Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02813/17.5BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/01/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:DECISÃO SUMÁRIA; RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA;
DECRETO-LEI N.º 117/2010, DE 25 DE OUTUBRO; DIRECTIVA 98/34/CE;
COMBUSTÍVEIS; ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO;
Sumário:
1 – Tendo sido proferida Decisão sumária que apreciou o recurso de Apelação apresentado tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, veio a negar provimento ao recurso interposto, cabe Reclamação para a conferência, nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

2 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na aceção do artigo 1.º, ponto 11, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

3 – Assim não tendo sucedido, na falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Indeferir a reclamação.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO


ENTIDADE NACIONAL PARA O SECTOR ENERGÉTICO, EPE (ENSE) [devidamente identificada nos autos] Ré nas acções administrativas que contra si foram intentadas por R [SCom01...], Ld.ª [também devidamente identificada nos autos], vem reclamar para a Conferência [Cfr. artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA], da Decisão sumária proferida pelo Relator em 16 de janeiro de 2024 [constante a fls. 1046 e seguintes dos autos - SITAF], e pela qual, tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, foi concedido provimento ao recurso interposto pela Autora, revogando assim a Sentença recorrida, tendo ainda julgado procedentes os pedidos deduzidos, anulando os actos da autoria do Presidente do Conselho de Administração da ENMC, EPE, proferidos nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, no âmbito dos processos UB/04/2017 e UB/08/2017.

*

Para esse efeito, elencou a final do articulado por si apresentado, as conclusões que para aqui se extraem como segue:

“[...]
III – CONCLUSÕES
1.ª O ato administrativo impugnado não é ilegal, porquanto foi praticado ao abrigo de um diploma legal que à data se encontrava em vigor e que, atualmente, só não se mantém porquanto foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2022.
2.ª A Reclamante, sob pena de violação do princípio da legalidade, encontrava-se vinculada a proferir o ato administrativo em apreço.
3.ª Não estamos perante um problema de ilegalidade do ato administrativo, mas antes perante uma (eventual) questão de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por alegados danos decorrentes do exercício da função legislativa.
4.ª Assim sendo, a decisão ora reclamada padece de um erro de julgamento, porquanto o ato administrativo não padece de um vício gerador de anulabilidade, por violação do Direito da União Europeia.
5.ª O ato administrativo impugnado não padece de nenhum dos vícios de ilegalidade invocados pela Autora R [SCom01...], Lda., pelas razões desenvolvidamente expressas em sede de contra-alegações de recurso e que, por razões de economia processual, se deram por reproduzidas na presente reclamação.
NESTES TERMOS, E no mais de direito, que V. Exas doutamente, suprirão, deve a presente reclamação ser julgada procedente, por provada, e sobre a mesma recair acórdão que revogue a decisão do Venerando Juiz Desembargador Relator, confirmando-se a sentença recorrida e, em consequência, o ato administrativo impugnado.
Só assim se decidindo será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA!
[...]“

**

Tendo sido regularmente notificada da Reclamação deduzida, a Reclamada não exerceu o direito ao contraditório.

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Com dispensa dos vistos legais, tendo para o efeito sido obtida a concordância dos Meritíssimos Juízes Desembargadores Adjuntos [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.






***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÃO A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pela Reclamante, e que em suma se cinge à invocação da ocorrência de erro de julgamento na Decisão sumária proferida, pugnando, a final e em suma, como já assim havia sustentado em sede das Alegações do recurso de Apelação que havia apresentado nos autos, no sentido de que o acto administrativo sob impugnação não padece de qualquer invalidade que seja determinante da sua anulabilidade.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

Para efeitos da prolacção da Decisão sumária, foi julgado pelo Relator ser suficiente a remessa para o probatório constante da Sentença recorrida, o que assim agora também decidimos.

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Reclamação deduzida pela Recorrente ENSE, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3.º do CPC, ex vi artigo 140.º, n. 3 do CPTA, visando a Decisão sumária proferida nestes autos pelo Relator, em 16 de janeiro de 2024, pela qual foi concedido provimento ao recurso de Apelação interposto pela Autora, ora Reclamada, e que revogou assim a Sentença recorrida, tendo ainda julgado procedentes os pedidos deduzidos, anulando os actos da autoria do Presidente do Conselho de Administração da ENMC, EPE, proferidos nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, no âmbito dos processos UB/04/2017 e UB/08/2017, da qual, por facilidade, para aqui se extracta parte do seu discurso fundamentador, como segue:

Início da transcrição
“[...]
Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 09 de abril de 2021, que tendo apreciado a pretensão deduzida pela Autora contra a Ré Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis, EPE [nos presentes autos – Processo n.º 2813/17.5BEPRT -, assim como naqueles que lhe estão apensos – Processo n.º 2928/17.0BEPRT], no sentido de ser anulada a decisão proferida pelo Presidente do Conselho de Administração da ENMC, que no âmbito do processo UB/04/2017 e nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, determinou que a Autora ora Recorrente pagasse a quantia de € 3.754.000,00, a título de compensações do 1.º trimestre de 2017, assim como a decisão datada de 12 de setembro de 2017, também proferida pelo Presidente do mesmo Conselho de Administração, que no âmbito do processo UB/08/2017 e nos termos do artigo 24.° do Decreto-Lei n.° 117/2010, de 25 de Outubro, determinou que a Autora ora Recorrente pagasse a quantia de 12.188.000,00€, a título de compensações para o ano de 2016, veio a julgar pela sua improcedência e a absolver a Ré dos pedidos contra si formulados.
[…]
Em sede da identificação das questões que lhe cumpria apreciar e decidir, identificou o Tribunal a quo que lhe cumpria:

a) Saber se ocorre caso julgado;
b) Saber se ocorre litispendência;
c) Saber se os actos impugnados violam os artigos 8.º e 9.º da Directiva 98/34/CE, de 22 de Junho de 1998 por as metas de incorporação obrigatória de biocombustível, previstas no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, serem normas técnicas e nenhuma comunicação prévia ter sido feita pelo Estado português à Comissão e aos restantes Estados-membros;
d) Saber se os actos impugnados violam o artigo 5.º da Directiva 98/70/CE, de 13 de Outubro de 1998, pois a aplicação do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010 é contrária a tal norma na medida em que o gasóleo rodoviário comercializado está em plena conformidade com as normas legais do Estado espanhol, enquanto estado membro da União, não sendo permitido que os operadores estejam sujeitos às metas de incorporação de biocombustíveis de um outro Estado membro apenas por cumprirem as obrigações previstas nos termos da legislação aplicáveis em matéria de impostos especiais sobre o consumo;
e) Saber se os actos impugnados violam os artigos 11.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, por ser falso que todo o combustível fóssil comercializado pela autora no período em causa não tivesse qualquer nível de incorporação de biocombustível;
f) Saber se os actos impugnados violam o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010 e o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de Julho, por não estar demonstrada a culpa da autora e se tratar de modalidade de responsabilidade civil subjectiva;
g) Saber se os actos impugnados violam o princípio da boa fé por a entidade demandada saber que a autora não comercializa combustível fóssil sem incorporação de biocombustível e que o mercado nacional de TdB não permite aos operadores de menor dimensão suprir as suas necessidades de TdB em condições de igualdade com os grandes operadores, permitindo a entidade demandada, enquanto regulador, que um grande operador possa arrematar a grande maioria dos TdB disponíveis e que os valores praticados para a aquisição dos TdB se encontrem empolados e sujeitos a movimentos especulativos, não propiciando aos diversos operadores, em condições de igualdade, o cumprimento das metas de incorporação de biocombustível.

Aqui chegados.

Conforme assim foi apreciado e decidido pelo Tribunal a quo [no que é atinente às questões a decidir por si identificadas], os pedidos a que se reportam ambos os Processos foram julgados totalmente improcedentes, e para alcance desse desiderato, foram por si julgadas inverificadas todas as invalidades/ilegalidades apontadas pela Autora aos actos impugnados, tendo o Tribunal recorrido vindo a referir a final, que “… com a emissão dos actos impugnados, limitou-se [a entidade demandada] a aplicar estritamente as referidas normas legais […].”

Ora, na base da pretensão recursiva da Recorrente está a consideração de que o Tribunal a quo:

(i) errou na apreciação das provas e errou na fixação de factos materiais da causa e sua interpretação;
(ii) errou na interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 1 do artigo 24.º, ambos do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro;
(iii) errou em torno da aplicação do princípio de boa-fé no instituto do abuso de direito;
(iv) errou em torno da interpretação e aplicação do artigo 5.º da Diretiva 98/70/CE;
(v) errou em torno da interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE.

Em torno do invocado erro na interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 9.º da Diretiva 98/34/CE, a que se reporta a nossa alínea v) supra, decidiu o Tribunal a quo, conforme por facilidade para aqui se extrai, como segue:

Início da transcrição
“[…]
A. Da violação dos artigos 8.º e 9.º da Directiva 98/34/CE, de 22 de Junho de 1998
Alega a autora que a norma do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, ao estabelecer as metas de incorporação obrigatória de biocombustível, consubstancia norma técnica, pelo que se impunha a comunicação prévia pelo Estado português à Comissão e aos restantes Estados-membros, tal não tendo acontecido, em desrespeito dos artigos 8.º e 9.º da Directiva 98/34/CE, de 22 de Junho de 1998.
Vejamos.
A Directiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de Junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas, vigorou até 06.10.2015, tendo sido revogada e substituída pela Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação.
[…]
Tendo como referência as directrizes constantes das definições de regras técnicas acima referidas, constatamos facilmente que o teor da citada norma legal não contém qualquer especificação técnica ou exigência para utilização ou comercialização nem proíbe o fabrico, a importação, a comercialização ou a utilização de um produto; não remete para qualquer especificação técnica ou exigência, não definindo quaisquer características de um produto nem se reportando a métodos e processos de produção nem estabelece quaisquer condições de utilização, de reciclagem, de reutilização ou de eliminação de produtos. Efectivamente, o que a norma estabelece é a obrigatoriedade de contribuição para o cumprimento das metas de incorporação por parte das entidades que introduzam combustíveis rodoviários no consumo bem como a medida de tal contribuição, pelo que, manifestamente, não estamos perante qualquer regra técnica e, por conseguinte, não há que convocar o disposto no citado artigo 8.º da Directiva 98/34/CE, de 22 de Junho de 1998, que, assim, não se mostra violado pela norma em análise e cuja aplicação esteve na origem dos actos impugnados.
Ante o exposto, improcede este fundamento invocado.
[...]”
Fim da transcrição

Ora, em torno desta concreta questão, e que reputamos ser nuclear para efeitos do que a final era a pretensão anulatória da Autora, e em que também vem a radicar a sua pretensão recursiva, este TCA Norte veio já a prolatar, de forma unânime e reiterada, jurisprudência com que a Sentença recorrida não tem o devido alinhamento, de que destacamos o Acórdão proferido no Processo n.º 856/21.3BEBRG, datado de 04 de outubro de 2023, o Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, e o Acórdão proferido no Processo n.º 1584/21.5BEPRT, ambos datados de 30 de novembro de 2023, decisões judiciais essas em que interviemos na qualidade de Adjunto.

Esses Acórdãos deste TCA Norte foram proferidos com amparo quer em jurisprudência do STA, quer do TJUE.

Efectivamente, pelo seu Acórdão datado de 09 de março de 2023 [“Vapo Atlantic” (C-604/21, EU:C:2023:175)], o TJUE [Terceira Secção] apreciou e decidiu em sede de reenvio prejudicial, conforme por facilidade para aqui extraímos com interesse para a decisão a proferir, o que segue:

Início da transcrição
“[…]
1) O artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 2006/96/CE do Conselho, de 20 de novembro de 2006, deve ser interpretado no sentido de que: uma legislação nacional que fixa um objetivo relativo à incorporação de 10 % de biocombustíveis nos combustíveis rodoviários introduzidos no consumo por um operador económico relativamente a um determinado ano é abrangida pelo conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1.°, ponto 4, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e constitui assim uma «regra técnica» na aceção do artigo 1.°, ponto 11, da Diretiva 98/34, conforme alterada, a qual apenas é oponível aos particulares se o seu projeto tiver sido comunicado em conformidade com o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada.
2) O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada pela Diretiva 2006/96, deve ser interpretado no sentido de que: uma legislação nacional que visa transpor o artigo 7.°-A, n.° 2, da Diretiva 98/70/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à qualidade da gasolina e do combustível para motores diesel e que altera a Diretiva 93/12/CEE do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2009/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, em consonância com o objetivo que figura no artigo 3.°, n.° 4, da Diretiva 2009/28/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis que altera e subsequentemente revoga as Diretivas 2001/77/CE e 2003/30/CE, não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma norma europeia na aceção do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 98/34, conforme alterada, e, por conseguinte, de se eximir à obrigação de comunicação prevista nesta disposição.
3) O artigo 4.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2009/30, deve ser interpretado no sentido de que: esta disposição não constitui uma cláusula de salvaguarda prevista num ato vinculativo da União, na aceção do artigo 10.°, n.° 1, terceiro travessão, da Diretiva 98/34, conforme alterada pela Diretiva 2006/96.
[…]”
Fim da transcrição

Atento o teor deste Acórdão do TJUE, e com base no que aí foi apreciado e decidido, o STA veio a proferir Acórdão no Processo 02739/17.2BEBRG-A, datado de 06 de julho de 2023, em que a relação jurídica controvertida de base era similar à que ora está em apreço nestes autos, de onde para aqui extraímos, por facilidade e dado o seu interesse para a decisão a proferir, o seu sumário, como segue:

Início da transcrição
“[…]
I - Do Acórdão do TJUE de 9/3/2023, “Vapo Atlantic” (C-604/21), proferido em reenvio prejudicial operado pelo TAF/Braga no processo 860/21.1BEBRG, resulta que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da Diretiva 98/34) a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no art. 8º nº 1 daquela Diretiva (o que não sucedeu). Mais resulta do Acórdão do TJUE que aquela norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia”, não se subsumindo, pois, à exceção prevista naquele art. 8º nº 1 da citada Diretiva, nem é suscetível de integrar uma “cláusula de salvaguarda”.
II - Esta jurisprudência interpretativa do TJUE impõe-se também no âmbito do presente processo, onde se discute questão idêntica, tornando inútil a manutenção do reenvio prejudicial aqui também operado (“Vapo Atlantic II”, C-413/22), em que foram colocadas ao TJUE questões suplementares, pois que, em face daquele seu Acórdão de 9/3/2023, resulta, por si, incontornável a procedência da impugnação contenciosa, aqui em apreciação, da ordem de pagamento fundamentada naquela legislação nacional tida como inoponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente), sendo, pois, tal ato impugnado, inválido e contenciosamente anulável por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[…]”
Fim da transcrição

E neste conspecto, tendo presente aqueles identificados Acórdãos deste TCA Norte [onde o ora Relator interveio como Adjunto] e onde foi conhecida e apreciada, em torno das questões aí suscitadas, na sua essência, matéria de igual natureza e mérito àquelas que aqui ora vêm colocadas, aderindo à jurisprudência por eles firmada [sem reservas, embora com as adaptações que mostrem necessárias, designadamente em sede da matéria de facto], aqui damos por enunciada parte da fundamentação aportada no Acórdão proferido no Processo n.º 2639/17.6BEBRG, datado de 30 de novembro de 2023 [de que será junta cópia aos autos] tendo em vista alcançar uma interpretação e aplicação uniformes do direito [cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil], como segue:

Início da transcrição
“[…]
No caso vertente, o ato administrativo impugnado determinou à A. o pagamento de compensações no valor de €142.000,00 (cento e quarenta e dois mil euros) pelo incumprimento das obrigações de incorporação de biocombustíveis relativas ao 1.º Trimestre de 2020.
Essas metas de incorporação resultam do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/2010 que, de acordo com o acórdão do TJUE supracitado, constituem normas técnicas.
Ora, se tais metas de incorporação constituem normas técnicas, deveriam ter sido comunicadas à Comissão Europeia, sob pena de serem inoponíveis e inaplicáveis aos particulares.
A comunicação prévia das regras técnicas encontra-se prevista no artigo 8.º da sobredita Diretiva, nos seguintes termos:
1. Sob reserva do disposto no artigo 10º, os Estados membros comunicarão imediatamente à Comissão qualquer projeto de regra técnica, exceto se se tratar da mera transposição integral de uma norma internacional ou europeia, bastando neste caso uma simples informação relativa a essa norma. Enviarão igualmente à Comissão uma notificação referindo as razões da necessidade do estabelecimento dessa regra técnica, salvo se as mesmas já transparecerem do projeto.
Não tendo sido efetuada tal comunicação, como resulta da matéria de facto provada nos presentes autos, concluímos que o referido ato administrativo, já que fundamentado no Decreto-Lei n.º 117/2010, padece de invalidade, devendo ser anulado, como, efetivamente, o foi pela sentença recorrida.
Acresce que, com relevância para os presentes autos, no âmbito do processo n.º 2739/17.2BEBRG-A, que tramitou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e cujo objeto é idêntico ao dos presentes autos, designadamente, a impugnação de um ato administrativo praticado pela ora recorrente traduzido na aplicação de compensações à ora recorrida, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão em 06 de julho de 2023, o qual julgou procedente, por provada, a ação administrativa da recorrente, determinando a anulação de tal ato [...]
[...]
Importa, transcrever, ainda, parte do teor deste acórdão do STA de 6/07/2023, que infirma totalmente as conclusões da recorrente:
“21. Deste Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, resulta, pois, em conclusão, que o disposto no nº 1 do art. 11º do DL nº 117/2010, de 25/10, nas suas sucessivas versões até à sua revogação operada pelo DL nº 84/2022, de 9/12, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” (na aceção do art. 1º, ponto 11, da diretiva 98/34), a qual só seria oponível aos destinatários particulares (como a aqui Autora) se o respetivo projeto tivesse sido comunicado à Comissão nos termos previstos no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34. Mais declarou o TJUE que tal norma nacional não é suscetível de constituir uma mera transposição integral de uma “norma europeia” (não se subsumindo, pois, à exceção prevista no art. 8º nº 1 da Diretiva 98/34), nem é suscetível de se integrar numa cláusula de salvaguarda.
Ora, este julgamento do TJUE, proferido em 9/3/2023 no âmbito daquele mecanismo de reenvio prejudicial (C-604/21) operado pelo TAF/Braga no âmbito do processo 860/21.1BEBRG, é decisivo, por si, para determinar a sorte deste nosso presente processo.
Na verdade, não sendo a norma contida no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrida “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, queda-se sem fundamento legal, incorrendo, pois, em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
Dúvidas não pode haver que aquele julgamento do TJUE é plenamente aplicável no caso do presente processo, uma vez que a jurisprudência daquele tribunal europeu, quanto à interpretação fixada do direito da UE, designadamente em processo de reenvio prejudicial, torna-se obrigatório quer no âmbito da causa em que o reenvio foi operado quer em quaisquer outros processos em que seja pertinente a aplicação das mesmas normas interpretadas. Efetivamente, além de o tribunal nacional destinatário ficar vinculado pela interpretação dada, o Acórdão do TJUE vincula também os outros órgãos jurisdicionais a quem seja submetida uma questão idêntica.
Ora, no presente processo, estamos perante um litígio substancialmente idêntico, apenas variando a quantia da compensação a dever ser, alegadamente, paga pela Autora/Recorrente e o espaço temporal a que tal compensação se reporta (no nosso caso, o ano de 2016, a que, nos termos do aludido nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, correspondia uma obrigação de incorporação de biocombustíveis na percentagem de 7,5% - cfr. alínea c). Sendo irrelevantes, quanto à manutenção dessa inoponibilidade, a variação das várias versões do DL 117/2010 até á sua revogação pelo DL 84/2022, de 9/12 (nomeadamente, as versões introduzidas pelos DLs. 6/2012, de 17/1, 69/2016, de 3/11 – em que se baseou o ato aqui impugnado, 152-C/2017, de 11/12 e 8/2021, de 20/1).
Em face do julgamento do TJUE, tornam-se, pois, inúteis as eventuais respostas às questões prejudiciais colocadas suplementarmente ao TJUE pelo reenvio prejudicial operado, à cautela, no âmbito deste nosso processo, uma vez que, independentemente dessas respostas, a já estabelecida inoponibilidade aos destinatários particulares (como a aqui Autora/Recorrente) da norma impositiva contida no nº 1 do art, 11º do DL 117/2010, impõe, por si, irremediavelmente, uma decisão de procedência da presente ação impugnatória, por força de vício do ato impugnado, por erro nos pressupostos de direito (falta de base legal) – o que se decide.”
Pelo exposto, temos que, não sendo a norma inserta no nº 1 do art. 11º do DL 117/2010, de 25/10, oponível aos destinatários particulares, ela não era, consequentemente, oponível à aqui Autora/Recorrente, pelo que o ato impugnado, praticado pela Ré/Recorrente “ENSE”, consistindo numa ordem de pagamento fundamentada num incumprimento daquela norma, fica sem fundamento legal, incorrendo em vício de erro nos pressupostos de direito (falta de base legal).
[...]
Note-se, ademais, que o citado Acórdão do TJUE, de 9/3/2023, ao declarar a inoponibilidade, aos destinatários/particulares, da legislação portuguesa em causa, já pressupõe preenchida uma das condições para que essa consequência seja possível: o “efeito direto” do relevante direito da UE. Isto é, a possibilidade de os particulares poderem invocar este direito europeu em ordem a salvaguardarem os seus direitos e interesses, eventualmente contra legislação nacional que o contrarie (cfr. Acórdão fundamental “Van Gend en Loos”, 26/62).
E, nos termos do Acórdão fundamental “CIA Security Service (C-194/94), aliás citado pelo TJUE no Acórdão interpretativo de 9/3/2023, «há que concluir que a Diretiva 83/189 deve ser interpretada no sentido de que a inobservância da obrigação de notificação acarreta a inaplicabilidade das “regras técnicas” em questão, de modo que não podem ser opostas aos particulares», sendo que ao juiz nacional «compete recusar a aplicação de uma “regra técnica” nacional que não tenha sido notificada em conformidade com a Diretiva”.
Não tendo sido assim considerado pelo Tribunal a quo, independentemente de qualquer outra invalidade, a sentença padece de erro de julgamento, no que, em concreto respeita à interpretação do artigo.° 11, do Decreto-Lei n.° 117/2010, conjugado com os artigos 1.°, 8.° e 9.°, da Directiva 98/34/CE, o que determina a revogação da sentença recorrida, com as demais consequências legais.
[...]“
Fim da transcrição

Como assim deflui do extraído supra, a solução jurídica que aí foi alcançada, e que teve presente, na sua base fundamental, o julgamento de que está em causa uma “regra técnica” que não foi notificada à Comissão Europeia em conformidade com a Directiva n.º 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998, e que as normas em causa a que se reporta o Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro [em particular o seu artigo 11.º, n.º 1], não sendo oponíveis aos previstos destinatários, in casu, à Autora ora Recorrente, e tendo-o sido porque a Recorrida emitiu actos administrativos que lhe dirigiu e que a final consubstanciam ordens para pagamento, incorreu o Tribunal a quo, na realidade, em erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, por estar subjacente aos actos impugnados uma actuação contrária à lei, fundada em erro nos pressupostos da sua aplicação, desde logo, em desconformidade com o direito da União Europeia.

Neste patamar, dada a manifesta procedência do recurso jurisdicional, julgamos ser desnecessária, por inútil para os termos dos autos, a apreciação e decisão em torno dos demais erros de julgamento imputados pela Recorrente à Sentença recorrida, assim como do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE, que formulou nos autos [Cfr. fls. 972 dos autos – SITAF].
[…]”.

Ora, desta Decisão sumária vem a Reclamante agora reclamar para a Conferência, requerendo para tanto que sobre a matéria em causa recaia um Acórdão, invocando para tanto, que o acto administrativo impugnado não é ilegal, e que estava obrigada à sua emissão, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma legal que à data se encontrava em vigor e que, actualmente, só não se mantém porquanto foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2022, e que não se está perante um problema de ilegalidade do acto administrativo, mas antes perante uma eventual questão de responsabilidade civil extracontratual do Estado Português por alegados danos decorrentes do exercício da função legislativa, e dessa forma, que a Decisão reclamada padece de um erro de julgamento, por não padecer o acto administrativo de vício gerador de anulabilidade, por violação do Direito da União Europeia.

Mas como assim julgamos, não assiste razão à Reclamante, que de resto não coloca em causa os termos e os pressupostos em que se ancorou o Relator para efeitos da prolação da Decisão sumária sob Reclamação, a qual está amplamente sustentada em jurisprudência quer deste TCA Norte, quer do STA.

Em conformidade com o julgamento prosseguido na Decisão sumária, que se confirma, não tendo os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, uma idónea base legal substantiva, os mesmos são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por terem sido promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.

Efectivamente, cotejada a Decisão sumária sob Reclamação, constatamos que depois de julgar fixada a factualidade que entendeu por relevante tendo por reporte o probatório fixado pelo Tribunal a quo, o Relator deixou enunciadas as razões que deviam conduzir à concessão de provimento ao recurso de Apelação deduzido pela Autora, e à revogação da Sentença recorrida, tendo ainda julgado procedentes os pedidos deduzidos, anulando os actos da autoria do Presidente do Conselho de Administração da ENMC, EPE, proferidos nos termos do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de Outubro, no âmbito dos processos UB/04/2017 e UB/08/2017, tendo estribado jurídica e jurisprudencialmente o seu julgamento, especificando os fundamentos de facto e de direito que justificam a Decisão [assim dando cumprimento ao disposto no artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPC], e dessa forma, a Decisão reclamada mostra-se fundamentada de facto e direito, em termos de permitir prosseguir de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que o Relator se apoiou, pelo que, tem de improceder a pretensão da Reclamante, confirmando assim a Decisão sumária Reclamada.

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E assim formulamos a seguinte CONCLUSÃO/SUMÁRIO:

Descritores: Decisão sumária; Reclamação para a conferência; Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro; Directiva 98/34/CE; Combustíveis; Erro nos pressupostos de direito.

1 – Tendo sido proferida Decisão sumária que apreciou o recurso de Apelação apresentado tendo subjacente o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 94.º, n.º 5, ambos do CPTA e artigo 656.º do CPC, veio a negar provimento ao recurso interposto, cabe Reclamação para a conferência, nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

2 - O disposto no artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, ao determinar as percentagens de incorporação de biocombustíveis a observar pelas “entidades incorporadoras”, constituía uma “regra técnica” [na aceção do artigo 1.º, ponto 11, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 22 de junho de 1998] a qual só seria oponível aos destinatários particulares se o respetivo projecto tivesse sido comunicado à Comissão Europeia, nos termos previstos no artigo 8.º n.º 1 daquela Directiva.

3 – Assim não tendo sucedido, na falta de idónea base legal substantiva, os actos praticados pela Entidade Nacional para o Sector Energético, EPE, ao abrigo do disposto no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 117/2010, de 25 de outubro, são inválidos e contenciosamente anuláveis por violação de lei, por erro nos seus pressupostos de direito, por promanados em desconformidade com o direito da União Europeia.


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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em INDEFERIR a presente Reclamação, e consequentemente, em manter a Decisão sumária Reclamada.

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Custas a cargo da Reclamante.

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Notifique.
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Porto, 01 de março de 2024.


Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Luís Migueis Garcia
Celestina Caeiro Castanheira