Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02872/09.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/08/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:LOCALIZAÇÃO DA A4; PERDA DE QUALIDADE DE VIDA NUMA HABITAÇÃO PRÓXIMA DA AUTO-ESTRADA;
LEGITIMIDADE DA EMPRESA “ESTRADAS DE PORTUGAL, SA” E DO ESTADO PORTUGUÊS; DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO.
Sumário:1. Numa acção em que se pede uma indemnização pelos danos morais e patrimoniais resultantes da construção de uma auto-estradada, a A4, pelo simples facto da localização e não pelo modo como foi construída, a Estrada de Portugal EP é parte ilegítima dado que não lhe cabe a responsabilidade pelo traçado da auto-estrada mas sim ao Estado, este sim, parte legítima, como demandado, nessa acção, face ao disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 189/2002, de 28/08.

2. Não se encontrando licenciada a construção da habitação dos autores, improcede o pedido de indemnização fundado na perda de qualidade de vida, nessa habitação, face á localização da A4, por inexistir direito cuja lesão possa ser tutelada.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:LORA e JAA
Recorrido 1:Estradas de Portugal, S.A.; Estado Português
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
LORA e marido JAA vieram interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pelo qual foi absolvida da instância a ré “Estradas de Portugal, S.A., por ilegitimidade passiva, e julgada improcedente a acção administrativa comum, na forma ordinária, intentada pelos recorrentes, na qual foi admitido como interveniente principal o Estado Português, para exigir dele a responsabilidade extracontratual, tendo em vista a obtenção do pagamento da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da construção da auto-estrada A4.

Invocaram para tanto que: a ré Estradas de Portugal, S.A. é parte legítima porque foi concessionária da obra de construção da auto-estrada, respondendo nos termos da Base LXXIII do DL nº 189/2002, porque não contestou na parte dos articulados, assim aderindo à forma como os autores conformaram o pleito, e representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias concessionadas e não concessionadas; a decisão recorrida não se pronunciou sobre qual dos diplomas legais relativos à responsabilidade civil extracontratual do Estado é aplicável à situação dos autos, sendo nula, por omissão de pronúncia sobre um aspecto sobre o qual devia tomar conhecimento; que o alicerce da presente demanda não é o direito de propriedade dos autores ou o seu ius aedificandi, mas direitos de personalidade afectados pela poluição visual, sonora e atmosférica, provinda dos actos praticados pela ré, direitos que existem independentemente de qualquer licença de habitabilidade; o Estado há trinta anos cobra impostos sobre o dito prédio não licenciado, pelo que não pode negar o direito indemnizatório dos autores relativo a acções negligentes desse mesmo Estado, em violação do princípio da equidade; a quem cabe escrutinar a conformidade ou não de uma edificação com as disposições do regime de edificações urbanas e demais diplomas quejandos e satélites, bem como a sua regular integração no âmbito dos limites impostos pelo P.D.M. e disposições camarárias específicas, não é ao Estado ou Administração Central, mas sim à autarquia de Matosinhos, pelo que é ilegítimo o Estado prevalecer-se dessa alegada desconformidade, sendo um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium – art. 334º do Código Civil, sendo a longa manus do Estado a negar reconhecer um direito radicado num objecto sobre o qual liquida e cobra impostos há 30 anos.

A recorrida EP-Estradas de Portugal, S.A. contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.

O Estado não contra-alegou.

*
Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1 – Entende o despacho saneador-sentença que a ré, Estradas de Portugal, não é a parte legítima, por tal posição caber ao Estado porque é o depositário último da responsabilidade pela implementação do Plano Nacional Rodoviário.

2 – Em face dos disposto nos artigos 10.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e 26.º do Código de Processo Civil deduz-se que a aqui ré é parte legítima porque, desde logo, tem interesse directo em contradizer na forma como a acção está conformada pelos autores.

3 – Acresce à regra geral que o próprio diploma que procedeu à aprovação das bases da concessão, da SCUT do Grande Porto – onde se integra a A4 – Decreto-Lei n.º 189/2002, na concessão publicada em anexo ao citado diploma legal, designadamente a Base LXXIII, refere que a “A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito. Sendo o concedente, neste caso, o Estado – pelo que também por aqui se estriba a sua legitimidade.

4 – Por outro lado haverá que não olvidar que, in casu, a fase de instrução do processo onde se poderia pôr em causa a legitimidade substantiva da ré foi por esta prescindida porque, não contestou a presente acção, assim aderindo à forma como os autores conformaram o pleito, artigos 264º e 480º do Código de Processo Civil.

5 - Foram, os factos sujeitos a julgamento, totalmente confessados pela ré, Estradas de Portugal e, por isso, da conjugação do princípio do dispositivo com as consequências da falta de contestação, não permitem outra conclusão que não seja a adesão da ré – Estradas de Portugal – aos argumentos e aos factos invocados pelos autores.

6 - Acrescente-se ainda, contudo, que a legitimidade constitui um pressuposto processual e não uma condição de procedência, pelo que os problemas que se suscitam em torno da existência da relação material controvertida e da sua efectiva titularidade prendem-se com o fundo da pretensão ou mérito da mesma e nada têm que ver com a definição da legitimidade processual dos sujeitos intervenientes num processo, e esta – reitera-se – já se encontra resolvida por confissão.

7 - Last but not least convirá não olvidar que tal legitimidade também é estribada em critérios, puramente, objectivos, pois importará ter presente, ainda, o que decorre, nomeadamente, dos artigos 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º, n.ºs 1 e 2, als. a), c), d) e f), 6.º, 7.º, 8.º, n.ºs 1 e 3, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 239/04, de 21/12 e 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 8.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 374/07, de 07.11.

8 – De resto a «EP» (ente que sucedeu à «JAE», «JAE - Construção, SA», «ICERR», «ICOR», «IEP» «EP-Estradas de Portugal, EPE» - cfr. Decreto-Lei n.º 237/99, Decreto-Lei n.º 227/02, Decreto-Lei n.º 239/04 e Decreto-Lei n.º 374/07] representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias concessionadas e não concessionadas, sendo que para “… o exercício das suas atribuições … detém poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis quanto: … h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública …” - vide neste sentido o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 27.04.2012, proferido no processo n.º 1276/06.5BEBRG.

9 - Assim sendo, e aqui ressalvando o respeito, reconhecimento e vénia a melhor entendimento, conclui-se que o despacho saneador-sentença violou os supra citados disposições legais, designadamente artigos 26º do Código de Processo Civil e 10º n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, bem como os artigos 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c), d) e f), 6.º, 7.º, 8.º, n.ºs 1 e 3, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 239/04, de 21/12 e 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 8.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 374/07, de 07.11, e a própria Base LXXIII anexa ao Decreto-Lei 189/2002, a que acrescerão os artigo 264º e 480º do Código de Processo Civil.

10 – Por outro lado a douta sentença, agora em crise, exime-se à pronúncia sobre qual dos diplomas legais é competente e tem aplicação no caso vertente, se o Decreto-Lei 48051 de 21/11/67 ou a Lei 67/2007 de 31 /12, razão pela qual é nula por falta de pronúncia sobre um aspecto sobre o qual deveria tomar conhecimento, art.º 668º n.º 1 al. b) e d) do Código de Processo Civil.

11 – Sucede também que a sentença proferida, pelo Tribunal a quo, estriba-se na conclusão de ausência de um direito ou interesse dos autores que esteja a ser afectado, porque o aresto faz ancorar o alicerce da presente demanda no direito de propriedade dos autores ou no seu ius aedificandi, considerando que a falta de licença de utilização camarária é pressuposto desse mesmo direito.

12 - Conforme por diversas vezes nos presentes autos se referiu, a causa de pedir no presente pleito não se reconduz a um direito de edificação mas sim ao direito ao direito à saúde, ao bem-estar e à tranquilidade, que foram afectados fruto da poluição visual, sonora e atmosférica, provinda dos actos praticados pela ré.

13 - Os autores começaram, por isso, a sentir ansiedade, irritabilidade, insónias, tudo provocado pelo ruído, bem como mau estar físico com a poluição atmosférica, o que se traduz em crises de rinites, infecções respiratórias e outras doenças da mesma índole.

14 - Estamos no âmbito da lesão de direitos de personalidade, artigo 70º do Código Civil, artigos16º, 22º, 25º, 61º, 62º e 66º da Constituição da Republica Portuguesa, interesses estes também tutelados pela Lei de Bases do Ambiente, artigo 2º n.º 1, 1346º do Código Civil, e mesmo a nível da ordem jurídica internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no que concerne o direito à vida, art.º 3º, como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 20º n.º 1 - por isso o cerne central dos factos alegados na petição inicial reportam-se aos danos que os autores sentem no seu corpo e na sua mente – no seu bem-estar.

15 - Daí que a causa paetendi não se reconduza à existência de um direito à construção, nem tal direito é condição da afectação dos direitos de personalidade ou de propriedade dos autores pois ambos existem independentemente de qualquer licença de habitabilidade.

16 - O facto é que os autores residem em local devassado por poluição e cuja qualidade ambiental ficou séria e gravemente afectada como, de resto, é penhor a diminuição da qualidade de vida e saúde dos próprios que, continuadamente, ao longo do tempo se foi manifestando e agravando.

17 - A quaestio de saber-se da existência de licenciamento é – assim se reitera – absolutamente alheia ao objecto dos autos.

18 - Ainda que não se considerasse a conformação dos interesses em jogo no presente litígio da forma supra exposta – o que só por mera hipótese académica se levanta – ainda assim, cremos que soçobraria a fundamentação do despacho saneador-sentença pois olvida que o prédio/edificação foi participado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 1983, vide documento n.º 2 junto com a petição inicial.

19 - Quer isto dizer que, se por um lado, o Estado cobra – há trinta anos ininterruptos - os impostos sobre o dito prédio não licenciado, por outro nega-lhe qualquer direito indemnizatório relativo a acções negligentes desse mesmo Estado, por via desse facto pelo que nos parece uma flagrante violação do princípio da equidade.

20 - Por outro lado a entidade a quem cabe escrutinar da conformidade, ou não, de uma edificação com as disposições do regime das edificações urbanas e demais diplomas quejandos e satélites, bem como a sua regular integração no âmbito dos limites impostos pelo P.D.M. e disposições camarárias específicas, não é, seguramente, a Administração Central, neste caso o Estado, mas sim a entidade da Administração Local competente, ou seja a autarquia Matosinhense; por isso aquele é orgânica e materialmente incompetente para poder exercer qualquer escrutínio sobre tal facto e assim lhe é ilegítimo prevalecer-se dessa alegada desconformidade.

21 - A ser assim, como é, não poderá prevalecer entendimento que se estribe em tal putativa desconformidade para obstaculizar a prossecução da justa indemnização pela violação de um direito ainda que se entenda sendo somente de propriedade – que não é, conforme supra já amplamente se expôs (direito de personalidade);

22 - Ressalvado entendimento melhor e o respeito devido, conclui-se que a tal conformação jurídica lhe faltará em legitimidade o que lhe sobra em abuso de direito, isto na modalidade de venire contra factum proprium, art.º 334º do Código Civil: a longa manus do Estado nega reconhecer um direito radicado num objecto sobre o qual liquida e cobra impostos – há 30 anos.


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II – Matéria de facto.

Na sentença recorrida – que conheceu do mérito da acção – não foram fixados autonomamente quaisquer factos mas misturados com a apreciação jurídica da causa. Do mesmo modo não foram fixados todos os factos relevantes que estão assentes pela prova documental junta aos autos, a posição das partes e as regras de experiência comum.

Assim, tendo em conta o disposto no artigo 712º, n.º1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil de 1995 (aplicável no tempo ao caso), damos, de forma autónoma, como provados os seguintes factos, necessários e suficientes para uma decisão conscienciosa sobre o mérito do pleito:

1. Os autores são donos de um 1/12 do prédio rústico sito no Lugar de …, constituído por um terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 7… e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1…(documentos juntos como n.ºs 1 e 2 e presunção deles resultante).

2. Os autores há mais de 26 anos, bem como os demais comproprietários, dividiram este terreno em lotes de 210m2, correspondendo o terreno dos autores ao lote 8, onde procederam à construção de uma casa de r/c e andar, garagem e anexos (artigo 10º da petição inicial, não contestado).

3. É essa casa que há mais de 25 anos os autores utilizam como sua residência habitual e aí fazem refeições diárias, pernoitam e descansam (artigos 11º a 14º da petição inicial, não contestados).

4. A empresa Estradas de Portugal procedeu à construção de uma auto-estrada, designada por A4 (artigo 18º da petição inicial, não contestado).

5. No limite do lote dos autores até ao separador da auto-estrada vão no máximo 13,85 metros, na sona mais distante, e 9,20 metros na zona mais próxima (artigo 19º da petição inicial, não contestado).

6. Tal separador tem uma altura de cerca de 5 metros (artigo 20º da petição inicial, não contestado).

7. Tudo como melhor resulta das plantas de localização e loteamento bem como das fotografias retiradas ao local e dentro da casa dos autores (artigo 21º, não contestado, e documentos 5 a 9, da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos).

8. Os autores impedem totalmente as vistas da parte de trás da sua casa, no pátio que fica por cima da garagem – e que ocupa toda a parte Sul do lote (artigo 22º da petição inicial, não contestado).

9. Advém da A4 e do ramal de acesso, ruído e poluição atmosférica devido ao exponencial aumento de tráfico naquela zona de Matosinhos (artigos 40º, 41º e 50º da petição inicial, não contestados).

10. O que perturba a paz, o sossego e o descanso dos autores (artigo 45º da petição inicial, não contestado).

11. Avolumaram os níveis de dióxido e monóxido de carbono, como todos os demais resíduos poluentes em suspensão na atmosfera, provindos dos tubos de escape dos veículos motorizados, como sejam os compostos orgânicos voláteis, óxidos de nitrogénio e óxidos de enxofre, naquela zona de Matosinhos onde se situa a residência dos autores (artigo 46º e 47 da petição inicial, não contestados).

12. O que fez aumentar o risco de infecções respiratórias, rinites alérgicas e outras doenças em particular do sistema respiratório bem como o mal-estar geral dos autores (artigos 48º e 49º da petição inicial, não contestados).

13. Os autores vêem-se impedidos de abrir as janelas de casa para a arejar ou apanhar ar, ficando expostos aos ruídos, cheiros e substâncias libertadas pelos tubos de escape dos veículos que circulam na referida auto-estrada e seus acessos (artigo 50º da petição inicial, não contestado).

14. A casa dos autores é uma edificação clandestina, não lhes tendo sido concedido alvará de construção pela Comissão de Administração Conjunta da Área Urbana de Génese Ilegal (artigo 14º da contestação do Estado Português, não impugnado).


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III – Enquadramento jurídico.

III.I. – A legitimidade da ré Estradas de Portugal.

No despacho saneador recorrido decidiu-se no sentido da ilegitimidade passiva da Ré EP-Estradas de Portugal, SA, com os seguintes fundamentos:
“As estradas nacionais, bem como as auto-estradas, que se integram naquele conceito para efeitos legais (estradas nacionais), enquadram-se nos bens de domínio público do Estado – vide artigo 84.º, n.º 1 – d) da Constituição da República.

Ora, as estradas e auto-estradas integram os bens de domínio público do Estado, sendo o Plano Nacional Rodoviário, um plano sectorial aprovado pelo Estado (vide Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho), conclui-se que a quem compete qualquer dever decorrente da decisão de construção da auto-estrada e inerentes ou subsequentes consequências, é ao Estado.

Desta forma, deve ser parte legítima passiva o próprio Estado (processualmente representado pelo Ministério Público) e não qualquer entidade da administração indirecta, entidade empresarial do Estado ou sociedade anónima por si constituída, ou sequer concessionário.”

Defendem os recorrentes que a Ré é parte legítima, invocando como fundamentos:

“Decorre do art. 10.º do CPTA, sob a epígrafe «legitimidade passiva», que «Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.(n.º1)» e que «Quando a acção tenha por objecto a acção ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.(n.º 2)»

Ora, no caso concreto, só ao Estado pode ser imputável a decisão de construir no local próximo da residência dos autores a auto-estrada que, segundo estes, lhes provoca os danos que invocam na sua petição inicial.

Assim, não é à concessionária que pode imputar-se tal decisão, mas apenas ao Estado, pelo que só este é parte legítima, sendo a Estradas de Portugal parte ilegítima, já que os invocados danos não são consequência da execução do contrato de concessão, antes são consequência exclusiva da decisão de construir ali um lanço da auto-estrada e essa decisão é do Estado Português.

A concessionária limitou-se a executar a decisão do Estado Português.

Por essa mesma razão, foi indeferida a intervenção principal da concessionária da construção da auto-estrada aqui em questão, Ascendi, S.A., antes Lusocust-Auto-Estradas do Grande de 1995, Porto, S.A., como resulta do teor do artigo 2º do Decreto-Lei nº 189/2002, de 28/08.

A ilegitimidade passiva da demandada Estradas de Portugal é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, artigos 494º alª e) e 495 do Código de Processo Civil de 1995 (artigos 577º, alínea e), e 578º do Código de Processo Civil de 2013), pelo que tem o tribunal de conhecê-la mesmo sem ter sido alegada, ou mesmo sem a ré ter contestado a acção e impede o conhecimento do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância, pelo que o seu conhecimento é prévio ao conhecimento do mérito da causa – artigo 493º, nº 2, do Código de Processo Civil de 1995 (artigo 576º, nº 2, do Código de Processo Civil de 2013).

Pelo exposto, não resultam violados os artigos 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º, n.ºs 1 e 2, alíneas. a), c), d) e f), 6.º, 7.º, 8.º, n.ºs 1 e 3, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 239/04, de 21/12 e 1.º, 2.º, 4.º, 5.º, 8.º, 10.º, n.ºs 1 e 2, al. h) todos do Decreto-Lei n.º 374/07, de 07.11, pois que tais Decretos-Leis não regem sobre a responsabilidade civil extracontratual aqui em apreciação.

A «EP» [ente que sucedeu à «JAE», «JAE - Construção, SA», «ICERR», «ICOR», «IEP» «EP-Estradas de Portugal, EPE» - cfr. Decreto-Lei n.º 237/99, Decreto-Lei L n.º 227/02, Decreto-Lei n.º 239/04 e Decreto-Lei n.º 374/07] representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias concessionadas e não concessionadas, sendo que para “… o exercício das suas atribuições … detém poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis quanto: … h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública …”, no tocante aos danos causados pela construção, entendida como concepção, programação, aprovação da via pública em apreço, e não, como aqui sucede, relativamente à decisão de construção de uma auto-estrada numa determinada localização, mais concretamente, junto a uma casa de habitação.

Quanto ao acórdão invocado pelos recorrentes: acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 27.04.2012, processo 1276/06.5 BRG, o mesmo tem como objecto danos ocasionados pela execução da construção de uma via pública, nada tendo a ver com o Plano Nacional Rodoviário, plano sectorial aprovado pelo Estado, conforme Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho, que foi o causador dos danos invocados pelos autores na petição inicial.

Termos em que, no caso concreto, só o Estado Português é parte legítima na presente acção, sendo certo que também pela mesma razão não foram violadas as Bases XXXV nº 5 e LXXIII do DL nº 189/2002, dado que não se está perante prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão.

Impõe-se, como tal, manter o despacho saneador recorrido na parte em que julgou a ré EP-Estradas de Portugal, S.A. parte ilegítima, não merecendo provimento o recurso nesta parte.


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III.II. – O mérito da acção contra o Estado Português.

Se dos factos alegados na petição resulta que não se verifica um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado – falta de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse invocado pelos autores.

Neste sentido conclui o saneador-sentença recorrido, com os seguintes fundamentos:

Sucede que os Autores não demonstram terem o direito pelo seu lado, uma vez que primeiramente necessário seria provar o direito à construção da sua casa e consequente direito de habitação (daí decorrendo tudo o demais). Desta forma, os Autores não apresentam a realização da operação de loteamento anterior à edificação da casa, que dizem ter sido construída há 25 anos (contados de 2009), pelo que terá sido por volta de 1984/1985. O primeiro documento relativo a operação de loteamento reporta-se a Novembro de 1992 (vide fls. 158 dos autos); portanto bastante depois de a casa estar edificada. Sucede que, não obstante o alegado atraso (se é que assim foi), na apreciação do procedimento de loteamento, resulta claro que não era possível edificar sem estar aprovada a operação de loteamento, e depois, estar aprovado o licenciamento da obra da casa, e posteriormente, a emissão da consequente licença de habitabilidade.

Resulta, ainda, que a apreciação da operação de loteamento, foi realizada com base no facto consumado, ou seja, a já existência de construções e o enquadramento como zona AUGI. A alternativa camarária seria o indeferimento com a consequente demolição de todo o já edificado (atento o disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto, que estabelece uma servidão de zona non aedificandi num espaço de 40 metros a contar do limite da plataforma da auto-estrada e nunca a menos de 20 metros da zona da auto-estrada, sendo que os Autores alegam estar a sua casa a 15 metros desta via – vide artigo 18.º da PI). Daí que para a presente acção aquele deferimento não tenha a possibilidade de conceder aos Autores o direito de que se arrogam. Aliás, não chega a aprovação de uma operação de loteamento, necessário se mostra apresentar licenciamento da obra e subsequente licença de habitabilidade. A operação de loteamento apenas concederia um interesse legítimo na (futura) construção. Ora, por força da inércia dos Autores, ao longo dos anos em não legalizarem a casa, não fica o Estado obrigado a indemnizar a ilicitude das suas condutas.

Desta forma, não existe direito algum na esfera jurídica dos Autores, uma vez que não se mostra preenchido, desde logo, um pressuposto básico da responsabilidade civil, pelo que a acção não pode ser julgada procedente.”

Os recorrentes discordam desta decisão, alegando, em síntese que:

“… a causa de pedir no presente pleito não se reconduz a um direito de edificação mas sim ao direito à saúde, ao bem estar e à tranquilidade, que foram afectados fruto da poluição visual, sonora e atmosférica, provinda dos actos praticados pela R.;

Os A.A. começaram, por isso, a sentir ansiedade, irritabilidade, insónias, tudo provocado pelo ruído, bem como mau estar físico com a poluição atmosférica, o que se traduz em crises de rinites, infecções respiratórias e outras doenças da mesma índole;

Estamos no âmbito da lesão de direitos de personalidade, art.º 70º do Cód. Civil., art.ºs 16º, 22º, 25º, 61º, 62º e 66º da Constituição da Republica Portuguesa, interesses estes também tutelados pela Lei de Bases do Ambiente, art.º 2º n.º 1, 1346º do C.Civil, e mesmo a nível da ordem jurídica internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no que concerne o direito à vida, art.º 3º, como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, art.º 20º n.º 1 - por isso o cerne central dos factos alegados na p.i. reportam-se aos danos que os A.A. sentem no seu corpo e na sua mente – no seu bem estar.

Daí que a causa paetendi não se reconduza à existência de um direito à construção, nem tal direito é condição da afectação dos direitos de personalidade ou de propriedade dos A.A. pois ambos existem independentemente de qualquer licença de habitabilidade;

O facto é que os A.A. residem em local devassado por poluição e cuja qualidade ambiental ficou séria e gravemente afectada como, de resto, é penhor a diminuição da qualidade de vida e saúde dos próprios que, continuadamente, ao longo do tempo se foi manifestando e agravando;

A quaestio de saber-se da existência de licenciamento é – assim se reitera – absolutamente alheia ao objecto dos autos;

Ainda que não se considerasse a conformação dos interesses em jogo no presente litígio da forma supra exposta – o que só por mera hipótese académica se levanta – ainda assim, cremos que soçobraria a fundamentação do despacho saneador/sentença pois olvida que o prédio/edificação foi participado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 1983, vide doc. n.º 2 junto com a p.i.;

Quer isto dizer que, se por um lado, o Estado cobra – há trinta anos ininterruptos - os impostos sobre o dito prédio não licenciado, por outro nega-lhe qualquer direito indemnizatório relativo a acções negligentes desse mesmo Estado, por via desse facto pelo que nos parece uma flagrante violação do princípio da equidade;

Por outro lado a entidade a quem cabe escrutinar da conformidade, ou não, de uma edificação com as disposições do regime das edificações urbanas e demais diplomas quejandos e satélites, bem como a sua regular integração no âmbito dos limites impostos pelo P.D.M. e disposições camarárias específicas, não é, seguramente, a Administração Central, neste caso o Estado, mas sim a entidade da Administração Local competente, ou seja a autarquia Matosinhense; por isso aquele é orgânica e materialmente incompetente para poder exercer qualquer escrutínio sobre tal facto e assim lhe é ilegítimo prevalecer-se dessa alegada desconformidade;

A ser assim, como é, não poderá prevalecer entendimento que se estribe em tal putativa desconformidade para obstaculizar a prossecução da justa indemnização pela violação de um direito ainda que se entenda sendo somente de propriedade – que não é, conforme supra já amplamente se expôs (direito de personalidade);

Ressalvado entendimento melhor e o respeito devido, conclui-se que a tal conformação jurídica lhe faltará em legitimidade o que lhe sobra em abuso de direito, isto na modalidade de venire contra factum proprium, art.º 334º do C.Civil: a longa manus do Estado nega reconhecer um direito radicado num objecto sobre o qual liquida e cobra impostos – há 30 anos.”

O pressuposto da responsabilidade civil extracontratual do Estado que a decisão recorrida entende não estar verificado é o mesmo quer na previsão do Decreto-Lei nº 48.051, de 21/11/1967, quer na previsão da Lei nº 67/2007, de 31/12, pelo que é totalmente inútil apreciar qual dos dois diplomas é aplicável no caso sub judice.

Importa sim determinar se existe um direito por parte dos autores que foi afectado por acto praticado pelo Estado.

Ora, se os autores construíram a casa, em violação da lei, pois não possuíam licença de loteamento nem de construção, que lhes permitisse tal construção, não podem ter direito a que o Estado suporte as despesas de insonorização da casa e se não possuem licença de habitabilidade, não têm direito a serem indemnizados pelos danos provocados pela poluição sonora e atmosférica do trânsito que ocorre legalmente na via pública do Estado, que legalmente ali a construiu.

Quanto ao facto do Estado ter cobrado os impostos sobre a casa, tal facto não confere o direito arrogado pelos autores.

Com efeito existe abuso de direito quando é ilegítimo o exercício de um direito, por o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Mas o Estado não está a exercer qualquer direito nesta acção, quem pretende fazer valer um direito ilegítimo à habitação do prédio urbano dos autores são os próprios autores, que não têm qualquer direito de ali habitarem, pelo nunca se pode falar aqui em venire contra factum proprium, nem em abuso de direito pelo Estado Português.

Assim, não sendo legítimo o direito dos autores à edificação do prédio urbano em questão e não sendo legítimo o direito dos autores a habitarem tal prédio, não podem os danos que decorrem do exercício ilegítimo desses direitos merecerem a tutela do direito.

Isto sendo certo que os direitos pretensamente violados com a conduta do réu, Estado Português, como o “direito à saúde, ao bem-estar e à tranquilidade, que foram afectados fruto da poluição visual, sonora e atmosférica” não aparecem aqui desligados do direito à habitação, em concreto à habitação na sua actual residência, não licenciada.

Os autores queixam-se da perda de qualidade de vida naquela habitação pois não faria sentido queixarem-se dos efeitos poluentes da auto- estrada se não habitassem ali.

Impõe-se, por isso, manter nos seus precisos termos a decisão recorrida, não merecendo provimento o recurso interposto pelos autores.


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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.


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Porto, 8 de Abril de 2016
Rogério Martins
Esperança Mealha
Luís Garcia, vencido, conforme declaração que segue:
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Voto vencido:
Também partilho a conclusão de que a ré EP - Estradas de Portugal, SA, é parte ilegítima.
Mas por razão distinta da que faz vencimento.
E que, em congruência, confirmando a absolvição da instância da ré EP faz, também, estender absolvição da instância ao réu Estado (de conhecimento oficioso e - no actual estado que os autos revelam, não se tratando de questão transitada - passível de ser conhecido em recurso, com contraditório).
Na averiguação da legitimidade, fazendo coincidir (prioritariamente) com o que substantivamente se dispõe quanto à titularidade da relação jurídica:
- verifica-se que nos instrumentos que regem a concessão (inicialmente o DL nº 189/2002, de 28/08) é o interveniente Estado, e não a ré EP (ou esta como autoridade nacional rodoviária) que aí figura;
- mas/e, por princípio, como se extrai das Bases da concessão, em matéria de responsabilidades quanto à concepção (incluindo traçado) - mesmo com sujeição de aprovação pelo concedente -, elas estão arredadas, antes sendo a concessionária, que tem como incumbência essa concepção, eleita como centro de imputação.
Consequentemente, e perante absolvição da instância – invalidando subsistência ao vertido juízo de mérito, e retirando objecto ao recurso nessa parte -, quedaria por aí pronúncia.

Porto, 8/04/2016.
[Luís Migueis Garcia]