Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01291/20.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/05/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:ACÇÃO PARA PERDA DE MANDATO; PROVA DOCUMENTAL; PROVA TESTEMUNHAL; PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE; DOLO; DIREITO DE DEFESA;
NULIDADE PROCESSUAL; ARTIGO 195º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário:1. Mostra-se imprescindível produção de prova testemunhal e por declarações de parte em acção de perda de mandato dado que, desde logo, os factos que são objectivamente imputados ao réu, com base em prova documental, foi produzida apenas para investigação das ilegalidades que fundam o pedido de perda de mandato e não para a imputação objectiva e subjectiva (aqui apenas na forma de dolo) de tais infracções ao réu, em processo em que este pudesse contraditar tal prova, ou seja, em processo em que o direito de defesa estivesse garantido.

2. Não estamos aqui perante um processo em que se averigue a legalidade de um acto punitivo a culminar um processo administrativo sancionatório em que já foram (ou deviam ter sido) garantidos os meios de defesa postos por lei ao alcance do visado, mas antes de um processo a decorrer e a decidir em primeira linha pelo tribunal.

3. Estamos perante um pedido de aplicação de uma sanção, a perda de mandato, em relação ao qual o Réu apenas no processo judicial se pode defender no contexto de um pedido contra si dirigido com uma configuração precisa, a da perda de mandato.

4. O indeferimento neste caso da produção de prova testemunhal e por declarações de parte traduz em erro jurídico que tem uma repercussão processual, a nulidade por omissão de produção de prova testemunhal e por declarações de parte que se impunha, omissão esta que influi no exame e na decisão da causa, pelo que importa supri-la ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil, produzindo a prova omitida.

5. Esta nulidade influi no exame ou decisão da causa a ponto de determinar a revogação da sentença por erro de julgamento, por ter, neste caso, condenado o réu sem que nos autos estivessem devidamente comprovados todos os elementos objectivos e o elemento subjectivo da infracção.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:E.
Recorrido 1:Ministério Público
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Perda de Mandato (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

E. veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 12.12.2020, que julgou totalmente procedente a acção intentada pelo Ministério Público para perda do actual mandato de Presidente da Câmara Municipal (…) exercido pelo ora Recorrente.

O Recorrido contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

§ 2.º QUESTÕES PRÉVIAS.

§ 2.1. Da decisão de indeferimento da produção de prova requerida pelo Demandado.

I. Entre o saneamento processual e o conhecimento do mérito da causa, a sentença recorrida integra, na sua página 21, uma decisão de indeferimento da prestação de depoimento pelo ora Recorrente e da produção de prova testemunhal por este requerida.

II. Essa decisão não apresenta qualquer razão para considerar “claramente desnecessária” tal produção de prova, pelo que é nula nos termos do artigo 90.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativo, do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, e 154.º, 613.º, n.º 3 e 615º, n.º 1, alínea b), do Código e Processo Civil.

III. Ainda que assim não fosse – o que não se concede –, a produção de prova requerida pelo Demandado era essencial à boa decisão da causa, uma vez que existiam factos em relação aos quais se impunha que tivesse sido produzida a referida prova – o que sucede inclusivamente quanto aos factos alegados nos artigos 21.º a 46.º da petição inicial, absolutamente essenciais para a realização do tipo objectivo, que a sentença, na sua fundamentação, repetidamente apresenta como constituindo a descrição dos alegados incumprimentos do Demandado (cfr., p. ex., páginas 90, 105, 111-112) – os quais foram especificamente impugnados pelo Demandado (cfr. artigos 197.º, 198.º e 328.º da Contestação).

IV. Sendo a matéria controvertida, isso impunha a realização da instrução (cfr. n.º 1 do artigo 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigos 410.º, 411.º e 413.º do Código de Processo Civil), tendo sido violado o direito à prova do Demandado e, bem assim, o princípio do contraditório (cfr. n.º 3 do artigo 3.º e artigo 415.º do Código de Processo Civil), enquanto dimensão de um processo jurisdicional equitativo (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, artigo 2.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) – tendo por isso sido violadas essas disposições legais e constitucionais.

V. O que resulta reforçado numa acção (administrativa para perda de mandato) que possui cariz sancionatório – assim o confirmam unanimemente todos os nossos Tribunais superiores –, razão pela qual o artigo 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição garante ao visado os direitos de audiência e defesa.

VI. Impõe-se no caso concreto a revogação da decisão de indeferimento da produção e prova, a realização da instrução e, em especial, a produção da prova requerida pelo Demandado, anulando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tanto em termos consequenciais como por força das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, ex vi n.º 3 do artigo 140.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

VII. A interpretação dos artigos 15.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa, e 90.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de que é admissível a condenação na sanção de perda de mandato em saneador- sentença, indeferindo a produção de prova requerida pelo Demandado, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência e dos direitos de audiência e defesa (n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição, aplicáveis à acção administrativa para perda de mandato) e, bem assim, do direito a um processo jurisdicional equitativo (cfr. n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, n.º 1 do artigo 2.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

VIII. A interpretação dos artigos 15.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa, e 90.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de que é admissível a condenação na sanção de perda de mandato em saneador- sentença, indeferindo o requerimento de prestação de declarações do Demandado, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência e dos direitos de audiência e defesa (n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da Constituição, aplicáveis à acção para perda de mandato) e, bem assim, do direito a um processo jurisdicional equitativo (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, artigo 2.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

§ 2.2. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação.

IX. A sentença recorrida padece de vício de nulidade por falta de indicação dos factos que o Tribunal a quo entendeu não estarem provados, nos termos do artigo 94.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e dos artigos 607.º, n.º 3, e 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.

X. A interpretação do artigo 94.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e dos artigos 607.º, n.º 3, e 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, no sentido de que a sentença não tem que especificar os factos julgados como não provados, nem proceder à respetiva fundamentação, é inconstitucional por violação do direito ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva, estabelecido no artigo 20.º da Constituição.

XI. A infracção imputada ao Demandado exige o dolo do agente (artigo 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa, para o qual remete o artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 43/2012); uma vez que a sentença recorrida se limita à afirmação desse dolo, acompanhada de uma definição genérica de dolo eventual (cfr. pág. 108), é nula a sentença, nos termos dos artigos 94.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e 607.º, n.º 3, e 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

§ 2.3. Outras nulidades da sentença.

XII. Nos termos abaixo explicitados, por comodidade, a propósito da identificação dos erros de julgamento em matéria de Direito, a sentença é ainda nula:

a) Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por contradição dos fundamentos de facto descritos nos pontos 18 a 28 da matéria fáctica provada com a decisão de condenação do Demandado (cfr., infra, § 5.4.6).

b) Por omissão de pronúncia sobre a questão da inaplicabilidade da sanção tutelar pressuposta pelo n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 nos casos em que os factos imputados ao Demandado consistem em alegadas violações dos artigos 12.º e 13.º do mesmo diploma, alegada pelo ora Recorrente nos artigos 521.º a 524.º da Contestação (cfr. § 5.7.2).

§ 2.4. Subsidiariamente: insuficiência da matéria de facto.

XIII. A sentença recorrida considerou improcedente a arguição de nulidade da petição inicial, que o Demandado invocou em virtude de não constarem da petição inicial os elementos típicos essenciais da infracção, cuja verificação é indispensável por força do princípio da legalidade – e, dentro dele, de tipicidade –, como decorre do artigo 242.º, n.º 1, da Constituição, a saber: (I) os actos concretos, por acção ou omissão, imputáveis ao visado, (II) praticados de modo doloso, (III) especificamente executados para “fins alheios ao interesse público”, nos termos dos artigos 8.º, n.º 1, alínea d), e 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa.

XIV. A sentença padece igualmente de vício de insuficiência da matéria de facto para a condenação, mesmo que o julgamento (errado) da matéria de facto se mantenha inalterado e se considere matéria factual o descrito no Relatório da Inspecção-Geral de Finanças, transcrito no artigo 10.º da matéria de facto, o que não se concede.

XV. Com efeito, para aplicação da sanção de perda de mandato, é necessário que o titular do órgão tenha exercido uma determinada competência, por acção ou omissão, praticando o facto típico tutelar; ora, tal como acontece com a petição inicial, tão-pouco a sentença aponta factos suficientes em que se consubstanciasse o tipo objectivo de infracção.

XVI. Por seu turno, quanto aos elementos subjectivos, não consta um único artigo na matéria de facto; não é possível compreender de onde o Tribunal a quo retira a conclusão de que a conduta (ativa e omissiva) é dolosa.

XVII. Não existindo no processo qualquer presunção de culpa que permitisse ao Tribunal abster-se de identificar os factos reveladores da consciência e vontade do Demandado e os concretos meios de prova de onde tais factos se retirariam, a eventual aplicação da sanção de perda de mandato, tendo por base uma imputação realizada nestes moldes, representaria uma intolerável preterição do princípio da culpa; sem tais elementos factuais, não é possível aplicar o Direito e a consequente sanção (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal).

XVIII. Ao não descrever concretamente na matéria de facto (provada ou não provada) factos essenciais para a condenação, a sentença revela-se incompleta, não tendo o Tribunal esgotado a indagação necessária aos “temas de prova” relevantes, nem sendo possível efetuar a subsunção ao tipo legal respetivo (607.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Civil), o que obriga à absolvição do Recorrente.

XIX. A interpretação normativa dos artigos 8.º e 9.º da Lei da Tutela Administrativa segundo a qual a sentença, nas acções de perda de mandato, não tem de fornecer todos os elementos necessários para que o Demandado fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 10, 20.º e 205.º, n.º 1, da Constituição.

§ 3.º ERROS DE JULGAMENTO DO TRIBUNAL A QUO POR CONSIDERAR IMPROCEDENTES AS EXCEPÇÕES INVOCADAS

§ 3.1. Da nulidade da petição inicial.

XX. A tutela administrativa a que estão sujeitas as autarquias locais integra um específico “regime sancionatório” (cfr. artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa), estando as infracções tutelares sujeitas a um princípio de legalidade – e, dentro dele, de tipicidade –, como decorre do artigo 242.º, n.º 1, da Constituição.

XXI. A aplicação de qualquer sanção assenta na definição legal de infracção tutelar, constante do artigo 7.º da Lei da Tutela Administrativa, em conjugação com as ilegalidades expressamente previstas nos artigos 8.º e 9.º da Lei da Tutela Administrativa, não bastando a mera titularidade de certas funções.

XXII. Deve, por outro lado, o facto ilícito (acção ou omissão) ser típico, na medida em que deve estar previsto na Lei da Tutela Administrativa como facto sancionável com a aplicação de sanção tutelar – e isto tanto nos seus aspectos objectivos quanto no seu aspecto subjectivo (artigo 10.º da Lei da Tutela Administrativa), vigorando o princípio da culpa.

XXIII. No caso em apreço, tratando-se da infracção prevista na alínea i) do artigo 9.º da Lei da Tutela Administrativa, é exigível que essa culpa seja dolosa; o facto deve ainda constituir uma acção ou omissão própria, em concretização do princípio da legalidade da competência;

XXIV. Por outro lado, não constitui infracção o facto de se ser titular de uma competência, mas o facto de se exercer essa competência, por acção ou omissão, praticando o facto típico tutelar.

XXV. Satisfeitos todos estes pressupostos, deve, finalmente, o facto ser ilícito e culpável, nos termos dos artigos 8.º, n.º 1, alínea d), e 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa.

XXVI. Ora, a qualificação deste processo como dispondo de uma natureza sancionatória comporta uma consequência imediata e nada irrelevante: o titular de um cargo público autárquico visado num processo de perda de mandato goza plenamente dos direitos consagrados no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, preceito segundo o qual “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

XXVII. Mas a petição inicial não contém “a descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento […] relevante”, nem “a caracterização, objectiva e subjectiva, da acção ou omissão de cuja imputação se trate”.

XXVIII. Não foram apontados factos suficientes em que se consubstanciasse o tipo objectivo e subjectivo de infracção; ora, a eventual aplicação da sanção de perda de mandato, tendo por base uma imputação realizada nestes moldes, representaria uma intolerável preterição do princípio da culpa; no caso da perda de mandato, isto resulta evidente do disposto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa (lido a contrario sensu).

XXIX. Daqui se extrai, pois, que para aplicar a sanção de perda de mandato ao Demandado não é suficiente alegar e evidenciar a prática de um dos factos previstos nos artigos 8.º e 9.º da Lei da Tutela Administrativa — o que, como já se viu, em qualquer caso, não foi feito na petição inicial —, sendo ainda necessário que se alegue que o agente actuou, no caso, dolosamente.

XXX. A interpretação normativa dos artigos 11º, nº 1, da Lei nº 43/2012 e 9.º, al. i), da Lei da Tutela Administrativa segundo a qual, no caso previsto nos artigos 11º, nº 1, da Lei nº 43/2012 e 9.º, al. i), da Lei da Tutela Administrativa, a perda de mandato é aplicável independentemente da gravidade concreta do ilícito em causa, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 18.º da Constituição.

XXXI. Ora, também esta alegação falta completamente na petição inicial – pelo que se aplica a este elemento subjectivo o que se disse em geral e quanto ao dolo.

XXXII. A sentença recorrida entrevê esta omissão da petição inicial e tenta supri-la, encarregando-se o próprio Tribunal de argumentar que o grau de culpa do Demandado existiria “na vertente do dolo eventual”; mas esta tentativa de suprimento (ainda assim, deficiente) está vedada por lei, nos termos do disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal.

XXXIII. Tendo o ora Recorrente sido condenado por factos diversos dos que constavam da petição inicial, a sentença sempre seria igualmente nula, desta feita por aplicação analógica do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.

XXXIV. E ainda que se entendesse que não tinha lugar a aplicação de solução análoga às acções de perda de mandato (em função do disposto no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição) – o que não se admite – a verdade é que à mesma conclusão se chegaria pela aplicação das regras do processo civil, nos termos do artigo 552.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.

XXXV. Em consequência, a sentença é nula, por violação do princípio do dispositivo, previsto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, na vertente da violação dos limites da condenação previstos no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por aplicação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.

XXXVI. Essas deficiências da petição inicial /Acusação tornam impossível o cabal exercício dos direitos de audiência e defesa do Demandado, postergando o disposto no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.

XXXVII. Por isso, a interpretação dos artigos 15.ºda Lei da Tutela Administrativa e 1.º, 94.º, 95.º e 98.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo a qual, nas acções de perda de mandato, o Tribunal a quo pode aditar factos constitutivos da responsabilidade à matéria de facto alegada na petição inicial, designadamente o carácter doloso do comportamento e o grau de culpa elevado do agente, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1 e 10, e 20.º da Constituição.

XXXVIII. No mínimo, a petição inicial seria considerada nula com base no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, preceito aplicável ao contencioso administrativo ex vi do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

XXXIX. A petição inicial não poderia limitar-se a cumprir os requisitos genéricos fixados no n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil para qualquer processo genérico de natureza não sancionatória; enquanto verdadeira e única acusação do processo sancionatório, ela teria de proceder à cabal comunicação dos factos imputados.

XL. Sendo assim, por aplicação analógica do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a petição inicial encontra-se ferida de nulidade, a qual, por ser verificada num processo sancionatório, implica a violação do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.

XLI. Sendo certo que, ainda que não aplicasse o Código de Processo Penal (o que não se concede), o Tribunal sempre teria que ter feito uma interpretação dos requisitos da petição inicial, previstos no Código de Processo Civil, designadamente do artigo 186º, nº 2, al. a), conforme à Constituição (artigo 32.º, n.º 10), o que sempre levaria à conclusão de que a petição inicial seria inepta.

XLII. A interpretação normativa dos artigos 15.º da Lei da Tutela Administrativa e do artigo 186.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo a qual a petição inicial, nas acções de perda de mandato, não tem de fornecer todos os elementos necessários para que o Demandado fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição.

§ 3.2. Da nulidade do Despacho n.º 408/20/MEF e da inexistência de Despacho homologatório legalmente exigido como pressuposto para a propositura da presente acção.

XLIII. Ainda que assim não fosse, a apreciação do mérito da acção também se encontraria prejudicada por uma segunda questão prévia, que consiste na inexistência de um Despacho homologatório do Senhor Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, como pressuposto legalmente exigido para a propositura da presente acção, nos termos do disposto na segunda parte do n.º 3 e no n.º 6 do artigo 6.º da Lei da Tutela Administrativa – o que, aliás, inclusivamente desencadeia a nulidade do Despacho n.º 408/20/MEF, de 12 de Junho de 2020, do Senhor Ministro de Estado e das Finanças, que ordenou a remessa do processo para o Ministério Público sem obter aquela homologação.

XLIV. Com efeito, certamente por lapso, o Senhor Ministro de Estado e das Finanças exarou esse Despacho ordenando a remessa do processo, sem se dar conta de que o Senhor Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local ainda se encontra a apreciar o processo – como ele próprio confirmou por escrito.

XLV. O Ministério Público, ao propor a presente acção, supõe-se que também por lapso, esqueceu que o regime da tutela administrativa não permite a um membro do Governo determinar unilateralmente a remessa de um processo em substituição ou em dispensa da intervenção do membro do Governo responsável pela área das Autarquias Locais, sob pena de violação do disposto, sucessivamente, nos artigos 5.º e 6.º, n.os 3 e 6, da Lei da Tutela Administrativa, no artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 73/2013, no artigo 2.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 96/2012, e no artigo 17.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 169-B/2019;

XLVI. O Ministério Público não dispunha, pois, de fundamento jurídico para iniciar o presente processo – o que é cognoscível independentemente da verificação da nulidade do Despacho n.º 408/20/MEF, que não constitui um acto impugnável nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não impedindo a verificação da falta de um pressuposto processual que determina a existência de uma excepção dilatória inominada ou, se assim não se entendesse, a ilegitimidade insuprível do Ministério Público, por falta de um pressuposto para a sua iniciativa de propositura da acção, sempre desencadeando a absolvição do Demandado da instância, nos termos (respectivamente) do artigo 89.º, n.º 2 ou n.º 4, alínea e), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ex vi artigo 15.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa.

§ 3.3. Da falta de parecer prévio de um órgão autárquico como pressuposto adicional para a propositura da presente acção.

XLVII. Ainda que assim não fosse, a apreciação do mérito da acção também se encontraria prejudicada por uma terceira questão prévia, que consiste na falta do parecer prévio de um órgão autárquico, como pressuposto adicional para a propositura da presente acção, exigido pelo n.º 2 do artigo 242.º da Constituição.

XLVIII. Daí também resultaria a falta de um pressuposto cuja omissão conduz à declaração de mais uma excepção dilatória inominada ou, se assim não se entendesse, a falta de legitimidade insuprível do Ministério Público, por falta de um pressuposto para a interposição da acção por parte deste, conduzindo sempre à absolvição do Demandado da instância, nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável à luz do artigo 15.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa.

§ 3.4. Da prescrição do processo tutelar ou, subsidiariamente, da caducidade do direito de acção.

XLIX. Ainda que assim não fosse, a apreciação de parte do mérito da acção ficaria ainda prejudicada por uma quarta questão prévia, que consiste na prescrição do processo tutelar quanto à uma importante parcela dos factos alegados na petição inicial.

L. Os factos imputados pelo Ministério Público dizem respeito a supostas violações dos princípios (a) da “transparência” e (b) da “prossecução do interesse público”.

LI. No caso do primeiro princípio, ele é invocado especialmente por alegada falta de divulgação de factos ocorridos em 2012. no caso do segundo princípio, ele é invocado devido a um acto supostamente ilícito aprovado na reunião da Câmara Municipal de 08.09.2014.

LII. Visto que o n.º 4 do artigo 11.º da Lei da Tutela Administrativa determina que “as acções previstas no presente artigo só podem ser interpostas no prazo de cinco anos após a ocorrência dos factos que as fundamentam” e que a presente acção foi proposta no dia 6 de Julho de 2020, isso implica que todos os factos alegados pelo Ministério Público ocorridos antes de 6 de Julho de 2015 já foram objecto de prescrição e são irrelevantes para o presente processo, não podendo servir de fundamento para o pedido de perda de mandato;

LIII. Mas ainda que o n.º 4 do artigo 11.º da Lei da Tutela Administrativa fosse interpretado como prevendo, não uma prescrição do próprio processo tutelar, mas sim uma caducidade do direito de acção do Ministério Público, este TCA Norte já confirmou que “actos consequentes dos actos iniciais” em que se funda o pedido de perda de mandato, “relativamente aos quais ainda não decorreram 5 anos, não constituem fundamento da acção”; por isso, é seguro que todos os factos alegados pelo Ministério Público quanto às supostas violações do n.º 4 do artigo 6.º, do artigo 12.º e do artigo 13.º da Lei da Tutela Administrativa ocorreram mais de cinco anos antes da propositura da presente acção, o que implica que tem o Demandado de ser absolvido da instância no tocante a toda a parte do pedido que se fundamenta nesses alegados factos.

§ 4.º ERROS DE JULGAMENTO DO TRIBUNAL A QUO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO.

LIV. Ainda que nenhuma dessas excepções estivesse verificada – o que se não concede –, a apreciação do mérito da acção conduziria, inevitavelmente, à sua total improcedência, com a absolvição do Demandado do pedido, em função dos erros de julgamento em que incorre, tanto em matéria de facto como em matéria de Direito.

§ 4.1. Do valor probatório do relatório n.º 2019/185 da Inspecção-Geral de Finanças e salvaguarda do respectivo contraditório, à luz do direito a um processo equitativo e da presunção de inocência.

LV. O Tribunal fundamenta a aplicação da sanção de perda de mandato nos supostos incumprimentos elencados no relatório n.º 2019/185 da Inspecção-Geral de Finanças.

LVI. Ao abrigo da jurisprudência em matéria de valor probatório dos relatórios da inspecção tributária – aplicável a fortiori no caso sub judice, na medida em que ao relatório da Inspecção-Geral de Finanças não é atribuído por lei valor probatório especial –, “o valor probatório do relatório de inspecção está condicionado pela aplicação do princípio do contraditório, sob pena de directa violação do art.º 20.º, n.º 4, da CRP, que postula um processo judicial tributário equitativo e subordinado a critérios de legalidade (due process of law), o que requer plena igualdade de armas entre ambas as partes”.

LVII. E, no caso, concretamente pela concessão ao Demandado da possibilidade de, mediante declarações de parte e prova testemunhal por si requerida, o colocar em crise - possibilidade essa que não foi assegurada.

LVIII. Pelo que – sendo os factos controvertidos e sendo o relatório n.º 2019/185 da Inspecção-Geral de Finanças a única prova disponível – deve o artigo 10.º da matéria de facto, na medida em que inclua ou baseie os factos constantes dos artigos 21.º a 46.º da petição inicial ser dado como não provado, sob pena de violação dos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição.

LIX. A sentença recorrida, ao se basear na consideração de que o Demandado “apesar das alegações que tece na sua contestação, não logra dizer, nem, muito menos, comprovar, que alguma tivesse diligenciado nos anos de 2013 a 2016 (até ao momento da auditoria e controlo da Inspecção-Geral de Finanças ao Programa de Apoio à Economia Local) segundo os padrões acima expostos e conforme ditava a legalidade vigente, só se podendo concluir que o R. omitiu culposamente a tomada de actos que lhe permitiriam tentar cumprir o Plano do PAEL” (cfr. página 116), violou frontalmente o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição), o qual é – como unanimemente confirmam os Tribunais superiores – se aplica às acções de perda de mandato, em função da sua natureza sancionatória.

LX. Mesmo que essa jurisprudência fosse recusada e se apagasse a natureza sancionatória do presente processo (o que não se concede), a sentença recorrida continuaria a ter violado as regras legais de distribuição do ónus da prova (cfr. artigo 342.º do Código Civil) – pelo que, mesmo não se julgando procedentes as ilegalidades arguidas em sede de questões prévias (o que tão-pouco se concede), o Tribunal incorreu, também por esta via, em erro de julgamento, ao considerar provada, no artigo 10.º (na medida em que incluiu os factos constantes dos artigos 21.º a 46.º da petição inicial), matéria que devia julgar não provada.

§ 4.2. Erro quanto à consideração do dolo como provado.

LXI. De nenhum documento dos autos – único meio de prova produzido – se retira qual a consciência ou vontade do Demandado na prática (ou na omissão) dos factos que lhe são imputados, pelo que deve ser julgado como não provado que o Demandado tenha previsto o resultado como consequência das suas condutas, tendo-se conformado com o resultado, por flagrante falta de prova.

LXII. Não tendo assim procedido, violou a sentença recorrida os artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição ou, mesmo que assim não se entendesse, o artigo 342.º do Código Civil.

§ 4.3. Aditamento à matéria de facto.

LXIII. Para além do erro de julgamento da matéria de facto ora descrito, o Tribunal a quo não incluiu na matéria de facto factos essenciais alegados na contestação e que se encontram documentalmente demonstrados nos autos, designadamente a matéria alegada nos seus artigos 427.º a 433.º.

LXIV. Compulsados os autos, verifica-se que os factos elencados resultam provados tanto do teor do relatório n.º 13/2015 do Tribunal de Contas (em especial na sua página 27), como do documento n.º 38 junto à contestação, não existindo outros elementos que os infirmem.

LXV. Ora, tais factos são indubitavelmente relevantes para a apreciação da conduta do Demandado, já que permitem explicar a principal razão pela qual a despesa foi superior ao previsto no Plano de Ajustamento Financeiro – acrescendo que podem igualmente configurar uma causa de exclusão da ilicitude da sua conduta, por manifesto conflito de deveres.

LXVI. Nessa medida, relevando para o objecto do processo, e tendo sido devidamente alegados e provados nos autos, devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:

30. Dos processos judiciais em curso no mandato do anterior Executivo resultaram avultadas despesas para o Município.

31. O anterior Executivo não provisionou os riscos referentes a outras dívidas que não havia saldado e que as contas municipais acabaram por ter que suportar, já com o Réu em exercício de funções.

32. Em especial, entre 2008 e 2012, o Município de (...) não reconheceu, nas respectivas DF, a totalidade dos valores contabilísticos dos elementos patrimoniais por responsabilidades decorrentes de processos judiciais em curso, susceptíveis de, no futuro, se traduzirem numa obrigação da autarquia.

33. Com efeito, verificou-se que, nos exercícios de 2008 a 2011, as provisões para riscos e encargos foram constituídas apenas com base na estimativa do montante indemnizatório a suportar no ano económico seguinte, não contando com os valores que a autarquia previa suportar em anos económicos subsequentes.

34. Entre 2008 e 2012 existiu um significativo risco financeiro associado a um elevado grau de litigância. Em 2012 os valores peticionados representaram 43% do total das receitas arrecadadas no respectivo exercício orçamental.

35. As provisões são reconhecidas como passivos (dada a forte probabilidade de virem a ser necessários refluxos de recursos para liquidar as obrigações) e constituem uma das bases da aplicação do princípio da prudência definido na alínea f) do Ponto 3.2. do POCAL.

36. As provisões constituídas por defeito representam uma subavaliação de passivos e uma sobreavaliação de resultados, pelo que se conclui que nos exercícios de 2008 a 2011, as DF do Município de (...), não transmitiram uma imagem verdadeira e apropriada da posição financeira, económica e patrimonial da autarquia.

37. Ficou o Executivo presidido pelo Réu, por esta via, vinculado ao cumprimento de obrigações indemnizatórias e de acordos de pagamentos de dívidas anteriores firmados por sentença judicial.

38. Sucede que essas despesas ascenderam a um montante de 27 milhões de euros – montante que, insista-se, decorreu maioritariamente das aludidas decisões judiciais que tornaram certas, líquidas e exigíveis as dívidas que o anterior Executivo fingiu não existirem.

39. Tais despesas incluíram, designadamente:

f) A dívida no montante de 13.894.835,18 €, perante a Sociedade J., Lda., por incumprimento municipal do contrato destinado à cedência dos terrenos para a construção da Via VL9, a cujo pagamento o Município foi condenado judicialmente no processo n.º 1173/06.4 BEPRT, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, no Tribunal Central Administrativo Norte e no Supremo Tribunal Administrativo;
g) A dívida no montante de 2.294.384 €, referente ao projecto ProHabita, que cabia à empresa municipal G., e que o Município teve de assumir;
h) A dívida no montante de 3.685.641,33 €, correspondente a indemnização e juros de mora, que o Município também havia sido judicialmente condenado a pagar à empresa C,, no âmbito do processo 2169/05.8BEPRT, em virtude de, no ano de 2002, ter proibido a circulação de pesados em determinadas zonas do Centro Histórico do concelho, incluindo as vias de acesso aos silos da C,;
i) A dívida no montante de 450.000,00 €, exarada em transação judicial, paga a Construções H.;
j) A dívida no montante de 637.587,00 €, exarada em transação judicial, paga a A., S.A..

§ 5.º ERROS DE JULGAMENTO DO TRIBUNAL A QUO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO.

LXVII. Mas a sentença incorre ainda em sucessivos erros de julgamento em matéria de direito, sendo apenas por isso que não determinou a total improcedência do pedido de perda de mandato pelo Ministério Público.

§ 5.2. A redução dos casos de perda de mandato à violação do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 LXVIII. Com efeito, o n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 dispõe que “a aprovação pelo município de quaisquer actos que violem o cumprimento do disposto no artigo 6.º é considerada como ilegalidade grave nos termos e para os efeitos da alínea i) do artigo 9.º da Lei n.º 27/96”.

LXIX. Isso equivale a dizer que, sem a “aprovação” pelo Município de um ou mais “actos” que “violem o cumprimento do disposto no artigo 6.º” da Lei n.º 43/2012, nenhuma sanção tutelar pode sequer ser aplicada.

§ 5.3. A inaplicabilidade do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 ao Município de (...).

LXX. Ora, o primeiro fundamento em que sustentou a decisão condenatória pelo Tribunal a quo consistiu na suposta violação do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012, que obriga à aplicação da taxa máxima do IMI pelos Municípios que se encontrem em “incumprimento dos objectivos de reequilíbrio financeiro” – o que só pode ser aplicado a Municípios aderentes ao Programa I do Programa de Apoio à Economia Local, porque só nesse Programa existe um regime de “reequilíbrio financeiro” e um “plano de reequilíbrio financeiro” que possa ser incumprido.

LXXI. Enquanto aderente ao Programa II do Programa de Apoio à Economia Local, o Município de (...) não estava sujeito ao n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 e não o poderia, pois, violar – tal como é unanimemente confirmado por todos os Pareceres Jurídicos juntos pelo Demandado aos autos.

LXXII. Por isso, seria inclusivamente inconstitucional a tentativa de imposição ao Município de um suposto dever de fixação da taxa máxima do IMI: sem qualquer fundamento em fonte legal, forçar-se-ia o Município a uma medida que ele considera inconveniente para o interesse público a seu cargo, eliminando “a liberdade de fixação, por parte de um Município, de uma receita que é sua, dentro das margens legalmente previstas”, em violação dos artigos 235.º e 238.º, n.º 4, da Constituição.

LXXIII. E, ainda que assim não fosse, a alínea d) do n.º 1 do artigo 25.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, bem como o n.º 5 do artigo 112.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, atribuem à Assembleia Municipal – onde o Presidente da Câmara não tem sequer direito de voto! – a competência para a fixação da taxa do IMI, o que implica que o Demandado não praticou, nem poderia jamais praticar sob pena de violar o princípio da legalidade das competências, o acto que o Ministério Público e o Tribunal reputam de ilícito.

§ 5.4. A não verificação de qualquer violação do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012.

LXXIV. O segundo fundamento invocado para a presente acção consiste na suposta violação do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012, que fixa objectivos legais para a elaboração e execução do Programa de Apoio à Economia Local.

LXXV. Quanto a este fundamento, o pedido do Ministério Público e a sentença recorrida assentam numa cadeia de sucessivos equívocos, sendo o primeiro deles a circunstância de se ter esquecido que o artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 só permite a identificação de uma “ilegalidade grave” para o propósito de uma acção tutelar se for localizada a prática de um acto violador das regras que o artigo 6.º desse diploma impõe em matéria de execução do Plano, e não um incumprimento dos objectivos que o próprio Plano tenha estabelecido.

LXXVI. Mas todos os indicadores apresentados na petição inicial dizem respeito – na formulação expressamente escolhida pelo Ministério Público e pelo Tribunal – ao “incumprimento do PAF” ou “do PAF ajustado”, e não ao incumprimento do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012, o que torna imediatamente imprestáveis os fundamentos da condenação com base na suposta violação de qualquer das disposições do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 e, em consequência, na suposta demonstração da “ilegalidade grave” referida no artigo 11.º, n.º 1, dessa Lei.

LXXVII. Ainda que assim não fosse e que uma sanção tutelar pudesse ser aplicada por simples “incumprimento do PAF” – o que se não admite –, o pedido do Ministério Público, que obteve provimento na sentença recorrida, assenta numa análise totalmente equivocada da execução deste Plano, tal como é confirmado em Pareceres de distintos especialistas em Direito Financeiro que atestam a inexistência de qualquer incumprimento deste Plano.

LXXVIII. De resto, esses equívocos na análise do Plano de Ajustamento Financeiro é que conduzem o Ministério Público a apresentar uma descrição irreal na qual se alega que o Município incumpriu os seus compromissos e que o Presidente da Câmara deve ser sancionado por isso – sem poder explicar como é que, afinal, o Município não só atingiu os objectivos do Programa de Apoio à Economia Local como conseguiu até fazê-lo nove anos antes daquilo a que se comprometera.

LXXIX. Por outras palavras, a sentença recorrida determina a perda de mandato do Demandado com fundamento em incumprimento de um Plano que foi cumprido nove anos antes do previsto.

LXXX. A própria lei confirma – por exemplo, no caso paralelo previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei da Tutela Administrativa – que uma trajectória positiva da autarquia tem de ser relevada para o efeito de aplicação de uma sanção tutelar, ainda quando existisse algum tipo de incumprimento que fosse abstractamente passível de fundamentar essa sanção – o que não se concede; daí resulta que a regularização posterior de uma situação ilícita também constitui uma causa de não aplicação das sanções de perda do mandato ou dissolução do órgão previstas na lei.

LXXXI. A isso acresce que o Ministério Público e o Tribunal a quo não levaram sequer em conta que os indicadores que invocam como prova do alegado incumprimento momentâneo do Plano no ano de 2015 resultam apenas (a) de factores exógenos, não imputáveis ao Município, e, (b) na maioria dos casos, de factores imputáveis a um anterior Executivo Municipal, no qual o Demandado não exerceu quaisquer funções, que evidenciam actos ilícitos de fraude nas contas municipais, objectivamente já reconhecidos pelo Tribunal de Contas, onde se inclui:

a) A inscrição ilícita nas contas municipais, pelo anterior Executivo, de um montante total de 9.484.754,09 € de alegados créditos do Município, “sobre os quais não detinha os respectivos direitos”, em violação das “características da transparência, credibilidade, fiabilidade e plenitude, necessárias para uma imagem verdadeira e apropriada da posição financeira, patrimonial e orçamental” (cfr. Relatório n.º 13/2015 do Tribunal de Contas);
b) A necessidade de inscrição nas contas municipais da dívida que tinha sido ocultada pelo anterior Executivo e que o Tribunal de Contas ordenou registar após a sua descoberta no Relatório n.º 13/2015;
c) A necessidade de inscrição de instrumentos de dívida e de juros de mora que o anterior Executivo não havia contabilizado, incluindo, em especial, um financiamento ao abrigo de um Fundo de Investimento que o Tribunal de Contas descreveu como “forma de obter liquidez com recurso a um empréstimo por interposta pessoa, mascarando e agravando o défice e a dívida”, “com o propósito claro de contornar o princípio da proibição legal de contratar crédito bancário, atingido que estava o seu limite de endividamento”, e que originou um endividamento adicional para o Município de cerca de 18 milhões de euros;
d) A assunção de encargos de empresas municipais em situação de grave desequilíbrio financeiro e à incorporação do seu passivo – incluindo da empresa G., que teve de ser extinta ao abrigo do artigo 62.º da Lei n.º 50/2012, num processo que foi levado ao conhecimento da Inspecção-Geral de Finanças e sobre o qual esta preferiu não se pronunciar;
e) A necessidade de pagamento de dívidas que o anterior Executivo recusara pagar e relativamente às quais os credores dispunham de título legítimo – nalguns casos com sentença judicial condenatória –, que ascenderam a um montante de cerca de 27 milhões de euros.

LXXXII. Estranhamente, o Tribunal a quo aceita mesmo incorporar na matéria de facto dada como provada a maioria desses factos essenciais, dando-os como assentes – mas não extrai qualquer consequência desses factos para a sua decisão –; isso implica que, como acima referido, os fundamentos de facto descritos nos pontos 18 a 28 da matéria fáctica provada estão em contradição directa com a decisão de condenação do Demandado, donde resulta uma causa específica de nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

LXXXIII. A argumentação que suporta a condenação do Demandado incorre inclusivamente em equívocos inexplicáveis, que incluem:

a) O facto de se censurar ao Demandado “não permitir, também, que fosse atingido o objectivo de redução da despesa em iluminação pública” – esquecendo que já estava em vigor a lei que havia determinado o aumento do IVA sobre a energia eléctrica de 6% para 23%, nos termos da Lei n.º 51-A/2011, de 30 de Setembro, mas que ainda não fora prevista no Plano de Ajustamento Financeiro;
b) O facto de a cobrança da “Taxa Municipal de Protecção Civil apresentar um desvio negativo superior a 99%”, o que resultaria do “comportamento omissivo do Presidente da Câmara Municipal (...) e responsável directo pela área financeira” – censura essa verdadeiramente assombrosa tendo em conta a reconhecida inconstitucionalidade dessas Taxas Municipais em Portugal, com os sujeitos passivos a impugnarem reiteradamente os actos de liquidação e com os processos a redundarem em sucessivas decisões de inconstitucionalidade das normas do Regulamento da Taxa Municipal de Protecção Civil de (...), pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 418/2017, n.º 611/2017 e n.º 17/2018 e pelas Decisões Sumárias n.º 14/2018 e n.º 15/2018, bem como na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo Acórdão n.º 367/2018, proferido no Processo 106/2018.

LXXXIV. Não obstante suportar estes factores que eram totalmente inimputáveis ao actual Executivo, o Município conseguiu uma execução exemplar do Programa de Apoio à Economia Local que permitiu a sua referida conclusão com quase uma década de antecedência.

LXXXV. Por conseguinte, não existe um único dos objectivos impostos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 que tenha sido violado pelo Município, sendo também assegurada a finalidade principal do Programa de Apoio à Economia Local fixada nesse preceito: “restabelecimento da situação financeira do município”.

LXXXVI. Isto implica que o n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012 – o único preceito aplicável a um Município aderente ao Programa II do Programa de Apoio à Economia Local – também não foi violado.


§ 5.5. Da inexistência de um grau de culpa elevado.

LXXXVII. Sempre se diga que, ainda que alegado quanto às vicissitudes de que sofre a sentença não tivesse provimento – o que de modo nenhum se admite – faltaria um requisito essencial para a condenação: a culpa grave do Demandado.

LXXXVIII. Por força do princípio da proporcionalidade, a exigência de um grau de culpa elevado também é aplicável a infracções dolosas; ora, no entender (erróneo) do Tribunal a quo, a conduta do Demandado é dolosa, na vertente de dolo eventual; mas o Tribunal não retira qualquer consequência da circunstância de entender não ter existido dolo direto do Demandado, mas apenas dolo eventual.

LXXXIX. O tipo de dolo tem de ser avaliado na medida da pena a aplicar, sendo o dolo eventual necessariamente uma circunstância menos grave do que o dolo direto; chama-se aqui à colação a relevância da intensidade do dolo, prevista no artigo 71.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na determinação concreta da pena a aplicar.

XC. Não existindo, nas ações de perda de mandato, uma medida da sanção passível de ser graduada, o critério a ter em conta é precisamente o da gravidade da conduta, no âmbito da qual se insere a modalidade do dolo, imprescindível para que a sanção possa ser aplicada tout court.

XCI. Outra não poderá ser a conclusão, portanto, senão a de que o dolo eventual não constituiu culpa grave para este efeito, revelando-se desproporcional a pena aplicada pelo Tribunal, devendo a sentença recorrida ser revogada, absolvendo-se o Demandado.

§ 5.6. Subsidiariamente: exclusão da ilicitude por conflito de deveres e por cumprimento dos deveres de execução de sentenças judiciais.

XCII. Mesmo no cenário hipotético, que não se admite, em que se censurasse o Demandado por autorizar pagamentos originadores de despesa não permitida pelo Programa de Apoio à Economia Local, esses pagamentos não consistiram mais do que no cumprimento do dever de execução de sentenças judiciais – dever esse cujo incumprimento acarretaria, nos termos da lei, responsabilidade civil, responsabilidade disciplinar, responsabilidade criminal e perda de mandato autárquico.

XCIII. Portanto, mesmo nessa hipótese indemonstrada de o Demandado ter incorrido numa violação do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 43/2012, estaria excluída a ilicitude dos factos alegadamente praticados pelo Demandado, nos termos do n.º 1 do artigo 36.º do Código Penal, prejudicando-se o pressuposto de aplicação da sanção tutelar prevista no n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 e nos artigos 8.º, n.º 1, alínea d), e 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa.

XCIV. Ainda que assim não fosse, o n.º 2 do artigo 35.º do Código Penal confirmaria – pelos fundamentos agora referidos – a inexistência de culpa grave, sem a qual tão-pouco é possível decretar a perda de mandato nos termos dos artigos 8.º, n.º 1, alínea d), e 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa.

§ 5.7. A irrelevância dos artigos 12.º e 13.º da Lei n.º 43/2012 e da suposta violação do princípio da transparência para o presente processo.

XCV. Finalmente, o Tribunal a quo também fundamenta a decisão condenatória numa suposta violação dos deveres de transparência previstos no n.º 1 do artigo 12.º e no artigo 13.º da Lei n.º 43/2012, sem se dar conta de que o n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 é meridianamente claro ao determinar que apenas uma violação do artigo 6.º desse diploma pode dar lugar à aplicação de sanções previstas na Lei da Tutela Administrativa – sendo os artigos 12.º e 13.º são irrelevantes para um processo de perda de mandato.

XCVI. O Tribunal a quo incorreu neste ponto – como acima se disse – noutra causa de nulidade da sentença, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, visto que se deixou de pronunciar sobre uma questão que deveria apreciar, a saber, a inaplicabilidade da sanção tutelar pressuposta pelo n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 nos casos em que os factos imputados ao Demandado consistem em alegadas violações dos artigos 12.º e 13.º do mesmo diploma; essa questão foi especificamente suscitada nos artigos 521.º a 524.º da Contestação, constituindo um obstáculo normativo à procedência da presente acção e ao provimento do pedido do Autor, pelo que não podia o Tribunal omitir a sua resolução.

XCVII. Ademais, a imputação de violação do princípio da transparência é incompreensível quando diz respeito, por um lado, à falta de publicitação do contrato do Programa de Apoio à Economia Local e do respectivo pedido de adesão, tal como exigido no artigo 13.º da Lei n.º 43/2012, quando esses elementos foram aprovados em 2012, pelo Executivo anterior, no ano anterior ao ano em que o Demandado assumiu funções; e, por outro lado, é também equivocada quando diz respeito à prestação de informação à Direcção-Geral das Autarquias Locais e à Assembleia Municipal a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 43/2012, quando o Município cumpriu o dever previsto no n.º 3 do artigo 12.º da Portaria n.º 281-A/2012, que determinava a remessa dos mapas financeiros actualizados como condição para a libertação de cada tranche.

§ 5.8. Subsidiariamente: inconstitucionalidade por violação dos princípios da autonomia local, da democracia e da proporcionalidade na restrição do direito fundamental de acesso a cargos públicos.

XCVIII. Ainda que nenhum destes argumentos impedisse a procedência da presente acção – o que não é concebível –, o provimento do pedido de perda de mandato através de uma interpretação tão expansiva – abusiva – do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 43/2012 violaria os princípios da autonomia local, da democracia e da proporcionalidade na restrição do direito fundamental de acesso a cargos públicos, protegidos pelos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.ºs 1 e 2, 6.º, n.º 1, 108.º, 109.º, 235.º, 239.º e 288.º, alíneas h), i) e n), da Constituição.

§ 5.9. Subsidiariamente: inconstitucionalidade por aplicação de sanção concernente a factos ocorridos em mandato anterior.

XCIX. Igualmente, na medida em que todos os factos alegados pelo Ministério Público são anteriores à data de tomada de posse do Demandado para o actual mandato, eles são irrelevantes para a aplicação de uma sanção tutelar na presente data, sob pena de violação dos artigos 117.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, o que implicaria que a perda do mandato teria fundamento numa norma materialmente inconstitucional – o n.º 3 do artigo 8.º da Lei da Tutela Administrativa, conforme inequivocamente comprovado no Parecer subscrito pelo Senhor Professor Jorge Miranda e junto aos autos –, o que desde já se alega para o efeito da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, consoante se entenda:

a) Ser declarada nula ou revogada a decisão de indeferimento da produção de prova requerida pelo Demandante e anulada a sentença recorrida;
b) Ser declarada nula a sentença recorrida;
c) Ser a matéria de facto julgada insuficiente para a condenação;
d) Ser declarada nula a petição inicial e ulteriores termos do processo;
e) Ser o Demandado absolvido da instância;
f) Ser a presente acção de perda de mandato julgada totalmente improcedente e não provada e o Demandado absolvido do pedido.

Assim se fazendo a costumada e boa Justiça!
*
II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:


1.º - Na sessão extraordinária da Assembleia Municipal de (…), ocorrida em 03.10.2012, foi aprovada, por maioria, a proposta da Câmara Municipal (...) quanto ao Pedido de Adesão do Município de (...) ao Programa de Apoio à Economia Local e que incluiu o pedido expresso à Assembleia Municipal para a contratação de um empréstimo de médio e longo prazo, até ao limite máximo dos pagamentos em atraso constantes da lista dos pagamentos em atraso, no montante de 34.369.650,90 € (cf. documentos n.ºs 5 e 6 juntos com a petição inicial e com o requerimento avulso do Autor, com registo de entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de 07.07.2020).

2.º - No Diário da República 2.ª série, n.º 222, de 16.11.2012, foi publicado o seguinte despacho:

“Despacho n.º 14763-D/2012

A Lei n.º 43/2012, de 28 de agosto, criou o Programa de Apoio à Economia Local, adiante também designado por PAEL, com o objetivo de proceder à regularização do pagamento de dívidas dos municípios a fornecedores vencidas há mais de 90 dias, registadas na Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL), à data de 31 de março de 2012.

O PAEL foi objeto de regulamentação pela Portaria n.º 281-A/2012, de 14 de setembro, dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e das autarquias locais.

Os Municípios constantes do anexo tinham pagamentos em atraso vencidos há mais de 90 dias à data de 31 de março de 2012.

Os pedidos de adesão de cada um dos Municípios constantes do anexo foram instruídos com um Plano de Ajustamento Financeiro, aprovado por deliberação das respetivas assembleias municipais que incluiu uma autorização expressa para a contratação de um empréstimo de médio e longo prazos, até ao limite máximo dos pagamentos em atraso constantes da lista dos pagamentos que integra o respetivo Plano, devendo cada município proceder à divulgação no sítio oficial da Internet e em edital afixado nos lugares de estilo e, caso exista, no boletim da autarquia o pedido de adesão ao Programa e o contrato celebrado com o Estado, incluindo todos os documentos anexos.

Apresentada pela Comissão de Análise uma proposta de decisão final com todas as condições do financiamento, o Plano de Ajustamento Financeiro, incluindo os documentos produzidos no seu âmbito, assim como a minuta de contrato a celebrar entre o Estado e o município, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da Lei n.º 43/2012, de 28 de agosto, e do n.º 1 do artigo 5.º da Portaria n.º 281-A/2012, de 14 de setembro, determina-se o seguinte:

1 - São aprovados os pedidos de adesão ao Programa II do PAEL e aceites os Planos de Ajustamento Financeiro apresentados pelos Municípios constantes do anexo.

2 - É autorizada a concessão de empréstimos do Estado no montante e maturidade constantes do referido anexo, nos termos da minuta de contrato apresentada pela Comissão de Análise do PAEL.

3 - Ficam os Municípios vinculados à adoção das medidas constantes do Plano de Ajustamento Financeiro apresentado, bem como ao cumprimento dos objetivos e medidas legalmente previstas.

7 de novembro de 2012. - O Secretário de Estado da Administração Local e Reforma Administrativa, Paulo Jorge Simões Júlio. - A Secretária de Estado do Tesouro, Maria Luís Casanova Morgado Dias de Albuquerque.”.

3.º - O Município de (...) foi incluído no Anexo previsto no ponto 2. do despacho supra, com a inscrição do montante do empréstimo do Estado ao referido Município fixado em 27.860.151,52 € e com a maturidade de 14 anos (cf. documento n.º 8 junto com a petição inicial).

4.º - Em 16.11.2012, foi outorgado entre o Estado Português, representado pela Directora-Geral do Tesouro e Finanças, na qualidade de mutuante, e o Município de (...), representado pela Vereadora da Câmara Municipal (...), na qualidade de mutuário, o “CONTRATO DE EMPRÉSTIMO”-“PROGRAMA DE APOIO À ECONOMIA LOCAL (PAEL)”, no montante de 27.860.151,84 €, pelo prazo de 14 anos, sujeito às seguintes cláusulas (cf. documento n.º 9 e anexos juntos com o requerimento avulso do Autor, com registo de entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de 07.07.2020):
(imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).

5.º - O contrato supra foi objecto de três aditamentos: em 27.11.2012; em 25.03.2013; e em 11.06.2013 (cf. documento n.º 9 e anexos juntos com o requerimento avulso do Autor, com registo de entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de 07.07.2020).

6.º - Na reunião de 21.10.2013, da Assembleia Municipal de (...), foi deliberado instalar a nova Câmara Municipal, para o quadriénio 2013-2017, tendo sido eleito E., o ora Réu (cf. documento n.º 1 junto com a petição inicial).

7.º - Na reunião do novo executivo da Câmara Municipal (...), ocorrida em 25.10.2013, foi aprovada a deliberação que delegou competências da Câmara Municipal (...) no seu Presidente, o ora Réu, e autorizar a respectiva subdelegação nos Vereadores (cf. documento n.º 2 junto com a petição inicial).

8.º - Pelo despacho n.º 140/PCM/2013, de 25.10.2013, foi determinada a “DISTRIBUIÇÃO DE PELOUROS PELA VEREAÇÃO”, cabendo ao “PRESIDENTE DA CÂMARA - PROF. DR. E.”, o ora Réu, entre outras, a “Área Financeira” (cf. documento n.º 3 junto com a petição inicial).

9.º - Na reunião de 18.10.2017, da Assembleia Municipal de (...), foi deliberado instalar a nova Câmara Municipal, para o quadriénio 2017-2021, tendo sido eleito E., o ora Réu (cf. documento n.º 4 junto com a petição inicial).

10.º - A Inspecção-Geral de Finanças realizou uma auditoria ao Município de (...), enquadrada no controlo do “Programa de Apoio à Economia Local”, sob o processo n.º 2016/240/A9/747, elaborando aquela Inspecção-Geral, na sequência da auditoria, o Relatório n.º 2019/185, assinado pela Chefe de Equipa em 15/05/2019, com o seguinte teor:
(imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).

- (cf. documento n.º 9 junto com a petição inicial).

11.º - Ao relatório supra foram ainda juntos os seguintes anexos:
(imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).
- (cf. documento n.º 9 junto com a petição inicial).

12.º - Sobre o Relatório supra recaíram os seguintes despachos de concordância/homologação:

I) Da Direcção de Projecto da Inspecção-Geral de Finanças, de 15.05.2019;
II) Da Subinspectora-Geral de Finanças, de 31.05.2019;
III) Do Inspector-Geral de Finanças, de 19.06.2019;
IV) Do Secretário de Estado do Orçamento, de 01.07.2019;
V) E do Secretário de Estado das Autarquias Locais, de 15.07.2019 (cf. documento n.º 9 junto com a petição inicial – cf. página 1 do relatório n.º 2019/185).

13.º - Após os actos homologatórios dos Secretários de Estado supra indicados, a Inspecção-Geral de Finanças ouviu o ora Réu em sede de alegações escritas, ao que o impetrado correspondeu pelo ofício de 04.10.2019, apresentando as suas alegações e juntando um relatório financeiro e seis pareceres jurídicos e financeiros (cf. documento n.º 9 junto com a petição inicial).

14.º - A Inspecção-Geral de Finanças elaborou a Informação n.º 2019/626, com o seguinte teor:
(imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).

- (cf. documento n.º 9 junto com a petição inicial).

15.º - Sobre a Informação antecedente recaiu o despacho de concordância do Chefe de Equipa com Direcção de Projecto da Inspecção-Geral de Finanças, de 18.12.2019, bem como, despachos de concordância das Subinspectoras-Gerais da Inspecção-Geral de Finanças, de 18.12.2019 e de 19.12.2019, respectivamente (cf. páginas 1 e 2 do documento n.º 9 junto com a petição inicial).

16.º - A informação supra foi remetida ao Ministro de Estado e das Finanças, na qual exarou o despacho n.º 408/20/MEF, de 12.06.2020, com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- (cf. documento n.º 13 junto com a petição inicial).

17.º - A Câmara Municipal (...) elaborou um “Relatório Financeiro” para o período 2013-2019, que apresentou a seguinte conclusão:

“1. Evidencia-se a redução estrutural e sustentada da dívida bancária que ascendeu no período em apreço…a 55,7 milhões de euros. O empréstimo de saneamento financeiro ascende a 35 milhões de euros e permitiu consolidar a dívida orçamental e administrativa em igual valor, designadamente 21 milhões de euros decorrentes de processos judiciais e passivos contingentes que se concretizaram.

2. Excluindo o impacto da operação de saneamento financeiro, a redução ascende a 84,2 milhões de euros”.

- (cf. documento junto à contestação – “Relatório Financeiro”).

18.º - Na reunião extraordinária da Câmara Municipal (...), de 31.10.2016, a Câmara Municipal deliberou exigir pela via judicial os créditos (receitas) que alegava deter sobre as seguintes entidades: “E., E.P.E.”; “M., S.A.”; “C., S.A.”; e “Instituto dos Arquivos Nacionais-Torre do Tombo” (cf. documento n.º 19 junto à contestação).

19.º - Na acção administrativa que seguiu termos neste TAF, sob o n.º 2501/17.2BEPRT, intentada pelo Município de (...) contra a “C., S.A.”, foi proferida sentença em 27/11/2018, que julgou a acção totalmente improcedente (cf. documento n.º 20 junto à contestação).

20.º - O Município de (...) intentou contra a “I., S.A.” uma acção administrativa, pedindo a condenação dessa Ré no pagamento da quantia de 7.904.809,62 € (cf. documento n.º 21 junto à contestação).

21.º - O Município de (...) intentou contra a “Direcção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas” uma acção administrativa, pedindo a condenação dessa Ré no pagamento da quantia de 50.000,00 € (cf. documento n.º 23 junto à contestação).

22.º - O Município de (...), até à data da apresentação da contestação nestes autos, continuava a aguardar pela prolação das sentenças nos processos referidos nos pontos 20.º e 21.º supra (factualidade admitida por acordo das partes).

23.º - A Inspecção-Geral de Finanças realizou uma auditoria financeira de “Controlo do Endividamento e da Situação Financeira” do Município de (...) para o ano de 2010, elaborando o Relatório n.º 1921/2020, de 12/2010 (cf. documento n.º 29 junto com a contestação).

24.º - O Relatório de Auditoria n.º 13/2015, 2.ª secção, do Tribunal de Contas, em “Auditoria Orientada ao Endividamento do Município de (...)”, aprovado em sessão de 17 de Junho de 2015, alude, entre outras considerações, à “constituição de um Fundo de Investimento Imobiliário Fechado (FEIIF)” – (cf. docs. emitidos pelo Tribunal de Contas e respectivo expediente, junto à contestação – inclusos no acervo documental do “Documento 19”).

25.º - O Relatório de Auditoria n.º 13/2015, 2.ª secção, do Tribunal de Contas, em “Auditoria Orientada ao Endividamento do Município de (...)”, aprovado em sessão de 17 de Junho de 2015, descreve que “Entre 2008 e 2012, o Município de (...) não reconheceu … a totalidade dos valores contabilísticos dos elementos patrimoniais por responsabilidades decorrentes de processos judiciais em curso, susceptíveis de, no futuro, se traduzirem numa obrigação da autarquia…” (cf. documentos emitidos pelo Tribunal de Contas e respectivo expediente, junto à contestação – inclusos no acervo documental do “Doc. 19” – cf. ainda documento n.º 38 junto com a contestação).

26.º - O Município de (...) incorporou empresas municipais extintas, no caso: a “G., E.E.M.” (extinta em 2013); e a “G., E.E.M.”, incorporando os respectivos equipamentos e os compromissos financeiros (cf. documentos 30 a 33, juntos com a contestação).

27.º - O Réu subscreveu ofícios endereçados à Direcção-Geral das Autarquias Locais e à Inspecção-Geral de Finanças, datados de 12.01.2015, informado sobre a “Auditoria e processo de liquidação da G., EM – “Dever de Comunicação sobre ilegalidades múltiplas e pedido de instruções” (cf. documentos 33 e seguintes juntos com a contestação).

28.º - A “A., E.M.” internalizou a gestão do “Parque Biológico (…), E.M.” (cf. documento 37 junto com a contestação).

29.º - Em 06.12.2016, por e-mail, o Departamento de Planeamento e Controlo Financeiros do Município de (...) enviou à Direcção-Geral das Autarquias Locais (xxxx@dgal.pt) a ficha de acompanhamento PAEL de 2015 (cf. documento junto à contestação – “ANEXO 1”).
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III - Enquadramento jurídico.

1. O indeferimento da prova testemunhal e por declarações de parte.

1.1. A nulidade da decisão de indeferimento.

Antes de mais importa mencionar que é indiferente que no despacho de sustentação proferido em 15.01.2021 o Tribunal recorrido tenha referido que na petição inicial foi requerida a prova por depoimento de parte e não a prova por declarações de parte, pois não foi este despacho que indeferiu a produção de prova. Apenas se limitou a dizer que a sentença recorrida não padecia de nulidades.

Por outro lado, o indeferimento abrangeu indistintamente toda a prova para além da documental já produzida no processo. Não por lapso, como o próprio Tribunal recorrido declarou ao indeferir o pedido de rectificação do despacho de sustentação. Mas por se querer decidir exactamente como se decidiu.

O primeiro despacho, sobre a prova requerida na petição inicial, data de 25.09.2020 e tem o seguinte teor, na parte aqui relevante:

“Requerimento probatório do A. - prova documental - última página da p.i. - Deferido.”

O segundo despacho – que antecedeu imediatamente a sentença –, de 12.12.2020, menciona “depoimento e parte”, mas não é decisivo que não tenha considerado a alteração solicitada pelo Réu para “declarações de parte” porque o indeferimento se fundou na desnecessidade de qualquer outra prova que não a documental:

O Tribunal considera suficiente para o julgamento da presente acção a prova documental carreada para os presentes autos, entendendo-se claramente desnecessária a produção de prova por intermédio de “depoimento de parte” e de prova testemunhal, requeridas pelo R., que, assim, é indeferida, tendo em conta o vertido no artigo 90.º, n.º 3, do CPTA”.

A decisão, embora muito sucinta, tem a fundamentação suficiente: a prova documental basta para decidir de mérito.

E apenas padece de nulidade a sentença que careça, em absoluto, de fundamentação de facto ou de direito; a simples deficiência, mediocridade ou erro de fundamentação afecta o valor doutrinal da decisão que, por isso, poderá ser revogada ou alterada, mas não produz nulidade (artigos 666º, n.º 3, e 668º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil de 1995; artigos 613º, n.º3, e 615º, n.º1, al. c), do Código de Processo Civil de 2013; Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.9.2007, recurso 059/07).

Não padece, portanto, o despacho que indeferiu a produção de prova, para além da documental, de nulidade por falta de fundamentação.

1.2. O acerto da decisão de indeferimento da produção de prova não documental.

O que sucede é que o indeferimento da prova para além documental produzida no processo traduz, em nosso entender, um erro.

A prova a atender como requerida é prova testemunhal e a prova por declarações de parte, pois em requerimento autónomo apresentado no mesmo dia em que foi apresentada a contestação o Réu veio dizer que tinha mencionado prova por depoimento de parte por mero lapso e o que pretendia era a prova por declarações de parte.

Ainda que não tivesse sido por lapso, e percebe-se que foi lapso no contexto, o Réu poderia substituir o requerimento de prova porque podia ter substituído toda a contestação, dado que ainda estava em tempo para apresentar contestação e esta ainda não tinha sido notificada ao Autor, não tendo produzido, portanto, quaisquer efeitos.

E ambos os meios de prova, testemunhal e por depoimento de parte, se mostram indispensáveis para uma decisão conscienciosa e acertada do pleito.

Desde logo porque a prova documental foi produzida apenas para investigação das ilegalidades que fundam o pedido de perda de mandato do Réu e não para a imputação objectiva e subjectiva de tais infracções ao Réu, em processo em que este pudesse contraditar tal prova, ou seja, em processo em que o direito de defesa estivesse garantido.

Não estamos aqui perante um processo em que se averigue a legalidade de um acto punitivo a culminar um processo administrativo sancionatório em que já foram (ou deviam ter sido) garantidos os meios de defesa postos por lei ao alcance do visado, mas antes de um processo a decorrer e a decidir em primeira linha pelo tribunal.

Estamos perante um pedido de aplicação de uma sanção, a perda de mandato, em relação ao qual o Réu apenas no processo judicial se pode defender no contexto de um pedido contra si dirigido com uma configuração precisa, a da perda de mandato.

Ora, desde logo, em relação ao elemento objectivo não foram averiguadas - e só a prova testemunhal ou por depoimento de parte se poderá esclarecer esse aspecto – as responsabilidades individuais do Réu nas imputações que são feitas de forma genérica ao Município.

Em particular os factos que constam dos artigos 21.º a 46.º da petição inicial, são determinantes para imputar objectiva e individualmente as descritas infracções a Réu, e assim fundar a decisão de perda de mandato. Factos estes que foram especificamente impugnados pelo Réu nos artigos 197.º, 198.º e 328.º da contestação.

Assim como são indispensáveis quer a prova testemunhal quer a prova por declarações de parte para estabelecer a existência de dolo por parte do Réu na prática das infracções que lhe venham a ser, após julgamento, imputáveis objectivamente.
Isto porque para se decidir a perda de mandato é necessário provar, para além da prática individual das infracções, que houve dolo do agente (artigo 9.º, alínea i), da Lei da Tutela Administrativa, para o qual remete o artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 43/2012).

Ao indeferir a produção de prova testemunhal e por declarações de parte o Tribunal recorrido incorreu, pois, em erro de direito, impondo-se a revogação do despacho que indeferiu tais meios de prova.

E este erro teve uma repercussão processual, a nulidade por omissão de produção de prova testemunhal e por declarações de parte que se impunha, omissão esta que influi no exame e na decisão da causa, pelo que importa supri-la ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil. Produzindo a prova omitida. Como decidido no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 12.07.2019 no processo 2288/18.1 BRG, com o mesmo Relator.

Esta nulidade influi no exame ou decisão da causa a ponto de determinar também a revogação da sentença por erro de julgamento, por ter condenado o Réu sem que nos autos estivessem devidamente comprovados todos os elementos objectivos e o elemento subjectivo da infracção.

2. Restantes questões suscitadas.

Procedendo o recurso pela apontada nulidade processual, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam o despacho que indeferiu a produção de prova testemunhal e por declarações de parte.

2. Declaram a nulidade processual decorrente da omissão de prova testemunhal e por declarações de parte.

3. Revogam a sentença recorrida.

4. Determinam a baixa dos autos para produção desta prova nos termos requeridos pelo Réu e subsequente decisão de mérito.

Não é devida tributação.
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Porto, 05.03.2021

Rogério Martins
Luís Garcia
Frederico Branco