopia [facto provado 28]. Da mesma forma, foi um depoimento esclarecedor quanto aos factos provados em 30, 35 a 37, 44, 46, 55 e 59, em especial a parte final; com efeito, referiu a testemunha, mantendo sempre o mesmo registo, que “os fios de sutura não deviam lá estar”, e podiam nem ter dado dores à paciente, mas “acontece”.
Em toda essa matéria, consideramos que o depoimento foi particularmente esclarecedor, sendo certo que (além de tecnicamente a testemunha ter demonstrado domínio sobre a matéria), o seu papel foi de muito relevo, porque interveio nas operações seguintes, no sentido de corrigir a situação, pelo que tem pleno conhecimento sobre a situação da Autora.
De referir, por fim, que ainda prestou depoimento II, médico da Ré, mas que revelou não ter qualquer conhecimento dos factos. Como o próprio declarou, apenas viu a Autora na visita diária ao internamento; confirmou ter feito o registo que consta do ponto 26 dos factos provados, mas como o facto já estava admitido por acordo, o depoimento torna-se irrelevante.
Passando aos factos não provados.
Um dos pontos mais sensíveis em termos de prova tinha que ver com a alegada incapacidade de que a autora alegava padecer em função das lesões e tratamentos. Referimo-nos, portanto, ao facto não provado da alínea G). Ora, apesar de a Autora, nas suas declarações, se ter queixado das perdas de urina, evitando grandes viagens ou até viagens de duração relativamente curta, ou até em situações quotidianas, a verdade é que a prova pericial realizada não lhe atribuiu qualquer incapacidade daí decorrente; nem nos esclarecimentos prestados em audiência a senhora perita médico-legal alterou o seu juízo técnico, considerando que essa situação pode decorrer quer do avançar da idade, ou da própria cirurgia (ou seja, mesmo correndo bem). Convém dizer neste momento que, em audiência, se insistiu neste ponto, mas foi mantida a opinião de que a situação de alegada incontinência nada tem que ver com o alegado erro médico.
Sucede que, além do juízo técnico ser, aqui, o único suscetível de provar o facto em causa (dada a tecnicidade que lhe assiste), a verdade é que esse juízo é corroborado pela prova testemunhal. Na verdade, a testemunha FF (no registo credível que lhe atribuímos) declarou ao Tribunal que quando deu alta à Autora esta não apresentava qualquer espécie de incontinência. E também considerou que as perdas de urina têm que ver com a idade ou, então, com outra causa a ser estudada; mas de acordo com os seus registos, a Autora estava livre desse problema. Pelo que, nesta medida, e dado que a testemunha em causa é urologista (portanto, especialista na área de saúde em causa), a verdade é que o juízo técnico sobre o assunto se mostra congruente com este meio de prova. Sem que as declarações de parte da autora possam afastar essa conclusão (não quanto a sofrer da incontinência, bem entendido, mas sim quanto à causa da mesma, i. e., se decorre dos eventos referidos na petição inicial). Daí que tenha ficado não provado o facto em apreço. Por inerência, foram também considerados não provados os factos das alíneas F) e I), já que, tanto quanto a prova demonstra (inclusive a pericial), a Autora ficou recuperada das lesões que a afetaram.
Relativamente ao facto não provado em A), há sim registos documentais sobre os motivos que determinaram a cirurgia; além disso, a própria autora, em declarações de parte, demonstrou ter deles perfeito conhecimento. Nenhuma prova se fez quanto ao facto da alínea B), sendo certo que a existência da fístula é certa (o que não se pode afirmar é qual a operação que lhe deu origem em concreto). Também nenhuma prova se fez quanto ao facto da alínea C), sendo certo que até se demonstrou o contrário: a autora foi submetida a vários tratamentos cirúrgicos para resolver o problema, como sucedeu.
Não se demonstrou, igualmente, que o estado de saúde da autora continue muito deteriorado; pelo contrário, tendo por base as declarações da testemunha FF, logo em 2014 a autora estava curada; inclusive, a testemunha MM, sua médica de família, referiu que a última nota que tinha quanto à paciente era ter dito que queria trabalhar; além do mais, constata-se que poucos meses depois a autora emigrou para França, onde ainda reside. Tendo a autora vivido desespero aquando do sucedido, segundo as suas declarações, não é hoje o caso, levando uma vida normal (o que, aliás, o filho e o marido testemunharam, apenas referindo o problema da incontinência, mas que não se subsume a desespero). Daí que ficaram não provados os factos das alíneas D) e E). Também não há prova suficiente do facto provado em J). Com efeito, a Autora apenas referiu que tem receio de ter de ser operada de novo, mas não denotamos qualquer especial temor nesse sentido; de tal forma que, tanto quanto pudemos observar, desde 2014 que vem levando uma vida bastante normal.
Por último, quanto aos factos não provados das alíneas K) e L), também disso não há prova. Desde logo, quanto ao facto da alínea K), o relatório pericial é muito claro na resposta dada: “não, a cirurgia ginecológica (histerectomia total) não constitui por si só motivo para existirem fios de sutura no interior da cavidade vesical; tal só é possível no caso de inadvertidamente ou para correção de laceração iatrogénica da parede da bexiga, esta ter sido suturada em toda a sua espessura.” Do mesmo modo, quanto ao facto não provado da alínea L), aquele relatório afirma: “para se constituir uma fístula vesico-vaginal na sequência de intervenção cirúrgica tem de existir, em primeiro lugar, lesão da bexiga com formação de uma solução de continuidade com a vagina. A dificuldade de cicatrização não é causa, por si só, de fístula vesico-vaginal”.
Em face deste juízo pericial, que nenhuma censura nos merece, mesmo depois de prestados os esclarecimentos tidos por pertinentes, e nos termos que já anteriormente deixamos enunciados, restava concluir no sentido de considerar não provada a respetiva factualidade.»
**
b.1. breve enquadramento
3.3. Com o presente recurso está em causa saber se o Tribunal a quo errou acerca do julgamento da matéria de facto identificada pelo Apelante nas conclusões de recurso, e se, na procedência do apontado erro de julgamento, o mesmo deve ser absolvido de todos os pedidos formulados pela Autora, julgando-se a ação totalmente improcedente.
Na p.i. a Autora alegou, no essencial, como fundamento da sua pretensão indemnizatória, ter sido sujeita a uma histerectomia, que considerou tratar-se de uma cirurgia simples, a qual, se tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, sem negligência, dispensaria a necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que teve de submeter-se, tendo ocorrido grave negligência médica de que resultou o repuxamento dos ureteres.
O Tribunal a quo julgou que na realização desse ato cirúrgico houve efetivamente negligência médica por parte dos cirurgiões que a efetuaram e, como tal, decidiu julgara a ação parcialmente procedente.
O Apelante discorda do julgamento realizado.
Sublinha que na petição inicial a Autora limitou-se a referir que «claramente ocorreu uma anormalidade na primeira intervenção cirúrgica» (artigo 17.), que a histerectomia foi realizada com «negligência médica» (artigo 41.), com «grave negligência médica» (artigos 44. e 48.), com «negligência médica grave e grosseira» (artigos 49. e 54.), com «grave erro médico» (artigo 101.), mas que, para além disto, não articula quaisquer factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar por parte da ULSAM, no quadro da responsabilidade civil extracontratual. Observa que alegar como está alegado no artigo 49. da petição inicial que «ocorreu grave e grosseira negligência médica de que resultou repuxamento de ureteres» é praticamente inócuo do ponto de vista da substanciação, ou pelo menos manifestamente insuficiente. Afirma que lendo, com toda a atenção, a petição inicial e analisando o que nela está vertido, permite, sem hesitação, dizer que a mesma não tem a virtualidade de responsabilizar a Recorrente, seja a que título for pois, não estão alegados factos que permitam a procedência do pedido com base na responsabilidade delitual.
Adianta que a observância das legis artis consiste na obediência às regras teóricas e práticas de profilaxia, diagnóstico e tratamento, aplicáveis no caso concreto, em função das características do doente e dos recursos disponíveis pelo médico, e que, no caso da Autora, o repuxamento de ambos os ureteres não se deveu ao descuido, desatenção ou imprudência de ambos os cirurgiões, em simultâneo, mas sim que na respetiva atuação ambos se confrontaram com as mesmas dificuldades, para as quais concorreram as condições anatómicas da própria Autora, que apresentava obesidade, sobredimensão do útero e anterior realização de uma apendicectomia.
Alega que os depoimentos da perita Dra. EE e das testemunhas, Dra. DD, Dra. HH, Dr. CC e Dr. FF foram peremptórios ao afirmar que o repuxamento dos ureteres é uma intercorrência possível na cirurgia de histerectomia total, que se pode verificar ainda que cumprida a técnica exigível e aplicada toda a diligência, zelo e cuidado, para a qual contribui a complexidade própria da cirurgia, onde estão em causa várias estruturas e em que a intervenção cirúrgica ocorre sem a visualização dos ureteres, acrescido dos fatores de riscos existentes no caso concreto, pelo que, a sua verificação, não constitui má prática, erro médico ou negligência.
Como tal, considera ser manifesto que a Autora não logrou demonstrar que na execução do ato cirúrgico realizado no dia 21.10.2013 os médicos da Ré / Recorrente tenham violado as regras de ordem técnica e o dever geral de cuidado justificados nas leges artis vigentes.
Afirma ter resultado provado que os procedimentos levados a cabo pelos médicos e enfermeiros da ULSAM que consultaram, observaram e de algum modo intervieram no acompanhamento clínico da Autora, foram os exigíveis face ao quadro clínico em causa, e especificadamente quanto à presença dos três fatores de elevado e acrescido risco atrás descritos: obesidade, sobredimensão do útero e anterior realização de uma apendicectomia;
Concluiu que nessa circunstância, a conduta dos médicos e enfermeiros da ULSAM que consultaram, observaram e de algum modo intervieram no acompanhamento clínico da Autora foi empreendida de acordo com as legis artis, atento o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina suportada na literatura internacional.
Como tal, impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, pretendendo que a mesma seja alterada, nos termos que preconiza nas conclusões de recurso, o que levará á improcedência total da ação.
Vejamos se lhe assiste razão.
b.2. da impugnação da decisão sobre a fundamentação de facto da sentença recorrida.
3.4.O Apelante imputa erro ao julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª instância quanto à facticidade que julgou provada pretendendo que sejam aditados aos factos assentes os pontos 6.1., 6.2., 6.3., 6.4., 6.5., 59.1., 59.2. e 59.3. com o seguinte teor:
6.1. No exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respectiva anamnese que a Autora apresentava uma altura de 1,68m, um peso de 90Kg - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.2. Nessa data, a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.3. Ficou igualmente registado que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
6.4. A obesidade e o volume do útero são factores que dificultam a abrangência do campo operatório.
6.5. A histerectomia realiza-se sem visualização dos ureteres.
59.1. Tendo em conta a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), e a história clínica da Autora, com a realização de uma apendicectomia anterior, com a presença de aderências que torna os tecidos mais aderentes entre si, mais fibróticos, tornou mais difícil a dissecção entre planos que envolveu a técnica cirúrgica da histerectomia realizada, a presença de fios de sutura no trígono vesical a repuxar os meatos uretrais constituiu uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
59.2. Intercorrência esta que não foi identificada durante a histerectomia realizada, não tendo por isso sido registada.
59.3. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que acontece de 0,2% a 0,5% das cirurgias - cf. fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019.».
3.4.1.Mais pretende que, por não se demonstrar provado, quer documentalmente, quer na audiência, seja eliminado dos factos provados, o ponto 57. com o seguinte teor:
«57. Se a intervenção cirúrgica de histerectomia tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, não teria havido necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que a Autora teve de submeter-se;
3.4.2. Ademais, ainda em relação aos factos provados, pretende que o teor do ponto 59 seja alterado, passando a ter a seguinte redação:
«59. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.»
3.4.3.E que, por se encontrar repetido com o ponto 59., deve também ser eliminado dos factos provados, o ponto 28. com o seguinte teor:
«28. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar / laquear os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.»
3.4.4..Por fim, deve ser eliminado dos factos não provados, o ponto K) com o seguinte teor:
«K) Não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), a permanência dos fios de sutura na bexiga constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica».
3.5. A propósito da impugnação do julgamento da matéria de facto operado pelo apelante coloca-se a questão prévia de saber se este cumpriu com os ónus impugnatórios do artigo 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, e, no caso de incumprimento desses ónus, quais as consequências jurídicas daí decorrentes para a sorte do presente recurso.
b.2.1.dos critérios impostos ao recorrente em sede de impugnação da matéria de facto.
3.5. Com a reforma introduzida pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, ao CPC, o legislador introduziu o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da 2.ª Instância.
A intenção do legislador foi a de que o tribunal de segunda instância passasse a realizar um novo julgamento em relação à matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo esta a conclusão que resulta expressamente do disposto no art.º 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a “Relação” deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.
Como vem sendo repetidamente afirmado, quer pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência daquelas alterações, são de rejeitar todas as interpretações minimalistas do enunciado art.º 662º que, refugiando-se nas dificuldades relacionadas com a audição dos depoimentos testemunhais captados sem registo de imagem, com prejuízo do princípio da imediação (prejuízo esse que, aliás, é uma realidade), se limitam a fazer um controlo meramente formal da fundamentação vertida pelo tribunal a quo, assim como aquelas que se limitam a fundamentar, de forma genérica, sem referência aos concretos meios de prova e a conectá-los entre si e com as regras da experiência comum, isto é, sem fazer um novo julgamento, por forma a demonstrar o acerto ou desacerto da decisão proferida pelo tribunal a quo em relação à matéria impugnada em sede recursória. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Perante as regras positivas enunciadas na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o Tribunal de 2.ª Instância deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância.
Como verdadeiro tribunal de substituição, a 2.ª Instância aprecia livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, a 2.ª Instância não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que a 1ª instância fez dessa mesma prova, podendo e devendo na formação dessa sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
Contudo, importa não perder de vista que não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela 2.ª Instância em sede de matéria de facto se transforme na repetição do julgamento realizado em 1.ª Instância, sequer admitir recursos genéricos, e daí que tenha imposto ao recorrente, em sede de impugnação da matéria de facto, o cumprimento dos ónus que enuncia no art.º 640º do CPC, pelo que se mantém o entendimento que o tribunal de 2ª instância deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 153., estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Acresce que tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da auto -responsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido proferida e os concretos meios de prova que reclamam essa solução diversa.
Deste modo é que o artigo 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º).
Note-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial da delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do âmbito do recurso, mas se destinam a fundamentar o recurso, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes ob. cit., pág. 155., sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente:
a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como alerta Abrantes Geraldes, a justificá-la a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da 2.ª Instância, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações. É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de auto- responsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159.
No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI..

Por último, precise-se que porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela 2.ª Instância dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
A alteração da matéria de facto só deve, assim, ser efetuada pelo Tribunal de 2.ª Instância quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art. 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma.
Deste modo, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parteAna Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609..
3.6.Em face do exposto, a «rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a)Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c)Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129, com bold apócrifo).»
3.7.Para o caso de não ser liminarmente rejeitado o recurso interposto sobre a matéria de facto, o âmbito de apreciação pela 2.ª Instância é estabelecido de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a
matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os
princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
b.2.1.– Do cumprimento dos ónus impugnatórios.
Posto isto, lidas as conclusões de recurso e as antecedentes motivações, é indiscutível que o Apelante cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, indicando nas conclusões, quais os concretos pontos de facto que pretende ver aditados aos factos assentes, assim como a matéria de facto erroneamente dada como não provada, a concreta decisão que, na sua perspetiva deve recair sobre essa facticidade e indica quais os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento de facto diverso que propugna, e faz uma análise crítica suficiente desses meios de prova por forma a indicar o porquê destes imporem essa decisão diversa que postula.
Finalmente, quanto à prova gravada, o apelante procede à transcrição dos excertos dessa prova em que funda o seu recurso.
b.2.2. do aditamento aos factos assentes da matéria inserta nos pontos 6.1., 6.2., 6.3., 6.4., 6.5.,59.1,59.2 e 59.3.
(i) quanto à facticidade dos pontos 6.1,6.2 e 6.3.
O Apelante impugna o julgamento da matéria de facto operado pela 1.ª Instância, pretendendo que sejam aditados os pontos 6.1, 6.2. e 6.3. ao elenco dos factos assentes, cujo teor é o seguinte:
«6.1. No exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respetiva anamnese que a Autora apresentava uma altura de 1,68m, um peso de 90Kg - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.2. Nessa data, a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.3. Ficou igualmente registado que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
O Apelante sustenta que perante a prova produzida, nomeadamente, considerando o documento n.º... junto com a contestação e o depoimento prestado pela testemunha Dra. DD, médica especialista que realizou a 1.ª consulta à Autora no estabelecimento do Réu, o tribunal a quo devia ter concluído pela demonstração da facticidade inserta nos referidos pontos.
Precise-se que analisamos toda a prova documental e pericial junta aos autos e procedemos à audição da totalidade da prova pessoal produzida em audiência de julgamento.
No que concerne à prova documental, verifica-se que no registo clínico junto aos autos – cfr. documento n.º... junto com a contestação- faz-se efetivamente referência em como a primeira consulta de ginecologia da Autora nos serviços da Ré / Recorrente se realizou no dia 20/06/2013, tendo sido efetuada pela Dr.ª DD, ficando a constar da respetiva anamnese:

a) que a Autora apresentava uma altura de 1,68m e um peso de 90Kg;
b) que a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm;
c) que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia;

Para prova da matéria inscrita nos referidos pontos, para além do referido documento, o Apelante invoca o depoimento da testemunha DD, médica que, como já dissemos, realizou a primeira consulta de ginecologia da Autora nos serviços da Ré /Recorrente ULSAM.
Ouvido o respetivo depoimento, confirma-se que a testemunha disse recordar-se de ter visto a Autora antes da intervenção cirúrgica, em 2013, e após essa intervenção, e que foi quem escreveu as informações que constam do registo clínico junto como documento n.º ... à contestação.
Quanto ao peso da Autora disse ter sido a mesma que colheu o peso da Autora na consulta, assim como a altura. Quanto à dimensão do útero, esclareceu que essa informação foi extraída do exame exterior que a autora trouxe para a consulta, e que a menção à apendicectomia anterior resultou de informação prestada pela Autora, precisando que « o diagnóstico já vinha mais subentendido…porque a Sra. já tinha as queixas… menstruações excessivas, dor pélvica… já foi informação que me… enviaram. Útero miomatoso… depois, habitualmente, nós verificamos… confrontamos com a doente, de facto, como é que… o que é que se passa e avaliamos de acordo com.»
Atestou que informou a Autora de que a solução para o seu problema de saúde passava pela realização de uma histerectomia, de cuja necessidade aquela já estava ciente uma vez que «quando as doentes vêm, muitas vezes já vêm um bocadinho orientados pelo seu médico de família…» . Reforçou, que a Autora lhe fez perguntas e que a informou devidamente «porque depois tenho que lhe dar um consentimento e tenho que lhe explicar o que eu vou fazer, até porque ela, na altura, tinha 43 anos se não estou em erro ….eu tenho que lhe explicar que tipo de cirurgia é que vou fazer porque é diferente o… a abordagem que tenho aos 42 anos e, por exemplo, aos 52…. E, portanto, eu expliquei-lhe o que é que ia fazer, o que é que ia acontecer, como é que ela ia ficar».
Disse que o documento que continha o consentimento informado, junto como anexo 2 ao documento n.º... citado, foi assinado na altura, quer pela Autora, quer pela testemunha ( após ter sido esclarecida) e que a doente não colocou questões.
A testemunha asseverou que o facto de a Autora medir 1,68m, pesar 90K, o útero ter o dobro do tamanho normal, e ter sido já sujeita a uma intervenção abdominal, acrescenta fatores de risco, os quais disse ter explicado à Autora, frisando que faz questão de ser a própria a explicar ao doente, e que faz também questão de escrever sempre o peso e a altura.
Em face desta prova, que não foi contrariada por nenhuma outro elemento probatório, não há senão como dar-se por provada a referida facticidade, a qual, por isso, deve ser aditada ao elenco dos factos provados.
Assim, nessa conformidade, aditam-se aos factos assentes os pontos 6.1, 6.2 e 6.3, com a seguinte facticidade:
««6.1. No exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respetiva anamnese que a Autora apresentava uma altura de 1,68m, um peso de 90Kg - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.2. Nessa data, a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm - cf. documento n.º ... junto com a contestação;
6.3. Ficou igualmente registado que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.»

(ii) quanto à facticidade dos pontos 6.4 e 6.5. , 59.1, 59.2 e 59.3.
O Apelante pretende que se adite aos factos assentes a matéria que consta dos pontos 6.4., 6.5, 59.1, 59.2 e 59.3, e que é a seguinte:
«6.4. A obesidade e o volume do útero são fatores que dificultam a abrangência do campo operatório.
6.5. A histerectomia realiza-se sem visualização dos ureteres.
59.1. Tendo em conta a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), e a história clínica da Autora, com a realização de uma apendicectomia anterior, com a presença de aderências que torna os tecidos mais aderentes entre si, mais fibróticos, tornou mais difícil a dissecção entre planos que envolveu a técnica cirúrgica da histerectomia realizada, a presença de fios de sutura no trígono vesical a repuxar os meatos uretrais constituiu uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
59.2. Intercorrência esta que não foi identificada durante a histerectomia realizada, não tendo por isso sido registada.
«59.3. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que acontece de 0,2% a 0,5% das cirurgias - cf. fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019.».
Para prova desta facticidade o Apelante invoca os depoimentos prestados pelas testemunhas DD, BB, NN, FF e os esclarecimentos prestados pela senhora perita do INML, prof.ª Dra. EE, além da prova documental junta aos autos, designadamente, os estudos juntos.
Prima facie, considera resultar da prova produzida, que a Autora foi informada dos riscos decorrentes da sua submissão a uma histerectomia, os quais integram a obesidade da Autora ( 1,68 m de altura e um peso de 90kg), a dimensão do útero ( 12cmx8,5cmx6,5cm) e a anterior realização de uma apendicectomia.
Ademais, considera estar provado que: (i) as lesões ureterais são uma das complicações mais graves e ocorrem em menos de 1% dos casos e que até cerca de 75% destas situações não são diagnosticadas durante a cirurgia; (ii) que na realização de uma histerectomia abdominal pode ocorrer uma lesão ureteral ou vesical sem que sejam violadas as legis artis; (iii) que o repuxamento dos ureteres verificados após uma histerectomia abdominal é uma possível intercorrência deste tipo de intervenções; (iv) entre os fatores de risco associados às histerectomias destacam-se a obesidade, a dimensão do útero e a anterior realização de cirurgias; (iv) que no caso foram dois cirurgiões que efetuaram a intervenção cirúrgica, utilizando a técnica de trabalho em “espelho “, ou seja, um do lado direito e outro do lado esquerdo da Autora; (v) o que esse facto permite concluir que o repuxamento de ambos os ureteres não se terá ficado a dever ao descuido, desatenção ou imprudência de ambos os cirurgiões, em simultâneo, mas sim que na respetiva atuação ambos se confrontaram com as mesmas condições anatómicas da própria Autora.
Coligida a matéria de facto assente, o Senhor juiz a quo, deu como provado que se a intervenção cirúrgica de histerectomia tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, não teria havido necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que a autora teve de submeter-se, conquanto, resultou daquela primeira cirurgia a que a autora se submeteu, um repuxamento dos ureteres, o que determinou a necessidade de colocação de cateter “duplo JJ” bilateralmente, via cistoscopia, tendo também dado como assente que na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais, o que não poderia ter sucedido (pontos 28, 57, 58 e 59). Ou seja, para o Senhor juiz a quo, no caso concreto, houve negligência médica dos cirurgiões que efetuaram a histerectomia à Autora.
A sua convicção, expressa na motivação da decisão sobre a matéria de facto, resultou da valoração que atribuiu à prova pericial realizada pelo INML. Lê-se aí, o seguinte:
«Por outro lado, o conselho médico-legal do referido instituto elaborou a consulta técnico-científica [fls. 366 e ss. do suporte físico dos autos], versando sobre questões mais viradas para a intervenção cirúrgica propriamente dita. Tratando-se de um relatório técnico, fundamentado, elaborado por quem apresenta conhecimentos sobre o assunto, como aliás ficou demonstrado pelos esclarecimentos em audiência, foi neste relatório que o Tribunal baseou a sua convicção quanto aos factos provados nos pontos 10, 20, 29, 38, 57 e 58. Também foi neste relatório que o Tribunal suportou a sua convicção quanto à parte final do facto provado 59.
Com efeito, saliente-se que este relatório é muito claro ao afirmar que este tipo de cirurgia “não constitui por si só motivo para existirem fios de sutura no interior da cavidade vesical; tal só é possível no caso de inadvertidamente ou para correção de laceração iatrogénica da parede da bexiga, esta ter sido suturada em toda a sua espessura”. Mais acrescentando, agora na resposta ao quesito 12, que o “repuxamento” nunca seria congénito, mas sim consequência do ato cirúrgico. Nenhuma destas conclusões foi infirmada em sede de audiência final, pelo contrário; aliás, referiu mesmo a Sr.ª Perita que um repuxamento (situação que, de facto, não foi afirmada pela Sr.ª Perita, porque não presenciou, mas está demonstrada por outra prova) seria muito estranho, porque era necessário puxar como que de propósito os ureteres. Na verdade, a Sr.ª Perita esclareceu que só pode ter ocorrido uma de duas coisas: ou negligência, ou laceração iatrogénica; se esta última não está descrita, nem se veio a apurar ter existido (dado que o que veio a constatar-se foi que os cirurgiões suturaram de forma inadvertida os ureteres), só resta a outra hipótese, ou seja, a de que, correndo tudo pela normalidade, este tipo concreto de lesão não existiria.
Veja-se que não falamos de uma qualquer lesão dos ureteres (como seria a laceração, ou seja, cortar ou rasgar), mas de um caso de repuxamento por via de sutura. E daí que a Sr.ª Perita tenha explicado, a nosso ver de forma clara, que este tipo de lesão só podia suceder por negligência ou para resolver outra lesão, porque, caso contrário, não se vislumbra como possível suturar os próprios ureteres, deixando-os parcialmente obstruídos.»
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a convicção do Senhor Juiz a quo assentou numa errada valoração, não só dos relatórios periciais, como dos demais elementos probatórios que constam dos autos, assim como de toda a prova testemunhal que foi produzida, inclusivamente, dos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela Senhora Perita do INML, Prof.ª Dra. EE, que a nosso ver, impunham decisão diversa.
A questão central que importava apurar era a de saber se os cirurgiões que efetuaram a histerectomia à Autora, cumprindo rigorosamente todas as regras, procedimentos e protocolos impostos pela legis artis para a realização daquele tipo de cirurgia, e atuando de forma atenta e cuidada, podiam evitar a ocorrência que determinou a existência de “fios de sutura no trígono vesical e a repuxar/laquear os meatos ureterais” da Autora. Ou se, tais lesões são fruto do risco associado a essa cirurgia, isto é, se são um risco iatrogénico da histerectomia, uma possível intercorrência.
Começando pela prova pericial constituída pelos relatórios juntos aos autos provenientes do INML, subscritos pela Senhora Prof.ª Dra. EE, concretamente, pelo 1.º relatório datado de 12 de dezembro de 2018, adiantamos que da sua análise não retiramos as mesmas conclusões que foram extraídas pela 1.ª Instância.
Vejamos.
No 1.º relatório subscrito pela Senhora Perita, datado de 12/12/2018, ao quesito n.º2 aí formulado, aquela respondeu que as «complicações ureterais são uma das complicações mais graves da histerectomia, embora não sejam as mais frequentes, sendo as complicações vesicais e retrais as mais frequentes» e confirmou que «segundo dados atuais…a ocorrência de lesão ureteral durante uma histerectomia por causa benigna ocorre em menos de 1% dos casos». Quanto à pergunta formulada no quesito 3, em relação a saber se “As lesões ureterais são reconhecidas durante este tipo de intervenções cirúrgicas?» respondeu que: « As lesões ureterais iatrogénicas podem ou não ser identificadas durante a cirurgia» ( negrito nosso)», respondendo ainda à pergunta formulada no quesito 4, que tais lesões, quando não identificadas durante a cirurgia irão manifestar-se mais tarde, no pós-operatório. Em resposta ao quesito 5, disse que «…. embora exista evidência científica que suporta a maior deteção de lesões da bexiga e ureterais através da utilização sistemática de citoscopia intra-operatória…, não existe evidência científica que suporte o uso por rotina» (negrito nosso).
Muito relevante foi também a resposta positiva que a Senhora Perita deu à pergunta formulada no quesito 6. quanto a saber se «6. Tal como está descrito na literatura, existe o risco deste tipo de complicações, nomeadamente de lesões ureterais ou vesicais, durante a realização da histerectomia total?», em que disse simplesmente que «Sim ». ( negrito nosso).
Ou seja, resulta das respostas dadas pela Senhora Prof.ª Dra. EE, logo no 1.º no relatório de 12/12/2018 que as lesões ureterais ou vesicais, ocorridas durante a realização de uma histerectomia total, de acordo com a literatura médica constituem um risco deste tipo de intervenção, e que podem não ser detetadas durante a realização da histerectomia.
Respondeu ainda a Senhora Perita, nesse relatório de 12/12/2018 e quanto à questão de saber se « 7. Não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos ( bexiga e útero), a permanência na bexiga dos fios se sutura da histerectomia total constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica?» o seguinte: « Não, a cirurgia ginecológica ( histerectomia total) não constitui por si só motivo para existirem fios de sutura no interior da cavidade vesical: tal só é possível no caso de inadvertidamente ou para correção de laceração iatrogénica da parede da bexiga, esta ter sido suturada em toda a sua espessura».
Desde já se adianta que desta resposta não se pode extrair a conclusão de que a Senhora Perita esteja a afirmar que a presença de fios de sutura na bexiga e o repuxamento dos ureteres no caso em análise decorreu de uma má prática médica, como melhores veremos, designadamente, com os esclarecimentos que a mesma prestou em audiência de julgamento. É um facto que a presença de “fios de sutura no trígono vesical e o repuxamento dos ureteres” não é uma consequência normal da realização de uma histerectomia, que visa retirar o útero e não ferir a bexiga, os ureteres ou qualquer outro órgão da paciente. A questão que se coloca não é essa, mas antes a de saber se essas ditas ocorrências podem ou não ser uma intercorrência deste tipo de ato cirúrgico, que pode acontecer mesmo que cumpridas escrupulosamente todas as regras da leges artis e observados todos os deveres de cuidado por parte do corpo clinico que intervém nesse ato cirúrgico e a esta pergunta, logo a senhora perita no 1.º relatório refere que essa situação é possível de acontecer embora esporadicamente mesmo que cumpridas todas as leges artis. .
Por fim, à pergunta formulada sob o quesito 12 sobre a questão de saber se « O repuxamento dos ureteres ocorrido bilateralmente, pode ficar a dever-se à existência de alterações anatómicas congénitas da intervencionada, da posição ureteral no seu trajeto, que mesmo ligeira, predispõem tal repuxamento ureteral?» respondeu que « Uma alteração anatómica congénita por definição existe desde o nascimento. O “repuxamento”, ou seja, a exagerada angulação ou estriamento extremo ureteral conducente a ureterohidronefrose e insuficiência renal não é congénito, mas sim consequência do ato cirúrgico». Essa resposta, não incidiu sobre a questão que verdadeiramente estava colocada, uma vez que não se questionava que aquelas “lesões” apenas se verificaram porque a Autora foi sujeita à histerectomia. Em segmento nenhuma da pergunta se diz que essas “lesões” eram congénitas. O que se perguntava é se a ocorrência dessas “lesões”, na sequência da realização da histerectomia, se podiam de alguma forma ficar a dever a alterações anatómicas congénitas da intervencionada, que cumpridas todas as leges artis levassem a que os cirurgiões por via dessas alterações na anatomia da Autora, diversas daquelas que se verificam na generalidade das pessoas, no caso pudessem explicar as complicações verificadas e a essa questão a Senhora Perita não respondeu neste pergunta.
Entretanto, por despacho de 05/12/2019, o Tribunal a quo determinou que fossem respondidas todas as questões colocadas pela Autora, que não foram respondidas pelo INML, e para o que releva, veio aquela Senhora Perita, a subscrever um outro relatório, datado de 30/09/2020, com as respostas em falta.
Nesse relatório a Senhora Perita, à pergunta formulada sob o quesito 1.º quanto à questão de saber se «1. Do relatório cirúrgico desta histerectomia constam referências a intercorrências perioperatórias anormais?» respondeu que: «Não. Faltam elementos necessários ao cabal esclarecimento da situação. A falta destes elementos, nomeadamente a ausência de registo das complicações intra-operatórias que terão ocorrido ( lesão iatrogénica da bexiga/ureter) constitui, em si mesmo, má prática médica». Em relação à pergunta formulada no quesito 3.º onde se questionava sobre «3.Qual a evolução pós-cirúrgica, detalhadamente, e razões dessa evolução, nomeadamente, porque motivos a Autora teve de submeter-se às restantes quatro cirurgias na área da urologia?» a mesma disse o seguinte: « A evolução pós-cirúrgica evidenciou intercorrências e complicações nomeadamente do foro urológico e nefrológico, com IRA». Mais refere que os motivos que conduziram a estas cirurgias a que a Autora teve de se submeter após a realização da histerectomia « não estão registados no Processo Clínico; no entanto, dada a presença de “material de sutura intravesical” evidenciada na 1.ª citocospia, efetuada 5 dias após a histerectomia, é muito provável que uma laceração iatrogénica da bexiga/ureter tenha ocorrido durante a histerectomia, obrigando à sutura da parede vesical/ureteral».
Desta resposta não resulta que a Senhora Perita afirme que a presença de material de sutura intravesical se ficou a dever a uma má técnica cirúrgica, vulgo, a erro médico por parte dos cirurgiões que realizaram a histerectomia. Apenas resulta da sua resposta, que na perspetiva técnica que perfilha, a presença daquele material na bexiga da autora se lhe afigura como muito provável que tenha resultado de uma laceração iatrogénica da bexiga/ureter verificada durante a cirurgia. Não se dúvida que a presença de fios de sutura na bexiga e o repuxamento ocorreram em consequência da histerectomia a que se submeteu a Autora. Mais resulta que segundo a Senhora Perita a mesma não pode concluir se as complicações ocorridas aquando da histerectomia são decorrência ou não de um má prática médica, faltando-lhe, para isso, registos clínicos que lhe permitam chegar a essa conclusão.
Também é certo que em resposta à questão n.º4, concretamente, em relação ao segmento em se pergunta se «4…uma histerectomia não deve ocasionar as sequelas que esta originou para a Autora…?» a Senhora Perita respondeu que: as « cirurgias e os tratamentos posteriores a que a doente foi submetida não são consequência normal da histerectomia, tendo decorrido de uma complicação ocorrida durante esta cirurgia».
Não estava em causa saber se as “lesões” sofridas pelas Autora na sequência da histerectomia que realizou não são consequências normais desse ato cirúrgico, que não são, pelo que esta resposta apenas confirma o que se sabe de antemão. A questão era antes a de saber se esse tipo de “lesões” pode estar associado a este tipo de cirurgia como um risco iatrogénico da mesma, ou seja, algo que pode suceder como um risco desse tipo de ato cirúrgico ginecológico- uma intercorrência, ou se apenas pode ocorrer em resultado de uma má prática do corpo clínico que efetuou a histerectomia e de uma conduta negligente dos mesmos.
Mas, sublinhe-se, a questão acaba por ser respondida pela Senhora Perita na resposta que dá à pergunta 5, quando se questiona se « Em síntese, ocorreu algum ato médico anormal que poderia ter sido evitado?» , em que a mesma se pronuncia nos seguintes termos, que consideramos muito relevantes:
« Mais uma vez referimos que não existe nenhum registo clínico que contenha informação acerca das complicações ocorridas durante a 1.ª cirurgia ( histerectomia). No entanto, as complicações verificadas após a cirurgia inicial (histerectomia) não são “normais” mas sim típicas da ocorrência de lesão iatrogénica da bexiga/ureter. O ato médico/ cirúrgico que potencialmente terá ocorrido ( laceração da parede vesical/ureter) poderia ou não ter sido evitado. A laceração da bexiga/ ureter e outras complicações vesicais ou ureterais no decorrer de uma histerectomia por via abdominal ( laparatomia) estão descritas como complicações iatrogénicas possíveis com uma frequência que varia entre 0,02% a 1% ( lesões ureterais) e 1% a 3,6% ( lesões vesicais) conforme as séries e os autores…».
Esta resposta da Senhora Perita é muito esclarecedora. A mesma afirma categoricamente que o ato médico que potencialmente terá ocorrido, que a seu ver terá sido uma laceração da parede vesical / ureter, tanto poderia ter sido evitado como não evitado. Ou seja, a Senhora Perita não atesta, como altamente provável, que nas circunstâncias do caso sobre o qual se pronuncia, as “lesões” ocorridas associadas à histerectomia podiam ter sido evitadas. Afirma apenas que “poderia ou não ter sido evitado”, acrescentando que a laceração da bexiga/ ureter e outras complicações vesicais ou ureterais no decorrer de uma histerectomia por via abdominal ( laparatomia) estão descritas como complicações iatrogénicas possíveis com uma frequência que varia entre 0,02% a 1% ( lesões ureterais) e 1% a 3,6% ( lesões vesicais) conforme as séries e os autores…», com o que, deixa expresso que, de acordo com a literatura médica, as referidas lesões poderiam ser consequência do risco iatrogénico associado a este de ato cirúrgico!
Em síntese, dir-se-á que da análise conjugada de ambos os relatórios, subscritos pela Senhora Perita, Prof.ª Dra. EE, não conseguimos extrair a formação de uma convicção segura de modo a podermos concluir com o grau de probabilidade necessário, que no caso em análise os médicos cirurgiões que efetuaram a histerectomia à Autora incorreram numa má prática médica. Recorde-se que, quanto à “presença de material de sutura na bexiga” e ao “repuxamento dos ureteres”, embora a Senhora Perita afirme tratar-se de complicações que não são uma consequência normal duma histerectomia, mas típicas da ocorrência de uma lesão iatrogénica da bexiga/ ureter, o que não se questiona, confirma que a laceração da bexiga / ureter e outras complicações vesicais ou ureterais no decorrer de uma histerectomia por via abdominal estão descritas como complicações iatrogénicas possíveis com uma frequência que varia entre 1% e 2% conforme as séries e os autores. Ademais, afirma expressamente que «o ato médico/ cirúrgico que potencialmente terá ocorrido ( laceração da parede vesical/ureter) poderia ou não ter sido evitado».
Perante a prova pericial fica-se sem saber se no caso concreto, os motivos que levaram a Autora a ter de ser submetida às cirurgias que se seguiram à realização da histerectomia se ficou a dever à ocorrência de complicações/lesões que podiam ter sido evitadas pelos respetivos cirurgiões, uma vez que, a Senhora Perita, a essa questão, responde que tais complicações tanto poderiam ser evitadas, como não evitadas.
Ademais, a valoração da prova pericial que efetuamos com base nos relatórios periciais, não foi abalada pelos esclarecimentos prestados pela Senhora Perita Prof. Dr.ª EE em audiência de julgamento, que ouvimos integralmente, antes pelo contrário.
Depois de escutarmos os esclarecimentos prestados pela Senhora Perita, a convicção quanto à falta de prova em relação a uma má prática por parte do cirurgiões que realizaram a histerectomia à autora como causa das complicações verificadas durante esse ato cirúrgico tornou-se ainda mais sólida.
A Senhora Perita, conforme se percebe através da audição da gravação da prova, quando questionada sobre o alcance da resposta que deu à questão 7, do relatório de 12/12/2018, disse que: «.. a laceração da bexiga ou até dos ureteres… durante uma histerectomia é uma intercorrência que está descrita em todo lado, pronto. Que pode ocorrer, a palavra intercorrência já o diz, pode ocorrer durante uma cirurgia, mesmo por cirurgiões, quando a cirurgia seja efetuada por cirurgiões muito experientes, esta situação pode ocorrer. E é considerada uma intercorrência. Este número que, habitualmente é inferior a 1%, outros autores referem um valor inferior a 2%… isto é uma intercorrência que pode ocorrer e não significa necessariamente negligencia médica. E, como disse e se me permite, o que aconteceu que não devia ter acontecido foi não haver um relato desta situação para que fossem eventualmente medidas outras situações.» Porém, embora tenha afirmado que não há lacerações espontâneas, reafirmou que as mesmas podem não ser detetadas no momento em que decorre a cirurgia.
Quanto ao que seja um repuxamento de ureteres disse: «…nós não sabemos muito bem o que é o repuxamento dos ureteres, eventualmente durante uma histerectomia ou cirurgia pélvica mais agressiva, os ureteres poderão ter mudado de lugar, enfim, o seu posicionamento dentro da pélvis poderão ficar mais angulados, mas repuxar é uma coisa muito estranha porque isso implica que é repuxado por um ureter, ninguém vai dizer isso. Isso é grave. Portanto, não fui eu que falei nisso, eu não sei onde é que está essa questão… pode existir durante uma cirurgia um reposicionamento… ou uma alteração da posição dos ureteres por… suturas à volta, que acabam por angular os ureteres e podem condicionar um ureterhidronefrose ou, eventualmente, uma doença renal… essa situação pode acontecer… respondendo a essa questão de uma forma direta e simples, pode acontecer, não é considerado má prática, é uma intercorrência da cirurgia e deverá ser detetada atempadamente, mas não é nada… se for uma angulação exagerada do ureter por suturas nos tecidos que o rodeiam, não, não é má prática…a má prática é falta de registo clínico…».
Sublinhe-se, que a Senhora Perita disse de forma clara que, este tipo de complicações, podem acontecer com cirurgiões «…experientes, não experientes, pode acontecer». E precisou que durante a « cirurgia de histerectomia há um momento em que o útero encosta à bexiga e nós temos que descolar, digamos, a parte de fora do útero com muito cuidado para não afetar a bexiga…por algum motivo isto pode ocorrer e não é, volto a insistir, necessariamente má prática ocorrer, pode ser uma intercorrência. Se o cirurgião se apercebe que isto ocorreu, que é isto que é desejável, é que o cirurgião, apesar de ter esta intercorrência se aperceba da intercorrência, deve corrigi-la. Para corrigir esta laceração da bexiga, portanto, que é, neste caso, um corte que atravessa toda a parede da bexiga, e vai desde fora até ao interior da bexiga, e, portanto, o cirurgião para resolver este problema tem que suturar primeiro a parte de dentro da bexiga e depois suturar a parte de fora da bexiga. Quando sutura a parte de dentro da bexiga, os fios ficam lá porque mesmo que sejam, e devem ser, absorvíveis, eles demoram habitualmente muito tempo, semanas, a serem reabsorvidos, daí o facto, perante as complicações que esta doente apresentou no pós-operatório, foi feita, e muito bem, uma cistoscopia, que é uma endoscopia na bexiga, dentro da bexiga, e foram visualizados esses fios, que foram certamente utilizados para suturar a bexiga no momento da cirurgia. Não se pode explicar de outra maneira porque não existem fios dentro das bexigas normais. Não sei se consegui responder.».
Á pergunta sobre se encontrou alguma evidência de ter havido este repuxamento por via da sutura dos ureteres, se é um erro médico que pode suceder, ou seja, se realmente é possível o médico por erro suturar um ureter sem querer, disse que « aquilo que consta neste processo é muito pouco em relação ao que se passou durante a cirurgia, o que eu posso responder, sem incorrer em inverdade, é que efetivamente na sequência desta histerectomia … alguma coisa aconteceu aos ureteres, não foi só a bexiga. Se fosse só a bexiga… a urina extravasa para extremidade abdominal era o que acontecia, mas o que aconteceu foi outra coisa, foi que em vez da urina extravasar para cavidade abdominal, os ureteres deixaram de funcionar, portanto, deixaram de drenar urina dos rins para a bexiga, o que condicionou uma deficiência renal aguda e isto é a única coisa que eu posso concluir, isto foi na sequência da cirurgia, portanto. Mas não posso concluir mais nada, porque não há dados, os dados operatórios, que me permita concluir que houve sutura dos ureteres inadvertidamente ou que houve repuxamento, como dizem, por angulação extrema dos ureteres. O que acontece é que há um ureter-hidronefrose com deficiência renal aguda na sequência da cirurgia, depois as cirurgias seguintes provam que de facto houve qualquer coisa nos ureteres, mas eu não posso dizer o que é que foi.»
Disse ainda, que a « a probabilidade de laceração ou lesão de um ureter é inferior a 1%, mas existe» e confirmou que uma laceração do ureter é suscetível de gerar este problema ulterior de que a Autora veio a padecer.
Resulta dos esclarecimentos prestados pela Senhora Perita em audiência de julgamento que, não havendo lacerações espontâneas, estas podem no entanto ocorrer sem que sejam verificadas no momento, não sendo por isso registadas. Em segundo lugar, resulta do que disse que na realização de uma histerectomia abdominal total, pode ocorrer uma lesão ureteral ou vesical, mesmo com cirurgiões muito experientes. Em terceiro lugar, resulta dos esclarecimentos que prestou, que o “repuxamento de ureteres”, embora não acompanhe o termo utilizado, verificado após a histerectomia abdominal é uma possível intercorrência deste tipo de intervenções que consiste no reposicionamento ou alteração da posição dos ureteres por suturas à volta que acaba por angular os ureteres e não constitui má prática. Quanto à presença de fios de sutura na bexiga, a convicção da Senhora Perita é a de que a presença de tais fios «devem ter sido certamente o resultado da suturação da bexiga durante a cirurgia…de outra forma não se percebe como lá estão». Porém, desta afirmação não decorre que os cirurgiões tenham efetuado essa sutura da bexiga com conhecimento de que o estavam a fazer, e que, a sua ocorrência seja sinonimo de uma má prática cirúrgica. De resto, a Senhora Perita fez questão de frisar que as complicações verificadas no caso em consequência da histerectomia realizada à Atora, podem não ser fruto de uma má prática médica e que não existem dados clínicos que permitam afirmar que no caso houve uma má prática medica. Ademais, frisou que a possibilidade de ocorrerem as complicações surgidas é reconhecido pela literatura médica como um risco associado a este tipo de cirurgia.
A Senhora Perita não afirmou que a situação verificada não podia ocorrer se não em consequência de uma má prática médica. Apenas se referiu à má prática médica a propósito da não descrição dessa intercorrência no registo clinico, embora, em relação a essa afirmação, tenha acabado por admitir que poderiam os médicos não se ter apercebido de que suturaram a bexiga e “repuxaram os ureteres” e sendo assim, essa intercorrência não poderia constar do respetivo registo clínico.
Como tal, não podemos aquiescer com a interpretação e valoração da prova pericial efetuada pelo Senhor juiz a quo, da qual, a nosso ver, não resulta que a Senhora Perita Prof.ª Dra. EE tenha «explicado que este tipo de lesão só podia suceder por negligência ou para resolver outra lesão, porque caso contrário não se vislumbra como possível suturar os próprios ureteres, deixando-os parcialmente obstruídos».
Em suma, da prova pericial produzida não pode concluir-se, sem margem para qualquer dúvida, ou pelo menos, como muito provável, que a histerectomia tenha sido efetuada com violação das regras da leges artis, ou seja, que tenha sido praticado, ou omitido, algum ato, e de forma negligente, que tivesse provocado a presença de fios de sutura na bexiga e o repuxamento/angulação dos ureteres sofridos pela Autora.
O facto de se verificar a existência de fios de sutura na bexiga não infirma esta conclusão, uma vez que o risco de intercorrências na bexiga em resultado de uma histerectomia consta como possível na literatura médica. Ademais, resulta provado que esse tipo de complicações é enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia.
Adiante-se que estas conclusões, são também confirmadas quando se atenta nos depoimentos prestados pelos demais médicos em audiência de julgamento, de cuja valoração resulta, ademais, que a Autora apresentava fatores de risco suscetíveis de provocar uma distorção da anatomia idónea a gerar as intercorrências que se vieram a comprovar terem resultado da histerectomia realizada, sendo que ninguém afirmou que as “lesões” sofridas pela Autora em consequência da histerectomia não podiam acontecer no caso de ser estritamente observada a técnica cirúrgica a seguir neste tipo de intervenção.
Vejamos.
Começando pelo depoimento prestado pela testemunha Dra. DD, que ouvimos integralmente, a mesma foi peremtória em afirmar que o peso, a dimensão do útero e a circunstância de a Autora já ter sido submetida a uma intervenção abdominal constituíam fatores de risco, frisando que: «tudo isso altera a anatomia…as pessoas podem ser obesas mas nem terem gordura abdominal e esta Sra. tinha um biótipo de… com bastante… pronto, aquele avental… tinha aquela gordura mais feminina…tinha estes 3 fatores de risco.». E embora não tenha participado na intervenção cirúrgica, disse ter visto a Autora depois desse momento, aquando do envio do resultado histológico, momento em que «tenho sempre que chamar as doentes para informá-las, para ver como é que ficaram …Habitualmente, faço sempre após a cirurgia… automaticamente eu sou informada que a doente já foi operada e eu fico… marco uma consulta para lhe dar o resultado do … do exame que foi feito e para examiná-la, para fazer…». Disse ter sabido que « houve …uma intercorrência nessa altura, nessa cirurgia». Precisou que embora não saiba exatamente o que aconteceu, sabe o que é o repuxamento dos ureteres, esclarecendo que os ureteres passam muito próximo do útero e que este tipo de situação é « raríssima de acontecer. Raríssima. Já nas situações oncológicas, já não é assim.». Mais disse que «o ureter não é visível.. “retroperitoneal”, ou seja, fica por trás quase do útero, portanto, não é … nós para o encontrarmos temos que o procurar e muito. Temos mesmo muito que procurar, abrir muitas estruturas para o fazer. Portanto, não é uma intervenção que se faça sempre porque isso também acarreta riscos. E, como tal, nós sabemos… é uma situação benigna, é uma histerectomia, em princípio, que não… não oncológica, portanto, faz-se a histerectomia com os cuidados que nós temos… que já sabemos. Nós temos as referências anatómicas, sabemos… sabemos como é que… como é que havemos de fazer para evitar essas…essas coisas. Agora, não prevemos é que haja aderências que não estão ali visíveis e repuxaram aquela estrutura para uma outra localização.»
Mais referiu que se trata de uma situação cuja ocorrência é muito baixa, mas que pode acontecer sem que « a atuação dos médicos que estão ali a intervir, os cirurgiões, contribua para isso, ou seja, contribua do ponto de vista… não significa que as pessoas foram descuidadas como lhe digo os ureteres são estruturas muito pequenas, são estruturas que não estão dentro da cavidade abdominal… estão na cavidade abdominal, mas para trás, é o espaço retroperitoneal, ou seja, é muito por trás, tem de ser abrir muitas estruturas para chegar lá e, portanto, como lhe digo, não se pode fazer isso em todas as cirurgias. Se não estávamos a aumentar aos morbilidades aos doentes todos…poderá ter havido ali alguma alteração anatómica naquela região pélvica… se calhar também, um bocadinho mais difícil atendendo à obesidade abdominal que a Sra. tinha, porque depois a obesidade não é só o que está por baixo da pele, é também dentro dos órgãos… os órgãos também têm gordura, não é? A gordura… a chamada gordura visceral… o tamanho uterino também. ».
Afirmou tratar-se de uma cirurgia complexa, e que um médico só ao fim de 6 anos de internato é que estará apto a fazê-la. Exige um grande conhecimento anatómico e que nessas cirurgias estão sempre a dizer “olha os ureteres,…cuidado com a bexiga… O útero é um órgão móvel… quando é normal mas quando atinge dimensões passa a ser fixo… Fica pesado, fica encravado na parte pélvica.»
Por seu turno a testemunha Dra. BB, que realizou, juntamente com a testemunha CC, a histerectomia à Autora, disse que aquela intervenção decorreu sem intercorrências, e que por isso nada foi registado, sendo que no caso foram dois a operar, um do lado direito e o outro do lado esquerdo. Disse concretamente que: «Esta senhora tinha um índice de massa corporal que lhe atribuía um grau de obesidade e que claramente para nós… é uma desvantagem.
Primeiro porque o campo operatório é sempre muito mais reduzido, portanto, e até conseguirmos a peça operatória, neste caso, o útero… claramente o campo reduzido dificulta a técnica cirúrgica e, portanto, também aumenta a taxa de complicações. Portanto, a obesidade de facto… além disso se tratava de um útero bastante volumoso… e as duas coisas juntam dificultam a abrangência do campo operatório.»
Para além da obesidade da autora, disse também que « se tratava de um útero bastante volumoso…e as duas coisas juntas dificultam a abrangência do campo operatório». Mais referiu que « a história de cirurgias anteriores também aumenta o risco…nós sabíamos que a senhora tinha uma apendicectomia… » que foi feita em França aos 11 anos de idade e em relação à qual não tinham exames.
Esclareceu que o facto de ter havido uma angulação dos ureteres não ficou registado porque tratou-se de uma «intercorrência que… não foi identificada durante a cirurgia…e em 70 e tal % dos casos, de facto, não é identificada em operatório…».
Referiu que no caso «não houve uma lesão direta, mas foi repuxado.» oferecendo a seguinte explicação para o que se passou: « …a fibrose própria que fica de uma cirurgia pélvica anterior faz com que os tecidos fiquem aderentes entre si e, por exemplo, em algumas mulheres a distância dos ureteres às artérias uterinas, …chega a ser de 5 mm…portanto, numa histerectomia ..fazemos várias laqueações, várias secções de tecidos e estamos a trabalhar junto de outras estruturas que supostamente não devem ser intervencionadas…mas de facto, com o estiramento dos tecidos, com a dificuldade do campo operatório e com o útero volumoso essas estruturas de facto podem mudar ligeiramente a sua posição e predispor a que haja esse tipo de complicações».
No mesmo sentido, depôs a testemunha Dr. CC, que exerce a especialidade há mais de trinta anos, tendo confirmado as declarações prestadas pela anterior testemunha.
De particular disse que a histerectomia é uma intervenção em que os cirurgiões operam « um de cada lado e é exatamente igual de um lado e de outro…o que se faz do lado direito da doente é exatamente os mesmos passos, a mesma técnica que se faz do lado esquerdo da doente. E para facilidade dessa mesma técnica quem está de um lado opera aquele lado e quem está deste lado opera deste lado, portanto, o que me parece, uma vez que não houve intercorrência, que não houve qualquer tipo de problemas durante a intervenção… a única coisa que podia justificar…esse repuxamento dos ureteres… porque essa técnica foi feita por pessoas diferentes, se fosse a mesma pessoa a executar a técnica dos dois lados, podia -se dizer “ olha, não teve cuidado ou fez a coisa mal feita”, mas não, foram pessoas diferentes que ocasionaram o mesmo tipo de repuxamento…aconteceu nos dois ureteres…a senhora deveria ter uma alteração anatómica do posicionamento dos ureteres relativamente ao útero que justificasse que utilizando uma técnica correta conforme está descrito pudesse ocasionar esse repuxamento dos ureteres porque eles não foram laqueados. Eles foram repuxados.»
Disse ainda que a lesão verificada vem descrita na literatura médica da especialidade que pode acontecer em cerca de 2% dos casos, mesmo utilizando a técnica correta e até sem fatores de risco e explicou que a seu ver, a existência de suturas na bexiga e o repuxamento dos ureteres se ficou a dever ao facto de pensarem que estavam a suturar « o couto vaginal». Acrescenta que: « se nós soubéssemos que não era o couto vaginal ou que houvesse a intersecção do outro lado qualquer, nós teríamos, na altura, e se isso fosse identificado, …que reparar essa mesma sutura». Disse ainda que após a intervenção, não é feito nenhum exame para verificar se os demais órgãos não foram atingidos, uma vez que tal não faz parte da rotina « em nenhuma parte do mundo» e isso porque « a técnica que nós utilizamos foi imaginada …para fugir à proximidade do ureter …quando utilizamos aquela técnica corretamente sabemos que o ureter se estiver na sua posição habitual não vai ser …atingido».
Na motivação apresentada pelo Senhor Juiz a quo, quanto ao depoimento dos dois médicos que realizaram a histerectomia, escreveu-se o seguinte:
«São depoimentos a considerar, porque as testemunhas foram os cirurgiões que realizaram a primeira operação, e da qual terão resultado as lesões que a Autora invoca (portanto, realizaram a histerectomia total). Mas também por isso, dado estar em causa a sua atuação, a análise destes depoimentos mereceu-nos particular atenção. Ora, sobre os depoimentos em causa impõe-se dizer que não vemos razão para lhes retirar crédito. Sobretudo na parte em que explicaram o procedimento e o modo como decorreu a cirurgia, e ainda porque, quanto à questão da lesão ureteral pode não ser percecionada no momento da cirurgia, os depoimentos são consentâneos com a prova pericial produzida. Daí que constituam prova suficiente para considerar provados os factos elencados nos pontos 15 e 16. Também serviram os depoimentos em causa para considerar provados os factos 20 e 21, aqui em especial pela consonância com a prova pericial [segundo se apurou, a utilização de cistoscopia apenas é utilizada, por rotina, em cirurgias oncológicas]. Aliás, a testemunha CC admitiu, de forma espontânea, que a sutura originou o repuxamento, e que a única explicação que encontra para ter sucedido é a existência de uma alteração anatómica na Autora (em especial porque o repuxamento ocorreu dos dois lados, i. e., em ambos os ureteres). E a testemunha BB referiu, sem fugir à questão, que os fios encontrados são da operação que realizaram. Daí que não tenhamos dúvida de que não se tratou de uma atuação intencional, ou que tenha sido omitida a descrição: simplesmente, no momento, os cirurgiões não se aperceberam, porque a lesão não se revelava.»
Ora, resulta do depoimento prestado pelos cirurgiões Dra. BB e Dr. CC que a intercorrência em questão não foi verificada durante a intervenção realizada à Autora, razão pela qual não determinou que o respetivo registo fosse feito. Aliás, resulta do depoimento da testemunha Dra. BB que « em 70% dos casos a angulação dos ureteres, e até a laqueação…só são diagnosticados no pós-operatório
No mesmo sentido, a testemunha Dr. KK, especialista em urologia, disse tratar-se de « casos que estão descritos na literatura, que acontecem…não significa que houve um erro…».
A referida testemunha disse ainda que :« …esses pontos só podem ter sido dados quando estavam a fechar a vagina. E ao fechar a vagina, se dão um ponto um bocado mais profundo por alguma dificuldade anatómica, alguma coisa que esteja a dificultar, deram um bocado mais profundo e apanharam a bexiga. Porque bexiga está a meio centímetro. Não é problemático. Agora, se o ponto vai um bocadinho mais profundo e eles não conseguem controlar isso a 100% e… entra dentro da bexiga, já temos um problema de…. De ser um material litogênico que ali fica. Portanto, imaginemos que estão aqui assim, se o ponto vai um bocadinho mais profundo, pode passar para este órgão oco que está ao lado.
Eles estão colados um ao outro, estão ao lado um do outro. Mas ao fechar isto, estão a fechar a vagina assim e podem dar um ponto um bocado mais profundo e apanhar um bocado a bexiga. O problema que se pôs aqui foi o facto de ter ido mesmo lá dentro e, ao mesmo tempo, ter sido próximo dos ureteres e eles terem ficado, o tal repuxado. Em vez de estarem mais laterias, foram para o meio e dificultou a drenagem da urina. (…)Se estivessem, também na parte de cima, laqueados ou o que fosse, aí digamos que já é um sítio em que eles teriam de se aperceber ou de averiguar onde estava o ureter para não acontecer. Aí acima, próximo do rim. Aí, … se tivesse sido aí acima, aí já podíamos pensar que houve um desleixo, se tivessem laqueado ali em cima.
Agora, aqui em baixo, não porque está muito próximo do sítio onde estão a trabalhar e é difícil de anteverem ou de saberem com toda a certeza que isso aconteceu. Agora, se fosse na parte de cima, não. ».

Reafirma-se, a conclusão que retiramos da prova produzida, percorridos todos os relatórios periciais, ouvidos os esclarecimentos prestados pela Senhora Perita e, considerando os depoimentos testemunhais que foram prestados por todos os médicos em audiência de julgamento, é a de que a laceração da bexiga e o “repuxamento dos ureteres” constitui uma intercorrência da histerectomia suscetível de ocorrer, embora numa pequeníssima percentagem de casos, mas que, a acontecer, tal não significa sem mais que tenha havido uma má prática médica, sendo que, na maior parte dos casos, o que leva a que essas intercorrências ocorram, se prende antes com alterações anatómicas da paciente, como era certamente o caso da Autora, dado a mesma ser obesa, ter um útero volumoso e ter sido já sujeita a uma intervenção cirúrgica. Nenhuma testemunha, sequer a Senhora Perita, afirmam que a laceração da bexiga/ “repuxamento dos ureteres” foi consequência da imperícia dos cirurgiões que efetuaram a histerectomia.
Ao invés, o que concluímos, é que o “repuxamento” de ambos os ureteres da Autora se ficou a dever à sutura, e que a única explicação que se encontra para ter sucedido é a existência de uma alteração anatómica na Autora, não se devendo a uma atuação incompetente e incauta dos médicos da ULSAM.
Sabe-se que qualquer cirurgia envolve riscos iatrogénicos, ou seja, riscos infligidos em outros órgãos por força da cirurgia. Esses riscos são agravados quando a paciente, como sucede no caso, é obesa, tem um útero volumoso e foi já sujeita a uma cirurgia abdominal, fatores que dificultam o campo operatório e que distorcem a anatomia da paciente, podendo criar aderências que trazem riscos acrescidos.
Conforme se refere a fls. 421 do processo físico, no estudo junto aos autos, os «principais fatores de risco, que aumentam o risco de lesão dos ureteres, são cirurgias pélvicas prévias, endometriose, obesidade, neoplasias malignas e aumento das dimensões uterinas…Uma lesão ureteral é geralmente mais subtil do que uma lesão na bexiga. A não ser que seja feita uma lesão transversal do ureter e o lúmen seja visível, uma lesão parcial da espessura da parede do ureter dificilmente é visível no decorrer da cirurgia».
Quanto à bexiga, diz-se nesse estudo que « o local onde ocorrem mais frequentemente lesões na bexiga é no trígono, entre a abertura dos orifícios ureterais ».
Assinale-se ainda que, resulta da prova produzida que a ausência de qualquer menção nos registos clínicos destas intercorrências, se ficou a dever ao facto de as referidas complicações terem passado completamente despercebidas aos cirurgiões no momento em que estavam a operar, não tendo os mesmos, sequer, levantado a hipótese de que pudesse ter ocorrido um atingimento da bexiga / “repuxamento dos ureteres”. O que se apurou, foi antes que, para os cirurgiões, tratou-se de uma intervenção que decorreu sem qualquer intercorrência, de uma intervenção normal, e que os mesmos não se aperceberam de quando estavam a suturar o “couto vaginal” que houve também a suturação da bexiga e repuxamento dos ureteres da Autora, uma vez que, não foi detetada qualquer intercorrência e foi observada a técnica cirúrgica prevista para a realização da histerectomia.
Nenhuma prova foi produzida, nenhuma testemunha o disse, nem nenhum perito atestou, que as complicações verificadas aquando da realização da histerectomia, designadamente, o facto de a bexiga ter sido suturada, ocorreram em razão de uma má prática médica. Logo, do facto de não ser uma consequência normal da realização de uma histerectomia que a bexiga seja suturada, não se pode inferir que essa complicação, a verificar-se, foi consequência de uma má prática médica. Ademais, como atesta a literatura cientifica, existe um risco associado a este tipo de cirurgias de ocorrerem essas complicações, mesmo que sejam observados todos os procedimentos técnicos e adotados todos os deveres de cuidado e de prudência.
Também não é despicienda a circunstância de a intervenção cirúrgica ter sido realizada por dois médicos em simultâneo, um posicionado do lado direito e outro do lado esquerdo, e o repuxamento dos ureteres se ter verificado em relação a ambos os ureteres e não apenas a um deles. Logo, a ter havido imperícia, então ter-se-ia de admitir que houve imperícia em relação aos dois médicos, o que se nos afigura muito pouco provável, tanto mais que um dos operadores contava uma experiência de mais de 30 anos.
Assim sendo, em face da prova produzida , aditam-se ao factos assentes, os seguintes pontos com a seguinte facticidade:
«6.4. A obesidade e o volume do útero são fatores que dificultam a abrangência do campo operatório.
6.5. A histerectomia realiza-se sem visualização dos ureteres.
59.1. Tendo em conta a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), e a história clínica da Autora, com a realização de uma apendicectomia anterior, com a presença de aderências que torna os tecidos mais aderentes entre si, mais fibróticos, tornou mais difícil a dissecção entre planos que envolveu a técnica cirúrgica da histerectomia realizada, a presença de fios de sutura no trígono vesical a repuxar os meatos uretrais pode constituir uma intercorrência da cirurgia ginecológica;
59.2. Intercorrência esta que não foi identificada durante a histerectomia realizada, não tendo por isso sido registada.
«59.3. O repuxamento dos ureteres ocorrido é uma complicação enquadrável na percentagem de risco de realização da histerectomia, percentagem esta que acontece de 0,2% a 0,5% das cirurgias - cf. fls. 310 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019.».
(iii) quanto à eliminação do elenco dos factos assentes do facticidade vertida no ponto 57
O Apelante pretende que, por não se demonstrar provado, quer documentalmente, quer na audiência, seja eliminado dos factos provados, o ponto 57. com o seguinte teor:
«57. Se a intervenção cirúrgica de histerectomia tivesse sido realizada com a normal destreza e atenção, não teria havido necessidade das cirurgias posteriores e tratamentos a que a Autora teve de submeter-se».
Em face das considerações que antecedem, elimina-se esta ponto do elenco dos factos assentes uma vez que, conforme resulta da análise que efetuamos dos elementos de prova que constam dos autos, não resultou provado que na histerectomia realizada à autora os cirurgiões tivessem atuado com imperícia, violando as legis artis.
(iv) quanto à altração do ponto 59.º do elenco dos factos provados.
O Apelante pede que em relação aos factos provados, seja alterado o teor do ponto 59, passando a ter a seguinte redação:
«59. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.».
Em face das considerações que efetuamos, defere-se a requerida alteração.
(v)quanto à eliminação do ponto 28 dos factos assentes
O Apelante pretende que, por se encontrar repetido com o ponto 59., deve também ser eliminado dos factos provados, o ponto 28. com o seguinte teor:
«28. Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar / laquear os meatos ureterais - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial.»
Assiste-lhe razão, pelo que se elimina o referido ponto 28 do elenco dos factos provados.
(vi) quanto à eliminação da alínea K) do elenco dos factos não provados
Por fim, o Apelante pretende que seja eliminado dos factos não provados, a alínea K) com o seguinte teor:
«K) Não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos (bexiga e útero), a permanência dos fios de sutura na bexiga constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica».
Em face da análise que efetuamos sobre a prova produzida, essa matéria resultou provada, tendo sido levada aos factos assentes.
Como tal, elimina-se a referida alínea dos factos não assentes.
**
B.3- Do direito.

Com a presente ação administrativa, a Autora pretende ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrente das lesões e respetivas sequelas por ela sofridas em consequência, em síntese, de erro médico ocorrido no âmbito da histerectomia total a que foi submetida no Hospital ..., em ..., no dia 25/10/2013.

Precise-se que a responsabilidade médica, na falta de regime especial, tem sido enquadrada pela doutrina e pela jurisprudência, quer no âmbito da responsabilidade contratual, quando estejam em causa atos médicos ocorridos no seio do exercício da medicina privada, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, quando estejam em causa atos médicos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
É firme e pacifica a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido da responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde, ser de natureza extracontratual ou aquiliana.
Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STA de 09.06.2011, proferido no processo n.º 0762/09 no qual se enuncia que: «A responsabilidade por atos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual, incumbindo ao lesado o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos dessa responsabilidade, regulada, fundamentalmente, no Decreto-Lei 48 051, de 21 de novembro de 1967».
No mesmo sentido também se pronunciou o STA, em acórdão de 16/01/2014, proferido no processo nº 0445/13 no qual igualmente se adverte que: «A responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendo-lhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos».
Esta jurisprudência filia-se no entendimento de que nas relações entre o utente e o SNS se aplica o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, e isso porque, os cuidados de saúde que são prestados aos pacientes por estabelecimentos ou profissionais SNS emergem da obrigação constitucional e legal do Estado de assegurar a todos os cidadãos que careçam de cuidados médico-cirúrgicos essa prestação de serviço público, não estando na disponibilidade dos profissionais/estabelecimentos hospitalares que integrem a rede do SNS a possibilidade de recusarem a prestação dos cuidados de saúde a quem deles necessite e se socorra desses serviços.
Nesse sentido, cita-se o Ac. do STJ de 25/02/2015, processo nº 804/03.2TAALM.L.S1, no qual aquela alta instância, acompanhando a jurisprudência já expressa, reiterou uma vez mais tal entendimento, ao expender que: «O ato médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um ato técnico no exercício de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adoptada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002, de 08-11.
É, pois maioritária a posição - excluindo-se, ainda a concepção da natureza atípica - que perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no CC, no art. 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de serviço público, em que, como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente, e este da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência»
- .cfr. Acs. do STJ, de 24/5/2011, Processo nº 1347/04.2TBPNF.P1.S1; de 29/10/2015, Processo nº 2198/05.2TBFIG.C1.S1.
Em suma, podemos afirmar que os hospitais públicos, em sentido amplo, sejam os que estão enquadrados no setor público administrativo, como os que apenas fazem parte do setor empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, todos eles, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos (sejam eles ações ou omissões) neles praticados correspondem, inequivocamente, ao exercício da função administrativa.
Foi também este o entendimento subscrito pela 1.ª Instância na sentença recorrida, em que se considera que a efetivação da responsabilidade médica por ato médico realizado no estabelecimento hospitalar demandado, integrado no SNS, é de natureza extracontratual ou aquiliana, o que conforme resulta do que se acaba de expender se mostra conforme à jurisprudência largamente maioritária da jurisdição administrativa, a qual se subscreve.
Por outro lado, é igualmente pacífico que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no art. 483º Código Civil.

Nesse sentido, veja-se exemplificativamente a jurisprudência promanada no Ac. do STA, de 3/07/2007, processo nº 0443/07, no qual se enuncia que «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto».
Cingindo-se especificamente à responsabilidade médica, no Ac. do STA de 20/04/2014, Proc. 982/05, escreveu-se que: “Nas ações de responsabilidade médica tem aplicação o regime geral do nosso ordenamento jurídico – art. 342º, n.º 1 do CC -, de acordo com o qual cabe à Autora fazer a prova dos factos constitutivos do direito à indemnização, salvo nos casos de presunção legal – art. 344º, n.º 1 do CC – ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado – art. 344º, n.º 2 do CC”.
Deriva do que se vem dizendo que ancorando-se a pretensão indemnizatória a que a Autora se arroga titular perante o hospital público Réu no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito de um ente público, cabe àquela o ónus da alegação e da prova da verificação dos requisitos gerais cumulativos da responsabilidade civil aquiliana, os quais se reconduzem ao facto, à ilicitude, à culpa, ao dano e ao nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano – neste sentido veja-se ainda os Acs. do STA, de 20/05/1999, Rec. 39535; 2/12/2009, Processo nº 0763/09; 10/05/2001, Proc. 47173; e de 14/04/2005, Proc. 0677/03.

A histerectomia a que a Autora se submeteu no hospital Réu teve lugar no dia 25 de outubro de 2013, altura em que se encontrava em vigor a Lei n.º 67/2007, de 31/12 ( RRCEE) pelo que é à luz deste diploma que se terá de aferir do preenchimento ou não dos enunciados pressupostos legais constitutivos do direito indemnizatório a que aquela se arroga titular perante o hospital demandado.
Na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos, relativamente aos atos e operações materiais, a ilicitude emerge da violação das disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou ainda de infração às regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado que devam ser tidas em consideração e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos- Artigo 9.º.
Dito por outras palavras, a ilicitude não decorre imediatamente da verificação do dano (lesão de um direito subjetivo) e da sua decorrência em termos de causalidade adequada da ação imputada ao réu.
Conforme se pondera no acórdão do STA, proferido no Processo 0982/03: “(…) A lei não se basta com a produção causalmente adequada da ofensa dos direitos de terceiros ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses (art.3º do DL 48 051, de 1967.11.21). Exige a infração de regras técnicas e/ou do dever geral de cuidado, como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito, significando que a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danoso - ilicitude de resultado – e que, igualmente, está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamento – ilicitude de conduta (vide, neste sentido, na doutrina GOMES CANOTILHO, RLJ, Ano 125º, p. 84, MARCELO REBELO DE SOUSA, “ Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização? “, in “Direito da Saúde e Bioética”, ed, AAFDL, 1996, p. 172 e MARGARIDA CORTEZ, “Responsabilidade Civil da Administração por Atos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado”, pp. 50/53 e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, por exemplo, o acórdão de 1998.03.17 – recº nº 42 505). Posto isto, podemos concluir que na responsabilidade civil extracontratual, por acto cirúrgico ilícito, o desvalor da ação do agente - a violação das leges artis ou do dever geral de cuidado – é um dos pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar. (…)”.
Como bem observa VERA LÚCIA RAPOSO in “Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional”, Coimbra, 2015, pág. 17, «A ilicitude da atividade médica não resulta necessariamente de violação da lei, do contrato, e nem mesmo do interesse de outrem, mas sim da violação das regras próprias da prática médica, consagradas nos mais diversos locais». Note-se que no domínio da responsabilidade civil médica, «só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso (o que, no mundo anglo-saxónico, é conhecido como common practises”)».«Noutros casos a falta médica não radica no ato praticado – aquele resultado nefasto pode até ser considerado um dos riscos possíveis e inevitáveis do ato médico, ou uma consequência que no caso concreto não se ficou a dever a uma falta do agente – mas sim na ausência do subsequente ato que corrigiria o resultado lesivo».

De resto, o entendimento que tem seguido pela doutrina e pela jurisprudência administrativa que acabamos de enunciar, nos termos do qual, a ilicitude terá de radicar na violação pelo médico da leges artis própria da sua atividade e/ou na violação do dever geral de cuidado, não deixa de se mostrar conforme com a circunstância de, no ato médico, o prestador do ato não se obrigar a curar o doente da patologia de saúde que o afeta, mas sim a prestar-lhe tratamento adequado para essa patologia, mediante observância diligente e cuidada das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), porquanto a prática da medicina envolve, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psicossomáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis e, nessa medida, a obrigação de prestar o ato médico configura-se, não como uma obrigação de resultado, mas de meios, em que o médico se obriga tão só a diligentemente, atento o conhecimento científico e o desenvolvimento da arte médica, a prestar o tratamento médico adequado ao doente Ac. STJ. De 23/03/2017, Proc. 296/07.7TBMCN.P1.S1, in base de dados da DGSI..

Como ensina Almeida Costa- in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., Almedina, pág. 1039-, “as obrigações de meios” são aquelas em que o devedor se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”, pelo que, sendo assim, a ilicitude nunca poderia resultar do ato médico praticado ou omitido ter tido como consequência a ofensa dos direitos subjetivos do doente ou de disposições legais destinadas a proteger os interesses destes, mas apenas pode derivar da circunstância do médico não ter agido de acordo com a legis artis próprios da sua arte (profissão) e do estado de desenvolvimento desta ou ter infringido o dever geral de cuidado.
Logo, deriva do que se vem dizendo que para se aferir do requisito da ilicitude é necessário que, no caso, a Autora tenha alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado na sua pessoa foi antecedido de gestos clínicos e/ou cirúrgicos dos serviços do Réu praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médica – cfr. Ac. STA de 16/01/2014, Proc. 0445/13, in base de dados da DGSI..

No caso dos autos, a Autora funda a pretensa ilicitude dos atos médicos que lhe foram prestados durante a histerectomia, realizada no dia 25 de outubro de 2013, na circunstância de lhe ter sido provocado um “repuxamento dos ureteres” o que determinou a necessidade de colocação de cateter duplo JJ bilateralmente via cistoscopia, situação que apenas foi diagnosticada através da cistoscopia, de cuja descrição ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar/ laquear os meatos ureterais, considerando que tal apenas ocorreu devido à grave e grosseira negligência médica, situação da qual resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização reclama.
A Autora foi sujeita a uma histerectomia total, tratando-se de uma das cirurgias mais praticadas em todo o mundo. Essa intervenção cirúrgica consiste na retirada do útero, sendo total quando se retira a totalidade deste órgão e o colo do útero.
Esse ato cirúrgico foi realizado à Autora por ter sido efetuado o diagnóstico de “útero miomatoso”, tendo a mesma consentido na sua realização, para o que prestou o devido consentimento escrito.
Na primeira consulta que a Autora realizou no hospital Réu ficou a constar do registo clínico que a mesma pesava 90 kg, media 1,68m de altura, tinha um útero volumoso ( 12,5 cmx6,5 cmx6,5cm) e que tinha sido já sujeita a uma apendicectomia.
Conforme se provou, a histerectomia é uma cirurgia complexa, da qual podem decorrer riscos iatrogénicos, ou seja, complicações noutros órgãos, como a bexiga e os ureteres, devidamente descritas na literatura cientifica, existindo um risco de 0,03% a 2,00% de lesão vesical e de lesão ureteral.
A Autora não provou que os cirurgiões que efetuaram a histerectomia não observaram as leges artis, ou seja, que foram inobservados os passos inerentes à técnica cirúrgica aplicável a este tipo de ato médico, que de resto, não identificou na petição inicial, limitando-se a alegar, que houve negligência na realização dessa intervenção cirúrgica porque houve o repuxamento dos ureteres e foram detetados pontos de sutura na sua bexiga, na cistoscopia realizada depois da operação.
Ora, a este respeito, provou-se que a histerectomia decorreu sem que tivessem sido verificadas pelos cirurgiões quaisquer intercorrências e daí que não constasse do respetivo registo clínico qualquer indicação de complicações. Mais se provou que a Autora patenteava vários fatores de risco, a saber, obesidade, útero volumoso e sujeição anterior a uma intervenção abdominal (apendicectomia), o que potencia a possibilidade de surgirem complicações. Trata-se de fatores de risco que podem distorcer a anatomia da paciente e provocar complicações que de outro modo não se verificariam.
Provou-se também que o tipo de lesões ureterais e a laceração da bexiga, podem não ser detetadas durante a realização da histerectomia, só se manifestando mais tarde, no período pós-operatório e que verificação desse tipo de “lesão” pode ou não ser impedida pelos médicos que estão a operar. Ora, no caso, não se tendo provado que os médicos cirurgiões que realizaram a histerectomia à Autora adotaram uma má prática na realização dessa cirurgia, não se pode concluir que as lesões verificadas se ficaram a dever a uma atuação ilícita e culposa dos mesmos.
Provou-se que, não obstante a grande proximidade de ambos os órgãos ( bexiga e útero) a permanência dos referidos fios de sutura na bexiga constitui uma intercorrência da cirurgia ginecológica.
O erro médico só existe quando o médico viola, cumulativamente, a leges artis e o dever de cuidado que lhe cabe e pode ser cometido por:(i)imperícia ( impreparação: fazer mal o que deveria ser feito de acordo com a leges artis);(ii)imprudência (fazer o que não consta da leges artis; (iii)negligência ( deixar de fazer o que a leges artis impunha que se fizesse)- cfr. João Carlos Gralheiro, in “O ato médico é uma empreitada?”. 2.ª edição, Edições Esgotadas, pág.34.
Ora, porque cumpria à Autora o ónus da alegação e da prova em como a histerectomia nela realizada foi efetuada com inobservância das leges artis (art. 342º, n.º 1 do CC), para o que tinha de demonstrar que os cirurgiões, ao suturaram a bexiga e ao repuxarem os ureteres, o fizeram por imperícia, demonstrando, quiçá, que de acordo com o estádio de conhecimento da ciência e da arte médica, tal não poderia ocorrer, se aquele ato cirúrgico tivesse sido realizado de outro modo, não tendo a mesma feito essa prova, como não fez, não é possível concluir pela existência de qualquer ilicitude por parte dos cirurgiões que efetuaram a histerectomia.
No âmbito deste requisito averigua-se se um dado comportamento despido dos elementos relacionados com o seu autor merece censura à luz do nosso ordenamento jurídico: formula-se um juízo objetivo. E como bem sublinha Vera Lúcia Raposo- in ob. cit., pág.48, “a ilicitude do ato médico tem de ser sempre demonstrada pelo lesado, nunca se presume…”

Para além de o facto gerador de responsabilidade civil ser ilícito, tem o médico de o praticar com culpa. Isto é, tem de provar-se que o lesante, pelas suas capacidades e em face da circunstância concreta,” podia e devia ter agido de outro modo”, merecendo o seu comportamento, por isso, censura ou reprovação.
A culpa surge, assim, como uma relação de desconformidade entre o comportamento observado e a conduta devida “ no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes”. Existe um nível mínimo de exigência que não pode ser postergado: a culpa começa quando terminam as discussões científicas. A culpa surge quando um dado ato terapêutico, à luz dos conhecimentos médicos atuais, não serve a função de aproveitamento das chances de obtenção do resultado final pretendido- cfr. João Carlos Gralheiro, in ob. cit., pág.65-66.
Ora, a facticidade apurada nos termos supra expostos, não permite dar como preenchido o requisito da ilicitude, e consequentemente da culpa. A Autora, não logrou provar que as “lesões” sofridas decorreram de um erro cometido por imperícia, imprudência ou negligência dos cirurgiões que efetuaram a histerectomia.
Com efeito, ao contrário do que sucederia no regime da responsabilidade civil contratual, aplicável no âmbito do regime privatístico (em que a Autora teria de provar, apenas, a ilicitude, beneficiando, depois, de uma presunção de culpa, nos termos do art.º 799.º do Código Civil, passando a incumbir ao devedor da prestação a prova de que a ocorrência não lhe é imputável – cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 23/03/2017, proferido no processo n.º296/07.7TBMCN.P1.S1), no caso da responsabilidade extracontratual, e na falta de qualquer presunção legal, a Autora continua onerada com o ónus de demonstrar todos os requisitos.
Na situação em análise não existe qualquer prova no sentido de que não foram cumpridos todos os procedimentos cirúrgicos. Tanto quanto se provou, os médicos do Réu atuaram em obediência às leges artis.
Assim, contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, impõe-se concluir pela improcedência da presente ação por a Autora não ter logrado demonstrar, desde logo, o requisito da ilicitude, não tendo igualmente demonstrado o requisito da culpa.
Sem necessidade de outras considerações, resulta do exposto, proceder a presente apelação e, em consequência, impõe-se revogar a sentença recorrida e absolver o Réu do pedido.
*
IV-DECISÃO

Nestes termos, a conformidade,
acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte, em julgar a presente apelação procedente e, em consequência:
a- introduzem as alterações supra identificadas à facticidade julgada provada e não provada pela 1ª Instância na sentença recorrida;
b- revogam a parte decisória da sentença e absolvem o Réu do pedido.

*
Custas em ambas as instâncias pela Autora (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*
Porto, 10 de março de 2023

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho, que vota vencido nos termos infra.
Ricardo de Oliveira e Sousa

«Vencido, com os seguintes fundamentos:

Entendo ser essencial o facto dado como assente no item 28º) do probatório que considero não dever ser suprimido dado constituir descrição da operação realizada no dia 30 de Outubro de 2013 – documento que contém, concretamente, a descrição das lesões sofridas pela Recorrida na altura da primeira cirurgia –; segunda cirurgia que teve lugar na sequência dos sintomas sentidos pela Recorrida, descritos nos itens anteriores ao 28º) dos factos apurados, constando, precisamente, do mesmo documento - doc. ... junto com a p.i. - a descrição que o T.A.F. de Braga fez do que consta do mesmo "...a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar/laquear os meatos ureterais...", expressão da qual se retira que a existência de fios de sutura no trígono vesical – para a qual não foi dada nenhuma explicação clínica – está a repuxar/laquear os meatos ureterais, isto é, foi aquela sutura, indevidamente realizada, que repuxou/laqueou os meatos ureterais.

A primordial importância deste documento prende-se com a circunstância de ser um relatório que descreve a segunda cirurgia a que a Recorrida foi submetida, constando do mesmo que o cirurgião foi “OO”, que é o Dr. FF, que prestou depoimento nos autos tendo referido que “os fios de sutura não deviam lá estar.” – cfr. fls. 15 da sentença – importando recordar, para realçar a importância do que está mencionado no doc. ... junto com a p.i.m terem sido o Dr. FF e o Colega que o coadjuvou na 2ª operação cirúrgica as primeiras pessoas – e eventualmente as únicas - a verem as lesões sofridas pela Recorrida na sequência da 1ª cirurgia.

Por outro lado, e conforme consta igualmente da fundamentação da sentença prestou, igualmente, depoimento, o Dr. CC – um dos clínicos que participou na 1ª cirurgia a foi submetida a A. – constando da fundamentação da mesma o seguinte: “…a testemunha CC admitiu, de forma espontânea, que a sutura originou o repuxamento, e que a única explicação que encontra para ter sucedido é a existência de uma alteração anatómica na Autora (em especial porque o repuxamento ocorreu dos dois lados, i. e., em ambos os ureteres).” – cfr. pag. 15 da sentença.

Por último, importa referir que não será inocentemente que a Recorrente depois de questionar, no seu recurso, a decisão do T.A.F. de Braga quanto a diversos pontos da matéria de facto provada e não provada, pretender que seja suprimido o facto constante do item 28º) com a alegação de que o mesmo é igual ao facto descrito no item 58º) – este com a redacção proposta pela Recorrente - pretensão que não deveria, no meu entendimento, ser acolhida pelo Tribunal, dado serem factos distintos constar que “Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar os meatos ureterais” – facto que a Recorrente pretende fique a constar do item 58º dos factos apurados – ou constar que “Na descrição desta cistoscopia, ficou a constar a existência de fios de sutura no trígono vesical e a repuxar / laquear os meatos ureterais”, residindo a diferença na palavra “laquear” que a Recorrente, habilmente, pretende ver suprimida, mas que é a que consta do documento nº ... junto com a p.i., pelo que, sem prejuízo de alterações pontuais à matéria de facto assente, irrelevantes para a decisão da causa, como o peso da Recorrida e a circunstância ter sido submetida a uma apendicectomia, negaria provimento ao recurso.

Porto, 10 de Março de 2023».