Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00373/04.6BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/18/2014
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Maria Cristina Flora Santos
Descritores:ACORDO NA REUNIÃO DA COMISSÃO DE REVISÃO NO ÂMBITO DO CPT
FUNDADA DÚVIDA
Sumário:I. A reclamação para a Comissão de Revisão ao abrigo do CPT, à semelhança com o que sucede actualmente no regime previsto na LGT (art. 86.º números 4 e 5 da LGT), constituía condição prévia para sindicar a quantificação da matéria tributável em sede de impugnação judicial (cfr. artigos 84.º, n.º 3, 89.º, n.ºs 1 e 2, e 136.º, n.º 1, todos do CPT);
II. No âmbito da vigência do CPT, não se verificava a restrição que hoje vigora à luz da LGT (art. 86.º, n.º 4 e n.º 5) relativamente à discussão da quantificação da matéria tributável determinada com base em avaliação indirecta, em sede de impugnação judicial, quando tiver havido acordo no procedimento de revisão.
III. O acordo no procedimento de revisão não obsta à existência de fundada dúvida nos termos do art. 121.º do CPT.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:J...
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga que julgou procedente a impugnação deduzida por J…, do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto do indeferimento da reclamação graciosa da liquidação de IVA do ano de 1995.

A Recorrente FAZENDA PÚBLICA apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

A. A douta sentença sob recurso julgou procedente a presente impugnação, por haver entendido que não se verificaram os pressupostos que legitimam o recurso à utilização de métodos indirectos para determinação da matéria colectável, sujeita a IVA, relativamente ao exercício de 1995.

B. A Fazenda Pública não se conforma com a douta decisão recorrida, por considerar que a mesma incorreu em erro de facto e de direito, porquanto as anomalias nos inventários, omissões de compras e deficiências nas vendas detectadas pela Administração Tributária, impossibilitaram a comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, pelo que, de acordo com o disposto nos art.º 84º, n.º 1 do CIVA, 38º do CIRS e 52º do CIRC, na redacção vigente à data, se encontra plenamente justificada a avaliação indirecta da matéria colectável, com recurso a métodos indirectos ou presuntivos.

C. Vigorando no ordenamento jurídico o princípio da declaração no apuramento da matéria tributável, o recurso aos métodos indirectos assume carácter subsidiário e excepcional, na medida em que, nos termos dos art.º 75º e 78º do CPT e actualmente, no art.º 75º da LGT, se presume não só a veracidade dos elementos constantes das declarações apresentadas nos prazos legais, como também a veracidade dos elementos e apuramentos constantes da contabilidade ou escrita do contribuinte, quando estas se encontram organizadas segundo a lei comercial e fiscal, a não ser que se verifiquem erros, inexactidões ou outros fundados indícios de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte.

D. Decorre desta presunção de verdade, a vinculação da Administração Tributária à realização da liquidação com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do direito de o Fisco proceder ao controlo “a posteriori” dos factos por ele declarados.

E. Neste contexto, caberá à Administração Tributária o ónus de provar os pressupostos da tributação por métodos indirectos, ou seja, incumbe-lhe a demonstração de que a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte e que o recurso a esta forma de tributação (métodos indirectos) é o único meio de calcular o imposto devido.

F. Para este efeito, compete-lhe a especificação dos motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável e indicar os critérios utilizados na sua determinação, enunciando os dados objectivos, racionais e fundamentados que a levaram a concluir nesse sentido.

G. Ora, a liquidação ora impugnada resultou de um relatório da inspecção tributária, no qual foram expostos os motivos e factos que implicaram o recurso a métodos indirectos, e já sumariados na sentença recorrida.

H. Perante as irregularidades detectadas, não se poderá concluir senão que a contabilidade não tem o mérito de espelhar o resultado efectivo, concreto, da realidade económico-financeira da impugnante relativamente ao exercício de 1995, ou seja, pela contabilidade não é possível apurar os reais custos e os reais proveitos efectivamente obtidos, revelando-se proveitos e custos por defeito.

I. Desta forma, ao contrário do doutamente decidido, não é viável o apuramento da matéria colectável com base em correcções de natureza meramente aritmética, pois o que está em causa no caso concreto, é uma falta generalizada de credibilidade da contabilidade da impugnante, e não apenas uma operação mal contabilizada ou um custo ou proveito não registado.

J. Pelo que se encontra perfeitamente legitimada a actuação da Administração Tributária, recorrendo à utilização de métodos indirectos para determinar a matéria colectável sujeita a imposto.

K. Assim, não pode a Fazenda Pública concordar com o doutamente decidido.

L. Na verdade, o que subjaz objectivamente aos cálculos efectuados no relatório da Inspecção Tributária na tributação por métodos indirectos, é que «a contabilidade da “empresa” não reflecte a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido».

M. No entanto, a tributação por métodos indirectos deveu-se a todo um conjunto de factos objectivos reveladores de anomalias ao nível da escrita da impugnante, que conduziram ao afastamento dos valores declarados, já anteriormente identificados.

N. Por outro lado, há que salientar que a correcção do valor do custo das vendas, e consequente correcção do valor de vendas declarado por forma a ser mantida a margem bruta de vendas traduzida pela contabilidade – 25,8% - e que foi tomada como ajustada à realidade porque próxima da margem do sector de actividade, se deveu à constatação de que foram efectuadas vendas de sapatos superiores aos consumos.

O. Contra a fixação do imposto foi deduzida reclamação para a comissão de revisão a qual veio a culminar em acordo entre os vogais, na qual não foi posta em causa a margem de vendas da contabilidade, a qual foi aceite pelos Serviços de Inspecção Tributária.

P. Ora, o imposto liquidado adicionalmente encontra-se correctamente determinado pois corresponde não às vendas declaradas no exercício mas sim às vendas presumidas a partir do valor corrigido das compras omitidas e da margem de lucro revelada pela contabilidade e aceite pelos Serviços – 25,8%.

Q. Acresce que as alegações posteriormente apresentadas e ora tidas em conta pelo Juiz a quo, tendo em vista atacar a liquidação aqui em causa, não foram trazidas à liça no âmbito da reclamação para a comissão de revisão, órgão ao qual compete apreciar e decidir esta questão tendo em vista a fixação do quantum.

R. Pelo que se verifica desde logo a questão da falta de procedibilidade quanto à quantificação do imposto assim obtido,

S. Decaindo de igual modo a questão da fundada dúvida.

T. Assim, não pode ter acolhimento o doutamente decidido.

U. Neste sentido, v.g., por todos o Acórdão do TCAN proferido em 10/01/2008, no proc. 00302/04:
I - Nos casos em que o contribuinte reclamou ao abrigo do art. 84.º do CPT para a Comissão de Revisão do volume de negócios e do IVA fixado pela AT na sequência da fiscalização à sua escrita, a decisão dessa comissão constituía o acto final de fixação da matéria tributável, sendo que, se o valor da mesma foi obtido por acordo entre os vogais do contribuinte e da Fazenda Pública, esse valor servia de base à liquidação, como prescrevia o n.º 2 do art. 87.º do CPT.
II - Assim, deve ser revogada a sentença que, ignorando o disposto em I, julgou procedente a impugnação judicial com fundamento em falta de fundamentação do critério utilizado na quantificação da matéria tributável assacado à decisão da AT que fixou inicialmente o volume de negócios e o IVA em falta.
III - Também não pode proceder o vício de falta de fundamentação se entendido como assacado à decisão daquela comissão, pois o Contribuinte, que se nomeou como seu próprio vogal e apresentou uma proposta que foi aceite pelo vogal da Fazenda Pública, não pode desconhecer os motivos por que apurou o valor que propôs para o volume de negócios e que assentam nos valores em que computou as aquisições de matérias primas não registadas e a margem de lucro.
IV - A invocação do erro na quantificação da matéria tributável, quando foi o próprio contribuinte quem interveio como seu vogal na comissão de revisão e propôs os valores que, porque aceites pelo vogal da Fazenda Pública, serviram de base à fixação do volume de negócios e do IVA, constitui uma violação do princípio da boa fé, na sua vertente da confiança (cf. art. 6.º-A, do CPA), constituindo um venire contra factum proprio.
V - Ainda que não se aceite a posição expressa em IV, o critério utilizado na quantificação só poderá ser posto em causa por prova susceptível de demonstrar inequivocamente que assenta em factos que não correspondem à verdade ou adopta método errado.
VI - Os arts. 82.º e 84.º do CIVA autorizam o recurso a métodos indiciários para fixação do volume de negócios e do imposto a todos os sujeitos passivos.”

V. Em suma, a contabilidade do impugnante relativamente ao exercício de 1995 não é fiável, é um facto que ficou bem demonstrado no relatório da inspecção tributária e que o impugnante não logrou contrariar, mesmo em sede de procedimento de revisão.

W. Ou seja, fica demonstrado que os elementos da contabilidade do impugnante e por si declarados para efeitos fiscais, no que respeita ao exercício de 1995, padecem de irregularidades e omissões impossibilitantes do apuramento directo da matéria colectável a tributar.

X. Nesta conformidade, deve considerar-se que a Administração Tributária provou a verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua actuação, isto é, provou os pressupostos da tributação por métodos indirectos, demonstrando que a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pela impugnante, tendo explicitado os motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directa e exacta da matéria colectável e indicado os critérios utilizados na sua determinação.

Y. A douta sentença sob recurso violou as disposições legais supra citadas.
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O Recorrido não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão a apreciar e decidir consiste em saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao ter concluído pela fundada dúvida sobre a quantificação do facto tributário, nos termos do disposto do art. 121.º do CPT.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

“a) A Impugnante foi objecto de uma acção de inspecção tributária levada a efeito pelos Serviços da Direcção de Finanças do Porto que decorreu entre 9 de Julho de 1996 e 21 de Março de 1997.
b) Dessa acção inspectiva foi elaborada a Nota da Fundamentação das Correcções por Presunção/Métodos Indiciários cujo teor consta de fls. 47 a 72 e aqui se dá por inteiramente reproduzido.
c) Concluiu a administração tributária, de acordo com o que consta da referida Nota de Fundamentação que ocorria a impossibilidade de apurar clara e inequivocamente o IVA pelo que se recorreu à presunção dos valores de compras e vendas de mercadorias.
d) No concernente ao exercício de 1995, escreve-se na referida Nota de Fundamentação:
“Quanto ao exercício de 1995 o número de unidades consumidas é inferior às vendidas em 30.636 pares, o que nos indicia falta de registo da compras e consequentemente registo de vendas (...) Relativamente ao ano de 1995 a margem de lucro bruto declarada pelo contribuinte situa-se no intervalo de variação obtido na amostragem efectuada e é aproximada à do sector de actividade em que se enquadra, pelo que se considera que a mesma está ajustada à realidade. Assim temos: N° estimado de unidades omitidas: 30.636; Preço Médio de Compra: 1031$00; Valor Compras Omitidas: 31.585, 716$00; 1+Margem de Lucro Bruto: 1,258; Valor Vendas Omitidas: 39.734.831$00.”.
e) Sob a epígrafe “Conclusão e Propostas” escreveu-se na Nota de Fundamentação: “Face ao exposto anteriormente, nomeadamente: 1. O desajustamento da realidade dos movimentos financeiros da empresa; 2. O elevado valor de depósitos provenientes da esfera particular, na conta bancária que de acordo com as declarações do contribuinte é a utilizada para a actividade da empresa; 3. A análise qualitativa e quantitativa evidenciar irregularidades, dada incoerência de valores encontrados entre compras, vendas e existências; 4. Alguns dás artigos inventariados estarem deficiente valorizados e a impossibilidade de apreciação quantitativa e qualitativa especialmente dos inventários de 1994 e 1995, face à forma de identificar os artigos; 5. A não correspondência entre encomendas postais registadas (despachos) e as facturas emitidas a clientes. Somos de parecer que a contabilidade da “empresa” não reflecte exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido, pelo que propomos a determinação do lucro tributável de IRS por aplicação de métodos indiciários, nos termos dos artigos 38° do CIRS e 52° do CIRC e uma liquidação adicional de IVA, nos termos dos artigos 82° e 84° do respectivo Código, resultando as correcções constantes do anexo XXIII».
f) Na referida Nota de Fundamentação foi proposta a liquidação adicional de IVA respeitante ao ano de 1995 no montante de PTE6.754.921$00.
g) No ano de 1995, o Impugnante adquiriu 66.114 pares de sapatos no mercado intracomunitário e 20.996 pares no mercado externo.
h) Os seus fornecedores nesses mercados enviavam ao impugnante amostras de sapatos que não facturavam.
i) A percentagem de quebras da empresa do Impugnante, resultantes de defeitos, ofertas e amostras, era, nos anos de 1993, 1993 e 1995, de 4%.
j) A Impugnante apresentou reclamação perante a Comissão de Revisão contra a fixação da matéria colectável.
k) A Comissão de Revisão manteve o valor proposto para o IVA relativo ao ano de 1995 em PTE 6.754.921$00 respeitante a uma omissão de vendas no montante de PTE39.734.830$00.
l) Liquidado o IVA referido, o Impugnante apresentou em 17 de Março de 1998, reclamação graciosa que foi indeferida por despacho que consta de fls. 12 e 13 do apenso e aqui se dá por reproduzido no seu teor.
m) Em 9 de Fevereiro de 2001, o Impugnante apresentou recurso hierárquico ao qual foi negado provimento por decisão notificada ao Impugnante em 16 de Fevereiro de 2004.
n) A presente impugnação foi apresentada em 27 de Fevereiro de 2004.
2.2. Matéria de facto não provada
Da que era relevante para a decisão da causa não há matéria que importe registar como não provada.
2.3. Motivação da decisão de facto
A decisão sobre a matéria de facto baseou-se na análise da prova documental produzida nos autos e ainda no depoimento da testemunha Rui António Melo, que foi TOC da empresa entre 1990 e 2002 e que depôs com conhecimento dos factos e de modo que se afigurou credível.”
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Acorda-se dar como provado o seguinte facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC, com relevo para a decisão do recurso:

O) Em 11/12/1997 reuniu a Comissão de Revisão a que se refere os artigos 85.º e ss do CPT, constituída por M…, Director de Finanças, na qualidade de Presidente, e pelos vogais F…, delegado da Fazenda Pública, e A…, vogal do contribuinte, a qual apreciou a reclamação apresentada pelo contribuinte J…, e decidiram, por acordo, a quantificação dos montantes de IVA referentes aos anos de 1993 a 1995, resultantes da aplicação de métodos indirectos (cfr. acta da reunião da Comissão de Revisão a fls. 39 e ss do Processo Administrativo).

2. Do Direito

Conforme resulta dos autos, foi proferida sentença no TAF de Braga que julgou procedente a impugnação deduzida, respeitante a IVA de 1995 apurado com recurso a métodos indirectos (actualmente métodos indiciários).

O juiz a quo entendeu, em síntese, que pese embora estivessem reunidos os pressupostos para que a Administração Tributária (AT) efectuasse as correcções em causa com recurso a métodos indirectos “a prova produzida nos autos resulta uma situação de fundada dúvida, em face das razões que apontamos, sobre a quantificação do facto tributário”.

Ou seja, resulta da sentença recorrida que, relativamente aos pressupostos para o recurso a métodos indirectos estes encontram-se preenchidos, no entanto, no que se refere à quantificação do imposto, entendeu-se ser aplicável o disposto no art. 121.º do CPT, e deste modo, decidiu-se pela procedência da impugnação e consequentemente, a anulação da liquidação.

A Fazenda Pública, não se conformando com o decidido, invoca no presente recurso erro de julgamento da sentença recorrida, entendendo, que não só se encontram reunidos os pressupostos para o apuramento da matéria colectável com recurso a métodos indirectos, bem como não se verifica qualquer ilegalidade no procedimento da AT no que concerne à sua quantificação, estando correctamente apurado o imposto, não se verificando “fundada dúvida” porquanto “[c]ontra a fixação do imposto foi deduzida reclamação para a comissão de revisão a qual veio culminar em acordo entre os vogais, na qual não foi posta em causa a margem de vendas da contabilidade (…)” (conclusão O) das alegações de recurso) e “ o imposto liquidado adicionalmente se encontra correctamente determinado pois corresponde não às vendas declaradas no exercício mas sim às vendas presumidas a partir do valor corrigido das compras omitidas e da margem de lucro revelada pela contabilidade e aceite pelos serviços – 25,8%.” (conclusão P) das alegações de recurso), e por outro lado, “as alegações posteriormente apresentadas e ora tidas em conta pelo juiz a quo, tendo em vista atacar a liquidação aqui em causa, não foram trazidas à liça no âmbito da reclamação para a comissão de revisão, órgão ao qual compete apreciar e decidir esta questão tendo em vista a fixação do quantum.” (conclusão Q) das alegações de recurso).

Ora, conforme resulta do aditamento à matéria de facto, o perito do contribuinte acordou, juntamente com os restantes vogais, na Comissão de Revisão com, a quantificação dos montantes de IVA referentes aos anos de 1993 a 1995, resultantes da aplicação de métodos indirectos.
Deste modo, cumpre então saber, se havendo acordo entre os vogais em sede de reclamação para a comissão de revisão, o juiz a quo, poderia ou não, ter concluído pela existência de fundada dúvida nos termos do art. 121.º do CPT.

Vejamos então.

Antes de mais, cumpre referir que, considerando que a reclamação para a Comissão de Revisão da fixação da matéria colectável por métodos indirectos e respectiva decisão ocorreram em 1997, aplica-se o regime do Código de Processo Tributário (CPT), em vigor à data, de acordo com o princípio tempus regit actum.

A reclamação para a Comissão de Revisão ao abrigo do CPT, à semelhança com o que sucede actualmente no regime previsto na LGT (art. 86.º números 4 e 5 da LGT), constituía condição prévia para sindicar a quantificação da matéria tributável em sede de impugnação judicial (cfr. artigos 84.º, n.º 3, 89.º, n.ºs 1 e 2, e 136.º, n.º 1, todos do CPT).

No entanto, ao abrigo do CPT, não se verificava a restrição que hoje vigora à luz da LGT (art. 86.º, n.º 4 e n.º 5) relativamente à discussão da quantificação da matéria tributável determinada com base em avaliação indirecta, em sede de impugnação judicial, quando tiver havido acordo no procedimento de revisão.

No regime vigente no CPT o vogal do contribuinte na Comissão de Revisão não assume a qualidade jurídica de representante, desde logo porque têm o dever de agir com imparcialidade e independência técnica (n.º 3 do art. 86.º do CPT, na redacção dada pelo DL n.º 47/95, de 10 de Março), e deste modo, os seus actos perante a Comissão nunca poderiam vincular o contribuinte relativamente à definição dos seus direitos ou interesses (vide, nesse sentido, Acórdão do STA de 02/06/1999, recurso n.º 22.355, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19 de Junho de 2002, págs. 2129 a 2133, e Acórdão do TCA Norte de 10/01/2008, proc. n.º 00302/04).

Assim sendo, no âmbito de vigência do CPT, como sucede no caso dos autos, o contribuinte não é representando na Comissão de Revisão pelo vogal por ele nomeado, e nessa medida, as decisões por este aí tomadas não se repercutem na esfera jurídica do contribuinte, designadamente, não tem qualquer efeito jurídico impeditivo do direito à impugnação contenciosa da decisão tomada pela Comissão.

Por conseguinte, e regressando ao caso dos autos, apesar de o vogal do contribuinte ter acordado com a quantificação da matéria tributável em sede de IVA no âmbito da Comissão de Revisão, tal não obsta a que possa impugnar contenciosamente os montantes fixados, e assim sendo, pelas mesmas razões, também não se poderá dizer que tal acordo obsta à existência de fundada dúvida nos termos do art. 121.º do CPT.

Dito de outro modo, uma vez que os actos do vogal devem ser praticados com imparcialidade e independência técnica não podem vincular o contribuinte, então, nada obsta a que o juiz aprecie a questão da quantificação da matéria tributável e conclua pela existência de fundada dúvida sobre a quantificação (tal como sucedeu no caso dos autos), desde que estejam preenchidos os pressupostos do disposto no art. 121.º do CPT.

Refira-se ainda que o Acórdão do TCA Norte de 10/01/2008, proc. n.º 00302/04, citado pela Fazenda Pública, apesar de ser aplicável ao caso dos autos (na parte supra exposta), não o é na sua totalidade. Com efeito, no que diz respeito à conclusão que se retira daquele acórdão quanto a impossibilidade de invocação pelo contribuinte de erro na quantificação da matéria tributável, é preciso notar que naquele caso se tratava do próprio contribuinte que interveio na qualidade de vogal na Comissão de Revisão, facto fundamentador para se ter decidido como decidiu, e que não se verifica no caso dos autos, em que é um terceiro a intervir naquela qualidade, pelo que, nessa parte, tal jurisprudência não pode aqui ser aplicada.

Voltando ao caso dos autos, a Recorrente Fazenda Pública, no que se refere à quantificação, na conclusão P) das alegações de recurso, vem dizer que “o imposto liquidado adicionalmente se encontra correctamente determinado pois corresponde não às vendas declaradas no exercício mas sim às vendas presumidas a partir do valor corrigido das compras omitidas e da margem de lucro revelada pela contabilidade e aceite pelos serviços – 25,8%.”.

Ou seja, a Recorrente vem colocar em causa a conclusão tirada pelo juiz a quo da existência da “fundada dúvida” prevista no art. 121.º do CPPT.

Vejamos então.

Dispunha o então art. 121.º do CPPT (que corresponde ao actual art. 100.º do CPPT):

1 – Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.
2 – Em caso de quantificação da matéria tributável por métodos indiciários, não se considera existir dúvida fundada se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e demais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição, ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais.
3 – O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de na impugnação judicial o impugnante demonstrar erro ou manifesto excesso na matéria tributável quantificada.”.

A previsão normativa do art. 121.º do CPT constitui uma inovação relativamente ao regime do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI), passando a vigorar a regra de que a ocorrência de fundada dúvida sobre a existência ou quantificação do facto tributário impõe a anulação do acto.

Alterando o paradigma anterior (in dubio pro fisco) estabelece-se com este preceito legal o princípio de que havendo dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário, estas devem ser valoradas a favor do contribuinte.

Relativamente ao art. 121.º n.º 1 CPT, Alfredo de Sousa e José da Silva Paixão, in Código de Processo Tributário, Comentado e Anotado, 3.ª Edição, Almedina, pp. 267 a 270 escrevem que: “A «prova produzida» de que há-de resultar «a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário» há-de ser, não só a prova aduzida pelas partes como também e sobretudo a prova que ao juiz se impõe diligenciar. (…). A dúvida que implica a anulação do acto impugnado não pode considerar-se «fundada» se assentar na ausência ou inércia probatória das partes, sobretudo do impugnante. Este não deve limitar-se a alegar factos que ponham em dúvida a existência e quantificação do facto tributário. Cabe-lhe o ónus da prova de tais factos (…). Só mediante a prova concludente de tais factos é que é possível concluir-se pelo fundamento daquela dúvida. (…).”

Em consonância com a doutrina, tem sido entendimento pacífico na jurisprudência que a “fundada dúvida” constante da previsão legal do art. 121.º do CPT não pode assentar na ausência ou inércia probatória do impugnante, ou seja, não se pode limitar a alegar os factos que ponham em dúvida a existência do facto tributário, cabendo-lhe o ónus da prova de tais factos (cfr. Acórdão do TCA Norte de 28/09/2006, proc. n.º 00088/01, de 16/03/2006, proc. n.º 00357/04, de 24/02/2005, proc. n.º 00165/04, Acórdão do TCA Sul de 15/05/2007, proc. n.º 1659/07).

Tal como se salienta no acórdão do STA de 24/04/02, proferido no processo n.º 026679 “[n]o caso de utilização de métodos indiciários, o próprio método de quantificação, baseado em presunções e estimativas, nunca pode garantir a correspondência entre a matéria tributável quantificada e a realidade, pelo que, pela sua própria natureza, não pode deixar de conduzir a uma situação de dúvida sobre aquela quantificação. (…) Nestas condições, é de concluir que, no caso de utilização de métodos indiciários, só se estará perante uma situação de fundada dúvida, para efeitos daquele art.121.º, quando positivamente se prove que tal quantificação é errada ou, pelo menos, quando haja indícios de que o seja.”.

Passemos então, ao caso dos autos.

Ora, tal como já referimos, a Recorrente vem colocar em causa a conclusão tirada pelo juiz a quo da existência da “fundada dúvida” prevista no art. 121.º do CPPT, só que o faz de uma forma bastante genérica não abalando a fundamentação da decisão recorrida, sendo certo que a prova produzida nos autos não contraria a conclusão do juiz a quo.

Com efeito, no que diz respeito à quantificação da matéria tributável, o juiz a quo fundamentou a sua convicção de existência de “fundada dúvida” por entender que a AT utilizou para o cálculo da matéria tributável com recurso a presunções, ou seja, para a sua quantificação, valores que havia considerado não serem fiáveis e que fundamentam o recurso a presunções.

Entendeu o juiz a quo que se encontravam verificados os pressupostos para o recurso ao apuramento do lucro tributável por métodos indirectos (métodos indiciários ou presunções), mas relativamente à sua quantificação o entendimento foi diverso: “[a]figura-se-nos, no entanto, que na sua linearidade, a metodologia seguida pela administração tributária desprezou variáveis susceptíveis de influenciar o resultado a atingir.
Desde logo, a administração tributária deu como assente que a diferença verificada entre quantidades consumidas e vendidas correspondia, na íntegra, a compras omitidas, sem sequer ter admitido que o Impugnante recebeu ofertas de sapatos (amostras) que não lhe foram facturadas e que posteriormente vendeu, sendo certo que se prova a existência de tais ofertas.
Por outro lado, a administração tributária considerou que todos os pares de sapatos correspondentes a “compras omitidas” foram vendidos, não tendo ponderado a existência de quebras que, no caso de Impugnante, se situavam numa percentagem de 4%, tal como resulta da matéria de facto provada.
Finalmente, a administração tributária estabeleceu uma relação directa entre a omissão de compras e a omissão de vendas sem, contudo, demonstrar a razão pela qual a mesma deve ser estabelecida.
Com efeito, aquela relação — compras omitidas/vendas omitidas — não é necessária, pois bem pode suceder que, ainda que se admita a Omissão do registo de compras, tal não corresponda a igual volume de vendas.
Isto porque, a margem de lucro que foi apurada está influenciada pela percentagem de pares de sapatos que foram fornecidos a Impugnante a título de ofertas (amostras) e relativamente aos quais não teve qualquer custo de aquisição e que este vendeu. Ora, esse factor não foi ponderado no apuramento do valor das vendas omitidas.
Em nosso entender, a partir do momento em que a administração tributária coloca em causa a fiabilidade dos elementos declarados pela Impugnante, deixa de poder utilizar um indicador que resulta desses elementos declarados e que é a margem de lucro bruta sobre o custo e que assume uma importância decisiva.
Entendendo-se que os valores declarados de compras e vendas não são fiáveis e não correspondem à realidade, também a margem de lucro, calculada com base nesses valores declarados deixa de poder ser considerada para efeitos de cálculo da matéria tributável com recurso a presunções. A declaração do contribuinte ou serve ou não serve. Tanto mais que a margem de lucro bruto resultante dos elementos declarados pelo Impugnante para o ano de 1995 situou-se próximo do dobro das declaradas nos anos anteriores e, como tal, não se nos afigura metodologicamente correcto alterar valores de custos e de vendas sem questionar aquela margem de lucro.”
Assim, ainda que se considere que se verificam os pressupostos para a utilização dos métodos indirectos, afigura-se-nos que da prova produzida nos autos resulta urna situação de fundada duvida, em face das razões que apontámos, sobre a quantificação do facto tributário.”

Ou seja, entendeu-se que a metodologia adoptada pela AT para quantificar o lucro tributável era incoerente, ao considerar que os mesmos elementos que influenciam os valores apurados eram fiáveis para uns efeitos, e já não para outros.

Na verdade, a AT para o apuramento da margem de lucro desprezou variáveis que são susceptíveis de influenciar a quantificação, tais como as ofertas e quebras, sendo certo que resulta provada nos autos a sua existência. Com efeito, não foi ponderado, no apuramento do valor das compras omitidas, as ofertas, nem no valor das vendas omitidas as quebras que resultam provadas nos autos.

Deste modo, concluiu-se, e bem que “se os valores declarados de compras e vendas não são fiáveis e não correspondem à realidade, também a margem de lucro, calculada com base nesses valores declarados deixa de poder ser considerada para efeitos de cálculo da matéria tributável com recurso a presunções.”

Considerando a fundamentação supra exposta, a conclusão a que chegou o juiz a quo não merece censura, pois existem indícios sólidos de erro na quantificação que sustentam o recurso ao disposto no art. 121.º do CPPT.

Ora, considerando a prova feita nos autos há que concluir que bem andou a 1.ª instância ao julgar verificados os pressupostos do art. 121.º do CPT.
Por último, refira-se que, ainda que as alegações consideradas pelo juiz a quo (e alegadas na p.i.) não tenham sido “trazidas à liça no âmbito da reclamação para a comissão de revisão” (conclusão Q) das alegações de recurso), tal não obsta a que sejam conhecidas em sede de impugnação judicial, ao contrário do pugnado pela Recorrente Fazenda Pública.

Na verdade, pese embora a reclamação para a Comissão de Revisão ao abrigo do CPT constitua condição prévia para sindicar a quantificação da matéria tributável em sede de impugnação judicial (cfr. artigos 84.º, n.º 3, 89.º, n.ºs 1 e 2, e 136.º, n.º 1, todos do CPT), isso não significa que os fundamentos para sindicar contenciosamente a quantificação da matéria tributável fiquem limitados aos que foram inicialmente invocados na reclamação, pois tal limitação não resulta da lei, não se podendo, por conseguinte, ir para além do âmbito da previsão normativa, quando está em causa um bem jurídico de protegido constitucionalmente como é o direito ao acesso à justiça. A restrição pugnada pela Recorrente, constitui uma restrição do princípio da tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrado no art. 268.º, n.º 4 da Lei Fundamental, o que in casu não seria admissível, na medida que nem sequer o legislador optou por consagrar na lei ordinária tal restrição.

Por conseguinte, não se verifica o invocado erro de julgamento, e nessa medida, o recurso não merece provimento.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em não conceder provimento ao recurso interposto, e deste modo, confirmando a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
D.n.
Porto, 18 de Setembro de 2014.
Ass. Cristina Flora
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Mário Rebelo