Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01251/17.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:LEGITIMIDADE RECURSO JURISDICIONAL;
ABSOLVIÇÃO PEDIDO VERSUS ABSOLVIÇÃO INSTÂNCIA;
RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO - PENA DISCIPLINAR
Sumário:1. Tendo os RR., em sede de contestação, defendido a improcedência de todos os fundamentos em que a A. funda o seu pedido e assim da acção, ou seja, a absolvição do pedido e o tribunal de 1.ª instância decidido a acção pela absolvição da instância, têm manifesta legitimidade para interpor recurso jurisdicional.
2. Considerando que, quer o artigo 60.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, quer o artigo 225.º, n.º 4, da LTFP, estabelecem que “O recurso hierárquico ou tutelar suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos”, torna-se então claro que, à luz da alínea c), do n.º 1 do artigo 3.º do Preâmbulo do Dec. Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro [“As impugnações administrativas existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei só são necessárias quando previstas em lei que utilize uma das seguintes expressões: (...) A utilização de impugnação administrativa «suspende» ou «tem efeito suspensivo» dos efeitos do ato impugnado”] que se deve concluir que aquela garantia administrativa assume natureza necessária, nos termos do artigo 185.º, n.º 1, do CPA.
Recorrente:MINISTÉRIO da AGRICULTURA, FLORESTAS e DESENVOLVIMENTO e o MINISTÉRIO do MAR
Recorrido 1:AA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I. RELATÓRIO
1. MINISTÉRIO da AGRICULTURA, FLORESTAS e DESENVOLVIMENTO e o MINISTÉRIO do MAR, inconformados, vieram interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF do Porto, datada de 05 de Dezembro de 2018, que julgando parcialmente procedente a Acção Administrativa que havia sido instaurada por AA, residente na Rua da ..., na qual pedia a anulação do acto administrativo que determinou a aplicação à Autora da pena disciplinar de despedimento, e ainda a condenação do Réu a reintegrar a Autora, ao pagamento das retribuições desde a data do despedimento, acrescida de juros moratórios ou não se entendendo, julgar-se pela não inexigibilidade na manutenção da relação laboral, decidiu assim:
- A) Julgar "... verificada a excepção dilatória inominada da falta de interesse processual da Autora e, em consequência, absolvo os Réus da presente instância"; e,
- B) Reconhecer "...a existência de erro na indicação da natureza do meio de impugnação administrativa a utilizar contra o despacho ora impugnado e, em consequência, concede-se à Autora a faculdade de, no prazo de 30 dias contados desde o trânsito em julgado da presente decisão, interpor o respectivo recurso hierárquico necessário".
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Nas suas alegações recursivas, os Recorrentes formularam seguintes conclusões:
"1. O caso respeita a impugnação do despedimento disciplinar e da ordem de reposição da quantia de 81.546,00€ (oitenta e um mil, quinhentos e quarenta e seis euros) determinados por despacho do Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, de 14 de Fevereiro de 2017, no âmbito do processo disciplinar comum n.º 1/2015, instaurado em 24 de Julho de 2015 (Factos F e H).
2. Não tendo a A. recorrido hierarquicamente da decisão punitiva, julgou o Tribunal verificar-se excepção dilatória inominada de falta de interesse processual da Autora e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
3. A sentença interpreta os artigos 59.º e 60.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, e os artigos 224.º e 225.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Pública, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, conjugadamente com os artigos 3.º, 8.º, n.º 1, parte final e 9.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, e os artigos 185.º, n.os 1 e 2, parte final e 189.º, n.º 1 do Código, no sentido de que: (...) a partir da data de entrada em vigor do DL 4/2015, de 7 de Janeiro – assumem natureza necessária todos os procedimentos administrativos de segundo grau [“impugnações administrativas”] cuja utilização ocasione, provoque, ope legis, a suspensão da eficácia do acto reclamado ou recorrido.”.
4. Sempre com o devido respeito, contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida da autorização legislativa (L 42/2014 arte. 2º al. eee) e do Decreto-Lei nº 4/2015, não resulta, nem expressa, nem inequivocamente que com este diploma o legislador pretendesse derrogar a natureza facultativa das impugnações dos actos proferidos no procedimento disciplinar – recurso hierárquico ou tutelares de actos disciplinares então existentes.
5. Não há subsídio interpretativo que suporte a ideia de que o legislador do Código tenha querido regular as impugnações dos actos proferidos em processo disciplinar suprimindo, inclusive a possibilidade de ponderação do grave prejuízo ao interesse público da sua não execução imediata (art. 60º nº 4 ED e 225º nº 4,5 LTFP e art. 170.º do CPA1991).
6. Pelas razões aduzidas no ponto II das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, salvo o devido respeito pela opinião contrária, deve entender-se não ser aplicável ao caso o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015.
7. As impugnações administrativas facultativas, por definição legal não condicionam o accionamento da via judicial (art. 185º nº1 nCPA).
8. A natureza facultativa dos meios impugnatórios previstos no procedimento administrativo disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública decorre de forma clara e expressa do seu regime desde 2008.
9. Assim sendo, como é, as impugnações facultativas previstas no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas não se incluem no âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, norma transitória cuja ratio é identificar as impugnações administrativas que subsistem como necessáriassó são necessárias – após a entrada em vigor do novo Código do Procedimento Administrativo, pois não faz qualquer sentido prever algo que já era permitido – o acesso imediato e directo aos meios de defesa judiciais.
10. Aplicar a alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 ao caso sub judice, por força dos artigos 8º, nº 1, parte final e 9º do Código do Procedimento Administrativo, com a interpretação vertida na Sentença, implica destruir a unidade do sistema jurídico, porquanto, iríamos ter regras processuais claramente violadoras das regras substantivas, o que não corresponde ao pensamento do legislador.
11. Contrariamente ao que se sustenta na decisão recorrida, não resulta, expressa e inequivocamente da lei de autorização legislativa ou do Decreto-Lei nº 4/2015, que o legislador tivesse pretendido alterar a natureza facultativa dos meios impugnatórios previstos nos citados artigos 59.º e 60.º ED e 224.º e 225.º LTFP.
12. Entendem os Recorrentes que a interpretação das normas do artigo 3.º acolhida na douta sentença recorrida pressupõe a derrogação do regime especial próprio do procedimento disciplinar sem que para tanto o Governo estivesse munido da necessária autorização legislativa.
13. A interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro acolhida na douta sentença do TAF do Porto padece de inconstitucionalidade orgânica por violação do princípio da reserva de lei da AR, pois atribui a um Decreto-Lei uma força que não pode ter em função da matéria (regime e âmbito do vínculo de emprego público – art. 3.º nº 1 al. i) LTFP) porque não precedido de autorização legislativa em concreto
14. Tal entendimento normativo viola as normas constitucionais constantes dos artigos 112.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. t) da C.R.P. o que gera a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa.
15. Os Recorrentes sustentam que a interpretação acolhida na sentença recorrida enferma de erro de julgamento, em violação do disposto nos artigos 7º, nº 3, 9º e 13.º do Código Civil, 59º e 60º n.os 1, 4 e 5 do Estatuto Disciplinar, aprovado pela Lei n.º 58/2008 e os artigos 224º e 225º, nºs 1, 4 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, o artigo 2.º, al. eee) da Lei 42/2014, os artigos 112º, n.os 2 e 165º, nº 1 al. t) da C.R.P., e o artigo 2.º, n.ºs 3 e 5 do C.P.A".
E terminaram, requerendo "....deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se consequentemente a sentença recorrida e substituída por outra que julgue:
i) A inconstitucionalidade das normas do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 4/2015 quando interpretadas com o sentido acolhido na douta sentença do TAF do Porto de que “o recurso hierárquico previsto nos n.os 1, 4 e 5 do artigo 60.º da Lei 58/2008 assume agora natureza necessária e não meramente facultativa, constituindo, por isso, a sua utilização, uma condição indispensável para que os interessados possam recorrer à tutela jurisdicional”, por violação do princípio da reserva de lei da A.R. pois atribui a um Decreto-Lei uma força que não pode ter em função da matéria (norma base definidora do regime e âmbito do vínculo de emprego público – art. 3.º nº 1 al. i) LTFP) porque não precedido de autorização legislativa em concreto em violação das normas constitucionais dos artigos 112.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. t) da C.R.P., da alínea eee) do artigo 2.º da Lei n.º 42/2014 e da alínea i) do artigo 3.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, a que se refere o artigo 2º da Lei n.º 35/2014;
Subsidiariamente
ii) Julgue inaplicável as normas do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 aos meios impugnatórios de natureza facultativa previstos nos artigos 59.º e 60.º nos 1, 4 e 5 do Estatuto Disciplinar, aprovado pela Lei n.º 58/2008, e nos correspondentes artigos 224º e 225º nos 1, 4 e 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, por violação dos artigos 7º, nº 3, 9º e 13.º do Código Civil, e do artigo 2º, nos 3 e 5 do novo Código do Procedimento Administrativo".
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3. A Recorrida AA apresentou contra-alegações, que concluiu do seguinte modo:
"1.º Os Recorrentes foram absolvidos da instância pelo TAF do Porto, com base nos artigos 89º nº4 do CPTA e 278º nº1 do Código de Processo Civil, visto ter sido comprovada pelo Tribunal a existência de uma exceção dilatória.
2.º Não podendo, assim, os Recorrentes serem considerados parte vencida na presente lide.
3.º Condição de admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 1 do art.141º do CPTA que estatuiu que tem legitimidade para interpor recurso ordinário “de uma decisão jurisdicional proferida por um tribunal administrativo quem nela tenha ficado vencido e o Ministério Público, se a decisão tiver sido proferida com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais”.
4.º Nesse circunspecto, os Recorrentes não podem obter nenhum benefício imediato, direto e próprio na sua esfera jurídica, bem como o prosseguimento dos seus interesses, tendo já sido absolvidos da instância.
5.º Carecem, pois, os Recorrentes de legitimidade para interpor o presente Recurso".
E finaliza ".... não deverá o presente recurso jurisdicional ser admitido, por se considerar que não estão preenchidos os pressupostos a que se refere o artigo 141.º do CPTA....".
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4. O Digno Magistrado do M.º P.º neste TCA, notificado nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, não se pronunciou.
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5. Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts. 1.º e 140.º, ambos do CPTA.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
São os seguintes os factos fixados na sentença recorrida, cuja fidelidade e completude não se mostram questionadas em sede recursiva:
A) Em 1 de Fevereiro de 2002, a Autora integrou, por transferência, nos termos do despacho n.º ...02, publicado na 2ª Série do Diário da República de 29 de Janeiro de 2002, o quadro de pessoal da Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura constante do mapa anexo à Portaria n.º 128/2001, de 27 de Fevereiro [cf. documento n.º 1 da contestação]
B) Em 1 de Maio de 2007, a Autora iniciou funções, em regime de requisição autorizada por despacho de 23 de Março de 2007 do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, na Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte [cf. documento n.º 2 da contestação];
C) Em 1 de Janeiro de 2009, a Autora transitou, nos termos dos artigos 88.º e 104.º da Lei n.º 12-A/2008 (LVCR), para a carreira de Assistente Técnico em situação de mobilidade interna em outra actividade [emitir licenças de pesca lúdica, carregar diários de pesca. Proceder à recepção análise e emissão de licenças das embarcações de pesca e da pesca apeada. Recepção de candidaturas do programa Promar] [cf. documento n.º 3 da contestação];
D) Em 21 de Maio de 2015, o Director Regional da Agricultura e Pescas do Norte determinou a instauração do processo de inquérito n.º 3/2015, na sequência de participação elaborada pelo Chefe de Divisão de Apoio ao Sector Agroalimentar quanto a alegadas irregularidades no controlo do dinheiro obtido com as receitas provenientes das licenças de Pesca Lúdica – discrepância entre os valores constantes da Aplicação Informática SI2P e os valores depositados no mês de Julho de 2014 [cf. fls. 45 do processo administrativo];
E) Em 21 de Julho de 2015, a instrutora do processo de inquérito n.º 3/2015 elaborou o relatório final onde, além do mais, propunha a instauração à Autora de um processo disciplinar relativamente a factos ocorridos entre os anos de 2007 e 2014 [cf. fls. 5 do processo administrativo];
F) Por despacho de 24 de Julho de 2015, exarado sobre o relatório identificado na alínea antecedente, o Director Regional da Agricultura e Pescas do Norte determinou a sua concordância e consequente instauração do processo disciplinar à Autora, ao qual foi atribuído o n.º ...15 [cf. fls. 5 do processo administrativo];
G) Em 1 de Fevereiro de 2017, a instrutora do procedimento disciplinar elaborou o relatório final do processo disciplinar [cf. relatório de fls. 1055 a 1186 do processo administrativo];
H) Em 14 de Fevereiro de 2017, o Director Regional da Agricultura e Pescas do Norte, apôs, sobre o relatório identificado na alínea antecedente, o seguinte despacho: “Visto. Concordo e determino o proposto. Aplico à trabalhadora AA a pena disciplinar de despedimento. Mais determino que sejam repostas as importâncias em falta no montante de € 81.546,00 (...)” [cf. despacho de fls. 1056 do processo administrativo] – ACTO IMPUGNADO;
I) Por ofício de 15 de Fevereiro de 2017, emitido pelos serviços da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, com a referência ...17, sob o assunto “Processo Disciplinar n.º 1/2015 – Notificação pessoal da decisão disciplinar”, foi comunicado à Autora, além do mais, o seguinte:
“(...) Na sequência do despacho exarado na proposta integrante do relatório final, em anexo, proferido pelo signatário, após parecer emitido pela Comissão de Trabalhadores deste organismo, dá-se conhecimento da decisão disciplinar aplicada no âmbito do processo supra referido. (...) a instauração do mesmo deveu-se à ocorrência de diversas irregularidades, de âmbito financeiro, verificadas na unidade orgânica supra citada e outras que lhe antecederam, mais propriamente, no que concerne ao controlo da receita, depósito e emissão de licenças de pesca lúdica, após comprovação de determinados factos, aquando da instrução do processo de inquérito n.º 3/2015 (...) assim, provada a existência material das infracções, determino: a aplicação da pena de despedimento (...) nos termos e condições estabelecidos na Lei n." 58/2008, de 9 de Setembro – Estatuto Disciplinar, nas disposições conjugadas do art. 9.º, n.º 1, alínea d), 10.º, n.º 6, 11.º, n.º 4, e 18.º, n.º 1, alínea m) (...) a presente decisão disciplinar começará a produzir os respectivos efeitos legais, no dia seguinte ao da notificação da arguida, conforme dispõe o art. 58.º do diploma que vem sendo citado. Informa-se a arguida de que poderá recorrer aos meios impugnatórios previstos, de acordo com o disposto no art. 59.º do mesmo dispositivo” [cf. ofício de fls. 186 do SITAF, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido].
J) Em 25 de Maio de 2017, a Autora submeteu, no Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a petição inicial da presente acção administrativa [cf. comprovativo de entrega de fls. 23 do SITAF].
2. MATÉRIA de DIREITO
No caso dos autos, delimitando o objecto do recurso, atentas, por um lado, as conclusões das alegações supra transcritas, por outro, o saneador-sentença recorrido, nos seus fundamentos e dispositivo – importa elucidar a posição das partes e objectivar concretamente o dissídio que nos cumpre apreciar decidir.
Assim, em primeiro lugar, cumpre aferir da legitimidade dos recorrentes para o presente recurso jurisdicional - questão primordial Dizemos primordial, na medida em que, quanto ao cerne da decisão recorrida e sua não aceitação por parte dos recorrentes, a A./recorrida se nada diz, nas conclusões das suas contra alegações, pouco mais adianta no respectivo corpo contra alegacional. suscitada pela A./Recorrida, nas suas contra alegações - ainda que, em sede de despacho exarado de 10/5/2019, o Sr. Juiz de direito do TAF do Porto, tenha, apreciado e decidido essa questão.
Depois, aferir do mérito do recurso que se centraliza, no seguinte:
- impunha-se --- como é decidido na decisão recorrida - (ou não) --- o recurso hierárquico "necessário" da decisão administrativa impugnada do Sr. Director Regional da Agricultura e Pescas do Norte, de 14/2/2017, nos termos da qual, foi aplicada à A. a pena disciplinar de despedimento e reposição das importâncias em falta, no montante de 81.546,00€, previamente à interposição da impugnação judicial interposta no TAF do Porto? - sendo certo que, na concordância da decisão recorrida, não se mostra sindicada esta no que concerne à ineficácia da notificação, uma vez que o TAF do Porto também decidiu reconhecer a existência de erro na indicação da natureza do meio de impugnação administrativa a utilizar contra o despacho ora impugnado e, em consequência, concedeu à A./Recorrida a faculdade de, no prazo de 30 dias contados desde o trânsito em julgado da presente decisão, interpor o respectivo recurso hierárquico necessário.
Quanto ao conhecimento prioritário, no que concerne à legitimidade recursiva dos recorrentes, sendo certo que, suscitada questão, compete ao tribunal superior, a este TCA-Norte, o seu definitivo conhecimento, pois que a decisão que admita o recurso e fixe os seus efeitos, não vincula o tribunal superior - cfr. n.º 5 do art.º 641.º do Cód. Proc. Civil -, importa apenas dizer, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, que tendo, por um lado, os RR., em sede de contestação, defendido a improcedência de todos os fundamentos em que a A. funda o seu pedido e assim da acção, ou seja, a absolvição do pedido e, por outro, o Tribunal de 1.ª instância decidido a acção por verificação da excepção dilatória inominada de falta de interesse processual e, em consequência, pela absolvição da instância - consequências que, pela consabida e objectiva diferença, nos dispensamos de delongas considerações dogmáticas e argumentativas - têm manifesta legitimidade para interpor recurso jurisdicional, na esteira do já decidido, pelo Pleno da Secção Administrativa do STA, em 2/7/2009, in Proc. 449/07. onde consta que "... a absolvição da instância quando se pediu a absolvição o pedido é um dos exemplos típicos do ter-se ficado vencido, para se aferir da legitimidade para recorrer, significando, em consequência, a absolvição do pedido quando se pretendia a absolvição da instância justamente o contrário, o não se ter ficado vencido...".
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Decidida esta questão prioritária, debrucemo-nos acerca do mérito do recurso, relembrando que apenas se questiona a decisão recorrida, na parte em que decidiu que se impunha, antes da impugnação judicial, a interposição de recurso hierárquico necessário para o membro do Governo competente, o que, no caso não se verificou.
Importa assim aferir a legalidade "tout court" e da inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes quanto à decisão do TAF do Porto.
Esta, de forma sequencial e elucidativa, depois de traçar a evolução legal pertinente, concluiu pela verificação da excepção dilatória inominada da falta de interesse processual ---- por si, oficiosamente suscitada e posta à consideração das partes, operando assim os princípios da cooperação e do contraditório --- e consequentemente, pela absolvição da instância dos RR./recorrentes.
A argumentação propendida é a seguinte (sendo nossos os sublinhados, realçando os aspectos que consideramos mais importantes, evitando repetições subsequentes):
"... antes de mais, decidir da matéria de excepção que fora oficiosamente suscitada por este Tribunal.
Como se sabe, a imposição da utilização dos procedimentos administrativo de segundo grau [agora designados de “recursos administrativos”], de que é exemplo o recurso hierárquico, como condição prévia de acesso à tutela jurisdicional constituía a faceta visível da então designada “definitividade vertical”, subcritério do requisito de recorribilidade contenciosa dos acto administrativos no quatro tradicional do Direito Administrativo português.
Com efeito, apenas podiam ser sindicados jurisdicionalmente os actos administrativos que se revelassem como consubstanciando a “última palavra da Administração”, circunstância que bloqueava a apreciação contenciosa “directa” por órgãos subalternos [cf. entre vários outros, ROGÉRIO SOARES, O acto administrativo, in Scientia iuridica, XXXIX, n.ºs 223-228, 1990, pp. 29-31 e VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, 1996, pp. 631], implícita na versão da nossa Constituição da República Portuguesa até à revisão constitucional de 1989 e reiterada no então artigo 25.º, n.º 1, da LPTA.
Entendia-se, portanto, que a interposição de recurso hierárquico era um pressuposto genérico, necessário e indispensável para o acesso dos particulares ao então recurso contencioso de anulação.
Todavia, a entrada em vigor da Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro que a aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos [“CPTA”] viria a eliminar este requisito de definitividade [vertical], substituindo esse critério por uma lógica de lesividade e de externalidade, tal como ainda agora se encontra consagrada no n.º 1 do artigo 51.º e que, durante largos anos, levou muitos, na doutrina e jurisprudência, a duvidarem da validade constitucional da manutenção da exigibilidade de impugnações administrativas necessárias [cf. entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 499/96, de 20 de Março de 1996, processo n.º 383/93].
Porém, o Tribunal Constitucional, a par do Supremo Tribunal Administrativo sempre entendeu que a “tutela jurisdicional efectiva dos administrados não resulta, nem inviabilizada, nem, sequer, restringida pela previsão de tal via hierárquica necessária como meio de, em primeira linha, tentar obter a satisfação do interesse do administrado pela revisão do acto administrativo praticado pelo órgão subalterno da Administração previamente ao, sempre assegurado, recurso jurisdicional” [cf. entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 25 de Novembro de 2008, processo n.º 765/08 e do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, de 4 de Junho de 2009, processo n.º 377/08 e do STA de 9 de Abril de 2003, proferido no processo n.º 0350/03 e de 28 de Dezembro de 2006, proferido no processo n.º 01061/06, ambos acessíveis em www.dgsi.pt].
Pois bem, no que para o caso concreto releva, é incontestável que, na vigência do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, o seu artigo 75.º, n.º 8 previa um verdadeiro recurso hierárquico necessário das penas disciplinares cuja competência não pertencesse exclusivamente ao membro do Governo competente [neste sentido, entre outros, os Acórdãos do TCA-Sul, de 01 de Abril de 2004, proferido no processo n.º 07097/03, do TCA-Norte, de 10 de Maio de 2007, proferido no processo n.º 00426/05.313EPRT e de 15 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 00721/07.713EVIS e do STA, de 28 de Dezembro de 2006, processo n.º 01061/06, acessíveis em www.dgsi.pt].
No entanto, a verdade é que a partir da entrada em vigor da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas passou a estipular-se, neste capítulo, da seguinte forma:
“Artigo 59.º
Meios impugnatórios
Os actos proferidos em processo disciplinar podem ser impugnados hierárquica ou tutelarmente, nos termos dos artigos 60.º a 62.º do Código do Procedimento Administrativo, ou jurisdicionalmente, nos termos dos artigos 63.º a 65.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Artigo 60.º
Recurso hierárquico ou tutelar
1 - O arguido e o participante podem interpor recurso hierárquico ou tutelar dos despachos e das decisões que não sejam de mero expediente proferidos pelo instrutor ou pelos superiores hierárquicos daquele.
2 - O recurso interpõe-se directamente para o membro do Governo no prazo de 15 dias contados da notificação do despacho ou da decisão ou de 20 dias contados da publicação do aviso a que se refere o n.º 2 do artigo 49.º
(...)
4 - O recurso hierárquico ou tutelar suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos, excepto quando o seu autor considere que a sua não execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público.
(...)
6 - Nas autarquias locais, associações e federações de municípios, bem como nos serviços municipalizados, não há lugar a recurso tutelar.
(...)”
Era assim que, na vigência desta versão do Estatuto Disciplinar, se defendia que o recurso hierárquico das sanções disciplinares aplicadas a trabalhadores em funções públicas previsto naqueles artigos 59.º e 60.º passava a assumir natureza meramente facultativa e não necessária [cf. PAULO VEIGA E MOURA, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado, 2ª Edição, 2011, pág. 271, RAQUEL CARVALHO, in Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, Universidade Católica Portuguesa, 2014, p. 257 e CÁTIA ARRIMAR, in Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas 1.º Volume Artigos 1.º a 240.º, 1.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 628 e, na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do TCA-Norte de 19 de Abril de 2013, Proc. n.º 716/11.6 BEBRG e do TCA-Sul de 26 de Fevereiro de 2015, processo n.º 11847/15].
Ora, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas [“LTFP”] aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, que entrou em vigor em 1 de Agosto de 2014 [ao abrigo da qual foi instaurado o procedimento disciplinar], viria a manter o panorama verificado com a Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, ao estipular o seguinte:
“Artigo 224.º
Meios impugnatórios
Os atos proferidos em processo disciplinar podem ser impugnados hierárquica ou tutelarmente, nos termos do Código do Procedimento Administrativo, ou jurisdicionalmente.
Artigo 225.º
Recurso hierárquico ou tutelar
1 - O trabalhador e o participante podem interpor recurso hierárquico ou tutelar dos despachos e das decisões que não sejam de mero expediente, proferidos pelo instrutor ou pelos superiores hierárquicos daquele.
2 - O recurso interpõe-se diretamente para o respetivo membro do Governo, no prazo de 15 dias, a contar da notificação do despacho ou da decisão, ou de 20 dias, a contar da publicação do aviso a que se refere o n.º 2 do artigo 214.º
(...)
4 - O recurso hierárquico ou tutelar suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos, exceto quando o seu autor considere que a sua não execução imediata causa grave prejuízo ao interesse público.
(...)
6 - Nas autarquias locais, associações e federações de municípios, bem como nos serviços municipalizados, não há lugar a recurso tutelar.
(...)”
Pelo que tudo indicaria que, tal como defendido por RAQUEL CARVALHO, do acervo destas regras processuais resultaria que não há obrigatoriedade de exaustão de recursos graciosos, ou seja, que desaparecera o recurso hierárquico necessário [cf. in Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, UCP, 2014, p. 257].
No entanto, salvo o devido o respeito por opinião contrária, considera-se que este entendimento, face ao quadro normativo actual [que lhe é superveniente], não se pode manter.
Com efeito, pese embora seja manifesto que o regime-regra [da facultatividade] acolhido quer, no Código de Processo nos Tribunais Administrativos [artigos 51.º, n.º 1 e 59.º, n.º 4], quer no Novo Código de Procedimento Administrativo [artigos 185.º, n.ºs 1 e 2 e 190.º, n.ºs 3 e 4], não exige a precedência necessária de impugnação administrativa como condição de acesso à tutela judicial, o certo é que casos [excepcionais] continuam a existir em legislação avulsa preexistente à data de entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo que consagram verdadeiras impugnações administrativas necessárias [cf. reconhecem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, pp. 343-344 e CARLOS CADILHA, in Implicações do novo regime do CPA no direito processual administrativo, in Revista Julgar, n.º 26, pp. 31-36, acessível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/05/JULGAR-26-01-Carlos-Cadilha-Implica%C3%A7%C3%B5es-Novo-regime-CPTA.pdf; criticando a solução, a este título, preconizada pelo novo CPA, veja-se VASCO PEREIRA DA SILVA, in O inverno do nosso descontentamento – as impugnações administrativas no projecto de revisão do CPA, CJA, n.º 100, pp. 124-125].
É, por isso, que, consciente desta realidade, o legislador viria a criar uma “norma interpretativa” [a expressão é de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, op. cit., pp. 343] no artigo 3.º do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 3/2015, de 7 de Janeiro [que aprovou o Novo Código do Procedimento Administrativo], esclarecendo o seguinte:
Impugnações administrativas necessárias
1 - As impugnações administrativas existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei só são necessárias quando previstas em lei que utilize uma das seguintes expressões:
a) A impugnação administrativa em causa é «necessária»;
b) Do ato em causa «existe sempre» reclamação ou recurso;
c) A utilização de impugnação administrativa «suspende» ou «tem efeito suspensivo» dos efeitos do ato impugnado.
2 - O prazo mínimo para a utilização de impugnações administrativas necessárias é de 10 dias, passando a ser esse o prazo a observar quando seja previsto prazo inferior na legislação existente à data da entrada em vigor do presente decreto-lei.
3 - As impugnações administrativas necessárias previstas na legislação existente à data da entrada em vigor do presente decreto-lei têm sempre efeitos suspensivos da eficácia do ato impugnado.
4 - São revogadas as disposições incompatíveis com o disposto nos n.os 2 e 3.”
Quer isto dizer que, para se concluir se determinada garantia administrativa prevista em legislação avulsa [v.g. o EDTFP ou a LTFP] assume ou não natureza necessária haverá que, previamente, indagar se esta se enquadra ou não em qualquer uma das [interpretativas] alíneas do n.º 1 do artigo 3.º do preâmbulo do DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro.
Aqui chegados, e considerando que, quer o artigo 60.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, quer o artigo 225.º, n.º 4, da LTFP, estabelecem que “O recurso hierárquico ou tutelar suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos”, torna-se então claro que, à luz da alínea c), do n.º 1 do artigo 3.º do preâmbulo do DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro [“As impugnações administrativas existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei só são necessárias quando previstas em lei que utilize uma das seguintes expressões: (...) A utilização de impugnação administrativa «suspende» ou «tem efeito suspensivo» dos efeitos do ato impugnado”] se deve concluir que aquela garantia administrativa assume natureza necessária, nos termos do artigo 185.º, n.º 1, do CPA.
Não se olvida que aqueles normativos consagram a faculdade [excepcional] de o respectivo autor do acto atribuir efeito meramente devolutivo à interposição do recurso hierárquico necessário.
Todavia, conforme defendem JORGE SILVA SAMPAIO e JOSÉ DUARTE COIMBRA, deve entender-se que ao assim disporem, isto é, ao permitirem que o recurso hierárquico necessário possa não ter efeito suspensivo, aqueles preceitos legais se encontram em parcial desconformidade com o previsto no n.º 3 do artigo 3.º do preâmbulo do DL n.º 4/2015, devendo, por isso, considerar-se nessa parte revogados, tal como expressamente cominado pelo n.º 4 do artigo 3.º do preâmbulo deste Decreto-Lei [in Os procedimentos administrativos de segundo grau no Novo CPA, (coord.) CARLA AMADO GOMES, ANA FERNANDA NEVES e TIAGO SERRÃO, Comentários ao Novo Código de Procedimento Administrativo, 2015, AAFDL pp. 693-694].
É assim que os mesmos autores acabam por concluir que a utilização, quer pelo EDTFP, quer pela LTFP, da expressão “suspensão da eficácia”, interpretada à luz da alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do preâmbulo do DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, leva à inelutável conclusão de que o recurso hierárquico necessário ali previsto assume natureza necessária [sublinhando, por isso, que o entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual o EDTFP eliminara o recurso hierárquico necessário não pode, à luz do DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, manter-se de ora em diante].
Acolhe-se integralmente o entendimento que se acaba de expor, o qual se crê encontrar-se em sintonia com aquela que fora a intenção do legislador ao consagrar a norma “interpretativa” prevista no artigo 3.º do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, cuja leitura jamais se poderia ater a uma interpretação meramente literal, mas, antes sim, a uma mais abrangente dimensão funcional.
Quer então isto dizer que, a partir da data de entrada em vigor do DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro – 6 de Abril de 2015 – assumem natureza necessária todos os procedimentos administrativos de segundo grau [“impugnações administrativas”] cuja utilização ocasione, provoque, op legis, a suspensão da eficácia do acto reclamado ou recorrido.
Foi, de resto, esta a tese sufragada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 16 de Dezembro de 2016, proferido no processo n.º 13764/16 que, confirmando a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em 11 de Março de 2016, no processo n.º 3047/15.9BEPRT, considerou que o recurso hierárquico previsto no n.º 4 do artigo 225.º da LTFP [cuja redacção é igual à do artigo 60.º, n.º 4, da Lei n." 58/2008, de 9 de Setembro] assume natureza necessária e, por isso, uma condição prévia de acesso à tutela judicial.
Entendimento este que a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 8 de Junho de 2017, proferido no processo n.º 0647/17, considerou ser “fundamentado e juridicamente plausível, sem que se justifique, nesta parte, a admissão de um recurso de revista excepcional” [acessível em www.dgsi.pt].
Em face de tudo o que vai exposto, considera também este Tribunal que, à luz da superveniente alínea c), do n.º 1, do artigo 3.º do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, se deve concluir que o recurso hierárquico previsto, quer no artigo 60.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, de 5 de Setembro, quer no artigo 225.º, n.º 4, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, assume agora natureza necessária e não meramente facultativa, constituindo, por isso, a sua utilização, uma condição indispensável para que os interessados possam recorrer à tutela jurisdicional [artigos 185.º, n.º 1 e 2, parte final e 189.º, n.º 1, do CPA].
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É precisamente aqui que se enquadra o caso dos autos.
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Com efeito, conforme dimana do probatório coligido, constata-se que, por despacho proferido pelo Director Regional da Agricultura e Pescas do Norte, em 14 de Fevereiro de 2017, foi determinada a aplicação à Autora da pena disciplinar de despedimento.
Todavia, dessa decisão não foi interposto o recurso hierárquico necessário previsto, quer no artigo 60.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, de 5 de Setembro, quer no artigo 225.º, n.º 4, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aqui interpretado de acordo com a alínea c), do n.º 1, do artigo 3.º do preâmbulo do DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro aqui aplicável nos termos dos artigos 8.º, n.º 1, parte final e 9.º do referido Decreto-Lei.
Torna-se, pois, manifesto que a Autora carece [ainda] de interesse processual, cuja falta, enquanto pressuposto processual autónomo, atípico ou adicional em relação à condição de impugnabilidade do acto [MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in Manual de Processo Administrativo, 2016, pp. 294], consubstancia a verificação de uma verdadeira excepção dilatória atípica e insuprível.
Deverão, por isso, nessa sequência, ser os Réus absolvidos da presente instância [artigo 89.º, n.º 4, do CPTA e 278.º, n.º 1, alínea c), do CPC].
...".
E continua, apreciando o conteúdo do ofício de notificação, referindo que se constata que o mesmo indica [erradamente] que a utilização do recurso hierárquico era meramente facultativa e não necessária e, deste modo, nos termos do n.º 4 do artigo 114.º do CPA [interpretado em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da CRP], o que significa que aquela garantia administrativa necessária poderá ser utilizada pela Autora no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão judicial [sem prejuízo de não ser esta a sede própria para aferir da eventual responsabilidade aquiliana a que, porventura, haja lugar em virtude do erro incorrido na notificação].E depois de concluir que se encontra, por isso, devidamente acautelado, no caso concreto, o exercício do direito à tutela jurisdicional efectiva da Autora, decidiu reconhecer a existência de erro na indicação da natureza do meio de impugnação administrativa a utilizar contra o despacho ora impugnado e, em consequência, conceder à A./Recorrida a faculdade de, no prazo de 30 dias contados desde o trânsito em julgado da presente decisão, interpor o respectivo recurso hierárquico necessário.
Adiantamos, desde já, que se mostra correcta e justificada a fundamentação assertiva efectivada pelo TAF do Porto quanto à questão em apreciação, sendo certo - releve-se - que a doutrina e jurisprudência citadas nas alegações recursivas pelos RR./Recorrentes, são anteriores ao Dec. Lei 4/2015, de 7 de Janeiro que aprovou o novo CPA - como se evidencia pela respectivas datas -, o que, desde logo, desvirtua, desvaloriza a argumentação alegatória.
Ou seja, nenhuma contribuição doutrinária e/ou jurisprudencial é referida em abono da tese que defendem - pese embora a sua eloquência - posterior e reflectindo a solução legislativa propugnada pelo novo CPA, que veio, sem quaisquer dúvidas - concorde-se ou não - colocar um ponto final Mas que, afinal, não é, que mais não seja, pela argumentação propendida nesta sede recursiva. na questão até então tão debatida, com a norma interpretativa dele constante.
Apenas os Recorrentes aduzem na defesa da sua tese as alterações legislativas posteriores ao acto decisório impugnado nesta acção administrativa - de 14 de Fevereiro de 2017 - ou seja, os arts. 224.º e 225.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas - Dec. Lei 6/2019, de 14 de Janeiro, mas que, salvo meliore, não acolhem o nosso entendimento, no sentido de inversão de toda a anterior argumentária.
Sublinhamos que a interpretação conjugada dos arts. 60.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, 225.º, n.º 4, da LTFP, ao estabelecerem que “O recurso hierárquico ou tutelar suspende a eficácia do despacho ou da decisão recorridos”, conjugados com a al. c), do n.º 1 do art.º 3.º do Preâmbulo do DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, pela sua clareza e literalidade, não nos suscitam dúvidas no sentido de que, à data da decisão administrativa impugnada, se impunha, antes do recurso aos meios judiciais, a interposição de recurso hierárquico necessário.
Carece de razoabilidade a argumentação no que concerne à novidade alegatória dos Recorrentes quanto à inconstitucionalidade das normas do art.º 3.º do Dec. Lei 4/2015, de 7 de Janeiro, quando interpretadas com o sentido de que “o recurso hierárquico previsto nos n.os 1, 4 e 5 do artigo 60.º da Lei 58/2008 assume agora natureza necessária e não meramente facultativa, constituindo, por isso, a sua utilização, uma condição indispensável para que os interessados possam recorrer à tutela jurisdicional”, por violação do princípio da reserva de lei da A.R. pois atribui a um Decreto-Lei uma força que não pode ter em função da matéria (norma base definidora do regime e âmbito do vínculo de emprego público – art. 3.º nº 1 al. i) LTFP) porque não precedido de autorização legislativa em concreto em violação das normas constitucionais.
Efectivamente, nos termos das als. ww) e xx) do art.º 2.º - "Sentido e extensão" da autorização legislativa - Lei 42/2014, de 11 de Julho --- Lei autorizativa ao Governo para aprovação do novo Código do Procedimento Administrativo - novo CPA --- pode o Governo, definir o regime das reclamações e dos recurso administrativos, prevendo que as reclamações e os recursos administrativos têm carácter facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários.
Ou seja, foi concedido pela Assembleia da República ao Governo, quanto ao sentido e extensão da autorização para aprovação do CPA, a previsão de recursos administrativos facultativos e necessários, sendo estes quando a lei os denominar como tais - n.º 2 do art.º 185.º do CPA - e 3.º do Dec. Lei 4/2015.
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Importa assim, sem mais, em negação de provimento ao recurso, manter a decisão judicial do TAF do Porto.
III. DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter o saneador-sentença recorrido.
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Custas pelos RR./Recorrentes.
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Notifique-se.
DN.
Porto, 28 de Outubro de 2022
Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho