Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00406/20.9BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/19/2021
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL -COVID19- MEDIDAS DE PROTEÇÃO AO SETOR ARTISTICO E CULTURAL-PRESSUPOSTOS LEGAIS
– OBRIGAÇÃO DE CELEBRAÇÃO DO CONTRATO-INDEMNIZAÇÃO.
Sumário:I-O Decreto-lei n.º 10-I/2020, de 23 de março, estabelece um conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia provocada pela doença COVID-19, no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espetáculos não realizados, destinadas a mitigar as consequências da paralisação de atividade nesse setor.

II- O artigo 11.º, n.º6 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na versão conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04, estabelece como pressupostos para que as entidades públicas e organismos de direito público referidos no CCP ou entidades adjudicantes previstas no art.º 2.º do mesmo CCP, promotoras de espetáculos, fiquem adstritas a garantir a conclusão dos procedimentos de formação de contratos públicos e a garantir o pagamento da indemnização prevista no n.º5 do mesmo preceito, não obstante a situação pandémica provocada pela doença COVID 19 , que: (i) tenha sido emitida a decisão de contratar; (ii) tenha sido enviado o convite para a apresentação de propostas e, (iii) haja uma programação anunciada, embora ainda não contratualizada, do evento.

III-O desígnio que o legislador teve em vista com a instituição deste regime especial foi assegurar uma proteção especial aos agentes culturais e artísticos através da previsão de um conjunto de medidas excecionais e temporárias no âmbito cultural e artístico, em especial quanto a espetáculos não realizados, em relação aos quais estivessem em curso procedimentos abertos pelas entidades públicas e em que, mesmo sem adjudicação e sem contrato celebrado, em função da verificação de certos pressupostos, se tem como certa a assunção de compromissos por parte dos promotores/agentes culturais e artísticos com base no pressuposto da realização do evento e da celebração do contrato.

IV- O pressuposto relativo à existência de “uma programação anunciada”, em função dos cânones interpretativos do artigo 9.º do Cód. Civil, não se reconduz ao sentido restritivo da existência do programa artístico do espetáculo.

V- A Administração Local está obrigada a respeitar e fazer respeitar a legislação especial publicada por razões de excecionalidade, e a observar os mecanismos instituídos pelo legislador nacional destinados a minorar as consequências económicas decorrentes da situação de emergência sanitária para as pessoas e as empresas, designadamente, no âmbito de atividades, que como as culturais e artísticas, se viram forçadas a parar literalmente, ainda que com um custo acrescido a suportar por todos.*
*(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Recorrente:MUNICÍPIO DE (...)
Recorrido 1:M., LDA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I - RELATÓRIO

1.1.M., LDA, com sede na Rua (…), intentou, ao abrigo do disposto nos artigos 100º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a presente ação de contencioso pré-contratual contra o MUNICÍPIO DE (...), com sede institucional na Alameda (…), pedindo que:
a) Que seja declarada ilegal e inválida a decisão de não adjudicação e a consequente decisão de não contratar, consignada no despacho de 29/05/2020; cumulativamente;
b) Que seja revogada a decisão de não adjudicação e a consequente decisão de não contratar; cumulativamente;
c) Que seja o Réu condenado na prática de ato devido, ou seja, a proferir decisão de adjudicação à Autora, devendo para o efeito prosseguir os tramites legalmente previstos quanto à conclusão do procedimento que permita a efetiva celebração do contrato público de adjudicação da aquisição de serviços e direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produções, produtores executivos e assistentes de produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO Festival (...) 2020 e 2021, de acordo com o nº 6 do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03; cumulativamente;
d) Que seja o Réu condenado a pagar de imediato à Autora nos termos do disposto no nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03, a quantia correspondente a 50% do valor do preço do contrato que se fixa em € 447.154,47, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, acrescido dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento; subsidiariamente, caso assim não se entenda,
e) Que seja o Réu condenado a adjudicar e contratar a Autora para a realização/produção do Festival MIMO 2021, nos termos do convite e proposta devidamente apresentados; e, cumulativamente,
f) Que seja o Réu condenado a pagar de imediato à Autora a quantia correspondente a 50% do valor do preço do contrato, referente ao MIMO 2020, que se fixa em € 223.577,23, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, acrescido dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alega, em síntese que a deliberação do Réu, datada de 29/05/2020, que revogou a decisão de contratar, no âmbito do procedimento pré-contratual aberto para a “Aquisição de serviços para a realização do MIMO Festival (...) 2020 e 2021”, está ferida de ilegalidade por ter sido proferida sem qualquer fundamento legal;
Aduz que com a aprovação do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03, alterado pela Lei nº 7/2020, de 10/04, e pela Lei nº 19/2020, de 29/05, ao prever um regime especial aplicável à contratação de espetáculos por parte de entidades públicas, operou uma derrogação do regime geral previsto no Código dos Contratos Públicos (CCP), designadamente, da previsão constante do seu artigo 79º.
Observa que, com o referido normativo especial, pretendeu o legislador garantir a conclusão dos procedimentos pré-contratuais nos quais já tivessem sido praticados a decisão de contratar e o envio de convite à apresentação de propostas, nos casos de programação já anunciada mas ainda não contratualizada, impondo às entidades públicas que procedessem ao reagendamento do evento ou, no caso de tal não ser possível, ao seu cancelamento, mais impondo a realização dos pagamentos acordados. Entende que a decisão impugnada incorre em violação da tutela da confiança que os particulares depositam na atuação do ente público, bem como em violação do princípio da estabilidade.

1.2. Citado, o Réu contestou, começando por suscitar o incidente do valor da causa.

Defendeu-se por exceção e por impugnação.

Na defesa por exceção, invocou a ilegitimidade processual ativa da Autora, aduzindo, em síntese, que a sua pretensão é que o Réu seja condenado no pagamento da quantia de € 447.154,47, pelo que, tendo em conta que a Autora atua na qualidade de agente, e de acordo com o previsto no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 178/86, de 3/07, a mesma só poderá proceder à cobrança de créditos se a outra parte a tanto o autorizar por escrito.

Observa que, conforme resulta da cláusula 8ª do contrato celebrado entre a Autora e o principal, aquela tem exclusivamente o poder de cobrar os créditos deste decorrentes dos contratos no uso dos seus poderes de representação;

Mais argumenta que, atenta a modalidade de ação intentada, pretende a Autora que lhe seja atribuído um putativo e futuro crédito que, à presente data, não existe, à semelhança do vínculo contratual que lhe daria origem;

Conclui, assim, não configurar a presente demanda um processo de recuperação de quantias contratuais, pelo que, a Autora, na sua qualidade de agente, não está munida dos poderes necessários para o exigir o pagamento reclamado, não detendo legitimidade processual ativa, exceção dilatória insanável, que determina a sua absolvição da instância.

Na defesa por impugnação, invoca, em síntese, que contrariamente ao arguido pela Autora, deve ser considerada a redação do Decreto-Lei nº 10-I/, de 26/03, que lhe foi atribuída pela Lei nº 7/2020, de 10/04, com a Retificação nº 18/2020, de 30/04, já não lhe sendo aplicável a Lei nº 19/2020, de 29/05, que apenas entrou em vigor a 30/05/2020.
Mais alega ser inverosímil que a atitude protagonizada pelo Réu tenha formado qualquer convicção junto da Autora de que o festival se poderia realizar em 2020 e, com toda a certeza, em 2021, reafirmando não estar o Réu sujeito a um dever de adjudicar;

Sublinha que em momento algum entre as partes foi celebrado qualquer contrato de aquisição de serviços, pelo que, se a Autora antecipou a preparação das obrigações que para si adviriam, fê-lo sem possuir qualquer título para o efeito;

Assevera que não impendia sobre si qualquer obrigação de reagendar o evento, por não ter sido celebrado qualquer contrato, nem tampouco qualquer dever de adjudicação, à luz do previsto no nº 6 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03, porquanto o festival MIMO 2020 ainda não se encontrava agendado, nem tampouco se encontrava anunciada a respetiva programação, não sendo tais conceitos coincidentes;

Para se poder considerar que a programação já estava anunciada, exigia-se todo um conjunto de informações, como as relativas aos artistas que iriam participar no dito festival, as respetivas datas, os concretos locais das atuações e, bem assim, o horário da sua realização, o que não sucedia no caso presente.

Afirma que sobre si não impendia qualquer obrigação de proceder ao reagendamento de um festival que ainda nem sequer tinha contratualizado;

Conclui que agiu em plena conformidade legal, atento o imposto pela alínea d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, só reconhecendo à Autora o direito a receber o montante previsto no nº 4 de tal norma.

Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, invoca a inconstitucionalidade material das normas constantes dos nºs 5 e 6 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03, por violação do princípio da separação de poderes, do princípio da prossecução do interesse público e do princípio da autonomia local.

1.3. A autora replicou, alegando, em suma, quanto à invocada exceção da sua ilegitimidade ativa que é parte na relação material controvertida, tal como a mesma vem definida em sede de petitório;

Entende que o ato impugnado traduz uma lesão direta dos seus interesses e direitos, que se reflete na sua esfera jurídica, conforme o previsto no artigo 55º do CPTA, afirmando que atua na qualidade de agente, com poderes de representação da principal, tendo autorização expressa para cobrar os créditos decorrentes da celebração de contratos;

Pede a total improcedência da arguida exceção.

Quanto ao incidente de valor, a autora nada disse.

1.4. O Réu juntou aos autos o respetivo Processo Administrativo instrutor ( PA).

1.5. Em 13/11/2020, o TAF de Penafiel proferiu despacho saneador-sentença no qual considerando possuírem os autos todos os elementos de prova necessários para uma decisão conscienciosa sobre o mérito da lide, dispensou a produção de prova testemunhal, assim como a realização de audiência prévia, julgou procedente o incidente de valor, fixando o valor da ação em € 447.154,47, considerou que a autora é parte legítima na presente ação e conheceu do mérito da ação que julgou totalmente procedente , sendo do seguinte teor o respetivo segmento decisório:

«Face a tudo o que antecede, julga-se a presente acção totalmente procedente e, consequentemente:
a) Anula-se a decisão de não adjudicação, constante do Despacho proferido pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal do Réu, datado de 29/05/2020;
b) Condena-se o Réu a adoptar toda a retomar a tramitação procedimental pré-contratual tendente à aquisição de serviços para a realização do “MIMO Festival (...) 2020 e 2021”, determinando a adjudicação e a celebração do contrato com a Autora, bem como a adoptar toda a tramitação prevista nos nºs 1 a 4º do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26 de Março (com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 7/2020, de 10 de Abril; e
c) Condena-se o Réu a pagar à Autora o valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa em vigor e de juros de mora vincendos, até efectivo e integral pagamento, de acordo com o previsto no nº 5 do artigo 11º do referido normativo.
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Desde já se fixa o prazo de 20 dias para o cumprimento dos deveres decorrentes do constante no ponto b).
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Custas pelo Réu (artigo 527º do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, e artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais, Tabela II).
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Registe e notifique.»

1.6. Inconformado com a decisão proferida que julgou a ação totalmente procedente, o MUNICÍPIO DE (...) interpôs o presente recurso de apelação, formulando as presentes conclusões:

«I. Vem o presente recurso interposto do saneador sentença proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou totalmente improcedente a presente ação, condenando o Réu (ora Recorrente) a:
iv) Anular a decisão de não adjudicação, constante do Despacho proferido pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal do Réu, datado de 29/05/2020;
v) Adotar toda a retomar a tramitação procedimental pré contratual tendente à aquisição de serviços para a realização do “MIMO Festival (...) 2020 e 2021”, determinando a adjudicação e a celebração do contrato com a Autora, bem como a adotar toda a tramitação prevista nos n.ºs 1 a 4º do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de Março (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2020, de 10 de abril; e
vi) Pagar à Autora o valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa em vigor e de juros de mora vincendos, até efectivo e integral pagamento, de acordo com o previsto no n.º 5 do artigo 11.º do referido normativo.”;
II. Em termos sintéticos, julgou o douto Tribunal a quo que, no caso em apreço, a programação do Festival MIMO (...) 2020 e 2021 já se encontrava anunciada, embora ainda não contratualizada, dando, assim, como verificado o segundo requisito exigido pelo disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março (na redação que lhe foi conferida pela entrada em vigor da Lei n.º 7/2020, de 10 de Abril e pela Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de Abril);
III. Tal julgamento, aliado à circunstância de, no âmbito do procedimento de formação do contrato público ora em causa já ter sido emitida a decisão de contratar e o envio do convite à apresentação das propostas criou, no douto Tribunal a quo, a convicção de que o referido normativo era aplicável ao caso concreto, tendo este retirado, de tal juízo de aplicabilidade, as conclusões que legalmente se impunham, nomeadamente do disposto na parte final do já referido n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, tendo por referência, de forma unitária, e sem relevar as diferenças entre ambas, as versões do festival a ocorrer em 2020 e 2021;
IV. Assim sendo, não pode a Recorrente conformar-se com o sentido da decisão ora em crise, porquanto a mesma incorre em manifesto erro de julgamento de Direito, ofendendo os mais elementares ditames jurídico-legais, inclusive constitucionais, circunstâncias idóneas, por si só, a impor a prolação, in casu, de uma decisão distinta da que veio a ser adotada;
V. No passado dia 03.03.2020, a ora Recorrente aprovou a decisão de contratar, o Convite e Caderno de Encargos, para contratação, através de ajuste direto, de serviços de direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação de programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para organização do Festival MIMO (...) 2020 e 2021, tendo tal procedimento como preço base o montante de € 894.308,94 (oitocentos e noventa e quatro mil, trezentos e oito euros e noventa e quatro cêntimos);
VI. Na mesma data, endereçou a Requerente à Recorrida um convite à apresentação de propostas, no âmbito do referido procedimento, tendo tal apresentação ocorrido no passado dia 06.03.2020;
VII. No contexto constitucional imposto pelo decretamento do Estado de Emergência por Sua Excelência o Presidente da República, foi aprovado um conjunto de diplomas de natureza extraordinária destinados a mitigar os efeitos negativos da situação calamitosa verificada, de entre os quais se destaca, pela sua relevância para o caso concreto, o Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de março, destinado a, entre outros, conferir “(...) uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização dos espetáculos não realizados em virtude da pandemia”;
VIII. Tal Decreto-Lei foi, posteriormente, alvo de alterações por força da entrada em vigor da Lei n.º 7/2020, de 10 de Abril, da Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de abril e, em momento posterior da prática do ato colocado em causa pela Recorrida nos presentes autos, pela entrada em vigor da Lei n.º 19/2020 de 29 de maio e do Decreto-Lei n.º 78-A/2020, de 29 de setembro;
XIX. Analisado o conteúdo de tal diploma e constatada a sua inaplicabilidade, bem como, as circunstâncias supervenientes à decisão de contratar que conduziram à aprovação do estado de calamidade que sobreveio ao Estado de Emergência, o Presidente da Câmara Municipal do Requerente proferiu, em 29.05.2020, uma decisão de não adjudicação do procedimento ora em causa, à luz do preceituado na alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do Código dos Contratos Públicos (doravante CCP), uma vez que não se encontravam verificados, in casu, os requisitos legalmente exigidos para que houvesse lugar à obrigatoriedade de conclusão do procedimento;
X. Tal decisão, adotada pelo Presidente da Câmara Municipal do Recorrente de harmonia com o preceituado na alínea f) do n.º 1 do artigo 33.º e do n.º 3 do artigo 35.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, veio, posteriormente, a ser ratificada pela Câmara Municipal do Município Recorrente a 16.06.2020;
XI. Inconformada com o conteúdo de tal decisão, a Recorrida intentou, em 26.06.2020, uma ação de contencioso pré-contratual, à luz do preceituado nos artigos 100.º e seguintes do CPTA, através da qual peticionava a declaração de ilegalidade e invalidade da decisão de não adjudicação e a consequente decisão de não contratar praticada pelo Presidente da Câmara Municipal de (...), a revogação das referidas decisões, bem como, a condenação do Município a praticar uma decisão de adjudicação a favor da Recorrida, nos termos do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, condenando-se o Recorrente a cumprir as obrigações que de tal aplicabilidade legalmente resultam;
XII. Encerrada a fase dos articulados, e em sede de saneador sentença, prolatado ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 88.º do CPTA, aplicável ex vi n.º 1 do artigo 102.º do mesmo diploma legal, foi a presente ação julgada totalmente procedente, nos termos e com os fundamentos de que anteriormente se deu já nota;
XIII. Tal decisão encontra-se, desde logo, eivada por um erro decisório consubstanciado na circunstância de o douto Tribunal a quo não ter julgado procedente a exceção de ilegitimidade processual ativa da Autora, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 9.º e alínea e), do n.º 4 do artigo 89.º, todos do CPTA, bem como do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho e dos artigos 30.º, alínea e) do artigo 577.º e alíneas d) e e) do artigo 278.º do CPC, aplicáveis ex vi pelo artigo 1.º do CPTA.
XIV. Com efeito, revela-se digno da mais vincada censura o facto de o Tribunal a quo não ter sido capaz de alcançar que, na situação sub judice, não se encontra verificado o segundo requisito exigido pelo n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, ou seja, que a programação do festival ora em causa para a sua edição de 2020 não estava anunciada! ;
XV. Tal incapacidade demonstrada pelo douto Tribunal a quo relativamente à edição do festival no ano de 2020, profundamente censurável em si mesma, atinge píncaros de gravidade no excerto decisório em que aquele Tribunal dá como verificado o requisito ora em causa, desta feita relativamente à edição do referido festival a organizar no próximo ano de 2021, quando nem a realização do festival propriamente dito se encontra sequer agendada! ;
XVI. Nesta perspetiva, a sentença recorrida padece de flagrantes erros de julgamento de Direito, motivo pelo qual deverá ser revogada com todas as legais consequências;
XVII. Através da presente ação, pretendia a Recorrida obter a condenação do Recorrente à prática do ato alegadamente devido – a qual abrange, por natureza, a impugnação de um ato administrativo que lhe é desfavorável e a obtenção de um ato favorável aos seus propósitos, nos termos dos artigos 66.º e 51.º do CPTA;
XVIII. Acontece que, fruto da própria relação existente entre os pedidos deduzidos, não reúne a Recorrida o pressuposto processual de legitimidade processual ativa uma vez que, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do regime jurídico que regula dos contratos de agência (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho), “O agente só pode efetuar a cobrança de créditos se a outra parte a tanto o autorizar por escrito”;
XIX. Aliás, conforme se expressa na Cláusula 8.ª do contrato de agência, tem a Recorrida única e exclusivamente o poder de cobrar os créditos da Principal decorrentes dos contratos no uso dos seus poderes de representação – Cfr. Documento n.º 10 junto em sede de petição inicial;
XX. Tendo presente a modalidade da ação intentada – a qual, de facto, seria a única modalidade processual que poderia permitir a Recorrida lograr o que pretende, porquanto o desaparecimento do ato alegadamente em crise e o aparecimento de um novo que titule a adjudicação da proposta da Recorrida são pressupostos de um putativo e futuro crédito que à presente data não existe – de resto, à semelhança do vínculo contratual que lhe daria origem, não estamos perante uma ação de recuperação de quantias contratuais devidas, já que, tal como já supra referido, não existe qualquer vínculo entre a Recorrida e o Recorrente;
XXI. Ao invés, encontramo-nos perante uma ação de condenação da Administração à prática de um determinado ato administrativo alegadamente devido (neste caso, o de adjudicação), tratando-se todas as demais consequências sequenciais pretendidas pela Recorrida meras decorrências do cerne da lide condenatória;
XXII. Tal demanda em nada se poderia confundir com um processo de recuperação de quantias contratuais, não apenas por inexistir, a esta data, qualquer vínculo contratual, como ainda pela circunstância de a existência de um putativo crédito depender do sucesso (inalcançável, diga-se) do primeiro pedido condenatório, pedido para o qual, conforme se explana, não tem poderes (leia-se, legitimidade) a Recorrida.
XXIII. Numa palavra, não estando a Recorrida munida dos poderes necessários para o efeito, carecerá, então, de ilegitimidade processual ativa para intentar a presente ação.
XXIV. Não se alvitre que tal exceção dilatória possa ser sanável, uma vez que a única entidade que poderia intentar a presente ação seria a titular original da marca, que, por uma banda, em nada se confunde esta com a demandante e, por outra banda, já não estará esta em prazo para dar início a uma nova lide com idêntico desiderato.
XXV. De igual modo, tampouco se poderia lançar mão do instituto da intervenção principal provocada, na estrita medida em que a Sociedade L., Lda. não configura um associado da Recorrida, nos termos em que prevê o n.º 1 do artigo 316.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.
XXVI. Assim, não haverá nenhum caso passível de litisconsórcio, previsto nos artigos 32.º e 33.º do CPC aplicáveis ex vi do artigo 1.º CPTA, enquanto pressuposto do recurso ao instituto da intervenção principal provocada.
XXVII. Mais a mais, a Recorrida não poderá ser caracterizada como parte na relação material controvertida, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 9.º do CPTA, uma vez que o contrato de prestação de serviços alvo da presente ação seria celebrado em nome da entidade Principal – e não da Recorrida.
XXVIII. Assim sendo, e face a tudo quanto acima se expôs, não pode se não concluir-se que o douto Tribunal a quo adotou, relativamente à avaliação da verificação in casu da exceção dilatória da ilegitimidade ativa da Recorrida, uma solução sem qualquer tipo de arrimo jurídico, pelo que tal decisão deve ser necessariamente substituída por uma outra que, desta feita de forma juridicamente impoluta, dê tal exceção como verificada nos presentes autos e ordena a absolvição do Recorrente da instância, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 89.º do CPTA.
XXIX. A decisão de não adjudicação, adotada pelo Presidente da Câmara Municipal do Município Recorrente e posteriormente ratificada pela sua Câmara Municipal, foi praticada com base factual nas circunstâncias supervenientes à decisão de contratar relacionadas com a pandemia provocada pela Covid-19 e teve sustentáculo jurídico no disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP e do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março;
XXX. Isto porque, no entendimento do Recorrente e ao contrário do defendido pelo douto Tribunal a quo, não se verificaram, no caso concreto, os requisitos cujo preenchimento é essencial para que o disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, imponha às entidades melhor identificadas no seu n.º 1 a obrigatoriedade de concluírem os procedimentos tendentes à contratação de espetáculos regulados pelo diploma ora em causa;
XXXI. Analisado o disposto na norma em causa, torna-se possível constatar, com meridional clareza, que, para que haja lugar à obrigatoriedade de as entidades públicas, organismos de direito público e demais entidades adjudicantes previstas no artigo 2.º do CCP garantirem a conclusão dos procedimentos de formação de contratos públicos relacionados com espetáculos culturais, seria imperativa a verificação cumulativa de dois requisitos, a saber: i) já ter sido emitida a decisão de contratar e enviado o convite à apresentação das propostas; e, cumulativamente, ii) a programação do espetáculo já ter sido anunciada;
XXXII. De igual modo, resulta da norma sob estudo que, uma vez verificado o cumprimento dos dois requisitos cumulativos nela plasmados, passa a impender sobre as entidades adjudicantes não apenas a obrigação de concluir o procedimento de formação do contrato através da outorga deste último mas também, e num segundo momento, a obrigatoriedade de proceder ao reagendamento da realização do espetáculo cultural (cfr. n.º 2 e 4) – ou, no caso de este se tornar inviável, ao seu cancelamento (cfr. n.º 3);
XXXIII. De qualquer das formas, independentemente de haver lugar ao reagendamento ou cancelamento do espetáculo em causa, sempre as entidades promotoras dos espetáculos teriam que pagar aos então já adjudicatários um valor mínimo correspondente a 50% do preço contratual, à luz do preceituado no n.º 5 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, aplicável ex vi n.º 6 do mesmo artigo in fine;
XXXIV. O douto saneador sentença de que ora se recorre deu como verificado – a nosso ver, diga-se, de forma absolutamente certeira – o primeiro requisito plasmado no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março, ou seja, considerou que, à data da prática da decisão de não adjudicação do procedimento sob escrutínio, já havia sido praticada a decisão de contratar e, bem assim, dirigido o convite à Recorrida para apresentação de propostas;
XXXV. Infelizmente, a clarividência demonstrada pelo douto Tribunal a quo no que diz respeito à verificação casuística do primeiro requisito elencado no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei não constitui o timbre da atuação daquele Tribunal aquando da indagação que levou a cabo relativamente ao segundo requisito acima explicitado;
XXXVI. Numa interpretação manifestamente apartada das regras que disciplinam o processo de exegese das normas jurídicas, o douto Tribunal a quo entendeu que, no caso sob escrutínio, a programação do festival MIMO (...) 2020 e 2021 já estaria anunciada, através de uma interpretação extensiva (para não dizer absolutamente contra legem) do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020;
XXXVII. Interpretação essa que teve por base o elemento teleológico do diploma em causa que “(...) impõe que se atribua à referida expressão [nos casos de programação já anunciada] o significado de que bastará, para se considerar preenchido o respectivo pressuposto, que exista já um anúncio público da realização do evento, bem como de datas definidas para o mesmo, o que, in casu, sucedia”, mas também, ainda que através de premissas pouco claras e com evidentes dificuldades de expressão, o elemento histórico da norma cuja aplicabilidade ao caso concreto se encontrava em discussão;
XXXVIII. Acontece que a interpretação realizada pelo douto Tribunal a quo do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, com recurso aos seus elementos teleológico e histórico, é absolutamente contrária a qualquer interpretação juridicamente possível de tal norma, nela vislumbrando o Tribunal de 1.ª Instância um alcance normativo que a mesma não pode, nem nunca poderia ter;
XXXIX. Nesta fase, e uma vez explicitado o iter cognoscitivo levado a cabo pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão que veio a adotar, haverá que demonstrar, de forma individualizada, todos os erros de julgamento de Direito que eivam a decisão prolatada em sede de saneador sentença;
XL. O Tribunal a quo cometeu, desde logo, um erro que inquinou, de todo em todo, a valia jurídica da decisão por si prolatada, não apenas no que diz respeito ao excerto em que dá como aplicável ao caso concreto a disciplina prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, mas também, e não menos importante, na afirmação das consequências que de tal aplicabilidade resultam;
XLI. Concretizando, cotejado o saneador sentença relativamente ao qual se apresenta o presente recurso, torna-se possível constatar que o Tribunal a quo confunde, de forma absolutamente censurável, realidades tão díspares como o anúncio da realização do festival MIMO (...) com o anúncio da sua programação;
XLII. Em boa verdade, ao longo da sentença por si proferida, o douto Tribunal a quo tratou sempre a realização do festival e a sua programação como se de um único facto se tratasse – exercício de equivalência que conduziu a que, erroneamente, tivesse dado como já anunciadas as duas realidades, quando, no limite, apenas uma delas o estaria (a realização do festival);
XLIII. Como é bom de ver, e conforme resulta da experiência comum, o facto de um determinado certame estar anunciado não implica necessariamente que a sua programação esteja, também ela, anunciada, sendo precisamente um caso dessa natureza que se encontra em discussão nos presentes autos;
XLIV. A decisão de que ora se recorre apenas dá como provado, relativamente a esta matéria, e com base no conteúdo do documento n.º 20 junto com a petição inicial, o seguinte facto “O MIMO Festival 2020 encontrava-se agendado para os dias 24 a 26 de Julho de 2020”, (Cfr. alínea n) do ponto IV Fundamentação de facto) nada referindo quanto a qualquer prova de que a programação do referido festival estivesse já anunciada;
XLV. Basta consultar, com mediana atenção, o referido documento n.º 20 junto com a petição inicial para constatar, sem qualquer surpresa, que através dele apenas se procede, quanto muito, ao anúncio da realização do Festival MIMO (...) 2020 para os dias 24 a 26 de julho do referido ano;
XLVI. Tal realidade deveria ter sido suficiente para que o douto Tribunal a quo pudesse constatar que, não obstante se pudesse entender que a realização da edição de 2020 do Festival MIMO já se encontrava agendada, nunca se poderia, com seriedade, entender que a programação da referida edição estaria, também ela, anunciada;
XLVII. Sendo precisamente o anúncio desta última realidade que é exigida para efeitos de se ter como aplicável a uma determinada situação o conteúdo regulatório da norma plasmada no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, nunca poderia o douto Tribunal a quo ter como aplicável ao presente caso o disposto naquele normativo, uma vez que, na situação em apreço, jamais se encontrou anunciada qualquer programação;
XLVIII. Todavia, a confusão entre os conceitos de “festival agendado” e “programação anunciada” não foi o único vício a ferir de manifesta ilegalidade o raciocínio protagonizado pelo douto Tribunal a quo no processo de justificação da aplicabilidade, ao caso concreto, do dever de produção de uma decisão de adjudicação resultante do nº 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março;
XLIX. Para justificar tal decisão, o douto Tribunal de 1.ª Instância defendeu ainda que “Por fim, uma outra nota se impõe, por forma a reforçar o presente entendimento. Conforme se depreende da leitura do caderno de encargos (ponto E) da matéria de facto assento), não só existia já uma predefinição, por parte da entidade pública, do número de eventos que haveriam de compor o festival (45), como também estavam já determinadas as atividades concretas relativamente a cada área artística, designadamente, música, poesia, teatro, cinema, entre outras”;
L. A conclusão retirada pelo douto Tribunal a quo a partir da identificação das iniciativas que, à luz do Caderno de Encargos, comporiam o festival, de que a programação deste último já estaria anunciada desde o início do procedimento não passa de uma extrapolação desprovida de qualquer senso jurídico e até factual, através da qual aquela instância afirma a existência de uma realidade geral a partir de uma constatação de cariz tão restrito que não permite tal aferição;
LI. Por outras palavras, o facto de os eventos que compõe a estrutura do festival já se encontrarem abstractamente definidos não implica, como nunca poderia implicar, que a programação do referido festival se possa dar como anunciada!;
LII. Para que assim fosse, seria necessário, como aliás se defendeu em sede de contestação, não apenas que os eventos estivessem já identificados, mas também que tivesse sido publicada a sua data de realização, identificados os artistas e performances que se iriam realizar, os concretos locais de atuação e respetivo horário;
LIII. Com efeito, a confusão em que laborou o Tribunal a quo entre o agendamento do festival e o anúncio público da sua efectiva programação foi apenas mais um dos vícios radicais da decisão de ora se recorre e que, a par da confusão (deliberada) entre “programação anunciada” e “festival agendado”, configura um dos pecados originais de que tal decisão fatalmente padece;
LIV. Numa palavra, andou manifestamente mal o douto Tribunal a quo ao, numa completa subversão dos conceitos, ter como equivalente ao anúncio da programação de um festival o mero anúncio da sua realização, bem como ao entender como equivalente a publicitação da programação com o seu agendamento, concluindo, com base nessa errónea perceção, que estaria cumprido, in casu, o segundo requisito plasmado no disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março;
LV. Ora, a pura e simples demissão do douto Tribunal a quo relativamente ao obrigatório labor de destrinça entre realidades tão distintas como aquelas que se acabam de expor – para, a partir dela, proceder ao processo lógico-dedutivo de a confrontar com a norma cuja aplicabilidade se encontrava em discussão nos presentes autos –, além de ter desvirtuado, de forma irremediável, o conteúdo material da decisão em causa, deixou bem clara a forma superficial e pouco atenta com que aquela instância decisória abordou a tarefa hermenêutica de aplicação do Direito aos factos que ela própria deu ou não como provados;
LVI. Naturalmente que não escapa à Recorrente a importância teleológica do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, relacionada com a concessão de um apoio extraordinário e uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização de espetáculos que não vieram a ter lugar por força do surgimento do cenário pandémico surgido pelo disseminar de casos de infeção pela doença COVID-19;
LVII. No mesmo sentido, não é despiciendo para a Recorrente que as circunstâncias que conduziram à aprovação do referido Decreto-Lei, bem como dos restantes diplomas legais aprovados na sua sequência, assumem contornos de especial gravidade, com repercussões sérias ao nível político, social e económico;
LVIII. De igual modo, não se olvida, e muito menos se renega, que a avaliação de tais realidades desempenha uma importância crucial no processo interpretativo de normas jurídicas em geral e, com maior intensidade, na exegese de diplomas legais aprovados em situações de especial gravidade, como é o caso do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março;
LIX. Sem prejuízo de tal reconhecimento, não pode a Recorrente deixar de afirmar uma evidência que, apesar de óbvia e ululante, parece ter passado completamente ao lado da análise realizada pelo douto Tribunal a quo: a interpretação teleológica não pode, de todo em todo, contrariar aquele que é o elemento literal da norma interpretada, devendo, pelo contrário, nele se basear, estabelecendo com este uma relação de complementaridade e não de antonímia;
LX. Se assim é, nunca o Tribunal a quo poderia passar diretamente para análise do elemento teleológico da norma ora em causa sem antes, como lhe competia, escalpelizar, de forma fundamentada e compreensível, o elemento literal do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março;
LXI. Não o tendo feito, o Tribunal de 1.ª instância desaguou numa decisão, com base numa interpretação teleológica precipitada e feita ao arrepio da precedência lógica dos vários fatores de interpretação, baseada num entendimento que terraplana, por completo, o elemento literal da norma interpretada, criando dúvidas relativamente à interpretação a conceder à expressão “nos casos de programação já anunciada” que apenas artificialmente se colocam no presente caso;
LXII. Sendo o elemento literal da norma prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março absoluta e meridionalmente claro ao exigir, para que o mesmo tenha aplicabilidade, que a programação do espetáculo em causa esteja anunciada, nunca o douto Tribunal a quo se poderia ver constituído numa situação de dúvida sobre se o requisito “programação já anunciada” era suscetível de ser dado como satisfeito numa realidade em que apenas a realização da edição do festival 2020 se encontrava agendada (sem, contudo, estar a sua programação anunciada);
LXIII. Com efeito, a única coisa que se exigia ao Tribunal a quo era que, perante a factualidade que ele próprio deu como provada, aquilatasse sobre se, no caso concreto, a programação das edições de 2020 e 2021 do Festival MIMO (...) já se encontrava, ou não, anunciada!;
LXIV. Assim sendo, caso viesse a constatar que tal programação se encontrava efectivamente anunciada, deveria o douto Tribunal a quo dar como verificado o segundo requisito e, uma vez que o primeiro requisito já se tinha dado como verificado, aplicar ao caso concreto o disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março;
LXV. Pelo contrário, caso entendesse que a programação das referidas edições do Festival MIMO (...) não se encontrava anunciada, não tinha o douto Tribunal de 1.ª instância outra solução que não fosse dar como inverificado o segundo requisito e, por conseguinte, não aplicável à situação concreta a disciplina imposta pelo nº 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março;
LXVI. Todavia, e de forma tão surpreendente como irregular, o douto Tribunal a quo proferiu uma decisão esdrúxula em que, ao invés de subsumir os factos que deu como provados (apenas o agendamento do festival e não o anúncio público da sua programação) ao Direito, optou por, de forma enviesada, fazer aproximar o Direito aos factos, através de interpretações extensivas de conceitos jurídicos de conteúdo preciso, sacrificando, no altar da teleologia e do circunstancialismo que envolveu a aprovação da norma, o elemento literal desta última;
LXVII. Em suma, bem sabendo que não tinha dado como provado qualquer facto relacionado com o anúncio da programação das edições de 2020 e de 2021 do Festival MIMO (...) (e que, nessa medida, não poderia dar como verificado o segundo requisito de aplicabilidade do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março tal como este se encontra cristalinamente previsto), o douto Tribunal a quo, certamente inspirado na rábula da montanha e de Maomé, acabou por moldar os conceitos jurídicos à medida daquilo que deu como provado, não hesitando em subverter, de forma irremediável, os cânones tradicionais da hermenêutica jurídica para dar como verificado o segundo requisito previsto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de Março;
LXVIII. Ao assim atuar, o douto Tribunal a quo mais não fez do que atribuir ao n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, um sentido que nele não encontra qualquer tipo de correspondência possível, violando, dessa forma, o regime previsto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, onde se afirma que “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”;
LXIX. Tal norma representa a consagração legal da função negativa do elemento literal das normas, ou seja, a suscetibilidade de, nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, “(...) afastar qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão)”;
LXX. Em bom rigor, para que se pudesse sustentar, de alguma forma, que, através de uma interpretação teleológica e conjuntural, se pode concluir como verificado o requisito do anúncio da programação a partir do mero anúncio da realização do Festival, tal equivalência teria que ter alguma correspondência no enunciado legal da norma, algo que, não acontecendo, deita por terra qualquer interpretação feita nesse sentido, como é o caso da que fez vencimento nos presentes autos!;
LXXI. Destarte, ainda que se reconhecesse que o elemento teleológico e que as circunstâncias deveras especiais em que a norma sob escrutínio foi aprovada possam demandar um esforço interpretativo qualificado, a verdade é que, no caso concreto, o Tribunal a quo foi longe de mais em tal labor interpretativo, cometendo a ousadia de fazer vencer uma interpretação que não tem qualquer correspondência com o elemento literal da referida norma, e que, nessa medida, viola, de forma ostensiva, o disposto no n.º 2 do artigo 9.º do CC;
LXXII. Ademais, ao interpretar a norma ora em causa nos termos em que o fez, o douto Tribunal a quo acabou por, em benefício do seu entendimento superficial e pouco cuidadoso, subverter, de forma grave e sem nada que o justifique, a presunção da competência do legislador, plasmada no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil (doravante CC), que apresenta a seguinte redação: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”;
LXXIII. Ora, tendo por base um legislador com as características que lhe são atribuídas pelo n.º 3 do artigo 9.º do CC, torna-se forçoso concluir que, caso fosse intenção deste último fazer aplicar o regime previsto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março às situações em que o festival se encontrasse unicamente agendado (sem que a respectiva programação estivesse anunciada), tal realidade constaria obrigatoriamente do elemento literal da norma!;
LXXIV. Visto por outro prisma, se no elemento literal da norma prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março se exige que a programação do evento esteja publicamente anunciada, foi essa a variável que o legislador pretendeu que o intérprete verificasse no caso concreto de molde a poder decidir pela (in)aplicabilidade da referida norma – e não, como pretendeu o Tribunal a quo¸ o mero agendamento do evento...;
LXXV. Em suma, ao ter dado como verificado o requisito do anúncio da programação com o mero anúncio da realização do festival, o douto Tribunal a quo não apenas adotou uma interpretação sem qualquer tipo de arrimo jurídico na letra da lei (violando, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 9.º do CC), como violou o preceituado no n.º 3 do artigo 9.º do CC, ao partir do princípio, de forma infundada e infundamentada, que o legislador, no presente caso, não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e que, nessa medida, a norma em causa estaria carente de uma interpretação teleológica que corrigisse o seu sentido;
LXXVI. Destarte, torna-se imperativo reverter a decisão constante do despacho saneador na medida em que os pressupostos jurídicos em que a mesma assenta, designadamente a verificação in casu do segundo requisito plasmado no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março com base numa interpretação teleológica e circunstancial da norma em causa, se encontram eivados da mais profunda e confrangedora ilegalidade;
LXXVII. A acrescer à interpretação teleológica e circunstancial realizada e rebatida nos termos do ponto anterior, o douto Tribunal a quo firmou ainda o seu juízo de aplicabilidade, ao caso concreto, do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, numa interpretação histórica da referida norma;
LXXVIII. Em breves palavras, o douto Tribunal a quo entendeu que o facto de o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, na sua versão originária, não prever qualquer regulação para as situações em que o contrato para promoção do evento cultural ainda não se encontrasse celebrado e que a circunstância de tal regulação ter passado a constar de tal diploma, por força das alterações introduzidas pela entrada em vigor da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, e ter sido aperfeiçoada pela entrada em vigor da Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, permitem corroborar a ideia de que o fito essencial prosseguido pelo legislador com a previsão de tal norma é fomentar a tomada de decisões de adjudicação nos referidos procedimentos e, nessa medida, promover o apoio económico e social aos agentes culturais cuja atividade passa pela promoção dos referidos eventos;
LXXIX. Tal raciocínio, explicitado em termos gerais e abstratos, não teria, no entendimento da Recorrente, qualquer tipo de vícios, não fora as consequências casuísticas que de tal afirmação foram ilegitimamente retiradas pelo douto Tribunal a quo;
LXXX. Desde logo, não se olvida que, com a entrada em vigor da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, que veio introduzir a redação do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, aplicável à data da prática de decisão de não adjudicação questionada nos presentes autos, se introduziu uma proteção adicional aos promotores culturais que ainda não haviam celebrado o contrato de promoção cultural com as entidades sujeitas ao referido Decreto-Lei;
LXXXI. Contudo, o que parece olvidar o Tribunal a quo no seu douto julgamento, é que tal proteção não foi concedida sem mais e de forma automática!;
LXXXII. Pelo contrário, para que tal proteção tivesse lugar (entenda-se, para que as entidades previstas no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de março, fossem obrigadas a praticar uma decisão de adjudicação) teriam que se verificar, cumulativamente, dois requisitos: (i) já ter sido praticada a decisão de contratar e enviado o convite para apresentação de propostas; e, cumulativamente, (ii) a programação do festival já estar anunciada!;
LXXXIII. Ora, estando tais requisitos plasmados no enunciado legal da norma, não se compreende como é que o douto Tribunal a quo tem a ousadia de, fazendo tábua rasa da verificação ou não dos requisitos previstos no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, fazer aplicar ao caso concreto tal norma com base, apenas e tão só, num suposto alargamento do seu âmbito de aplicação;
LXXXIV. A este respeito, convém recordar que, mesmo que se entenda a importância do alargamento do âmbito objetivo de aplicação deste diploma aos casos em que o contrato ainda não havia sido celebrado, tal alargamento não representa um “cheque em branco” do legislador para que a norma prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março se aplique sem necessidade de qualquer controlo prévio!;
LXXXV. Pelo contrário, e como é lógico, tal filosofia ampliadora tem que ser conjugada com a verificação casuística dos requisitos de que o legislador fez depender a proteção adicional introduzida pela entrada em vigor da Lei n.º 7/2020, de 10 de Abril;
LXXXVI. Ao esquecer (ou fazer por esquecer) esta última realidade de controlo, o Tribunal a quo reincidiu, desta feita com base numa interpretação histórica da norma em causa, nas mesmas ilegalidades que já havia perpetrado aquando da realização da interpretação teleológica e circunstancial da referida norma (violação, recorde-se, do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 9.º do CC);
LXXXVII. Todavia, a irregularidade jurídica da interpretação da norma à luz da evolução da sua redação não se esgota, de forma alguma, na violação que a mesma encerra do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 9.º do CC;
LXXXVIII. Pelo contrário, é digno da mais vincada censura que, no âmbito do seu labor apurativo da evolução da redação legal do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, o douto Tribunal a quo tenha feito uma análise completa da redação da referida norma que veio a ser introduzida pela entrada em vigor da Lei n.º 19/2020, de 29 de maio;
LXXXIX. Com efeito, e numa fase em que já era suposto estar ultrapassada a questão de saber se tal norma era ou não temporalmente aplicável ao caso concreto, o douto Tribunal a quo¸ ainda que afirmando a sua inaplicabilidade à situação em causa, analisa o regime introduzido por tal Lei, dela retirando conclusões indiretas para provar o seu ponto de que o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março foi sendo aprimorado no sentido de proteger cada vez mais os operadores culturais sem contrato;
XC. Destarte, e como é bom de ver, tal exercício argumentativo é completamente apartado de qualquer juízo de juridicidade porquanto, uma vez considerado diretamente inaplicável a uma determinada factualidade, o conteúdo normativo de uma Lei não pode, ainda que de forma indireta, ser aplicado na regulação dessa mesma factualidade;
XCI. De resto, igualmente importa notar que o elemento histórico de uma norma faz referência, como o próprio conceito interpretativo pressupõe, ao seu passado e às várias versões que fazem parte da sua história;
XCII. Pois bem, não se vislumbra como pôde o Tribunal a quo fazer uma interpretação histórica da norma ínsita no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março exclusivamente com base nas versões que o mencionado normativo veio a merecer após a sua aprovação;
XCIII. Por outras palavras, o Tribunal a quo fez uma interpretação histórica com base no futuro, algo que, como é bom de ver, representa uma contradição nos seus próprios termos...;
XCIV. Em suma, e face a tudo quanto acima se expendeu, também a interpretação histórica da norma plasmada no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, se encontra condenada a soçobrar, pelo que a decisão que com base em tal argumento foi proferida pelo Tribunal a quo deve ser revertida, no sentido de não se ter como obrigatória, no caso sub iudice, a prática de uma decisão de adjudicação à luz do disposto naquele normativo legal;
XCV. Levando em linha de conta toda a enumeração dos vícios cognitivos que conduziram o douto Tribunal a quo à conclusão de que seria aplicável, ao caso concreto, o disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de março, por verificação dos requisitos nele plasmados, tornou-se possível verificar que tal conclusão é completamente desprovida de sentido e que, nessa medida, não existia qualquer obrigação para o Recorrente de praticar uma decisão de adjudicação a favor da Recorrida e muito menos de cumprir as restantes obrigações que se encontram previstas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 11.º do mesmo diploma legal;
XCVI. Assim sendo, uma vez afirmada a inaplicabilidade de tal normativo especial, há que, nesse sentido, aquilatar sobre qual o regime geral aplicável às decisões de não adjudicação, previsto no artigo 79.º do CCP e, através desse exercício, demonstrar a sua suscetibilidade para justificar a decisão de não adjudicação praticada no presente caso;
XCVII. Ora, percorrido o rol de fundamentos que, na esteira do preceituado nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 79.º do CCP, podem servir de base a uma putativa decisão de não adjudicação, torna-se possível vislumbrar que o surgimento da pandemia provocada pelo novo vírus SARS-CoV-2 é idóneo, por princípio, a constituir uma circunstância superveniente com impacto nos pressupostos que serviram de base à decisão de contratar adotada pelo Réu, e, nessa medida, perfeitamente suscetível de fundamentar uma decisão de não adjudicação e consequente extinção do procedimento ora em causa, à luz do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP;
XCVIII. Assim sendo, partindo do texto legal da alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP, bem como do enquadramento doutrinário e jurisprudencial dedicado a tal matéria, ainda mais claro se torna perceber que a pandemia provocada pelo SARS-Cov2 é precisamente uma circunstância que, caso fosse conhecida pelo Recorrente à data da prolação da decisão de contratar, teria, com toda a certeza, feito reverter tal intenção contratual;
XCIX. Tal certeza advém não apenas da circunstância de a pandemia provocada pelo SARS-CoV2 preencher o conceito de circunstância superveniente com impacto suficientemente forte nos pressupostos da decisão de contratar, que permite a prática de uma decisão de não adjudicação com consequente extinção do procedimento, mas também do facto de a decisão de não adjudicação ter uma natureza vinculada, isto é, verificada a existência de uma causa de não adjudicação, a entidade adjudicante ter a obrigação jurídico-legal de praticar uma decisão de não adjudicação e, por consequência, extinguir o procedimento e revogar a decisão de contratar, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 80.º do CCP;
C. Por outras palavras, e concretizando, à luz do CCP, não estaria na disponibilidade do Recorrente, verificada a existência de uma causa de não adjudicação, nos termos que acima se descreveram e explicitaram, enveredar pela prática (ou não) da decisão de não adjudicação – estando aquele, pelo contrário, obrigado a praticar tal decisão com as consequências legais que daí advêm (extinção do procedimento e revogação da decisão de contratar);
CI. Torna-se possível concluir que, à luz estrita do regime legal vertido no CCP – único aplicável ao presente caso - impendia sobre o Recorrente a obrigação de praticar uma decisão de não adjudicação no âmbito do procedimento ora em causa, atendendo ao facto de a epidemia provocada pelo SARS-CoV2 ser uma circunstância superveniente com impacto tal nos pressupostos que conduziram à primitiva decisão de contratar que, uma vez constatada a sua existência, nada o Recorrente poderia fazer que não praticar uma decisão de não adjudicação e, nessa medida, extinguir o procedimento e revogar a decisão de contratar, nos termos da aplicação conjunta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e do n.º 1 do artigo 80.º do CCP;
CII. Destarte, ao ter praticado a referida decisão de não adjudicação, o Recorrente cumpriu, de forma impoluta e imaculada, os cânones de atuação que lhe são impostos pelos ditames da Contratação Pública, razão pela qual nunca a decisão de que ora se recorre deveria ter dado provimento ao petitório da ora Recorrida, sendo, nessa medida, urgente a sua reversão por este Colendo Tribunal Central Administrativo do Norte;
CIII. Resulta do disposto n.º 3 da Cláusula 1.ª do Caderno de Encargos, o procedimento ora em causa teve em vista a contratação “(...) das seguintes prestações infungíveis de: «Aquisição de Serviços de direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação de programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO Festival (...) 2020 e 2021 (realce nosso);
CIV. De igual modo, também do n.º 1 da Cláusula 1.ª do Caderno de Encargos, resulta que o procedimento em causa teve como força motriz a vontade do Município Recorrente em, à semelhança dos anos anteriores, organizar, nos anos 2020 e 2021, o evento Festival MIMO (...);
CV. Outrossim, e por apelo às normas vindas de aludir, torna-se possível concluir que o procedimento ora em causa foi promovido, numa fase em que a realidade pandémica ainda era por todos desconhecida, com o objetivo de se proceder à celebração de um contrato para organização de duas edições do Festival MIMO (...), a realizar no ano de 2020 e 2021;
CVI. Ora, tendo por base tal unicidade procedimental, e uma vez que tal circunstância resultava do disposto nos supra mencionados n.º 1 e 3 da Cláusula 1.ª do Caderno de Encargos, andou mal a decisão recorrida ao prescrever, para as diferentes edições do Festival MIMO (...), uma solução de sentido único;
CVII. Isto porque, como o douto Tribunal a quo bem sabe (ou, pelo menos, não deveria ignorar), o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, tem a sua aplicabilidade no tempo bem definida, não se aplicando, sem mais, a todos os festivais cuja realização se encontrava prevista para o período correspondente ao estado pandémico originado pela COVID-19;
CVIII. Começando pelo preâmbulo do referido diploma legal, nele é possível identificar a seguinte prescrição: “(...) o presente decreto-lei aplica-se a todos os espetáculos que não podem ser realizados no lugar, dia ou hora agendados, entre os dias 29 de fevereiro de 2020 até ao 90.º dia útil seguinte ao fim do estado de emergência”;
CVIX. Normativizando tal realidade, dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março que “O presente decreto-lei é aplicável ao reagendamento ou cancelamento de espetáculos não realizados entre os dias 28 de fevereiro de 2020 e até 90 dias úteis após o término do estado de emergência”;
CX. Ora, aplicando tal normativo ao circunstancialismo concreto, nomeadamente à luz da sucessão de estados de exceção que foram sendo decretados, torna-se possível constatar que o Decreto-Lei ora em escrutínio apenas é aplicável ao reagendamento de festivais que não tenham sido realizados entre os dias 28 de fevereiro de 2020 e 11 de novembro de 2020, - isto é, o 90.º dia útil após o fim do estado de emergência (ocorrido a 02.05.2020), ou seja, apenas seria aplicável à edição de 2020 do Festival MIMO (...);
CXI. Aqui chegados, e ainda que o procedimento de contratação ora em causa tenha como fito a celebração de um contrato uno para organização do festival em causa nos anos de 2020 e 2021, se o douto Tribunal a quo entendia como aplicável ao presente procedimento o regime previsto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, algo que por mera hipótese académica se concebe, teria que necessariamente ter concluído que tal aplicabilidade apenas poderia ter como referência a edição de 2020 do festival e, nessa medida, decidir pela inaplicabilidade do referido regime legal à edição de 2021;
CXII. Isto porque, como o Tribunal a quo deveria saber, mas pelos vistos ignora, a verificação dos requisitos previstos no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26 de março, de nada vale se desacompanhada do cumprimento do âmbito de aplicação gizado pelo n.º 1 do artigo 2 do referido Decreto-Lei;
CXIII. No fundo, aquilo que se exigia ao douto Tribunal a quo era que, mesmo entendendo aplicável ao referido procedimento a obrigatoriedade de emissão de uma decisão de adjudicação, realizasse a aplicação parcial do disposto no Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março – algo que não poderia ser realizada pelo Município Recorrente, em sede de decisão de não adjudicação, por inexistência de norma legal que o habilitasse;
CXIV. Nessa circunstância, o Tribunal a quo deveria, em sede de fixação das consequências resultantes da aplicabilidade do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, distinguir entre aquelas duas edições, fazendo impender sobre o Município Recorrente, apenas e tão só as obrigações que para si resultam da aplicação daquela norma à edição de 2020 do festival ora em causa;
CXV. Ao invés de realizar tal labor, o douto Tribunal a quo optou por, sem qualquer preocupação de destrinça, decidir pela obrigatoriedade de emissão de uma decisão de adjudicação do presente procedimento, à luz do preceituado no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, fazendo aplicar o disposto neste diploma legal a uma edição do festival MIMO (...) que iria ocorrer fora do intervalo de datas em que o mesmo é considerado aplicável à luz do n.º 1 do seu artigo 2.º;
CXVI. Ora, como é bom de ver, tal decisão, pelo menos no que à edição de 2021 do Festival MIMO (...) diz respeito, encontra-se eivada de uma profunda e clamorosa ilegalidade, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, ilegalidade que expressamente se alega;
CXVII. Sem prejuízo de tudo quanto acima se alegou relativamente à inaplicabilidade do regime legal previsto no Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, e mesmo que se entenda que o referido Decreto é aplicável à edição de 2021 do Festival MIMO (...), algo que por mera hipótese académica se concebe, nunca em relação a esta última edição seria aplicável a obrigatoriedade de emissão de uma decisão de adjudicação prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, na medida em que, nem adotando a tese do douto Tribunal a quo, se encontra verificado, in casu, o segundo requisito de aplicabilidade do referido normativo.
CXVIII. Isto porque, mesmo entendendo que o anúncio do festival equivale ao anúncio da sua programação, como é o entendimento do Tribunal a quo, a verdade é que este último apenas dá como provado o agendamento da edição de 2020 do Festival MIMO (...), nos termos do ponto N) dos factos dados como provados em sede de saneador sentença;
CXIX. Tal julgamento da matéria de facto era, aliás, o único que se impunha, na medida em que não consta dos autos um documento equivalente ao Doc. 20 junto com a petição inicial relativamente à edição de 2021, nem qualquer outro elemento probatório que demonstre que esta última edição já se encontrava agendada (quanto mais a sua programação anunciada!).
CXX. Ora, não existindo prova de que a edição de 2021 do Festival MIMO (...) se encontrava anunciada, e não sendo o anúncio da edição de 2020 uma realidade transponível para a edição subsequente, não é para a Recorrente inteligível como é que o Tribunal a quo pode ter dado como verificados, em relação à edição de 2021 do Festival MIMO (...), os requisitos de que o n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.10I/2020, de 26 de março faz depender a obrigatoriedade de prática de uma decisão de adjudicação do procedimento pendente.
CXXII. Ao decidir em tal sentido, o Tribunal a quo apenas demonstrou, mais uma vez, a tibieza da sua convicção no que diz respeito à aplicabilidade do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, ao caso concreto, uma vez que, aquando da análise da problemática associada à edição de 2021 do Festival MIMO (...), não foi minimamente capaz de adotar um entendimento coerente com a tese por si construída em sede do saneador sentença de que ora se recorre.
CXXII. Igualmente importa atentar, em abono da tese acima exposta, que a própria componente condenatória da decisão em crise demonstra a absoluta incompreensão, pelo Tribunal a quo, do regime previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março.
CXXIII. Veja-se que, nos termos do ponto c) da decisão em crise, condenou o julgador a quo o aqui Recorrrente no pagamento à Autora, aqui Recorrida, do valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa legal em vigor e de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.
CXXIV. Pois bem, tendo presente que o presente contrato previa a realização de duas edições do festival MIMO (...) (o que pressuponha uma distribuição proporcional do respectivo preço contratual), veja-se que o pagamento imediato de 50% dos montantes contratualizados, conforme determinou o Tribunal a quo, mais não significa do que remunerar a Recorrida pela totalidade da edição do festival agendada para o ano de 2020!
CXXV. Sendo que, ainda que assim não se entendesse, uma outra conclusão se afigura de elementar perceção: o pagamento de 50% do valor correspondente à edição agendada para o ano de 2021 poderia ocorrer, nos termos previstos nesse mesmo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, até à data em que deveria originalmente ocorrer essa mesma edição.
CXXVI. Ora, não se alcança como logrou o Tribunal a quo determinada, na decisão recorrida, o pagamento imediato do mencionado valor de € 447.154,47, à luz da própria construção do vínculo contratual que, de forma algo negligente, se escusou de apreciar.
CXXVII. Face a tudo quanto acima exaustivamente se expendeu, fica bem patente o desacerto e a infelicidade do conteúdo decisório do saneador sentença de que ora se recorre, sendo imperioso, em prol da descoberta da verdade material dos factos e da justa composição do litígio, que a referida decisão venha a ser revertida pelo Colendo Tribunal Central Administrativo do Norte, no sentido de não ser aplicável ao caso concreto o disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 1-I/2020, de 26 de março, e, por conseguinte, não existir qualquer obrigatoriedade de prática de uma decisão de adjudicação no âmbito do procedimento ora em causa, mas sim da emissão de uma decisão de não adjudicação à luz da alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP;
CXXVIII. Caso assim não se entenda, e se tenha tal norma como aplicável, nunca, por nunca, as obrigações impostas pela mesma podem abranger a edição de 2021 do Festival MIMO (...) na medida em que não só tal edição não se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, como também não ficou demonstrado que tal edição estivesse já anunciada, nos termos exigidos pelo douto Tribunal a quo.
CXXIX. O princípio da autonomia local encontra consagração constitucional, entre nós, no n.º 1 do artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), nos seguintes termos: “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública”;
CXXX. Contudo, não obstante o princípio da autonomia das autarquias locais se encontrar previsto no supra citado n.º 1 do artigo 6.º da CRP, a verdade é que a sua operacionalização é garantida pelo disposto no artigo 235.º e seguintes da CRP;
CXXXI. Nesta senda, dispõe o n.º 1 do artigo 235.º da CRP que “A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”, enquanto o n.º 2 do mesmo preceito constitucional estipula que “As autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”;
CXXXII. O conteúdo do artigo vindo de citar, desempenha, assim, a par do n.º 1 do artigo 6.º da CRP, um papel absolutamente curial na cristalização da autonomia local como um princípio constitucional fundamental para a organização do Estado de Direito Democrático;
CXXXIII. Terminado este introito, relativo às origens constitucionais de elevada monta do princípio da autonomia local, haverá que, no presente momento, debruçar-nos sobre as atribuições legalmente atribuídas às autarquias locais para que estas possam encetar a prossecução dos interesses próprios das suas populações;
CXXXIV. Com efeito, as referidas atribuições encontram-se plasmadas no artigo 2.º do Anexo I do Regime Jurídico das Autarquias Locais (aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro), bem como, no n.º 2 do artigo 7.º e do n.º 2 do artigo 23.º do mesmo diploma legal;
CXXXV. Destarte, e de uma forma juridicamente ampla, dispõe o referido artigo 2.º do Anexo I à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro que “Constituem atribuições das autarquias locais a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, designadamente nos domínios referidos no n.º 2 do artigo 7.º e no n.º 2 do artigo 23.º da presente lei.”;
CXXXVI. De uma forma mais concreta para os municípios, como é o caso do aqui Recorrente, prescreve o artigo 23.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro que “1. Constituem atribuições do município a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com as freguesias; 2. Os municípios dispõem de atribuições, designadamente, nos seguintes domínios: a) Equipamento rural e urbano; b) Energia; c) Transportes e comunicações; d) Educação, ensino e formação profissional; e) Património, cultura e ciência, f) Tempos livres e desporto; g) Saúde; h) Ação social; i) Habitação; j) Proteção Civil; k) Ambiente e saneamento básico; l) Defesa do consumidor; m) Promoção do desenvolvimento; n) Ordenamento do território e urbanismo; o) Polícia municipal; p) Cooperação externa.”;
CXXXVII. Ora, da concatenação dos mencionados normativos, associado ao conteúdo do artigo 45.º da mesma Lei, resulta um princípio da especialidade quanto às atribuições que devem ser prosseguidas pelas autarquias locais, através das competências que lhe são atribuídas, desde que devidamente espartilhado pela pertinência de um determinado ato para a prossecução do interesse público;
CXXXVIII. Concretizando, as autarquias locais têm como atribuições não apenas aquelas que se encontram especificamente previstas na Lei, mas também todas aquelas que lhe permitam prosseguir o seu fim de promoção e salvaguarda dos interesses próprios da respetiva população;
CXXXIX. Esta indexação das atribuições das autarquias locais aos interesses locais, embora não precluda a necessidade de compatibilização de tais interesses com outros de natureza nacional, constitui a pedra de toque da autonomia local prevista, entre outros diplomas, na Carta Europeia da Autonomia Local e na CRP;
CXL. Assim, sem prejuízo da necessária compatibilização com interesses de alcance nacional, as autarquias locais apenas se encontram em condições de desempenhar as suas atribuições, a bem da prossecução dos interesses da sua população, se lhe forem atribuídos um conjunto de poderes autárquicos que assegurem a sua liberdade, sem qualquer condicionamento, face ao Estado;
CXLI. É, assim, precisamente por esse motivo que a própria CRP consagra às autarquias locais uma série de autonomias, a saber: i) autonomia de organização (cfr. n.º 1 do artigo 237.º da CRP); ii) autonomia orçamental (n.º 2 do artigo 237.º da CRP); iii) a autonomia patrimonial e financeira (n.ºs 1 e 3 do artigo 238.º da CRP); iv) a autonomia fiscal (n.º 4 do artigo 238.º e artigo 254.º da CRP); v) a autonomia referendária (n.º 1 do artigo 240.º); vi) a autonomia regulamentar (artigo 241.º da CRP); vii) a autonomia em matéria de pessoal (artigo 243.º da CRP);
CXLII. Naturalmente que não se olvida que a autonomia local não tem um valor absoluto, sendo suscetível a sua constrição em determinadas situações, embora tal operação esteja dependente da verificação cumulativa de três diferentes requisitos cumulativos: i) a limitação decorrer da lei; ii) quando o interesse público nacional ou supralocal o justificar; iii) sempre com a ressalva de um núcleo essencial da autonomia local;
CXLIII. Ora, foi precisamente nesta relação entre os interesses locais e os interesses de cariz nacional e no impacto que tal confronto tem na definição dos contornos da autonomia local que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento, não ordenando a desaplicação, ao caso concreto, da norma prevista no n.º 6 da Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, por violação do princípio da autonomia local ínsito no n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 235.º da CRP;
CXLIV. Atente-se, desde logo, no seguinte excerto decisório: “Analisado o presente caso, bem como as razões que já abundantemente se expuseram, dúvidas não existem que atendeu o legislador, aquando da adoção das soluções ínsitas nos n.ºs 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, a interesses do espectro nacional, em detrimento dos interesses locais, mas sem que todavia fosse invadida a esfera absolutamente reservada à comunidade local”;
CXLV. Com efeito, analisado o referido excerto, não é inteligível (até porque o douto Tribunal a quo se demitiu de o explicar) como é que o legislador, impondo à autarquias locais a obrigatoriedade de prática de um ato administrativo com sentido pré-definido e ao pagamento de um montante correspondente a 50% do preço contratual, não está a invadir a esfera absolutamente reservada à comunidade local!;
CXLVI. Em bom rigor, permanece no mistério dos Deuses como é que a condenação do Recorrente no pagamento à Autora do montante correspondente a € 447.154,47 (quatrocentos e quarenta e sete mil, cento e cinquenta e quatro euros e quarenta e sete cêntimos), valor de considerável monta, resultante da aplicação casuística do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março,
CXLVII. Pode ter sido considerado pelo Tribunal a quo como sendo uma realidade que respeita a autonomia orçamental que a própria CRP reconhece às autarquias locais, como é o caso do ora Recorrente e, nessa medida, incluído no âmbito regulatório do princípio da autonomia local!;
CXLVIII. Mas mais, continua a não ser percetível como é que o douto Tribunal a quo não foi capaz de descortinar que a obrigação de praticar uma decisão de adjudicação e de pagamento de 50% do preço contratual, resultante da aplicação ao caso concreto do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, não é minimamente capaz de passar o crivo da proporcionalidade, crivo esse que o douto Tribunal a quo expressamente identifica quando cita o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 23.11.2016, no âmbito do processo n.º 0780/14;
CXLIX. Ora, tendo em conta que as obrigações que resultam do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, têm um impacto desmedido não apenas na capacidade de auto-determinação das autarquias locais, mas também, e principalmente, na sua autonomia orçamental, não se vislumbra como pode tal impacto ser considerado como proporcional;
CL. Tal proporcionalidade seria garantida se, porventura, a vertente orçamental fosse suportada pela Administração Central, através, por exemplo, da criação de uma linha de crédito, constante do Orçamento do Estado, que permitisse ao Estado cumprir o desiderato que prosseguia com a aprovação do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março: apoiar os agentes culturais afetados pela pandemia provocada pela COVID-19;
CLI. Não o sendo, e recaindo todas as obrigações tendentes ao apoio aos agentes culturais sobre as autarquias locais, não se entende como é que o douto Tribunal a quo deixou passar em claro o facto de a norma cuja aplicabilidade se encontra em discussão não passar o teste de proporcionalidade que o próprio Tribunal a quo optou por, remissivamente, trazer a liça;
CLII. Contudo, o desvalor jurídico do saneador sentença de que ora se recorre não se esgota na violação do já referido valor da proporcionalidade das consequências que para o Recorrente resultam da aplicabilidade, ao caso concreto, do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de março;
CLIII. Pelo contrário, não concorre para o acerto da referida decisão afirmar que “(...) a referida solução legal é aplicável a todas as entidades públicas, que não apenas à autarquias locais”;
CLIV. Em boa verdade, tal afirmação é absolutamente inopinada, uma vez que, em relação às restantes entidades públicas que se encontram sujeitas à disciplina do artigo 11.º do Decreto n.º 10-I/2020, de 26 de março, não se impõem os mesmos valores de autonomia que se colocam relativamente às autarquias locais, nas quais o Recorrente necessariamente se inclui e que, até ao momento, e de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 236.º do CRP, são apenas os municípios, as freguesias e as regiões administrativas;
CLV. Nessa medida, o exercício comparativo entre essas duas realidades não é apenas desprovido de qualquer sentido útil para a boa decisão da causa como é, inclusivamente, demonstrativo de um desnorte total na avaliação da constitucionalidade da norma ora em causa à luz do princípio da autonomia local e dos seus efetivos contornos jurídico constitucionais;
CLVI. Por último, o douto saneador sentença volta a laborar em manifesto erro quando afirma que desaplicar a norma prevista no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março seria subverter “(...) aquilo que são as traves mestras do nosso ordenamento jurídico-constitucional, subvertendo aquilo que são as bases da soberania nacional e do Estado de direito, mercê do condicionamento ilegítimo que uma tal tese implica no e para o processo legislativo enquanto forma por excelência de prossecução do interesse nacional em cada momento, bem como para aquilo que são os poderes e as competências constitucionais dos órgãos de soberania”;
CLVII. Tal afirmação não corresponde, de todo em todo, à realidade alegada pelo Recorrente em sede de contestação, uma vez que, do seu conteúdo, não é retirável, de forma alguma, uma tentativa de condicionamento, por parte do Recorrente, do processo legislativo e da sua vinculação à prossecução do interesse público nem das funções e competências dos órgãos de soberania;
CLVIII. Pelo contrário, aquilo que o Recorrente sempre defendeu nos presentes autos é que, no exercício dos seus poderes de legislador e dentro daquelas que são as suas competências enquanto órgão de soberania, o Governo fosse capaz de, no âmbito da sua função legislativa, produzir normativos que respeitassem o princípio da autonomia local, constitucionalmente previsto;
CLIX. Tal exigência não corresponde, de forma alguma, a qualquer tentativa de subversão do papel dos órgãos de soberania, nem das autarquias locais, correspondendo, pelo contrário, a uma demanda pelo respeito pelo CRP e pelos seus princípios fundamentais, posição da qual o Recorrente se recusa a abdicar;
CLX. Assim, e aqui chegados, no caso concreto das normas sob escrutínio, as mesmas violam, de forma despudorada, a reserva mínima da autonomia local, manietando as autarquias locais, entre outras entidades, do poder de dispor dos seus serviços e da prerrogativa de exercer, em seu nome e por sua responsabilidade, um conjunto de tarefas adequadas à satisfação dos interesses próprios das respetivas populações, fim último das autarquias locais;
CLXI. Por outras palavras, ao fazer aprovar as normas ora em causa, o legislador acaba por dispor do orçamento das autarquias locais e da sua autonomia contratual, impondo a estas entidades a obrigação de alocar uma parte não negligenciável das receitas que compõem o referido orçamento ao pagamento de prestações contratuais não desejadas pelos Municípios, com a agravante de tais prestações nem sequer serem suscetíveis de execução;
CLXII. Nessa medida, e por tudo quanto acima se expendeu, os n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de imporem às autarquias locais o dever de conclusão de procedimentos pré-contratuais e correspetiva obrigação de pagamento de valores correspondentes a prestações não executadas, não podem se não ser considerados como materialmente inconstitucionais, por violação do núcleo essencial da autonomia local, prevista no n.º 1 do artigo 6.º, n.º 2 do artigo 235.º e n.ºs 1 a 3 do artigo 238.º da CRP;
CLXIII. Com efeito, não obstante o Estado de Emergência implicar a aprovação de uma legalidade que contraria aquela que se encontrava vigente à data da sua implementação, a verdade é que tal estado excecional não tem a virtualidade de dispensar a aplicação da Constituição;
CLXIV. Tanto assim é que a própria CRP é clara, através do disposto no n.º 7 e 8 do artigo 19.º, na definição dos contornos em que a declaração do Estado de Emergência pode legitimar a alteração da ordem legal e constitucional que o antecedia;
CLXV. Tendo por base tal normativo, afigura-se de elementar perceção que a declaração do Estado de Emergência apenas permite aos órgãos de soberania praticar atos -materiais e jurídicos- adequados, necessários e proporcionais a esse restabelecimento, nos termos previstos na CRP e na Lei;
CLXVI. Devidamente gizados os contornos das atuações legitimadas pela declaração do Estado de Emergência, dúvidas não podem restar que os atos materiais praticados durante o estado excecional vigente têm necessariamente que ser avaliados à luz da CRP, quanto mais não seja para verificar se os mesmos cumprem o regime previsto no artigo 19.º da CRP;
CLXVII. Como tal, não podem obter vencimento quaisquer argumentos ou considerações que venham a ser levantadas quanto à insusceptibilidade de o regime previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, poder ser analisado à luz da CRP e de a ele não poder ser aposto qualquer juízo de inconstitucionalidade;
CLXVIII. Em suma, ainda que se entendessem aplicáveis ao caso sub judice as normas ínsitas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei 10-I/2020, de 26 de março – o que não se concede, mas se aventa por mero dever de ofício –, sempre seriam tais normativos, quando interpretados no sentido de compelir o Réu aos procedimentos e atos ai previstos, materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da autonomia local;
CLXIX. Tampouco se alvitre que as normas ínsitas no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, estão conformes à nossa Grundnorm por terem sido aprovadas em pleno estado de emergência constitucional;
CLXX. Tendo em vista a explicitação da ratio legis que presidiu à aprovação do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, do preâmbulo do referido diploma legal resulta a seguinte formulação: “No dia 18 de março de 2020, foi decretado o estado de emergência em Portugal, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, tendo o Governo aprovado o Decreto-Lei n.º 2-A/2020, de 20 de março, para a sua execução.(...) Neste contexto, impõe-se a adoção de um regime de caráter excecional, que confira uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização de espetáculos não realizados em virtude da pandemia. Por outro lado, alguns espetáculos carecem de preparação, ensaios, montagens e outros atos técnicos que não podem ser realizados no período em que vivemos, impossibilitando a realização dos mesmos ainda que agendados para uma data posterior ao fim do estado de emergência”;
CLXXI. Face ao conteúdo preambular vindo de citar, torna-se possível constatar a relação umbilical entre o regime legal previsto no Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março e o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março;
CLXXII. O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março prescreve no n.º 3 do seu artigo 5.º que “Em caso algum pode ser posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade territorial do Estado”;
CLXXIII. O primeiro daqueles princípios encontra-se, também ele plasmado no n.º 1 do artigo 6.º da CRP que apresenta a seguinte redação: “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa democrática da administração pública”;
CLXXIV. Tal norma tem, assim, um conteúdo compósito uma vez que, não apenas afirma o princípio da unidade do Estado, como também faz referência a outros princípios com ele diretamente conexionados, a saber, o princípio da autonomia insular, da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa democrática da administração pública;
CLXXV. Assim sendo, verificando o papel que o princípio da autonomia local tem na definição da unicidade do Estado, torna-se possível concluir que a decisão de aplicação, ao caso concreto, do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, não é sequer admissível à luz do estado de emergência decretado através do Decreto Presidencial n.º 14-A/2020, de 18 de Março;
CLXXVI. Com efeito, ainda que se pudesse entender que o disposto naquela norma não é inconstitucional por força do facto de ter sido aprovada durante um estado de exceção constitucional, hipótese que por mera hipótese académica se alvitra, também essa conclusão se encontraria condenada a soçobrar, uma vez que a mesma norma sempre violaria os termos em que tal estado foi decretado;
CLXXVII. Designadamente porque, violando o princípio da autonomia local e, por conseguinte, o princípio do Estado unitário, a referida norma está a infringir o disposto no n.º 3 do artigo 5.º do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 de 18 de março, preceito que proíbe que as medidas adotadas durante a vigência do estado de emergência desrespeitem a referida unitariedade do Estado;
CLXXVIII. Numa palavra, a violação, por parte do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, do disposto no Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março afasta qualquer hipótese de tal violação poder ser caucionada pela vigência do Estado de Emergência, conduzindo o intérprete à conclusão a que sempre se chegaria se se limitasse a realizar o cotejo das normas previstas naquele Decreto-Lei com a CRP: os n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de imporem às autarquias locais o dever de conclusão de procedimentos pré-contratuais e correspetiva obrigação de pagamento de valores correspondentes a prestações não executadas, são materialmente inconstitucionais, por violação do núcleo essencial da autonomia local, prevista no n.º 1 do artigo 6.º, n.º 2 do artigo 235.º e n.ºs 1 a 3 do artigo 238.º da CRP;
CLXXIX. Inconstitucionalidade essa que expressamente se alega para todos os devidos e legais efeitos.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência:
a. Ser julgada procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Recorrida, com as devidas consequências legais;
Subsidiariamente,
b. Ser a presente ação julgada totalmente improcedente, por não provada, com as devidas consequências legais;
Subsidiariamente,
c. Serem as normas ínsitas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de compelir o Réu aos procedimentos e atos aí previstos, julgadas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da autonomia local, ínsito no n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 235.º da CRP.»

1.7. A autora contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

«A. O objeto de um recurso jurisdicional é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, conforme o disposto nos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA, 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do CPC ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.
B. O Recorrente nas suas conclusões não cumpre, o formalismo previsto no artº 146 nº 4 do CPTA, no sentido que as conclusões têm que ser necessariamente uma síntese da explanação e ao invés de elaborar conclusões, opta por transcrever, diga-se com a rara exceção das citações doutrinárias, toda a explanação nas conclusões e, por tal facto, deixa de ser possível à Recorrida aferir qual, ou quais, os concretos pontos que este considera incorretamente julgados.
C. O alcance de 178 conclusões, ao longo de 47 páginas, em que se reproduz quase ipsis verbis a explanação recursiva, torna as mesmas obscuras e de difícil aferição dos o que, nos termos do disposto no nº 4 do artº 146 do CPTA, deverá ser objeto de convite ao aperfeiçoamento, o que se peticiona.
D. O não cumprimento por parte do Recorrente do direito de audiência prévia, nem da justificação pela sua ausência no ato impugnado, previsto nos artigos 121º e 122º do CPA, foi o corolário da ânsia da prática do acto administrativo de não adjudicação no dia 29 de maio de 2020, já após a publicação da Lei 19/2020 de 29 de maio, em data anterior a 30 de maio, data da entrada em vigor da mesma, na tentativa ainda que frustrada, tendo pois plena consciência do alcance interpretativo do disposto na versão introduzida pelo Dec. Lei 7/2020 de 10 de abril.
E. As normas ínsitas nos nºs 5 e 6 do artº 11 do Decreto Lei nº 10- I/2020 de 26 de Março, respeitam a Lei Fundamental, sendo materialmente constitucionais
F. O legislador no âmbito de uma situação muito especial- Pandemia Covid 19 causada pelo SarsCov-2 e dentro dos limites do seu poder legislativo, apenas diminuiu alguma liberdade decisória da Administração local, sem contudo violar o princípio constitucional da separação de poderes
G. Não existe qualquer violação, pelas normas referidas em E. do princípio constitucional do interesse público, na medida que a definição desse interesse cabe ao legislador e não à Administração, o que no caso do Dec. Lei 10-I/2020 de 26 de Março, vem defender e garantir a sobrevivência de uma classe, que foi particularmente atingida pelas consequências da pandemia do COVID-19, pela impossibilidade legal de prosseguir e realizar a sua atividade, provavelmente sendo também aquela classe que mais tarde verá regularizada essa mesma atividade.
H. Os órgãos de soberania nacional, como órgãos defensores do estado de direito foram, e estão a ser, especialmente chamados a, e em nome do desígnio nacional de combate à pandemia COVID- 19, a suprir direitos e a impor obrigações em nome dessa mesma soberania e do interesse publico nacional, pelo que em momento algum o princípio da autonomia local está a ser violado pelas normas referidas em E., face à defesa dos interesses nacionais em questão, devendo outrossim a Administração local respeitar e fazer respeitar a legislação especial protecionista publicada por razões de excecionalidade.
I. Sabidamente é possível ao legislador restringir direitos liberdade e garantias, no âmbito de uma situação pandémica como aquela que vivemos, respeitados que estão também os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da proteção da confiança, no Dec. Lei 10-I/2020 de 26 de Março, que objetivamente se traduz numa atenuação dos prejuízos sofridos, promovendo-se desta forma a retoma da atividade económica dos agentes culturais, aliás as normas insertas naquele preceito legal têm sido de aplicação generalizada e transversal por todas as entidades públicas.
J. Optando o Recorrente por aplicar legislação normal como se os tempos pandémicos vividos se tratassem de tempos normais, ao invés de aplicar a legislação excecional de combate às consequências dessa mesma situação, quiçá está a praticar atos no sentido até de fraude à lei, a qual na definição do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2009, proferido no processo nº 115/09.0TBPTL.S1, disponível em www.dgsi.pt
K. A Recorrente é parte legítima porquanto é inequivocamente parte na relação material controvertida, de acordo com o estipulado no artº 9º nº 1 do CPTA, donde resulta face à relação material controvertida com o Recorrente, tem a Recorrida legitimidade activa, na acepção estritamente adjectiva, porquanto alega ser parte dessa mesma relação.
L. A Recorrida após convite a si dirigido para o efeito no âmbito do procedimento pré-contratual lançado pelo Réu, e com vista à organização/produção do festival MIMO nos anos de 2020 e 2021, tendo já sido proposto pelo Exmo. Senhor Presidente da Câmara em 09.03.2020 ao órgão decisor a adjudicação à Recorrida do contrato e em 17.03.2020, foi deliberado pela Recorrente a aprovação da minuta do contrato, em que é interveniente a Recorrida (cf. fls 73 e seguintes do PA), pelo que o acto administrativo de não adjudicação colide com os interesses e direitos legalmente protegidos, causando prejuízos na sua esfera jurídica de forma directa sendo a Recorrida não só a destinatária do acto impugnado, como seria com esta que o Recorrente celebraria o contrato público em discussão.
M. A Recorrida está devidamente munida de poderes de representação da Principal, de acordo com a cláusula 5ª do contrato de agência junto aos autos e tem ainda poderes para proceder à cobrança de créditos decorrentes dos contratos celebrados no uso de tais poderes representativos (cláusula 8ª do referido contrato), sendo também por esta via parte legitima activa
N. A 09.04.2020 o Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de (...) emitiu declaração pública, por via da rede social facebook (https://www.facebook.com/municipiode(...)/videos/222189265561350/) declarando que o Festival MIMO 2020 havia sido cancelado, mas em 29.05.2020 pelas 19h 52m o Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de (...) proferiu despacho a determinar a não adjudicação à Recorrente do contrato de aquisição de serviços e realização do festival MIMO 2020 e 2021
O. O acto de não adjudicação de 29.05.2020 impugnado está ferido do vício de violação de lei, porquanto, se encontram preenchidos os pressupostos descritos no nº 6 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/06 (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 7/2020, de 10 de Abril), e estava vedado ao Recorrente lançar mão do previsto no artigo 79º do CCP, de acordo com a disposição prevista no seu nº 6, em que o legislador pretendeu afastar a possibilidade da adoção de uma decisão de não adjudicação.
P. O anúncio da programação não tem, e no que à aplicação deste normativo respeita, de ser um anúncio publico, bastará que à adjudicante tenha sido já informada dessa mesma programação, o que de resto aconteceu.
Q. De acordo com o artº 9º do Código Civil, a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, deve ter em conta a unidade do sistema jurídico e AS CIRCUNSTANCIAS (históricas) EM QUE A LEI FOI ELABORADA E AS CONDIÇOES ESPECIFICAS DO TEMPO EM QUE É APLICADA, nota esta vincadamente atualista, face às condições excecionais em que a norma foi publicada e sucessivamente alterada.
R. A douta sentença condena o Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de 447.154,47 €, acrescido de IVA à taxa em vigor e de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, de acordo com o previsto no nº 5 do artigo 11º do referido normativo. Como melhor refere aquele dispositivo legal, o pagamento deve ocorrer o mais tardar, na data que se encontrava inicialmente agendado o espetáculo, como é bom de ver, a condenação ao pagamento imediato, tem leitura legal, pois não é a mesma incompatível com o que a lei dispõe, pois o pagamento pode ocorrer de imediato, o que não pode é ultrapassar o limite imposto pelo dispositivo legal
S. O Festival MIMO (...), trata-se de um Festival de um enorme impacto junto da cidade de (...), que transpôs para esta todo seu prestígio, fruto da sua existência desde ano de 2004, e que se traduziu na realização de 51 edições do Festival, sendo 4 em Portugal, 1 na Escócia e 46 no Brasil, com 517 concertos realizados,: 370 filmes exibidos,: 397 aulas de Programa Educativo, tendo reunido em (...) apenas no ano de 2019 80 mil pessoas, servindo estes considerandos que os Venerandos Juízes do Tribunal Central Administrativo Norte, possam aferir que o Festival MIMO (...) 2020 e 2021, não se trata de um simples e singelo “concerto” cuja não adjudicação prejudicaria apenas um artista e quando muito os seus mais diretos colaboradores, NÃO O Festival MIMO 2020 e 2021, e conforme melhor consta do Caderno de Encargos junto aos autos, é um festival de organização de medio e longo prazo, sendo a sua organização levada a cabo durante um ano, normalmente logo que terminava a festival organizado no ano anterior, previa a realização ao longo dos dois festivais de 36 Concertos; 22 projeções de cinema; 2 eventos com o tema poesia, realização de 20 programas educativos, realização de quatro fóruns no Museu Amadeu Sousa Cardoso por grandes pensadores da cultura e 6 roteiros culturais.
T. Requer a V.ªs Excias se dignem dispensar a Recorrente de proceder ao pagamento da taxa de justiça remanescente prevista no nº7 do artº 6º do RCP, uma vez que se entende que as questões suscitadas não envolvem especial complexidade nem especialmente laboriosas, tendo a tramitação sido especialmente simples, não foi realizada audiência de discussão e julgamento e a análise dos meios de prova não foi de especial complexidade
Pelo exposto e pelo douto suprimento, que se pede e espera, deverá ser negado provimento ao presente recurso, improcedendo tudo quanto nele é postulado, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos, por nenhuma censura merecer, com o que se fará JUSTIÇA»

1.8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público, não emitiu parecer.

1.9. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.

Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.

2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem e que importa resolver, passam por saber se o despacho saneador - sentença enferma dos seguintes erros de julgamento sobre a matéria de direito decorrentes de:

b.1.- ter julgado improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa da autora;
b.2.-Subsidiariamente, ter julgado procedente a ação, com fundamento em se encontrarem verificados os requisitos previstos no n.º 6 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, o que passa por saber se:

(i) o tribunal a quo errou ao considerar verificado o requisito previsto nessa norma relativo à existência de “programação já anunciada”, primeiro porque esse conceito se reconduz ao de anúncio do festival, segundo porque no caderno de encargos já se encontrava definida a programação;

(ii) a admitir-se a verificação de tais requisitos, se errou ao não excecionar da aplicação desse regime a programação do Festival MIMO para 2021;

(iii) a admitir-se que o Festival MIMO 2021 estava abrangido, ao não considerar que a obrigação de pagamento das quantias em causa relativamente a esse festival apenas devia ocorrer nessa data.

b.3.Subsidiariamente, ter julgado materialmente constitucionais as normas ínsitas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de compelir o Réu aos procedimentos e atos aí previstos, o que passa por saber se as mesmas violam o princípio da autonomia local, ínsito no n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 235.º da CRP.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu como provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
«A) A 13/12/2016, a entidade “L., Ltda.”, na qualidade de produtora e comercializadora do denominado Festival MIMO e/ou MIMO – Mostra Internacional de Música de Olinda, celebrou com a Autora um designado “contrato de agência” (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 10);
B) Do contrato identificado em A) constavam, designadamente, as seguintes cláusulas: “(...) Cláusula 2º (Objecto). Pelo presente contrato, a Principal (...) contrato o Agente (...), em regime de exclusividade, obrigando-se a não contratar outros agentes no território abrangido, para angariar Clientes, promovendo a celebração de contratos. (...) Cláusula 5º (Agência com poderes de representação). 1. A Principal confere, desde já e expressamente, ao Agente os necessários poderes representativos para, em seu nome e por sua conta, celebrar com os Clientes os correspondentes contratos. 2. O Agente deverá enviar à Principal, até oito dias após a outorga, um exemplar do contrato celebrado com o Cliente. Cláusula 6ª (Autorização de Utilização da Marca) 1. A Principal é titular da marca nacional brasileira registada junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial do Brasil, sob o número CNPJ 68.760.362/0001-14, designada como «MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda». 2. A Principal autoriza o Agente, na prossecução do objecto do presente contrato, a usar a marca registada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial do Brasil, com o número 6876032000114, válida até 22/01/2018, designada como «MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda». (...) Cláusula 8ª (Cobrança de Créditos) O Agente deverá cobrar os créditos da Principal decorrentes dos contratos celebrados no uso dos poderes representativos, devendo proceder à entrega ao Principal de tais créditos no prazo máximo de 30 dias a contar da efectiva cobrança, acompanhados dos documentos comprovativos do pagamento e respectiva data. (...)” (cf. idem);
C) A 03/03/2020, a Câmara Municipal do Réu deliberou aprovar a decisão de celebrar um contrato designado de “aquisição de serviços de direcção geral, direcção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes de produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO Festival (...) 2020 e 2021” (cf. fls. 40 e seguintes do PA);
D) Na deliberação referida em C), foi também deliberado aprovar, como entidade a convidar, a ora Autora, bem como aprovar o respectivo convite, no qual se pode ler, designadamente, o seguinte: “(...) 3 – Tipo de procedimento: Ajuste Directo nos termos da subalínea iii) da alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CCP. Fundamento: O MIMO é um dos mais prestigiados festivais de música do Brasil, que se realiza há 15 anos consecutivos nas cidades históricas brasileiras como Paraty, Olinda, Ouro Preto, Tiradentes e Rio de Janeiro. A marca «Festival MIMO e/ou MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda» é direito exclusivo, com registo de patente internacional efectuado e conferido à sociedade L. Ltda. com origem no Brasil, com sede na Rua (…), Brasil, 20.241-180, inscrita no CNPJ: 68.760.362/0001-14. Por sua vez aquela sociedade conferiu à sociedade M. Lda, com sede na Rua (…), inscrita no NIF: (…), o direito exclusivo de utilização da marca «Festival MIMO e/ou MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda», em Portugal. Estão associadas à marca «Festival MIMO e/ou MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda» as seguintes actividades, que resultam exactamente da utilização da marca: concertos, exibições de filmes, etapa educativa, fórum de ideias e chuva de poesia. Iniciou em 2016 a sua expansão internacional escolhendo para a estreia na Europa a cidade de (...). A segunda, realizada em Julho de 2017, reuniu mais de 60 mil de espectadores e grandes nomes da música mundial, com impacto na economia local. Daí até então, nas restantes duas edições, tem continuado a crescer sustentadamente, quer em número de espectadores, quer no plano da notoriedade e visibilidade nacional e internacional. Face ao exposto, e dado que em Outubro de 2017, o concelho de (...) foi incluído na Rede de Cidades Criativas da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, com a classificação Cidade Criativa da Música, é de todo o interesse Municipal e Regional manter o referido festival na cidade, dado que as principais metas do MIMO Festival são a valorização das cidades com forte conteúdo histórico, a difusão da música de excelência e o aprimoramento técnico de jovens talentos, tendo em vista as atribuições do Município nas áreas da cultura e património, nos termos do artigo 23.º, n.º2, al. e) do Anexo I à Lei n.º 75/2013, de 12/9. 4 - Documentos que integram a proposta, de apresentação obrigatória: a) Declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, elaborado em conformidade com o Modelo constante do Anexo I, ao presente convite do procedimento, devidamente assinada pelo concorrente ou por representante legalmente autorizado; b) Proposta de preço (IVA excluído) com indicação do preço total; c) Contrato de Agência entre a L., Lda e a M., Unipessoal Lda; d) Registo do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, que comprove a detenção dos direitos da marca «Festival MIMO e/ou MIMO – Mostra Internacional de Música em Olinda», em Portugal, pela sociedade L. Lda, com origem no Brasil. e) Certidão Permanente. (...) 8 – Critério de adjudicação: avaliação do preço, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 74º do CCP. (...) 12 – Preço base: a) O preço base do procedimento é de 894.308,94 euros (oitocentos e noventa e quatro mil, trezentos e oito euros e noventa e quatro cêntimos), ao qual acresce o IVA à taxa em vigor; b) O preço base foi calculado através dos custos médios unitários associados a cada tipologia de evento, associados a procedimentos para prestação do mesmo tipo. (...)” (cf. fls. 36 e seguintes do PA);
E) Nessa mesma data, deliberou ainda a Câmara Municipal do Réu aprovar o Caderno de Encargos, do qual constam, designadamente, as seguintes cláusulas: “Cláusula 1ª – Objecto. 1 - Atendendo ao facto de a sociedade denominada «M., Unipessoal» pessoa colectiva nº (...), ser titular do registo da marca MIMO - MOSTRA INTERNACIONAL DE MÚSICA EM OLINDA. Atendendo a que o MUNICÍPIO DE (...), à semelhança dos anos anteriores, pretende levar a efeito, nos anos de 2020 e 2021 a produção e organização do evento MIMO Festival (...). 2 - Considerando que a co-organização do evento é a figura que se entende como a mais adequada por forma a salvaguardar os direitos da marca e o interesse concelhio na concretização e realização do mesmo. 3 - Tendo presente as disposições do artigo 24º, nº 1, alínea e), ponto iii) do Código dos Contratos Público, de acordo com a qual, e havendo a necessidade de protecção de direitos exclusivos. O presente procedimento de contratação, por ajuste directo, ao abrigo daquelas disposições legais, tem por objecto de contrato a realização das seguintes prestações infungíveis de: «Aquisição de Serviços de direcção geral, direcção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO Festival (...) 2020 e 2021». 4- Os serviços a contratar e a que se reporta o número anterior contemplam os serviços de infra-estrutura necessários para realização do Festival, nomeadamente, palcos, regies, zona de convivência, torres de delay, estruturas para suporte de carga, tendas, barreiras de segurança, barricadas, grades altas, grades baixas, sonorização e iluminação, contentores, WCs, grupo de geradores, entre outros itens desse segmento que venham ser necessários para a realização do MIMO Festival, com exclusão daqueles que, de acordo com o presente caderno de encargos ficam responsabilidade da entidade contratante. (...) Cláusula 8.ª - Preço contratual. 1 – Pela aquisição de serviços objecto do contrato, bem como pelo cumprimento das demais obrigações constantes do presente Caderno de Encargos e obrigações acessórias decorrentes daquele, a entidade adjudicante deverá pagar ao co-contratante o preço constante da proposta adjudicada, acrescido de IVA à taxa legal em vigor. 2 – O preço referido no número anterior inclui todos os custos, seguros, encargos e despesas de transporte até às instalações do Município que porventura o co-contratante tenha de assumir, exceptuadas aquelas obrigações da entidade adjudicante a que se reporta a Cláusula vigésima quinta do presente Caderno de Encargos. Cláusula 9.ª - Condições de pagamento. 1.ª 25% Após a obtenção do Visto do contrato pelo Tribunal de Contas; 2.ª 20% No decurso do mês de Maio de 2020; 3.ª 5% Após realização do festival em 2020 e até 31 de Agosto de 2020; 4ª 20% Até ao último dia útil do mês de Fevereiro de 2021; 5ª 15% Até ao último dia útil do mês de Abril de 2021; 6ª 10% Até ao 15º dia do mês de Junho de 2021; 7ª 5% Após a realização do festival em 2021 e até 31 de Agosto de 2021. 2¯Para efeitos do disposto no artigo 292.º, n.º1 e n.º 3 do CCP, considerando a particularidade do contrato e a prática seguida no meio artístico que pressupõe adiantamentos para contratação de modo a que, com a devida antecedência, se possa assegurar a melhor produção artística, as prestações referidas nas alíneas 1ª e 2ª e 4ª, 5ª e 6ª do número 1 configura um adiantamento de preço, sem prejuízo das retenções nos pagamentos a que se refere o número 5 desta cláusula a funcionar como função de garantia. (...) Parte II – Cláusulas técnicas. Título I. Cláusula 24ª – Obrigações do Adjudicatário. (...) 2 – Os eventos que se indicam no número seguinte, quer em termos de localização, quer em termos de número, terão como base os anos anteriores, muito embora seja possível proceder a alguns ajustes, por acordo entre as partes e desde que não se desvirtue o espírito do concurso; 3 - O MIMO Festival (...) 2020 e o MIMO Festival (...) 2021 compreende as seguintes actividades, que, por cada um dos dois anos, resultam exactamente da utilização da marca: concertos, exibições de filmes, etapas educativas, fórum de ideias e chuva de poesia, realizando no mínimo 45 (quarenta e cinco) actividades por ano: a) MÚSICA. A maior atracção do MIMO Festival são os concertos. Os concertos, com uma previsão de 18 (dezoito), serão distribuídos entre o palco ao ar livre no Parque Ribeirinho, as igrejas de São Gonçalo, São Pedro e o Museu Amadeo de Souza-Cardoso, ou outros locais a acordar entre as partes e mediante disponibilidade dos mesmos espaços, sempre com alta qualidade artística e com iluminação exclusivamente desenhada para cada um dos concertos, os espaços do património Amarantino transformar-se-ão em cenários para as atracções musicais de excelência. b) CINEMA. Simultaneamente aos concertos, o público será contemplado com o MIMO Festival de Cinema, dedicado às recentes produções cinematográficas que tenham a música como protagonista ou fio condutor. Os filmes, num total previsto de 11 (onze), serão projectados no Cinema Teixeira de Pascoaes e no claustro da Câmara Municipal de (...), ou outros locais a acordar entre as partes mediante a disponibilidade à data. c) POESIA Das varandas localizadas no largo de São Gonçalo (Praça da República), em (...) serão lançadas milhares de folhas com poemas seleccionados, com particular incidência num autor a definir, prevendo-se 1 (um) evento desta natureza por cada um dos anos de realização do Festival. d) PROGRAMA EDUCATIVO. O MIMO Festival confere lugar de honra à Etapa Educativa na sua programação: workshops, máster-classes e oficinas oferecidas gratuitamente aos alunos inscritos, que potencializam as questões técnicas, a expressão artística, o enriquecimento de repertório e a capacidade de liderança. Representam momentos ímpares em que a nova geração trava contacto directo com quem construiu carreiras sólidas e de projecção internacional. Prevendo-se 10 (dez) acções educativas no Centro Cultural de (...), por cada um dos anos de realização do Festival. e) FÓRUM DE IDEIAS. Promove o debate, a reflexão e a troca de conhecimento sobre as inúmeras possibilidades de se fazer e pensar a arte, através de palestras ministradas por grandes pensadores da cultura. Prevendo-se a realização de 2 (duas) actividades em cada um dos anos de realização do festival, a levar a efeito no Museu Amadeo de Souza-Cardoso. f) ROTEIRO CULTURAL GUIADO. (...) reúne o Portugal histórico e o contemporâneo. A cidade possui singularidade no seu património e equipamentos culturais e de lazer em impecáveis condições de uso. O MIMO Festival promoverá roteiros pela cidade e região, onde o público será acompanhado por guias do Turismo, especializados em Património Cultural. Prevendo-se a realização de 3 (três) roteiros culturais. 4 - Coordenação artística e técnica dos espectáculos, designadamente a direcção geral, direcção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação de programa educativo, coordenação de produção, assunção de produção executiva e assistentes do e para os Festivais «MIMO – Festival (...) 2020» e «MIMO Festival (...) 2021»; (...) 11 – Sem prejuízo das disposições da cláusula seguinte, facultar à Entidade Adjudicante a programação artística, bem como todo o material para promoção e publicidade do festival, livre de quaisquer encargos. Cláusula 25.ª – Obrigações da Entidade Adjudicante. Sem prejuízo de outras obrigações previstas na legislação aplicável, no Caderno de Encargos ou nas cláusulas contratuais, da celebração do contrato, decorre para a Entidade Adjudicante a obrigação de: (...) h) Apoiar, à semelhança dos anos anteriores, a divulgação e promoção institucional do «MIMO Festival» e dos seus eventos, através dos meios próprios do município ou de instituições que o município inserido e decida alocar, bem como promover a divulgação e promoção institucional do MIMO Festival, através da cedência de espaços publicitários, próprios da Câmara Municipal de (...), os quais serão definidos entre as partes, sem prejuízo de a produção do material a essa promoção ser da responsabilidade da M.; (...)” (cf. fls. 24 e seguintes do PA);
F) A 06/03/2020, a Autora apresentou a sua proposta para a realização do “MIMO Festival (...)” no período de Julho de 2020 e Julho de 2021, com o valor de € 894.308,94, acrescida de IVA à taxa legal em vigor, acompanhada do modelo de declaração Anexo I, cópia do contrato de agência celebrado com a entidade “L., Ltda.”, certidão permanente, e que aqui se dá por integralmente reproduzida (cf. fls. 41 e seguintes do PA);
G) A 09/03/2020, o Presidente da Câmara Municipal do Réu propôs a esta última que deliberasse adjudicar o referido contrato à Autora (cf. fls. 5 do PA);
H) A 17/03/2020, a Câmara Municipal do Réu deliberou aprovar a minuta do contrato de aquisição de serviços, minuta esta que aqui se dá por integralmente reproduzida (cf. fls. 73 e seguintes do PA);
I) A 20/02/2020, a Autora havia celebrado com o artista A. um designado contrato de prestação de serviços profissionais artísticos, relativamente ao MIMO (...), referente ao ano de 2020 (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 15);
J) A 21/02/2020, a Autora celebrou um designado contrato de prestação de serviços profissionais artísticos, relativamente ao MIMO (...), referente ao ano de 2020, e com a entidade “M., LLC” (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 16);
K) A 05/03/2020, a Autora havia celebrado com o artista P. um designado contrato de prestação de serviços profissionais artísticos, relativamente ao MIMO (...), referente ao ano de 2020, entre outros contratos celebrados ao longo de Março de 2020 (cf. documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 14, 21 a 23);
L) A 09/04/2020, o Presidente da Câmara Municipal de (...) emitiu uma declaração pública, por via da rede social “Facebook”, declarando que o Festival MIMO 2020 havia sido cancelado (cf. https://facebook.com/municipiode(...)videos/222189265561350/);
M) A 06/05/2020, a Autora dirigiu uma missiva ao Réu, na qual expôs e requereu o seguinte: “(...) Após o cancelamento unilateral do contrato para a realização do MIMO Festival, por declaração pública do Senhor Presidente em 09 de Abril de 2020, onde expressamente refere que: «(...) Canceladas estão também as Festas do Junho, o UVVA-Universo do Vinho Verde (...); a Idade de Ouro; o MIMO Festival e o HÁ FEST! (...) Dizer também que temos estado a reafectar verbas que estavam destinadas a estes eventos, direccionando esses recursos para o combate à pandemia – e que assim continuaremos a fazer». Ora, na esteira da legislação publicada de resposta à epidemia SARS-CoV-2, e nos termos do enquadramento da mesma, e por aplicação do disposto no Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26 de Março, com alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de Abril, e de acordo com a protecção especial concedida por este regime jurídico especial, ao contrato para realização do MIMO Festival 2020/2021, é, pois, aplicável, nos termos do nº 6 do artº 11, uma vez que para além da decisão de contratar, bem como da publicitação da realização do Festival (que até foi cancelado). Assim, e tendo em consideração a urgência na obtenção dos valores indemnizatórios previstos, cuja solicitação foi por diversas vezes efectuada junto da pessoa do Exmº Assessor do GAP, B., mas cuja resposta não foi até à data transmitida, expressamente se solicita o seu processamento e pagamento. Ressalvo que os valores mínimos indemnizatórios estão previstos no nº 5 do art.º 11 do Decreto Lei nº 10-I/2020 de 26 de Março, com alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de Abril, ou seja 50% do preço contratual. Nesta data, e face à omissão desse Município, corre-se o risco de as despesas com a produção se encontrem a avolumar e tendencialmente o valor correspondente aos 50% legalmente previstos, poderão não ser suficientes para cobrir todas as situações pendentes, resvalando, pois, ainda para a aplicação do nº 3 do citado diploma, que poderá vir a ser o valor de 50% insuficiente para os custos de produção, o que acarretaria a obrigatoriedade de pagamento de valores superiores aos 50%. (...)” (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 17);
N) O MIMO Festival 2020 encontrava-se agendado para os dias 24 a 26 de Julho de 2020 (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 20);
O) A 29/05/2020, o Presidente da Câmara Municipal do Réu proferiu despacho a determinar a não adjudicação à Autora do contrato de aquisição de serviços ora em discussão, nos termos e com os seguintes fundamentos: “(...) - A Organização Mundial de Saúde qualificou, no passado dia 11 de Março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional; - Porque em Portugal também se verificou a situação de calamidade pública, ocasionada pela doença COVID-19, no dia 18 de março foi decretado o Estado de Emergência em Portugal, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março; - Em execução da declaração do estado de emergência, o Decreto n.º 2-A/2020 de 20 de março impôs deveres de confinamento obrigatório; de especial proteção e de recolhimento domiciliário, tendo o Decreto de Lei n.º 10-I/2020 de 26 de março de 2020 fixado as medidas excepcionais de resposta à pandemia no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espectáculos de natureza artística, promovidos por entidade públicas ou privadas, não realizado no local e data previamente agendados; - A fixação das medidas excepcionais de resposta à pandemia no âmbito cultural e artístico determinadas pelo Decreto de Lei n.º 10-I/2020 de 26 de março de 2020 resultam da recomendação da Direcção Geral de Saúde no sentido do cancelamento de eventos de massas; - Por Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020 de 2 de abril, foi renovada a declaração de estado de emergência, aí se prevendo que o combate à disseminação da doença Covid-19 será um processo longo; - O Estado de Emergência em Portugal, iniciado com o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, terminou no passado dia 2 de maio de 2020. - Contudo, por Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020 de 30 de abril, foi declarada a situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, com efeitos às 00:00h do dia 3 de maio de 2020 e até às 23:59 h do dia 17 de maio de 2020, sem prejuízo de prorrogação ou modificação na medida em que a evolução da situação epidemiológica o justificar; - Decorrido o período de vigência da situação de calamidade declarada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020 de 30 de abril, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020 de 17 de maio foi prorrogada a situação de calamidade até às 23.59 horas do dia 31 de maio de 2020; - Decorrente daquelas declarações de estado de emergência nacional e de calamidade, está proibida, sem previsão de levantamento de tal proibição, a realização de festivais. - Ora, tendo em vista a organização do Festival MIMO nos anos de 2020 e 2021, a Câmara Municipal de (...), por deliberação de 3 de março de 2020, aprovou o convite e caderno de encargos, bem como, determinou a abertura de um procedimento de ajuste direto, nos termos do artigo 36º do CCP, para aquisição a M., Lda, dos serviços de «direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO festival (...) 2020 e 2021»; - A 6 de março de 2020, a M., Lda, apresentou ao MUNICÍPIO DE (...) a proposta para prestação dos serviços objeto do referido procedimento contratual; - A 9 de abril de 2020 os serviços do MUNICÍPIO DE (...) informaram que verificados os documentos apensos à proposta submetida, via plataforma eletrónica, pela entidade consultada M., Unipessoal, L.da, a mesma se encontrava «em linha com os requisitos identificados nas peças concursais»; - A 11 de março de 2020 foi proposto à Câmara Municipal a adjudicação à concorrente M., Lda, dos serviços de «direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO festival (...) 2020 e 2021»; - Contudo, na reunião da Câmara Municipal de (...) realizada a 17 de março de 2020, foi determinada a retirada da proposta de adjudicação, em virtude da necessidade de reavaliação das condições de adjudicação, nomeadamente, a ponderação da circunstância superveniente provocada pela pandemia Covid-19; - Datado de 6 de maio de 2020, a Gerente da M., Lda dirigiu ao MUNICÍPIO DE (...) oficio a reclamar, ao abrigo do n.º 5 do art.º 11.º do Dec. Lei DL n.º 10-I/2020, de 26 de março, com as alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de abril, o pagamento da quantia correspondente a 50% do valor contratual relativo à edição do Mimo Festival de 2020. - Perante tal reclamação, foi solicitado um parecer externo, a questionar: - Face ao conteúdo do artigo 11º do DL n.º 10-I/2020, de 26 de março, com as alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de abril, está o MUNICÍPIO DE (...) obrigado a concluir procedimento de aquisição de serviços aqui em causa e, em caso de cancelamento do festival, está obrigado à realização dos pagamentos nos prazos contratualmente estipulados ou, o mais tardar, na data que se encontrava inicialmente agendado o espetáculo, no montante mínimo de 50 % do preço contratual, conforme reclama a concorrente na interpelação dirigida ao Município, vertida no Doc. 12? - Em face das mesmas disposições legais, se porventura a resposta à parte inicial da questão supra for pela positiva, havendo a imposição de conclusão do procedimento de contratação, não havendo possibilidade legal e factual de reagendamento do espetáculo que se propunha ocorresse no ano de 2020, havendo por conseguinte a necessidade do seu cancelamento, embora podendo ainda ocorrer aquele previsto no ano de 2021, está o Município obrigado a proceder ao pagamento de algum valor, nomeadamente 50% do preço contratual e, assim sendo, esses 50% seriam do valor previsto para o ano de 2020 ou do valor global do contrato, tendo em atenção que no ano de 2021 sempre poderia vir a realizar-se como previsto no caderno de encargos do procedimento?- Na presente data o Município tomou conhecimento das conclusões do parecer solicitado, de onde resulta a não aplicação ao procedimento de serviços de «direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO festival (...) 2020 e 2021» do artigo 11º do DL n.º 10-I/2020, de 26 de março, com as alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de abril; - No mesmo parecer é ainda recomendado ao MUNICÍPIO DE (...) que, tão breve quanto possível, até para não alimentar expectativas de adjudicação à concorrente, determine a não adjudicação, com fundamento na superveniência da impossibilidade de prestação de parte dos serviços a contratar, nomeadamente a realização do Festival MIMO no ano de 2020; - Perante as atuais restrições associadas à pandemia Covid-19, constata-se a impossibilidade de realização de pelo menos a edição do MIMO Festival prevista para o ano de 2020, circunstância esta superveniente que altera fatalmente a decisão de contratar, impondo a não adjudicação nos termos do art.º 79.º n.º 1, al. d) do CCP. Em face do exposto, atenta a relevância das circunstâncias supervenientes, supra descritas, relativas à fundamentação da decisão de contratar, sem prejuízo do reconhecimento pelo Município do dever de indemnização da concorrente, ao abrigo do art.º 79.º n.º 4 do mesmo Código, pelos encargos em que comprovadamente haja incorrido com a elaboração da respectiva proposta, atenta a urgência da decisão a proferir, bem como a impossibilidade de reunir a Câmara Municipal de imediato, ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 33.º n.º 1 al. f) e art.º 35.º n.º 3, ambos do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei 75/2013 de 12 de setembro, bem como, ao abrigo do art.º 79.º n.º 1 al. d) do Código dos Contratos Públicos, DETERMINA a não adjudicação, à concorrente M., Lda, dos serviços de «direção geral, direcção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO festival (...) 2020 e 2021». Mais determina a imediata notificação do presente à concorrente M., Lda quer através da plataforma electrónica, bem como o agendamento do presente na ordem do dia da próxima reunião da Câmara Municipal para cumprimento do ónus imposto pelo artigo 35.º n.º 3 do citado Regime Jurídico das Autarquias Locais.” (cf. fls. 82 e seguintes do PA);
P) Na mesma data, o despacho identificado em O) foi comunicado à Autora, por via da plataforma electrónica em uso pelo Réu (cf. documento junto com a petição inicial sob o nº 19);
Q) A 16/06/2020, a Câmara Municipal do Réu deliberou ratificar o despacho proferido pelo Presidente da Câmara, e melhor identificado em O) (cf. fls. 141 do PA);
R) A petição inicial foi apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel
a 2906/2020 (cf. fls. 1 e seguintes dos autos).»
*

III.B.DE DIREITO
b.1. Da improcedência da exceção dilatória da ilegitimidade ativa da autora.
3.2.O apelante começa por se insurgir contra o saneador-sentença recorrido por nele a Senhora Juiz a quo não ter julgado procedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual ativa da autora, nos termos decorrentes do disposto no n.º 1 do artigo 9.º e alínea e), do n.º 4 do artigo 89.º, todos do CPTA, bem como do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho e dos artigos 30.º, alínea e) do artigo 577.º e alíneas d) e e) do artigo 278.º do CPC, aplicáveis ex vi pelo artigo 1.º do CPTA.

Alega que tendo em consideração que por meio da presente ação a Recorrida pretendia obter a condenação do Recorrente à prática do ato alegadamente devido, a qual abrange, por natureza, a impugnação de um ato administrativo que lhe é desfavorável e a obtenção de um ato favorável aos seus propósitos, nos termos dos artigos 66.º e 51.º do CPTA, fruto da própria relação existente entre os pedidos deduzidos, a Recorrida não reúne o pressuposto processual de legitimidade processual ativa uma vez que, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do regime jurídico que regula dos contratos de agência (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho), “O agente só pode efetuar a cobrança de créditos se a outra parte a tanto o autorizar por escrito”
Nos termos da Cláusula 8.ª do contrato de agência, a Recorrida tem única e exclusivamente o poder de cobrar os créditos da Principal decorrentes dos contratos no uso dos seus poderes de representação, pelo que, estando em discussão na presente ação a eliminação de um ato administrativo e o aparecimento de um novo que titule a adjudicação da proposta da Recorrida, estão em discussão os pressupostos de um putativo e futuro crédito que à presente data não existe. Daí que, a presente demanda não se possa confundir com um processo de recuperação de quantias contratuais, primeiro, por inexistir, a esta data, qualquer vínculo contratual, e depois pela circunstância de a existência de um putativo crédito depender do sucesso do primeiro pedido condenatório, pedido para o qual a Recorrida não tem poderes (leia-se, legitimidade). Ademais, entende que a referida exceção é insanável, não podendo, sequer, lançar-se mão do instituto da intervenção principal provocada, na estrita medida em que a Sociedade L., Lda. não configura um associado da Recorrida, nos termos em que prevê o n.º 1 do artigo 316.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA. Não haverá nenhum caso passível de litisconsórcio, previsto nos artigos 32.º e 33.º do CPC aplicáveis ex vi do artigo 1.º CPTA, enquanto pressuposto do recurso ao instituto da intervenção principal provocada.

Mais a mais, a Recorrida não poderá ser caracterizada como parte na relação material controvertida, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 9.º do CPTA, uma vez que o contrato de prestação de serviços alvo da presente ação seria celebrado em nome da entidade Principal – e não da Recorrida.

Mas sem razão, sendo a decisão recorrida de confirmar neste segmento, conforme desde já antecipamos.

O Tribunal a quo julgou improcedente a exceção da ilegitimidade ativa com base na seguinte fundamentação:
«(…)
Quanto à legitimidade activa, rege o artigo 9º do CPTA, que determina o seguinte:
“1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte e no capítulo II do título II, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.
2 – Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.”
Esta norma identifica, assim, no nº 1 como parte legítima o sujeito da relação jurídica controvertida, remetendo para as disposições especiais do Código relativas aos diferentes meios processuais o enunciado das demais circunstâncias em que o interesse em agir pode justificar a necessidade de tutela judicial.
Tal disposição é em tudo semelhante àquela contida no artigo 30º do CPC. De acordo com esta disposição, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar.
Já a alínea a) do nº 1 do artigo 55º do mesmo diploma legal, e na parte referente à legitimidade activa para as acções de impugnação, constante do capítulo II do título II deste código, dispõe que:
“Tem legitimidade para impugnar um acto administrativo:
a) Quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos e interesses legalmente protegidos; (...). “
Das normas legais ora transcritas de imediato se infere que a legitimidade activa implicará sempre a participação numa relação material controvertida tida com o Réu e, especialmente, nas acções de impugnação de actos administrativos, como a presente causa, a titularidade de um interesse, directo e pessoal, consubstanciado na lesão, pela prática do acto.
Conforme melhor afirmado pelo Tribunal Central Administrativo, no seu Acórdão de 20/12/2013, no P. 830/12.4BEAVR (disponível em www.dgsi.pt),
“(...) VI. A legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal. VII. Ressuma do quadro normativo enunciado que o critério geral para aferir da legitimidade, “in casu” ativa, prende-se com o “interesse direto em demandar” traduzido na utilidade derivada da procedência da ação enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor. VIII. Tal pressuposto deverá ser aferido nos estritos termos em que o A. no articulado inicial delineou o “interesse direto e pessoal” em impugnar o ato [cfr. art. 09.º, n.º 1 do CPTA], pelo que a ocorrência deste pressuposto é independente da existência real dos factos constitutivos do interesse alegado. IX. Na verdade, a legitimidade constitui um pressuposto processual e não uma condição de procedência, pelo que os problemas que se suscitam em torno da existência da relação material controvertida prendem-se com o fundo da pretensão ou mérito da mesma e nada tem que ver com a definição da legitimidade processual dos sujeitos intervenientes num processo. X. Nessa medida, para um juízo positivo sobre a existência da legitimidade ativa basta uma afirmação fundamentada em factos da titularidade dum interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, e já não a necessidade duma afirmação concludente dessa titularidade. XI. Nesta sequência e considerando o próprio teor do art. 09.º, n.º 1 do CPTA temos que o princípio geral enunciado é objeto de expressa ressalva quanto ao regime específico previsto em matéria de ação administrativa especial («AAE»), mormente, o relativo à ação de impugnação de atos administrativos [cfr. art. 55.º do CPTA]. XII. Com efeito, prevê-se neste normativo regra especial em sede de legitimidade ativa na «AAE», mormente para a ação individual ou particular [vide a al. a) do citado normativo], para a ação popular ou social [cfr. als. c) e f) do n.º 1 e o n.º 2 do referido art. 55.º], para a ação pública [cfr. als. b) e e) do n.º 1 do art. 55.º], sendo que para o caso que ora temos em presença importa atender apenas às als. a) e f) do n.º 1 do art. 55.º do CPTA. XIII. É, assim, que nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 55.º tem legitimidade para deduzir ação de impugnação dum ato administrativo “quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”. XIV. Configura-se neste dispositivo uma situação legitimidade ativa direta, individual, sendo certo que a impugnação de atos administrativos à luz do preceituado naquela alínea não tem necessariamente de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido [atente-se na expressão “designadamente”], pois, a mesma basta-se ou pode fundar-se na circunstância do ato estar a gerar ou a provocar, no momento em que é objeto de impugnação, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do demandante a ponto de o mesmo com a anulação ou a declaração de nulidade/ou de inexistência desse ato conseguir, pessoalmente, um benefício, uma vantagem ou uma utilidade direta [ou imediata], de natureza patrimonial ou não patrimonial [cfr. arts. 51.º e 55.º do CPTA]. (...)”
Ora, se é certo que deixou de estar prevista, no CPTA com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, a dualidade de tipos de acção, de acção administrativo comum e acção administrativa especial, não deixou tal diploma legal de prever pressupostos específicos para as acções que visam a impugnação de um acto administrativo, no que à legitimidade activa diz respeito, como se alcança da actual redacção da alínea a) do nº 1 do artigo 55º.
Ora, analisando o pedido principal formulado pela Autora no seu articulado inicial, desde logo resulta que, tal como expôs esta a relação material controvertida alegadamente existente com o Réu, tem a mesma legitimidade activa, na acepção estritamente adjectiva, porquanto alega ser parte de tal relação material. Outra matéria será aquela da legitimidade substantiva, a apreciar já em sede de mérito dos autos.
Efectivamente, invoca a Autora ter apresentado proposta no âmbito do procedimento pré-contratual lançado pelo Réu, tendo em vista a organização/produção do festival MIMO nos anos de 2020 e 2021, e após apresentação de convite para o efeito. Mais alega que os serviços do Réu haviam já proposto ao órgão decisor a adjudicação do referido contrato à Autora. Conclui, assim, que o acto impugnado fere os seus direitos e interesses legalmente protegidos, mais se repercutindo na sua esfera jurídica, de forma directa e lesiva.
Tal afirmação mostra-se suficiente para que se possa julgar de preenchida a legitimidade processual, estritamente adjectiva, não se exigindo uma afirmação concludente e definitiva quanto à titularidade de tais interesses e direitos.
Sublinha-se que, tal como vem interposta a acção, não só é a Autora a destinatária do acto impugnado, como seria com aquela que o Réu celebraria o contrato público em discussão – conforme vem, aliás, peticionado, em sede condenatória. Nestes termos, é na sua esfera jurídica que os efeitos daquele acto se repercutem, de forma directa e lesiva (independentemente do facto de agir a mesma na qualidade de agente de outra entidade)
Por outro lado, desde logo se alcança, da leitura do petitório, que pretende também a Autora, em consequência da anulação do acto impugnado, e atento o quadro legislativo invocado, que seja o Réu condenado a praticar o acto administrativo que reputa de devido, qual seja, o de proferir decisão de adjudicação do contrato de aquisição de serviços à ora Autora, e assim celebrar com esta tal contrato, bem assim como de proceder aos actos e operações previstos no artigo 11º do Decreto-Lei nº 10­I/2020, de 26/03. Tais actos e operações consubstanciam-se, conforme alegado pela Autora, no eventual reagendamento da realização do Festival MIMO (...), previsto para 2020, bem como na quantia correspondente a 50% do valor do preço do contrato, ocorrendo o cancelamento ou reagendamento da realização de tal festival.
Desde logo resulta, claramente, que tal montante peticionado é uma mera decorrência da eventual condenação do Réu na adopção do acto administrativo devido, ou seja, do dever de adjudicar o contrato à Autora, bem como de celebrar com esta tal contrato. Ou seja, tal montante sempre seria devido em consequência, por causa, da celebração do contrato do Réu, e do necessário cancelamento ou reagendamento da realização do evento, que de nenhuma outra obrigação jurídica.
Assim, o facto de inexistir, à data da propositura da acção, qualquer vínculo contratual entre a Autora e o Réu em nada afasta a legitimidade daquela, atenta a forma como vem descrita a relação material controvertida, para reclamar o pagamento das referidas quantias, pagamento este que resultaria da condenação do Réu a adoptar a tramitação procedimental prevista no artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03.
Note-se que, além de estar a Autora munida de poderes de representação da Principal (conforme a cláusula 5ª do contrato de agência), tem também poderes para proceder à cobrança de créditos decorrentes dos contratos celebrados no uso de tais poderes representativos (cláusula 8ª do referido contrato).
Ora, o facto de existir ou não a obrigatoriedade, por parte do Réu, de adoptar os referidos actos (emissão da decisão de adjudicação, celebração do contrato de aquisição de serviços, e demais consequências processuais, designadamente, o pagamento dos referidos montantes), é matéria que se prende já com a legitimidade substantiva da Autora, que não com aquela estritamente adjectiva, e cuja apreciação ocorrerá em sede de apreciação do mérito da lide.»

No caso, não oferece dúvida que a Autora é parte na relação material controvertida em discussão, na aceção prevista no artigo 9.º, n.º 1 do CPTA, uma vez que é parte na relação material controvertida, tendo sido à Autora que o Réu, ora apelante, dirigiu o convite para apresentar proposta no âmbito do procedimento pré-contratual lançado pelo Réu, com vista à organização/produção do festival MIMO nos anos de 2020 e 2021.

Ademais, foi à Autora que o Presidente da CMA propôs, na reunião da CMA realizada no dia 09.03.2020, a respetiva adjudicação do contrato ( Cfr. Alínea A) do elenco dos factos provados).

Mais se verifica que na minuta do contrato a celebrar, que foi aprovada por deliberação de 17.03.2020, a autora figura como interveniente (cfr.fls 73 e seguintes do PA- Alínea H dos factos provados).

Ademais, foi à Autora que o Réu notificou o despacho de não adjudicação, o que tudo, é bem revelador da legitimidade ativa da autora para a presente ação, tendo a mesma um inequívoco interesse em pleitear.

A autora será prejudicada nos seus interesses pelo ato impugnado, caso o mesmo não seja anulado por via da decisão a proferir na presente ação.

É também indubitável a detenção por parte da autora dos poderes de representação da Principal, de acordo com a cláusula 5ª do contrato de agência junto aos autos e tem ainda poderes para proceder à cobrança de créditos decorrentes dos contratos celebrados no uso de tais poderes representativos (cláusula 8ª do referido contrato), sendo também por esta via parte legitima, uma vez que a quantia a pagar que resulta do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na versão conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04 apenas é devida se no caso se verificarem os pressupostos que obriguem a entidade adjudicante a concluir o procedimento com a celebração do respetivo contrato e perante o cancelamento ou o reagendamento do festival, e o seu valor é calculado em função de uma percentagem de 50% sobre o valor contratual.

Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
**
b.2. Dos erros de julgamento decorrentes da não verificação in casu dos requisitos previstos no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na versão conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04.

Vem o presente recurso jurisdicional interposto do saneador -sentença que julgou a ação procedente, e, nessa conformidade anulou a decisão impugnada e condenou o Réu a retomar a tramitação procedimental pré-contratual tendente à aquisição de serviços para a realização do “MIMO Festival (...) 2020 e 2021”, determinando a adjudicação e a celebração do contrato com a Autora, bem como a adotar toda a tramitação prevista nos n.ºs 1 a 4º do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-­I/2020, de 26 de Março (com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2020, de 10 de abril e, ainda, a pagar à Autora o valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa em vigor e de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento, de acordo com o previsto no n.º 5 do artigo 11.º do referido normativo.

Conforme resulta da matéria de facto assente, a Câmara Municipal de (...) (CMA) por deliberação tomada na sua reunião de 03 de março de 2020, decidiu contratar a Autora, aqui Apelada, através de ajuste direto, para a prestação dos serviços de direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação de programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para organização do Festival MIMO (...) 2020 e 2021, tendo tal procedimento como preço base o montante de € 894.308,94 (oitocentos e noventa e quatro mil, trezentos e oito euros e noventa e quatro cêntimos), a que acresce IVA, tendo para o efeito, nessa mesma reunião, aprovado o convite a endereçar à autora e o caderno de encargos .

No mesmo dia, a CMA endereçou à Apelada o convite para apresentação de propostas, no âmbito do referido procedimento, e a aquela apresentou a sua proposta logo no dia 06.03.2020.

Entretanto, no dia 09/04/2020, o Senhor Presidente da CMA emitiu uma declaração pública, através do “Facebook”, a anunciar que o Festival MIMO 2020 tinha sido cancelado.

Nessa sequência, no dia 06/05/2020 a apelada dirigiu-lhe uma missiva a solicitar o pagamento dos valores mínimos indemnizatórios previstos no nº 5 do art.º 11 do Decreto Lei nº 10-I/2020 de 26 de março, com as alterações introduzidas pela Lei 7/2020 de 10 de abril, ou seja 50% do preço contratual – vide alíneas L e M dos factos apurados.

A edição do MIMO Festival 2020 encontrava-se agendado para os dias 24 a 26 de julho de 2020 e a edição de 2021 para o mês de julho desse ano, mas ainda sem dias designados.

A 29/05/2020, o Senhor Presidente da CMA proferiu despacho em que, considerando a situação pandémica e as medidas excecionais que foram adotadas que impedem a realização de espetáculos, e invocando as disposições combinadas dos artigos 33.º n.º 1 al. f) e art.º 35.º n.º 3, ambos do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei 75/2013 de 12 de setembro, bem como, o art.º 79.º n.º 1 al. d) do Código dos Contratos Públicos, determinou a não adjudicação, à concorrente M., Lda, dos serviços de «direção geral, direção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação do programa educativo, coordenação técnica, coordenação de produção, produtores executivos e assistentes, produção e ainda todos os meios técnicos para o MIMO festival (...) 2020 e 2021», despacho esse foi posteriormente ratificado pela CMA por deliberação tomada em reunião de 16/06/2020.

Está em causa, prima facie, saber se esta decisão do Apelante que determinou a não adjudicação da prestação de serviços à autora, no contexto fático e normativo em vigor à data em que foi proferida, tem cobertura legal nas disposições invocadas pelo Apelante ou se, considerando as medidas excecionais e transitórias aprovadas pelo Governo para o setor artístico e cultural, designadamente, em face do previsto no artigo 11.º, n.º6 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na redação conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04, se impunha antes ao Réu que tivesse concluído o respetivo procedimento, proferindo a competente decisão de adjudicação e a celebração do contrato, e cumulativamente que tivesse pago à apelada a quantia correspondente a 50% do valor do preço do contrato.

Vejamos.
b.2.1. Do erro de julgamento da sentença recorrida ao considerar aplicável o regime especial do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23 de março, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04.: da errada interpretação do pressuposto exigido pelo n.º 6 do artigo 11.º, relativo à “programação anunciada e ainda não contratualizada”.

A 1.ª Instância deu razão à Apelada, considerando que estavam verificados os pressupostos exigidos pelo artigo 11.º, n.º6 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04, e pela Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de abril, para a condenação do Réu à pratica dos atos devidos que peticionou, uma vez que (i) no âmbito do procedimento de formação do contrato público ora em causa já tinha sido emitida a decisão de contratar, (ii) enviado o convite para a apresentação de proposta e, bem assim, que (iii) a programação do Festival MIMO (...) 2020 e 2021 já se encontrava anunciada, embora ainda não contratualizada, ou seja, considerou estarem verificados os pressupostos para a aplicação do regime previsto no art.º 11.º do referido diploma, que derrogou a aplicação do disposto no art.º 79.º, n.º1, al. d) do CCP às situações que estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação das medidas especiais e excecionais previstas para minorar os efeitos da pandemia no domínio da contratação pública no setor artístico e cultural.

O Apelante não se conforma com a decisão recorrida, impetrando-lhe erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, começando por insurgir-se contra a subsunção da presente situação ao âmbito de aplicação das medidas especiais e excecionais aprovadas pelo Decreto-lei n.º 10-I/2020, de 23/03, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04, cujos pressupostos exigidos pelo n.º 6 do art.º 11.º assevera não se encontrarem todos preenchidos, faltando a verificação do pressuposto relativo à exigência de uma “programação anunciada”, também reclamado por esse normativo.

O apelante embora afirme não colocar em causa a natureza extraordinária dos diplomas convocados pela sentença em crise, que diz serem destinados a “mitigar os efeitos negativos da situação calamitosa verificada, de entre os quais se destaca, pela sua relevância para o caso concreto, o Decreto-Lei n.º 10­I/2020, de 26 de março, destinado a, entre outros, conferir “(...) uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização dos espetáculos não realizados em virtude da pandemia”, defende a sua inaplicabilidade ao caso, por não verificação do pressuposto relativo à exigência de uma “programação anunciada”, sustentando, antes que, perante as circunstâncias supervenientes à decisão de contratar que conduziram à aprovação do estado de calamidade que sobreveio ao Estado de Emergência, aquilo que se exigia ao Réu era que o Senhor Presidente da CMA proferisse, como proferiu em 29.05.2020, uma decisão de não adjudicação do procedimento ora em causa, a coberto da alínea d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP.

O Apelante censura a sentença recorrida por o Tribunal a quo não ter sido capaz de alcançar que, na situação sub judice, não se encontrava verificado um dos requisitos exigidos pelo n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, ou seja, que a programação do festival ora em causa para a sua edição de 2020 não estava anunciada, situação que a atinge “píncaros de gravidade no excerto decisório em que aquele Tribunal dá como verificado o requisito ora em causa, desta feita relativamente à edição do referido festival a organizar no próximo ano de 2021, quando nem a realização do festival propriamente dito se encontra sequer agendada.

Considera que a interpretação realizada pelo Tribunal a quo do disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, com recurso aos seus elementos teleológico e histórico, é absolutamente contrária a qualquer interpretação juridicamente possível de tal norma, assentando numa grave confusão entre realidades tão díspares como o anúncio da realização do festival MIMO (...) com o anúncio da sua programação.

Segundo o Apelante, o Tribunal a quo tratou sempre a realização do festival e a sua programação como se de um único facto se tratasse – exercício de equivalência que conduziu a que, erroneamente, tivesse dado como já anunciadas as duas realidades, quando, no limite, apenas uma delas o estaria (a realização do festival).

Observa que o facto de um determinado certame estar anunciado não implica necessariamente que a sua programação esteja, também ela, anunciada, sendo precisamente um caso dessa natureza que se encontra em discussão nos presentes autos. Adianta que a sentença recorrida apenas dá como provado, relativamente a esta matéria, e com base no conteúdo do documento n.º 20 junto com a petição inicial, que “O MIMO Festival 2020 encontrava-se agendado para os dias 24 a 26 de Julho de 2020”, (Cfr. alínea n) do ponto IV Fundamentação de facto) nada referindo quanto a qualquer prova de que a programação do referido festival estivesse já anunciada. E conclui que no caso, nunca se encontrou anunciada qualquer programação.

Para além do vício que fere a decisão de manifesta ilegalidade decorrente da confusão entre os conceitos de “festival agendado” e “programação anunciada”, afirma que outro vício decorre também do Tribunal a quo ter considerado, que a partir da identificação das iniciativas que, à luz do Caderno de Encargos, comporiam o festival, que a programação deste último já estaria anunciada desde o início do procedimento.

A seu ver, tal não passa de uma extrapolação desprovida de qualquer senso jurídico e até factual, uma vez que o facto de os eventos que compõe a estrutura do festival já se encontrarem abstratamente definidos não implica, como nunca poderia implicar, que a programação do referido festival se possa dar como anunciada.

Reitera que, para que assim fosse, seria necessário, como defendeu em sede de contestação, não apenas que os eventos estivessem já identificados, mas também que tivesse sido publicada a sua data de realização, identificados os artistas e performances que se iriam realizar, os concretos locais de atuação e respetivo horário.

Adianta que a interpretação teleológica não pode, de todo em todo, contrariar aquele que é o elemento literal da norma interpretada, devendo, pelo contrário, nele se basear, estabelecendo com este uma relação de complementaridade e não de antonímia. Ainda que se reconhecesse que o elemento teleológico e que as circunstâncias deveras especiais em que a norma sob escrutínio foi aprovada possam demandar um esforço interpretativo qualificado, a verdade é que, no caso concreto, o Tribunal a quo foi longe de mais em tal labor interpretativo, cometendo a ousadia de fazer vencer uma interpretação que não tem qualquer correspondência com o elemento literal da referida norma, e que, nessa medida, viola, de forma ostensiva, o disposto no n.º 2 do artigo 9.º do CC.

Ao atuar como atuou, o Tribunal a quo mais não fez do que atribuir ao n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, um sentido que nele não encontra qualquer tipo de correspondência possível, violando, dessa forma, o regime previsto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, que representa a consagração legal da função negativa do elemento literal das normas, ou seja, a suscetibilidade de, nas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, “(...) afastar qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão)”.
Em suma, a interpretação efetuada erra quando conclui como verificado o requisito do anúncio da programação a partir do mero anúncio da realização do Festival, uma vez que tal equivalência teria que ter alguma correspondência no enunciado legal da norma, algo que, não acontecendo, deita por terra qualquer interpretação feita nesse sentido, para além de subverter, de forma grave e sem nada que o justifique, a presunção da competência do legislador, plasmada no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil.

Em conclusão, a tese do Apelante é que o Tribunal a quo errou ao ter como equivalente ao anúncio da programação de um festival o mero anúncio da sua realização, bem como ao entender como equivalente a publicitação da programação com o seu agendamento, concluindo, com base nessa errónea perceção, que estaria cumprido, in casu, o segundo requisito plasmado no disposto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março.

Vejamos.
Como se sabe, a 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) em consequência da propagação a nível mundial da doença provocada pela disseminação do vírus SARS-CoV-2, qualificou a emergência de saúde pública daí decorrente como uma pandemia internacional. Nesse contexto e considerando a disseminação do vírus no país, o Senhor Presidente da República, no passado dia 18 de março de 2020, entendeu avisadamente decretar o estado de emergência em Portugal (vide Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18/03).

Sequencialmente, o XXII Governo Constitucional aprovou e fez publicar o Decreto-Lei n.º 2-A/2020, de 20/03 por via do qual foram adotadas um conjunto de medidas extraordinárias e de caráter urgente de restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas, em articulação com as autoridades europeias, com vista a prevenir a transmissão do vírus. Lê-se no preâmbulo desse diploma constituir prioridade do Governo «prevenir a doença, conter a pandemia, salvar vidas e assegurar que as cadeias de abastecimento fundamentais de bens e serviços essenciais continuam a ser asseguradas. Com efeito, urge adotar as medidas que são essenciais, adequadas e necessárias para, proporcionalmente, restringir determinados direitos para salvar o bem maior que é a saúde pública e a vida de todos os portugueses.
A democracia não poderá ser suspensa, numa sociedade aberta, onde o sentimento comunitário e de solidariedade é cada vez mais urgente. Assim, o presente decreto pretende proceder à execução do estado de emergência, de forma adequada e no estritamente necessário, a qual pressupõe a adoção de medidas com o intuito de conter a transmissão do vírus e conter a expansão da doença COVID-19.
Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade.»

Tais medidas passaram designadamente pelo encerramento de instalações e estabelecimentos onde se desenvolvem atividades culturais e artísticas (cfr. art.º 7.º do referido diploma).

Alguns dias depois, o Governo aprovou e fez publicar o Decreto-lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, no qual se estabelecem as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19 no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espetáculos não realizados.

Refere-se no preâmbulo deste diploma, que a Direção-Geral de Saúde (DGS), enquanto Autoridade Nacional da Saúde Pública, já tinha elaborado, a 28 de fevereiro, “ a Informação n.º 006/2020 sobre a frequência de eventos de massa, tendo-se seguido a Orientação n.º 007/2020, de 10 de março, atualizada em 16 de março de 2020, onde recomenda o cancelamento de eventos de massas com o objetivo de evitar a transmissão do vírus entre um elevado número de pessoas em espaços confinados.”

E dá-se conta de que a referida orientação da DGS, teve, desde logo, um efeito alargado no cancelamento ou adiamento de vários espetáculos ao vivo de natureza artística, então agendados, que se tornou obrigatória “com a declaração de Estado de Alerta, emitida pelo Governo no dia 13 de março”.

Por via deste diploma, o Governo decidiu aprovar «um regime de caráter excecional, que confira uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização dos espetáculos não realizados em virtude da pandemia. Por outro lado, alguns espetáculos carecem de preparação, ensaios, montagens e outros atos técnicos que não podem ser realizados no período em que vivemos, impossibilitando a realização dos mesmos ainda que agendados para uma data posterior ao fim do estado de emergência».

O referido diploma « aplica-se a todos os espetáculos que não podem ser realizados no lugar, dia ou hora agendados, entre os dias 28 de fevereiro de 2020 e até ao 90.º dia útil seguinte ao fim do estado de emergência», determinando-se, em primeiro lugar, que « os espetáculos não realizados devem, sempre que possível, ser reagendados, devendo todos os agentes culturais envolvidos na realização do espetáculo intentar todos os esforços para a sua concretização, segundo as regras da boa-fé». Em segundo lugar «o espetáculo reagendado deve ocorrer no prazo de um ano a contar da data inicialmente prevista. Caso seja necessário substituir o bilhete de ingresso do espetáculo reagendado, por mudança de local, data ou hora, o mesmo não terá custos acrescidos para o consumidor final.”. Em terceiro lugar “caso o espetáculo não possa ser reagendado, o seu cancelamento deve igualmente ser anunciado, devendo ser indicado o local, físico e eletrónico, o modo e o prazo de restituição do preço dos bilhetes de ingresso já adquiridos, garantindo-se os direitos dos consumidores.” Em quarto lugar “estabelece-se uma proibição de cobrança de comissões pelas entidades que vendem bilhetes aos agentes culturais pelos espetáculos não realizados”. Em quinto lugar “aplicam-se, com as necessárias adaptações, aos proprietários ou entidades exploradoras de instalações, estabelecimentos e recintos de espetáculos as regras relativas ao reagendamento e cancelamento de espetáculos e respetivas devoluções de valores pagos. Deste modo, caso o espetáculo seja reagendado, não pode ser cobrado qualquer valor suplementar ao promotor do evento. Porém, caso o espetáculo seja cancelado, o valor pago pela reserva da sala ou recinto deve ser devolvido ao promotor do evento ou, por acordo entre as partes, o valor pago pela sala ou recinto pode ser utilizado para a realização de outro espetáculo”. Por fim “de forma a garantir a sustentabilidade dos agentes culturais envolvidos na criação, produção e realização dos espetáculos, permite-se que as entidades públicas promotoras, em caso de reagendamento dos espetáculos, se socorreram dos regimes de adiantamento do preço, revisão de preços e ainda do regime dos bens, serviços ou trabalhos complementares. Em caso de cancelamento podem a entidades públicas promotoras proceder ao pagamento dos compromissos assumidos e efetivamente realizados, na respetiva proporção.
No artigo 11.º deste diploma, sob a epígrafe “Espetáculos promovidos por entidades públicas”, previa-se que:
«1 - As entidades públicas, promotoras de espetáculos abrangidos pelo presente decreto-lei, podem aplicar aos contratos celebrados e a celebrar as normas previstas nos artigos 2.º a 4.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual.
2 - As entidades públicas que tenham que proceder ao reagendamento dos espetáculos podem contratar bens, serviços ou trabalhos complementares, ao abrigo do disposto nos artigos 438.º e 454.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, bem como aplicar o regime da revisão de preços, se aplicável.
3 - As entidades públicas que tenham de cancelar os espetáculos por impossibilidade de reagendamento dos mesmos podem proceder ao pagamento do preço dos compromissos anteriormente assumidos, caso o bem ou serviço tenha sido efetivamente prestados, ou na respetiva proporção, aplicando-se o disposto no artigo 299.º do CCP.»

Este diploma foi alterado pela Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, cujo artigo 11.º passou a dispor do seguinte modo:
«1 - As entidades públicas e os organismos de direito público referidos no Código dos Contratos Públicos ou entidades adjudicantes previstas no artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, promotores de espetáculos abrangidos pelo presente decreto-lei, podem aplicar aos contratos celebrados e a celebrar as normas previstas nos artigos 2.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.
2 - As entidades referidas no n.º 1 que tenham que proceder ao reagendamento dos espetáculos podem contratar bens, serviços ou trabalhos complementares, ao abrigo do disposto nos artigos 438.º e 454.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, bem como aplicar o regime da revisão de preços, se aplicável.
3 - As entidades referidas no n.º 1 que tenham de cancelar os espetáculos por impossibilidade de reagendamento dos mesmos podem proceder ao pagamento do preço dos compromissos anteriormente assumidos, caso o bem ou serviço tenha sido efetivamente prestado, ou na respetiva proporção, aplicando-se o disposto no artigo 299.º do CCP.
4 - As entidades referidas no n.º 1 podem reagendar os espetáculos de entrada livre até ao prazo de 24 meses após a cessação das medidas de proibição ou limitação de realização de espetáculos.
5 - As entidades referidas no n.º 1 devem garantir, nos casos de cancelamento e reagendamentos, a realização dos pagamentos nos prazos contratualmente estipulados ou, o mais tardar, na data que se encontrava inicialmente agendado o espetáculo, no montante mínimo de 50 % do preço contratual, sem prejuízo de eventual alteração do contrato com vista à nova calendarização do espetáculo e pagamentos subsequentes.
6 - As entidades referidas no n.º 1 devem garantir a conclusão dos procedimentos de formação de contratos públicos para os quais já tenha sido emitida a decisão de contratar e envio de convite à apresentação de propostas, nos casos de programação já anunciada, mas ainda não contratualizada, aplicando-se o disposto nos números anteriores após a assinatura do contrato.”.

A Lei n.º 7/2020, de 10/04, para o que releva à economia dos presentes autos, aditou ainda um art.º 11-A, que sob a epígrafe “Intermediários” passou a prever que:
“1 - Sempre que os pagamentos previstos no artigo anterior sejam efetuados a agentes, produtores e companhias de espetáculo ou a quaisquer outros intermediários, devem estes, no prazo de 10 dias úteis, após receberem o pagamento da entidade contratante referida no n.º 1 do artigo anterior, proceder ao pagamento proporcional e equitativo aos trabalhadores envolvidos nos eventos respetivos, designadamente autores, artistas, técnicos e outros profissionais e empresas que tenham sido contratados para o espetáculo em questão, sem prejuízo da cobrança proporcional de comissões que lhes sejam devidas.
2 - Nos casos de reagendamento, os pagamentos referidos no número anterior são havidos como sinal e princípio de pagamento da prestação a efetuar na data para a qual o espetáculo vier a ser reagendado.”

Entretanto, no dia 29/05/2020 foi publicada a Lei n.º 19/2020, que entrou em vigor no dia 30 de maio de 2020, que procedeu à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, passando o artigo 11.º a dispor o seguinte:
(…)
5 - As obrigações previstas no presente artigo aplicam-se, igualmente, aos casos em que ainda não tivesse sido finalizada a celebração do contrato à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, desde que:
a) O procedimento da respetiva formação já tivesse sido iniciado; ou
b) A programação tivesse sido anunciada; ou
c) As entidades promotoras tivessem comunicado por escrito ao agente cultural a confirmação da realização do espetáculo em causa, aceitando o preço e respetiva data.
6 - Nos casos referidos no número anterior, as entidades adjudicantes referidas no n.º 1 devem iniciar ou concluir os procedimentos de aprovação da despesa e de formação de contratos públicos necessários à celebração efetiva do contrato e à realização dos pagamentos a que haja lugar, quer nos casos de cancelamento quer nos casos de reagendamento, podendo, quer no caso de procedimentos a iniciar quer no caso de procedimentos já iniciados, adotar as normas previstas nos artigos 2.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com as necessárias adaptações. (…)”.

Resulta do n.º6 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, na versão aplicável, que são pressupostos, para que as entidades públicas e organismos de direito público referidos no CCP ou entidades adjudicantes previstas no art.º 2.º do mesmo CCP, promotoras de espetáculos, fiquem adstritas a garantir a conclusão dos procedimentos de formação de contratos públicos que: (i) já tenha sido emitida a decisão de contratar; (ii) que já tenha sido enviado o convite para a apresentação de propostas e, (iii) que já tenha havido uma programação anunciada, embora ainda não contratualizada, aplicando-se, em tais casos, as disposições anteriores do art.º 11.º.

A questão em dissídio, como vimos, coloca-se em relação ao requisito relativo à existência ou não de uma “programação anunciada”, que o Tribunal a quo considerou verificado e que o Apelante considera inexistir, impetrando erro de julgamento à decisão, como vimos.

Está em causa saber se o Tribunal a quo errou ao considerar verificado aquele requisito, pelo que impera que se analise se errou na interpretação que fez desse enunciado normativo, tomando por referência os cânones interpretativos previstos no artigo 9.º do CC.

Como escreve MANUEL DE ANDRADE In “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, Coimbra, 1978, pág. 26;, interpretar “quando de leis se trata, significa algo diverso de interpretar em outras coisas: interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (...) Os princípios da interpretação devem, por consequência, dar-nos não só a possibilidade de atrás das palavras encontrarmos os pensamentos possíveis, mas também a de entre os pensamentos possíveis descobrimos o verdadeiro”.

A metodologia interpretativa imposta pelo legislador parte, como não poderia deixar de ser, da própria letra da lei, pelo que o texto legal deve ser abordado nos termos hermenêuticos gerais das «regras da gramática». E uma vez fixado esse sentido textual, o mesmo servirá tanto de ponto de partida como de limite para as diversas interpretações possíveis (artigo 9º, nº2 do CC).

Assim, embora a ratio da norma seja inquestionavelmente importante (artigo 9º, nº1 do CC), é pelo texto que se começa, pois só por absurdo nos poríamos a inquirir a ratio do texto sem antes o conhecer. O que não obsta a que a ratio, uma vez obtida, reflua depois para o aprimoramento do sentido do texto, de modo que de entre os seus sentidos possíveis se eleja o sentido prevalente, ou decisivo.

E na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador «consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9º, nº3 do CC).
Segundo a doutrina, o intérprete, socorrendo-se dos «elementos interpretativos legais» acabará por chegar a uma das seguintes modalidades interpretativas: - interpretação declarativa; - interpretação extensiva; - interpretação restritiva; - interpretação revogatória e interpretação enunciativa. Cfr. Baptista Machado, in «Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador», 4ª impressão, Coimbra, 1990, páginas 183 a 188].

Conforme PAULA COSTA E SILVA e MIGUEL BRITO BATOS Cfr. CJA, N.º122, pág. 11 e segts. afirmam «o regime da interpretação da lei assenta na enunciação de tipos de argumentos (ou “elementos”), os quais devem ser relevantes na determinação do significado da lei. Não são, contudo, estabelecidos- pelo menos no art.º 9.º do Código Civil- critérios sobre o peso relativo desses argumentos, que determinem quais os elementos de interpretação que devem prevalecer, no caso de diferentes elementos, quando considerados em separado, apontarem no sentido de diferentes interpretações».

Prosseguem aqueles autores, sustentando que tendo em conta que nos termos do art.º 1.º, n.º 2 do CC “Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes”, «o significado da norma deve ser expresso de forma que esta possa ser corretamente entendida pela generalidade dos seus potenciais destinatários e, portanto, usando uma linguagem que seja partilhada pela generalidade desses destinatários. Assim, aos enunciados legais não pode ser atribuído um significado que não tenha qualquer correspondência com o uso comum das palavras que compõem esse enunciado. É essa a justificação subjacente aos limites literais à interpretação dos enunciados normativos colocados pelo artigo 9.º, n.º2, do CC, o qual, assim, traduz uma exigência de segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado de Direito ( art.º 2.º da Constituição).

Dentro desses limites literais, o significado que se deve atribuir a cada preceito depende de argumentos históricos, sistemáticos e teleológicos».
No que tange aos argumentos históricos referem que os mesmos assentam na ideia de que a lei é o produto de uma decisão voluntária dos titulares de um órgão e de que o exercício por esses sujeitos da competência normativa atribuída ao órgão é justificado pela sua legitimidade democrática. “O respeito pela legitimidade democrática conduz, assim, a que, prima facie, os enunciados legais devam ser interpretados com o sentido que os titulares do órgão pretenderam exprimir através da redação do enunciado”.

Já a relevância dos argumentos sistemáticos encontra o seu fundamento, adiantam, na ideia de coerência valorativa do sistema.
No que tange aos argumentos teleológicos, observam que mesmos assentam numa ideia de coerência valorativa do sistema, e de que os preceitos normativos devem ser interpretados no sentido que melhor prosseguir o objetivo pretendido pelo legislador. Deste modo, estes argumentos têm como momento basilar a determinação da finalidade prosseguida por cada norma.

Em suma, as regras sobre interpretação das normas apenas serão convocadas quando houver que escolher qual de entre diversos sentidos potencialmente equacionáveis, o que prevalece.

Cientes destes princípios e regras hermenêuticas, procuremos interpretar a lei, aqui em causa, visando aferir a sua correta aplicação.
Prevê o n.º 6 do art.º 11 da Lei n.º 10-I/2020, de 26/03 que são requisitos de verificação cumulativa para a sua aplicação em ordem a determinar a entidade pública, no caso o MUNICÍPIO DE (...), a concluir o procedimento contratual que estava em curso para a formação do contrato de prestação de serviços com a autora, relembra-se, que já tivesse sido emitida a decisão de contratar, enviado o convite para a apresentação das propostas e que existisse uma programação anunciada do evento.

O dissenso entre o Recorrente e a autora, e bem assim, de divergência em relação ao entendimento professado pela Senhora juiz a quo, radica, reafirma-se, na interpretação que um e outros fazem do que deve entender-se pelo último dos identificados requisitos.

Assim, tudo está em saber o que se deve entender por “programação já anunciada”.

Para o tribunal a quo, o pressuposto descrito como “programação já anunciada” deve-se considerar como preenchido ante a existência, no caso, de um anúncio público da realização do evento, bem como de datas definidas para o mesmo, e bem assim por já existir uma predefinição por parte da entidade pública do número de eventos que haveriam de compor o festival, estando já determinadas as atividades concretas relativamente a cada área artística designadamente, música, poesia, teatro, cinema, entre outras, no caderno de encargos.

Para o apelante, seria necessário, como já defendeu em sede de contestação, para o preenchimento desse requisito não apenas que os eventos estivessem já identificados, mas também que tivesse sido publicada a sua data de realização, identificados os artistas e performances que se iriam realizar, os concretos locais de atuação e respetivo horário.

Perante as dúvidas que o referido enunciado normativo suscita, importa começar por aquilatar qual o seu significado literal. Nesse exercício interpretativo, cremos poder afirmar que o sentido literal que se extrai dos vocábulos “programação anunciada” em relação a um festival, no sentido comummente atribuído, tanto poderá significar a revelação/ divulgação do plano de atividades de um evento, ou seja, a prévia declaração/definição daquilo que se pondera fazer relativamente a um evento, em suma, a sua memória descritiva, como poderá significar a divulgação do agendamento de um evento, no sentido de evento programado para certa data e local, mas em relação ao qual ainda não se conhecem todos os detalhes.

Considerando apenas o teor literal dessa norma isolada, diremos que ninguém parte com vantagem no dissenso.

Porém, perante uma interpretação literal ambígua, ou com vários sentidos, devemos optar por aquela que melhor se coaduna com os demais elementos da interpretação da lei. É o que decorre do art. 9º do C. Civil, quando nos diz que a “interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo” (n.º 1), realçando ainda que na fixação do sentido e alcance da lei presume-se que o legislador consagrou a “solução mais acertada” (n.º 2).

Apelando ao argumento sistemático que tem o seu fundamento na ideia de coerência valorativa do sistema, ou seja, de que as leis se interpretam umas às outras, antecipa-se que o sentido a atribuir ao enunciado normativo em análise não abona em favor do entendimento sustentado pelo Apelante.

O Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de fevereiro, na sua atual redação, que aprova o regime de funcionamento dos espetáculos de natureza artística e de instalação e fiscalização dos recintos fixos destinados à sua realização bem como o regime de classificação de espetáculos de natureza artística e de divertimentos públicos, conformando-o com a disciplina do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, que transpôs a Diretiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno, dispõe no artigo 2.º, sob a epígrafe “Definições”, que:
«1 - Para efeitos do presente decreto-lei, consideram-se:
a) «Divertimentos públicos», os eventos destinados ao recreio ou distração dos participantes, que não integrem o conceito de espetáculo de natureza artística, ainda que possam englobar componentes artísticas;
b) «Espetáculos de natureza artística», as manifestações e atividades artísticas ligadas à criação, execução, exibição e interpretação de obras no domínio das artes do espetáculo e do audiovisual e outras execuções e exibições de natureza análoga que se realizem perante o público, excluindo a radiodifusão, ou que se destinem à transmissão ou gravação para difusão pública;
c) «Programa de espetáculos de natureza artística», o documento, a apresentar pelo promotor do espetáculo de natureza artística, que enuncia e identifica as obras a executar, recitar, exibir ou apresentar ao público, numa determinada data ou datas, bem como os artistas e intérpretes;
d) «Promotor de espetáculo de natureza artística», a pessoa singular ou coletiva que tem por atividade a promoção ou organização de espetáculos de natureza artística;
e) «Recintos fixos de espetáculos de natureza artística», os espaços delimitados, resultantes de construções de caráter permanente, que, independentemente da respetiva designação, tenham como finalidade principal a realização de espetáculos de natureza artística;
f) «Videograma», o suporte material, analógico ou digital, de imagens, acompanhadas ou não de sons, através do qual é permitida a visualização da obra pelos meios tecnológicos atualmente existentes, bem como qualquer outro meio de fixação, disponibilização ou interatividade que possa vir a ser determinado pela inovação tecnológica, bem como os videojogos ou jogos, disponibilizados através da Internet ou de redes especiais, independentemente do suporte material, forma de fixação ou interatividade.
2 - Integram o conceito de espetáculos de natureza artística, nomeadamente, as representações ou atuações nas áreas do teatro, da música, da dança, do circo, da tauromaquia e de cruzamento artístico, e quaisquer outras récitas, declamações ou interpretações de natureza análoga, bem como a exibição pública de obras cinematográficas e audiovisuais, por qualquer meio ou forma.
3 - Para efeitos do presente decreto-lei, não se consideram espetáculos de natureza artística os eventos de natureza familiar, sem fins lucrativos, para recreio dos membros da família e convidados, a realizar no lar familiar ou em recinto autorizado para esse fim.
4 - Para efeitos do presente decreto-lei, considera-se colocação à disposição do público, a promoção e exploração de obras no domínio das artes do espetáculo e do audiovisual, através de oferta digital ou da possibilidade de acesso, no local e tempo selecionado pelo utilizador, por qualquer meio ou forma.» ( negrito nosso).

Conforme se retira do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14/02, o legislador cuidou de definir o que se entende por “Programa de espetáculos de natureza artística”, indicando que se considera como tal “ o documento, a apresentar pelo promotor do espetáculo de natureza artística, que enuncia e identifica as obras a executar, recitar, exibir ou apresentar ao público, numa determinada data ou datas, bem como os artistas e intérpretes”.

No n.º 6 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23/03, na redação conferida pela Lei n.º 7/2020, de 10/04 o legislador não se referiu à necessidade da existência de um “Programa de espetáculos de natureza artística” já anunciado, embora não contratualizado mas antes à necessidade da verificação do pressuposto traduzido na existência de “ uma programação já anunciada, mas ainda não contratualizada”. Esta diferença de terminologia não é despicienda.

Significa tal, que do ponto de vista sistemático, o entendimento preconizado pelo Apelante é o que corresponde ao conceito de “Programa de espetáculos de natureza artística”, que o legislador não utilizou no enunciado normativo em análise, tendo antes usado os vocábulos “programação anunciada”, donde se conclui que do ponto de vista do argumento sistemático a tese do apelante não encontra apoio quando consideramos a unidade do ordenamento jurídico.

Convocando agora, o elemento teleológico, ou seja, apelando àquela que terá sido a ratio legis que presidiu às soluções previstas pelo legislador no citado diploma e concretamente na norma em análise, antevemos que também não assistirá razão ao apelante quando pretende que aquele enunciado normativo valha com o sentido restritivo que preconiza.

O desígnio que o legislador teve em vista com a instituição deste regime especial foi assegurar uma proteção especial aos agentes culturais e artísticos através da previsão de um conjunto de medidas excecionais e temporárias no âmbito cultural e artístico, em especial quanto a espetáculos não realizados, em relação aos quais estivessem em curso procedimentos abertos pelas entidades públicas e em que, mesmo sem adjudicação e sem contrato celebrado, em função da verificação de certos pressupostos, se tem como certa a assunção de compromissos por parte dos promotores/agentes culturais e artísticos com base no pressuposto da realização do evento e da celebração do contrato. Diremos que o legislador teve em vista proteger os agentes culturais e artísticos que, em função das negociações já estabelecidas com as entidades públicas a que se refere o n.º 1 do art.º 11.º , e independentemente da finalização da tramitação procedimental prevista no CCP para a celebração do contrato administrativo, assumem compromissos no pressuposto da realização do evento, e obviamente da celebração do contrato. Ou seja, conferir proteção aos promotores culturais e artísticos que perante a realização programada de um evento artístico já encetaram, com toda a certeza, negociações, contratações e investimentos em ordem a cumprir as obrigações que embora ainda não contratualizadas, se justificavam ante a necessidade de garantir a realização do evento em perspetiva, na data prevista para a sua realização.

Ademais, o legislador não desconhece que neste setor específico de atividade de âmbito cultural e artístico, como bem nota a Senhora juiz a quo, as negociações e vinculações assumidas pelos promotores dos eventos a contratar pelas entidades públicas antecedem frequentes vezes a celebração dos respetivos contratos administrativos e daí que, a fixação dos referidos pressupostos tenha subjacente esta realidade, impondo às entidades públicas contratantes a obrigação de concluir o procedimento iniciado, se já se estiver perante uma realidade em que pese embora a inexistência de contrato as partes foram convocadas a mobilizarem-se em ordem à concretização do evento, cuja realização, pese embora a inexistência de contrato, era uma certeza inabalável não fora, in casu, a situação pandémica verificada.

Logo, o referido pressuposto não pode ser objeto da interpretação restritiva que dele faz o Apelante, que contraria, a nosso ver, a ratio legis que o legislador teve em vista com a aprovação desse regime especial e excecional.

Na verdade, a ser como pretendia o apelante, inúmeras situações ficariam de fora, uma vez que a exigência de um programa de espetáculos de natureza artística”, no sentido preconizado pelo mesmo, ou seja, no sentido da existência de um documento apresentado pelo promotor do evento com todo o detalhe, incluindo a identificação dos artistas, é a etapa finalíssima da organização de um evento artístico, que nem sequer existe com tal detalhe, na maioria das situações em que existe já contrato administrativo celebrado.

Assim, sendo, afigura-se-nos que em função do elemento teleológico o sentido do enunciado normativo não equivale ao de “Programa de espetáculos de natureza artística” que é, a bem ver, o preconizado pelo apelante e que coincide com o previsto na al. c) do n.º1 do art.º 2.º do DL n.º 23/2014, de 14/02, mas ao conceito mais amplo da existência de datas fixadas e local já designado para a realização do espetáculo, e duma previa definição do que se pretende mostrar nesse evento, ou seja, da arquitetura do festival, num contexto em que o promotor cultural e artístico seja levado a assumir compromissos no pressuposto da celebração do contrato, de modo a garantir a realização do evento nas datas e local anunciados ao promotor.

Quanto ao elemento histórico, que convoca o interprete a considerar os trabalhos preparatórios, o preâmbulo ou relatório, occasio legis, assim como a evolução legal sobre a matéria, além de outros, diremos que o mesmo também não intervém em sentido favorável ao entendimento preconizado pelo Apelante.

Neste âmbito, assume particular relevo as alterações que foram introduzidas ao artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23/03, pela Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, em cujo n.º5 se passou a estabelecer que:
«5- As obrigações previstas no presente artigo aplicam-se, igualmente, aos casos em que ainda não tivesse sido finalizada a celebração do contrato à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, desde que:
a) O procedimento da respetiva formação já tivesse sido iniciado; ou
b) A programação tivesse sido anunciada; ou
c)As entidades promotoras tivessem comunicado por escrito ao agente cultural a confirmação da realização do espetáculo em causa, aceitando o preço e respetiva data.»

Tais alterações aos pressupostos de que depende a sujeição das entidades públicas contratantes às obrigações previstas no artigo 11.º, dos quais emerge que bastará que se verifique uma das situações previstas no n.º5 desse preceito, confirma que a vontade do legislador foi a de proteger os promotores culturais e artísticos que já tivessem assumido compromissos no pressuposto da celebração do contrato, aceitando que isso sucederá se o procedimento da respetiva formação do contrato já tiver sido iniciada, ou, se a programação já tiver sido anunciada ou ainda se as entidades promotoras já tiverem comunicado por escrito ao agente cultural a confirmação da realização do espetáculo em causa, aceitando o preço e a respetiva data.

Dir-se-á que o legislador ao estabelecer um pressuposto como o da referida alínea a), de cuja verificação, de per se , emerge o direito à finalização do procedimento de contratação, em que se dispensa a exigência do envio do convite para a apresentação de propostas, como se verificava no âmbito do n.º6 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26/03, teve em mente não só as situações como a dos autos, em que se está perante a realização de um espetáculo de continuidade, como a realidade que envolve a contratação deste tipo de serviços, cujas negociações com quem se pretende contratar, muitas vezes antecedem a formalização das várias etapas previstas no procedimento pré-contratual, sendo a mais das vezes dessas prévias negociações que decorre a definição/escolha da prestação/prestador que se pretende contratar e respetivos termos.

A tese de que o legislador quis significar com a expressão “programação anunciada” que já existisse uma programação do evento fechada, no sentido de absolutamente identificados quem seriam os concretos artistas contratados, a que concretas horas atuariam, em que concretos locais da cidade de (...) se realizaria a atuação de cada um desses artistas, etc…no âmbito do referido festival, não tem fundamento aceitável atento o fito pretendido alcançar pelo legislador com a aprovação das medidas previstas no referido diploma. Convém não esquecer que o fecho da programação artística de um festival em sentido estrito, é a etapa finalíssima da organização de um festival, que não estaria sequer disponível nem era exigível, in casu, aquando da celebração do contrato administrativo.

Como já dissemos, ao regime estabelecido nesse diploma, esteve subjacente a realidade recorrente neste setor de atividade, em que as negociações e a assunção de compromissos por parte dos agentes culturais e artísticos ocorrem a mais das vezes quando o procedimento ainda está em curso e no pressuposto da celebração do contrato.

E sendo assim, não faria sentido que ao referir-se à existência de uma “programação anunciada, mas não contratualizada, estivesse a querer com esses vocábulos cobrir apenas aquelas situações em que já houvesse a divulgação do programa artístico final do evento em causa, caso em que então, o legislador se teria antes previsto a necessidade da existência da programação artística do evento.

No caso, quer a autora, quer o réu, conheciam sobejamente a arquitetura da programação do evento. É o que desde logo resulta da consideração do n.º2 da cláusula 24ª do caderno de encargos, relativa às obrigações do adjudicatário, onde se refere que “ Os eventos que se indicam no número seguinte, quer em termos de localização, quer em termos de número, terão como base os anos anteriores, muito embora seja possível proceder a alguns ajustes, por acordo entre as partes e desde que não se desvirtue o espirito do concurso”.

E no n.º 3 da referida cláusula do CE, que se reproduz, lê-se que:« 3 - O MIMO Festival (...) 2020 e o MIMO Festival (...) 2021 compreende as seguintes actividades, que, por cada um dos dois anos, resultam exactamente da utilização da marca: concertos, exibições de filmes, etapas educativas, fórum de ideias e chuva de poesia, realizando no mínimo 45 (quarenta e cinco) actividades por ano: a) MÚSICA. A maior atracção do MIMO Festival são os concertos. Os concertos, com uma previsão de 18 (dezoito), serão distribuídos entre o palco ao ar livre no Parque Ribeirinho, as igrejas de São Gonçalo, São Pedro e o Museu Amadeo de Souza-Cardoso, ou outros locais a acordar entre as partes e mediante disponibilidade dos mesmos espaços, sempre com alta qualidade artística e com iluminação exclusivamente desenhada para cada um dos concertos, os espaços do património Amarantino transformar-se-ão em cenários para as atracções musicais de excelência. b) CINEMA. Simultaneamente aos concertos, o público será contemplado com o MIMO Festival de Cinema, dedicado às recentes produções cinematográficas que tenham a música como protagonista ou fio condutor. Os filmes, num total previsto de 11 (onze), serão projectados no Cinema Teixeira de Pascoaes e no claustro da Câmara Municipal de (...), ou outros locais a acordar entre as partes mediante a disponibilidade à data. c) POESIA Das varandas localizadas no largo de São Gonçalo (Praça da República), em (...) serão lançadas milhares de folhas com poemas seleccionados, com particular incidência num autor a definir, prevendo-se 1 (um) evento desta natureza por cada um dos anos de realização do Festival. d) PROGRAMA EDUCATIVO. O MIMO Festival confere lugar de honra à Etapa Educativa na sua programação: workshops, máster-classes e oficinas oferecidas gratuitamente aos alunos inscritos, que potencializam as questões técnicas, a expressão artística, o enriquecimento de repertório e a capacidade de liderança. Representam momentos ímpares em que a nova geração trava contacto directo com quem construiu carreiras sólidas e de projecção internacional. Prevendo-se 10 (dez) acções educativas no Centro Cultural de (...), por cada um dos anos de realização do Festival. e) FÓRUM DE IDEIAS. Promove o debate, a reflexão e a troca de conhecimento sobre as inúmeras possibilidades de se fazer e pensar a arte, através de palestras ministradas por grandes pensadores da cultura. Prevendo-se a realização de 2 (duas) actividades em cada um dos anos de realização do festival, a levar a efeito no Museu Amadeo de Souza-Cardoso. f) ROTEIRO CULTURAL GUIADO. (...) reúne o Portugal histórico e o contemporâneo. A cidade possui singularidade no seu património e equipamentos culturais e de lazer em impecáveis condições de uso. O MIMO Festival promoverá roteiros pela cidade e região, onde o público será acompanhado por guias do Turismo, especializados em Património Cultural. Prevendo-se a realização de 3 (três) roteiros culturais. 4 - Coordenação artística e técnica dos espectáculos, designadamente a direcção geral, direcção de produção, curadoria artística, coordenação de cinema, coordenação de programa educativo, coordenação de produção, assunção de produção executiva e assistentes do e para os Festivais «MIMO – Festival (...) 2020» e «MIMO Festival (...) 2021»; (...) 11 – Sem prejuízo das disposições da cláusula seguinte, facultar à Entidade Adjudicante a programação artística, bem como todo o material para promoção e publicidade do festival, livre de quaisquer encargos.»

No caso, desde o início do procedimento que a programação do festival MIMO estava anunciada, nos termos pressupostos pelo n.º 6 do artigo 11.º. Na verdade, logo no CE se cuidou de definir e anunciar as diversas partes ou ações em que o festival se decompunha. Se não antes, pelo menos desde o momento em que apresentou a sua proposta, autora estava em condições de avançar com a contratação dos artistas e dos prestadores dos demais serviços necessários a garantir a realização do MIMO Festival, designadamente em relação à edição de 2020, marcada para os 24 a 26 de julho desse ano. Não é despiciendo ponderar que a realização do MIMO Festival em (...) não é uma novidade, na medida em que esse evento tem-se repetido naquela cidade desde 2016, contando já com 4 edições seguidas, a última em 2019, facto notório que é do conhecimento público. Trata-se de um festival de continuidade e de envergadura, cuja logística se antevê extremamente pesada.

Ademais, como não é difícil de intuir, e nota a apelada, a organização de um festival dessa envergadura não seria viável num tão curto espaço de tempo como o dos prazos procedimentais revelados neste concurso, caso a autora não estivesse já a diligenciar pela contratação dos vários artistas e técnicos, e demais prestadores de serviços e fornecedores de bens e equipamentos, e mesmo já contratado com alguns deles, como se provou suceder no caso, sem o que a autora, mesmo contando com a sua experiência na realização do aludido festival, na data em que viesse a ser-lhe adjudicada a prestação de serviços em causa pelo Réu e celebrado o respetivo contrato, certamente não poderia assumir responsavelmente as obrigações daí decorrentes, porquanto não saberia se os diversos artistas e demais prestadores estariam dispostos ou disponíveis para prestarem os serviços cuja vinculação assumiria perante a Ré mediante a celebração do contrato em causa.

Como bem alega a apelada, um festival desta envergadura começa a ser preparado logo que finaliza o que o antecede. O facto de apenas em março de 2020 ter sido aprovada a decisão de contratar os serviços em causa à autora e só então aprovado o caderno de encargos e o convite à autora para apresentação da respetiva proposta, é bem demonstrativa de que tudo começou antes, como não podia deixar de ser, e daí que a autora junte aos autos contratos celebrados ainda antes da abertura do procedimento concursal destinados à realização do referido festival.

Os festivais MIMO são, como alega a apelada, uma organização de médio/longo prazo, e a legislação impeditiva da realização do referido festival, apenas vigoraria até 02 de maio de 2020, pelo que até aí, nada obstava a que a autora não cuidasse de diligenciar pela preparação da edição do festival MIMO 2020. Considerando a data prevista para a realização do Festival MIMO 2020 – dias 24 a 26 de julho de 2020-, é para nós crível que, como alega a autora, as diligências de contratação da sua parte para aquele evento, à data, já estivessem muitas delas quase concluídas, tanto mais que a realização/produção do festival implica, insiste-se, uma organização de médio/longo prazo (facto notório). Não se estava perante a realização de um festival cuja arquitetura em termos de programação estivesse a ser “encomendada” pela primeira vez à autora, tratando-se, como é publico e notório, de um festival de continuidade no concelho de (...), em que, a negociação com os artistas inicia-se mal termina o festival antecedente, altura em que se dá início às negociações e contratações necessárias à realização do festival do ano seguinte.

Dir-se-á que no caso, era até altamente recomendável, se não mesmo agir responsavelmente , que a proponente única ao procedimento pré-contratual para a realização do festival MIMO, visto estar-se perante um procedimento de ajuste direto ao abrigo da subalínea iii) da alínea e) do artigo 24.º do CCP, em que a autora é titular do direito exclusivo de utilização da marca “Festival Mimo /ou MIMO Mostra Internacional de Música em Olinda” em Portugal, cuidasse de estabelecer os contactos necessários e eventualmente ainda em falta com os artistas e demais prestadores de serviços em ordem à pretendida realização, pelo menos, da edição 2020 do Festival MIMO, cuja data programada para a sua ocorrência estava próxima, pelo que, na situação vertente, tal como decidiu a 1.ª Instância, estão verificados todos os pressupostos previstos no artigo 11.º, n.º6 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23/03, na redação aplicável, para a sujeição do Apelante ao regime estabelecido no referido diploma e artigo 11.º.

b.2.2. Saber se, uma vez verificados os pressupostos previstos no n.º6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23/03, a sua aplicação se devia restringir apenas à edição do Festival MIMO de 2020, deixando de fora a edição de 2021.

O apelante critica a decisão recorrida, sustentando que se o Tribunal a quo entendia como aplicável ao presente procedimento o regime previsto no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, teria que necessariamente ter concluído que tal aplicabilidade apenas poderia ter como referência a edição de 2020 do festival e, nessa medida, decidir pela inaplicabilidade do referido regime legal à edição de 2021, e isso pese embora, ainda que o procedimento de contratação em causa tenha como fito a celebração de um contrato uno para organização do festival em causa nos anos de 2020 e 2021.

Isto porque, a verificação dos requisitos previstos no n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26 de março, de nada vale se desacompanhada do cumprimento do âmbito de aplicação gizado pelo n.º 1 do artigo 2 do referido Decreto-Lei.

Como tal, o Tribunal a quo deveria, em sede de fixação das consequências resultantes da aplicabilidade do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, distinguir entre aquelas duas edições, fazendo impender sobre o Município Recorrente, apenas e tão só as obrigações que para si resultam da aplicação daquela norma à edição de 2020 do festival ora em causa, não sendo o anúncio da edição de 2020 uma realidade transponível para a edição subsequente.

Vejamos.
Não é despiciendo considerar o que foi invocado pelo Réu, em sede de contestação, como bem nota a apelada nas suas alegações, e que foi o seguinte:
«105º.
Como a Autora bem sabe, quanto mais não seja porque tal resulta das peças do procedimento, o procedimento de aquisição de serviços de organização do festival MIMO 2020 e 2021 foi promovido, de forma una, num único contrato destinado à organização do festival em dois diferentes anos.
106º.
Destarte, assume-se como juridicamente necessário que a prolação de uma decisão de não adjudicação no âmbito de um procedimento concebido desta forma tenha como consequência o cancelamento da realização dos festivais nos dois anos contratualizados – pois tal decisão afeta toda a decisão de contratar!
151º.
Ademais, não é sem alguma estupefação que o Réu se vê confrontado com as alegações proferidas pela Autora, segundo as quais a decisão de não adjudicação, ao abranger a realização do festival MIMO 2021, é carente de fundamento legal.
152º.
Tal alegação, de tão desprovida de sentido, apenas pode ser tomada como um manifesto lapso por parte da Autora na construção da sua douta petição inicial.
153º.
Isto porque o procedimento ora em causa está, de forma cristalina e perfeitamente translúcida, concebido no sentido de, através de si, serem contratados os serviços de organização dos festivais a realizar nos anos de 2020 e 2021.
154º.
Partindo desta conceção unitária e unívoca do procedimento ora em causa, é evidente que a prática de uma decisão de não adjudicação no âmbito do referido procedimento iria afetar, em bloco, a contratação dos serviços de organização de ambos os festivais,
155º.
Tal como, aliás, aconteceria caso estivessem reunidas as condições para que o Réu pudesse concluir o procedimento de contratação dos referidos serviços, à luz do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março.
156º.
Nesta medida, não se pode ter como minimamente compreensível que a Autora venha por ora pedir meças e alegar a irregularidade da decisão de não adjudicação pelo facto de esta ter, como nunca poderia deixar de ser, uma natureza transversal à totalidade dos serviços que através do procedimento ao abrigo do qual a mesma foi praticada se pretendia contratar! ». ( sublinhado nosso)

É inquestionável que o procedimento de contratação em causa visava a celebração de um contrato uno para a organização do MIMO Festival nos anos de 2020 e 2021, como aliás é expresso e confessado pelo próprio Apelante. E, bem assim, inquestionável a natureza transversal à totalidade dos serviços que através do procedimento pré-contratual em curso o Apelante pretendia contratar à autora.

Como bem ponderou o Apelante em sede de contestação, partindo desta “conceção unitária e unívoca do procedimento ora em causa” não só era evidente “que a prática de uma decisão de não adjudicação no âmbito do referido procedimento iria afetar, em bloco, a contratação dos serviços de organização de ambos os festivais”, como a mesma consequência “ aconteceria caso estivessem reunidas as condições para que o Réu pudesse concluir o procedimento de contratação dos referidos serviços, à luz do n.º 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março”.

Tendo sido este o entendimento professado pelo ora Apelante em sede de contestação, cujas premissas de que partiu e conclusões a que chegou, subscrevemos pelo seu bom fundamento, o mesmo vem agora sustentar diferente entendimento, numa atuação que configura claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Na verdade, para além de reconhecer que se trata de um contrato uno em que as prestações contratuais assumidas pelas partes respeitavam à realização de ambas as edições do Festival MIMO, verifica-se que o Apelante quer extrair consequências jurídicas de uma pretensa ilegalidade praticada pelo próprio que decidiu a não adjudicação para ambas as edições do festival em causa, pretendendo agora, quando se trata de assumir as consequências jurídicas da sua decisão, distinguir aquilo que ele próprio não diferenciou, isto é, a edição do Festival MIMO 2020 da edição desse Festival para 2021, numa atitude consubstanciadora de indiscutível má-fé e como tal, abusiva, atitude essa que sempre se imporia neutralizar por recurso à cláusula geral do artigo 334.º do Código Civil , neutralizando essa conduta abusiva designadamente em sede indemnizatória.

Resulta do exposto, improceder este fundamento de direito.

b.2.3. Do pagamento imediato de 50% do valor do contrato como indemnização

O apelante insurge-se também contra a decisão recorrida por o Tribunal a quo o ter condenado no pagamento imediato à Autora, do valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa legal em vigor e de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.

Alega que, sempre o pagamento de 50% do valor correspondente à edição agendada para o ano de 2021 poderia ocorrer, nos termos previstos nesse mesmo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, até à data em que deveria originalmente ocorrer essa mesma edição, pelo que não se alcança como logrou o Tribunal a quo determinar, na decisão recorrida, o pagamento imediato do mencionado valor de € 447.154,47, à luz da própria construção do vínculo contratual.

Mas sem razão.

Com efeito, na parte dispositiva da sentença recorrida, na respetiva alínea c) consta a seguinte condenação: “c) Condena-se o Réu a pagar à Autora o valor de € 447.154,47, correspondente a 50% do valor do preço do contrato, acrescido de IVA à taxa em vigor e de juros de mora vincendos, até efectivo e integral pagamento, de acordo com o previsto no nº 5 do artigo 11º do referido normativo.”

De acordo com essa decisão, e bem, decide-se que o pagamento será efetuado pelo Réu, não imediatamente mas nos termos do preceituado no nº 5 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23/03, na redação aplicável, onde se dispõe que as entidades adjudicantes a que se refere o n.º1 do art.º 11.º devem garantir “ nos casos de cancelamento e reagendamentos, a realização dos pagamentos nos prazos contratualmente estipulados ou, o mais tardar, na data que se encontrava inicialmente agendado o espetáculo, no montante mínimo de 50% do preço contratual, sem prejuízo de eventual alteração do contrato com vista à nova calendarização do espetáculo e pagamentos subsequentes”. Isto é, no caso de cancelamento ou de reagendamento aquela indemnização terá de ser paga na data acordada pelos contratantes para esse pagamento ser efetivado, ou na ausência desse acordo na data agendada para a realização dos dois eventos.

Logo, não é certo que a sentença recorrida tenha condenado o Apelante ao pagamento imediato daquela indemnização mas limitou-se a condenar, e bem, nos termos fixados naquele artigo 11.º, n.º5.
Refira-se que no caso em apreço há previsão quanto às datas em que os pagamentos tinham de ser efetuados pelo Apelante à apelada, que consta da cláusula 9.ª do Caderno de Encargos, pelo que naturalmente será nessas datas aí previstas que terão de ser efetuados os pagamentos devidos, de acordo com o aí estipulado.

Improcede, pois, o mencionado fundamento de recurso.
**
b.3. Do erro de julgamento decorrente do Tribunal a quo ter julgado materialmente constitucionais as normas ínsitas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de compelir o Réu aos procedimentos e atos aí previstos, por as mesmas violarem o princípio da autonomia local, ínsito no n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 235.º da CRP

Por fim, o apelante assaca à decisão sob sindicância erro de julgamento de direito por não ter julgado que a aplicação das normas dos n.º 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020 violam o princípio da autonomia local que encontra consagração constitucional, entre nós, no n.º 1 do artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), e cuja operacionalização é garantida pelo disposto no artigo 235.º e seguintes da CRP, desempenhando o conteúdo deste artigo, a par do n.º 1 do artigo 6.º da CRP, um papel absolutamente curial na cristalização da autonomia local como um princípio constitucional fundamental para a organização do Estado de Direito Democrático.

O apelante aduz resultar da concatenação dos artigos 2.º do Anexo I do Regime Jurídico das Autarquias Locais (aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro), no n.º 2 do artigo 7.º e do n.º 2 do artigo 23.º do mesmo diploma legal, com o artigo 45.º da mesma Lei, um princípio da especialidade quanto às atribuições que devem ser prosseguidas pelas autarquias locais, e que embora a indexação das atribuições das autarquias locais aos interesses locais, não precluda a necessidade de compatibilização de tais interesses com outros de natureza nacional, constitui a pedra de toque da autonomia local, pelo que, as autarquias locais apenas se encontram em condições de desempenhar as suas atribuições, a bem da prossecução dos interesses da sua população, se lhe forem atribuídos um conjunto de poderes autárquicos que assegurem a sua liberdade, sem qualquer condicionamento, face ao Estado.

Nessa conformidade, considera que a imposição às autarquias locais da obrigatoriedade de prática de um ato administrativo com sentido pré-definido e ao pagamento de um montante correspondente a 50% do preço contratual, invade a esfera absolutamente reservada à comunidade local, violando a reserva mínima da autonomia local, manietando as autarquias locais, entre outras entidades, do poder de dispor dos seus serviços e da prerrogativa de exercer, em seu nome e por sua responsabilidade, um conjunto de tarefas adequadas à satisfação dos interesses próprios das respetivas populações, fim último das autarquias locais.

Enfatiza que ao fazer aprovar as normas ora em causa, o legislador acaba por dispor do orçamento das autarquias locais e da sua autonomia contratual, impondo a estas entidades a obrigação de alocar uma parte não negligenciável das receitas que compõem o referido orçamento ao pagamento de prestações contratuais não desejadas pelos Municípios, com a agravante de tais prestações nem sequer serem suscetíveis de execução.

Daí que, a seu ver, os n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, quando interpretados no sentido de imporem às autarquias locais o dever de conclusão de procedimentos pré-contratuais e correspetiva obrigação de pagamento de valores correspondentes a prestações não executadas, não podem senão ser considerados como materialmente inconstitucionais, por violação do núcleo essencial da autonomia local, prevista no n.º 1 do artigo 6.º, n.º 2 do artigo 235.º e n.ºs 1 a 3 do artigo 238.º da CRP.

Mais alega que, ainda que se pudesse entender que o disposto naquela norma não é inconstitucional por força do facto de ter sido aprovada durante um estado de exceção constitucional, sempre se impunha concluir que citada norma violaria os termos em que tal estado foi decretado, designadamente porque, violando o princípio da autonomia local e, por conseguinte, o princípio do Estado unitário, a referida norma está a infringir o disposto no n.º 3 do artigo 5.º do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 de 18 de março, preceito que proíbe que as medidas adotadas durante a vigência do estado de emergência desrespeitem a referida unitariedade do Estado.

Mas sem razão, diga-se.

A autonomia local, como bem entende o Apelante, não tem um valor absoluto, sendo suscetível a sua constrição em determinadas situações, ou seja, desde que se verifiquem cumulativamente três pressupostos: i) a limitação decorrer da lei; ii) quando o interesse público nacional ou supralocal o justificar; iii) sempre com a ressalva de um núcleo essencial da autonomia local.

Na situação vertente, a disciplina prevista nos n.º5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, não viola o princípio da autonomia local ínsito no n.º 1 do artigo 6.º e do n.º 2 do artigo 235.º da CRP, antes respeitam a Lei Fundamental, sendo medidas necessárias, proporcionais e adequadas.

As normas dos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 23.03, na redação aplicável, que o Apelante pretende enfermarem de inconstitucionalidade material por ofensa ao princípio da autonomia local, surgem no contexto da pandemia provocada pela disseminação do vírus SARS-Cov-2, e com o fito de minorar as consequências desastrosas daí decorrentes no âmbito cultural e artístico, setor de atividade que foi atingido de forma muito hostil por essa situação de emergência de saúde pública que levou à proibição de ajuntamentos de pessoas e à inerente proibição expressa da realização de espetáculos.

Como abalizadamente se sumaria no Acórdão do STA, de 10.09.2020, proferido no processo n.º 88/20.8BALSB “ III - A pandemia da COVID19 tem-se caracterizado, juridicamente, pelo surgimento de um Estado de Direito da emergência sanitária, no qual a “limitação” de direitos decorrente das medidas administrativas de combate e mitigação tem de ser avaliada com base nos seguintes pressupostos: i) na excepcionalidade e temporalidade das medidas adoptadas; ii) na existência de uma concreta cadeia ininterrupta de legitimação democrática que as suporta; e iii) na respectiva legitimação por via da internormatividade técnica internacional e da comparação e interdependência entre as medidas adoptadas pelos diversos Estados e Administrações.
IV - As medidas administrativas de gestão da pandemia reconduzem-se, também, a um direito administrativo do risco, no âmbito do qual a gestão do risco é prosseguida através da adopção de medidas que se inscrevem no núcleo da função administrativa e cuja proporcionalidade o tribunal sindica sem pôr em causa o núcleo da separação dos poderes”.


Não é sequer equacionável a hipótese de perante uma situação pandémica como a provocada pela doença da COVID 19, não se reconhecer a possibilidade ao poder legislativo de restringir direitos, liberdades e garantias, desde que sejam respeitados os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da proteção da confiança, quanto mais que não se lhe reconhecesse a possibilidade de instituir mecanismos destinados a minorar as consequências económicas decorrentes dessa pandemia para as pessoas e as empresas, designadamente, no âmbito de atividades, que como as culturais e artísticas, se viram forçadas a parar literalmente, ainda que com um custo acrescido a suportar por todos, através dos dinheiros públicos afetos aos orçamentos das várias entidades que integram a Administração Pública Central, Local e Regional, como sucedeu com as medidas excecionais e temporárias que constam do Dec. Lei 10-I/2020 de 26 de Março, que objetivamente se traduz numa atenuação dos prejuízos sofridos, promovendo-se desta forma a retoma da atividade económica dos agentes culturais, normas que têm sido de aplicação generalizada e transversal por todas as entidades públicas.

Não vemos, pois, razão para discordar do que a este respeito se discorreu na sentença recorrida, cuja fundamentação consideramos útil transcrever e que foi a seguinte:
«Uma vez que a separação de poderes determina que o núcleo essencial do sistema de competências caracterizador de determinada função seja atribuído, a título principal ou prevalecente, a determinado órgão ou complexo de órgãos, o legislador, encontra-se vinculado, sob pena de inconstitucionalidade, a confiar aos órgãos da Administração Pública o exercício do «núcleo essencial» da função administrativa.
Não obstante, e apesar de tal espaço de livre de intervenção decisória que terá que caber à Administração, caberá sempre ao poder legislativo pré-conformar o desenvolvimento da sua actividade, aumentando ou diminuído o espaço de livre margem decisória.
É o que sucede no caso presente. No pleno e legítimo exercício da sua margem de actuação, o legislador decidiu diminuir a margem de liberdade decisória da Administração, atentas as graves e específicas circunstâncias causadas pela situação de pandemia, sem que, contudo, usurpe o exercício da específica função administrativa. Trata-se antes da manifestação, pelo legislador e no exercício da sua função política, de acudir a um sector de actividade profissional posto em crise pelas referidas circunstâncias, em alternativa a afectação dos recursos a outras áreas (neste sentido, Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, Volume I, 2014, Almedina, Coimbra, pág. 181 e seguintes).
Consequentemente, não se verifica qualquer violação do princípio constitucional da separação de poderes, o que desde já se declara. Continuando,
Argui ainda o Réu que os referidos normativos violam o princípio do interesse público, tal como previsto no nº 1 do artigo 266º da CRP. Alega que, ao obrigar a entidade pública a contratar e a pagar, ainda que pela metade, um serviço insusceptível de ser prestado, incorreu o legislador em desvio de poder legal, sacrificando o interesse público em prol da tutela dos interesses privados em questão, o que não é admissível à luz da Lei Fundamental.
Ora, não colhe tal argumentação.
Efectivamente, estipula o nº 1 do artigo 266º da Lei Fundamental, que “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.”
Não obstante, a definição de qual o interesse público que cumpre ser prosseguido sempre caberá ao legislador, que não à própria Administração. Na realidade, e conforme doutamente indicado por Paulo Otero (op. cit., pág. 368), “(...) Os titulares das estruturas administrativas não prosseguem o seu interesse pessoal, nem o interesse dos partidos políticos ou grupos de pressão de que são simpatizantes ou militantes, antes sempre se encontram sempre ao serviço do bem comum ou interesse público, tal como a Constituição impõe, o legislador define, a Administração concretiza e os tribunais controlam. (...)”
No caso presente, o legislador definiu, em observância do determinado pela CRP, qual o bem comum que cumpria garantir e prosseguir, isto é, determinou que deveriam as entidades públicas garantir auxílio aos artistas e entidades promotoras de eventos e espectáculos, porquanto se viram, desde Março deste ano, privados de rendimento, por impossibilidade de realização de tais eventos. O facto de ter o legislador optado por prover aos interesses privados de grupos de cidadãos, que saíram particularmente afectados com a pandemia, em nada afasta o conceito de prossecução do bem comum e interesse público, porquanto aqueles interesses são gerais a toda a colectividade (à semelhança, aliás, do que sucedeu com outras medidas como as do layoff, ajudas a grupos de profissionais liberais, entre muitos outros).
Consequentemente, improcede tudo quanto veio alegado pelo Réu, no que a esta matéria respeita.
Finalmente, veio o Réu arguir que violam as referidas normas o princípio da autonomia local, previsto no nº 2 do artigo 235º da CRP. Alega, para tal, que aquelas violam a reserva mínima de autonomia local, manietando as autarquias, entre outras entidades, de poder dispor dos seus serviços e orçamento para um conjunto de tarefas adequadas à satisfação dos interesses próprios das respectivas populações, acabando o legislador por, indirectamente, daqueles dispor, ao impor às autarquias a obrigação de pagamento de prestações contratuais não desejadas pelos Municípios, com a agravante de não serem as mesmas susceptíveis de execução.
Preceitua o artigo 235º da CRP, quanto às autarquias locais, o seguinte:
“1. A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais.
2. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas.”
O principio da autonomia do poder local traduz-se no facto de as autarquias terem atribuições próprias, serem dotadas de órgãos representativos, possuírem meios financeiros e humanos e de estar garantida a não ingerência por parte do poder central, sem prejuízo do regime de tutela.
Pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23/11/2016, P. 0780/14 (disponível em www.dgsi.pt), “(...) na síntese efectuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: «a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade» só podendo a «restrição legal desses interesses (...) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma». «Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (...) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade»“, sendo que o «condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível«, presente que “«a autonomia municipal não pode afectar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou actuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cf. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385) (...)”.
Analisado o presente caso, bem como as razões que já abundantemente se expuseram, dúvidas não existem que atendeu o legislador, aquando da adopção das soluções ínsitas nos nºs 5 e 6 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 10-I/2020, de 26/03, a interesses do espectro nacional, em detrimento dos interesses locais, mas sem que todavia fosse invadida a esfera absolutamente reservada à comunidade local. Note-se que a referida solução legal é aplicável a todas as entidades públicas, que não apenas às autarquias locais. Ora, entender que a imposição de adjudicar contratos públicos para acudir ao bem comum, atentas as concretas circunstâncias envolventes, viola o artigo 235º, nº 2, da CRP, envolve uma leitura desacertada do princípio da autonomia local, e que não se mostra compatível com a tutela da confiança e da segurança jurídica (artigo 2º CRP) ou com a boa-fé (cf. artigos 266º da CRP, 6º-A do CPA), nem com aquilo que são traves mestras do nosso ordenamento jurídico-constitucional, subvertendo aquilo que são as bases da soberania nacional e do Estado de direito, mercê do condicionamento ilegítimo que uma tal tese implica no e para o processo legislativo enquanto forma por excelência de prossecução do interesse nacional em cada momento, bem como para aquilo que são os poderes e as competências constitucionais dos órgãos de soberania.»

Em síntese, como bem sintetiza a apelada, os órgãos de soberania nacional, como órgãos defensores do estado de direito foram, e estão a ser, especialmente chamados a, e em nome do desígnio nacional de combate à pandemia COVID- 19, a suprir direitos e a impor obrigações em nome dessa mesma soberania e do interesse publico nacional, pelo que em momento algum o princípio da autonomia local está a ser violado pelas normas referidas.

Face à defesa dos interesses nacionais em questão, deve, antes a Administração local respeitar e fazer respeitar a legislação especial publicada por razões de excecionalidade.

Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
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IV-DECISÃO

Nestes termos,
acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante.
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Notifique.
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Porto, 19 de fevereiro de 2021.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro