Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00295/17.0BEBRG-S2
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:CONTRATO DE CONCESSÃO;
PRESCRIÇÃO;
INICÍO DE CONTAGEM DO PRAZO;
Sumário:

I – A Base nº XXIX, nº 3 das Bases do Contrato de concessão da Exploração e Gestão dos Sistemas Multimunicipais de Recolha, Tratamento e Rejeição de Efluentes, aprovadas pelo Decreto-Lei 162/96, de 4 de setembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de agosto, prevê que “(…) às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas (…)”.

II- Interpretando esta normação como manda o artigo 9º do C.C., é possível concluir a tese do Recorrente em matéria de contagem prescricional em referência - no sentido de que a contagem deste prazo inicia-se partir da data em que deveria ter sido emitida a fatura por oposição à data em que a mesma foi emitida - configura uma interpretação não consentida pelo Legislador, não sendo, por isso, de aceitar.

III- O que nos transporta para a evidência que o prazo prescricional em referência nos autos conta-se unicamente a partir da data de emissão da[s] fatura[s].

IV. Neste enquadramento, e emergindo cristalino que a fatura que serve de suporte à presente ação foi emitida em 31.12.2014, é de manifesta evidência que, à data de propositura da presente ação [16.12.2006] e, bem assim, de interrupção da prescrição [21.12.2006], ainda não tinha ocorrido prescrição do direito da Autora ao recebimento dos montantes relativos aos meses de outubro e novembro de 2014 [que constituem o plano temporal focado no presente recurso], por ainda não se mostrar esgotado o prazo de dois anos para o seu exercício.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:

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I – RELATÓRIO

1. O Município ..., Réu nos presentes autos de AÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM em que é Autora a sociedade [SCom01...], S.A., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador promanado nos autos na parte em que julgou improcedente a “(…) exceção de prescrição quanto ao valor remanescente de 66.605,25€ e correspondentes juros moratórios (…)”.

2. Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

1. A Base n° XXIX, n° 3 das Bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, aprovadas pelo Decreto-Lei 162/96, de 4 de setembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n° 195/2009, de 20 de agosto, prevê que “às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas”.

2. O n° 1 da Base acima mencionada dispõe que “os serviços prestados pela concessionária devem ser objeto de medição para efeitos de faturação, salvo disposições transitórias previstas contratualmente, e ser faturados mensalmente, com um prazo de pagamento de 60 dias”.

3. A cláusula 37ª, n° 16 do contrato de concessão acima aludido fixa também um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas para as dívidas dos utilizadores em mora.

4. Nos termos do disposto no n°3 da cláusula 33ª do Contrato de Concessão entre o Estado Português e [SCom02...], S.A., junto pela Autora com a petição inicial aperfeiçoada como documento n°..., “a faturação será apresentada mensalmente e, quando, nos termos previstos na cláusula 16ª, não resultar de medição, corresponderá a um duodécimo dos valores mínimos anuais previstos nos números 1 e 2 da mesma cláusula.”

5. A Autora, aqui Recorrida, sabia que no ano de 2014 e nos anos anteriores (2013, 2012, 2011...) não existia ligação efetiva ou sequer possibilidade física e objetiva de ligação efetiva entre o sistema municipal de recolha de efluentes do Município ... e o sistema multimunicipal de recolha, tratamento e rejeição de efluentes concessionado à [SCom03...], SA.

6. De resto, como se alegou em 48. da oposição, a ligação efetiva entre o sistema municipal de recolha de efluentes do Município ... e o sistema multimunicipal de recolha, tratamento e rejeição de efluentes concessionado à [SCom03...], SA. só foi efetuada, ainda que parcialmente, em novembro de 2015, e não antes por absoluta impossibilidade objetiva, exclusivamente imputável a culpa da concessionária, que atrasou excessiva e injustificadamente a sua conclusão.

7. Em face do exposto, competia à Autora, aqui recorrida, por remissão do n°3 da cláusula 33ª do Contrato de Concessão entre o Estado Português e [SCom02...], S.A., aplicar o disposto no n°2 da cláusula 16ª do mesmo contrato, segundo o qual: “Enquanto não for possível proceder à medição dos caudais, por razões de ordem técnica, designadamente decorrente da articulação dos sistemas municipais com as condutas e os intercetores do Sistema, os valores a receber pela concessionária coincidirão com os valores mínimos a que se refere o número 1.” Cfr. documento junto pela Autora a fls. 116 a 146.

8. Em síntese, em relação ao ano de 2014, que é o que aqui está em causa, a Autora, aqui recorrida, estava obrigada a emitir e apresentar faturação mensal, correspondente a um duodécimo dos valores mínimos anuais previstos no Anexo I (Valores Mínimos Garantidos - Município ...), que faz parte integrante do contrato que a Autora, aqui recorrida, alega ter sido celebrado entre o Município ... e [SCom02...], SA. Cfr. documento junto pela Autora a fls. 149 a 160.

9. De acordo com esse Anexo I, o valor previsto a título de Valores Mínimos Garantidos para o ano de 2014 era de €270.057,60. Pelo que, um duodécimo desse valor anual (€270.057,60) corresponde a €22.504,80.

10. Em suma, a Autora, recorrida, estava obrigada a faturar mensalmente um duodécimo daquele valor anual, ou seja, €22.504,80.

11. Acresce que, os serviços prestados deveriam ter sido faturados até ao final do mês a que dissessem respeito ou, o mais tardar, até ao dia 15 do mês imediatamente ulterior.

12. E, por conseguinte, se a Autora, aqui recorrida, tivesse cumprido o que determina a lei e estabelece o contrato, as faturas referentes aos serviços prestados no ano de 2014 deveriam ter sido emitidas no último dia de cada mês ou, o mais tardar, até ao dia 15 do mês seguinte.

13. Assim sendo, as faturas dos meses de janeiro a novembro de 2014 deveriam ter sido emitidas até final do respetivo mês ou, o mais tardar, até ao dia 15 do mês seguinte.

14. Quer isto significar que a fatura mais recente, de novembro de 2014, deveria ter sido emitida em 30.11.2014 ou, o mais tardar, em 15.12.2014.

15. E, se tal sucedesse, como deveria ter sucedido, a Autora, aqui recorrida, deveria ter reclamado judicialmente o seu pagamento dentro do prazo de 2 anos a contar da emissão, ou seja, até 30.11.2016 ou, o mais tardar, até 15.12.2016.

16. Não o tendo feito, estão prescritas as faturas de janeiro a novembro de 2014.

17. Com efeito, tendo o requerimento injuntivo dado entrada em juízo em 16/12/2016, só em 21.12.2016 é que se considera interrompida a prescrição (cfr. artigo 323°, n.ºs 1 e 2 do Código Civil).

18. Em conclusão, estão prescritas todas as dívidas cujas faturas foram emitidas ou deviam ter sido emitidas antes de 21.12.2014.

19. Em suma, a interrupção da prescrição ocorrida em 21.12.2016 só teve a virtualidade de impedir a prescrição dos serviços referentes ao mês de dezembro de 2014, pois esses serviços só deviam ser faturados no final do mês (31.12.2014), como, de resto, foram.

20. Em face do exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a Douta Decisão recorrida e, consequentemente, julgar-se prescritos os valores mínimos garantidos correspondentes aos duodécimos de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro e novembro de 2014, no valor total de € 247.552,80, e correspondentes juros moratórios, absolvendo-se, quanto a esse valor, o Réu, aqui recorrente, do pedido (…)”.


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3. Notificada que foi para o efeito, a Recorrida não contra-alegou.

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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.

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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se o despacho saneador, na parte em que julga improcedente a exceção de prescrição quanto ao valor remanescente de 66.605,25 € e correspondentes juros moratórios, incorreu em erro de julgamento de direito.

9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.1 – DE FACTO

10. A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida, como decorre do art. 663º, n.º 6, do CPC.


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IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

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11. Cumpre decidir, sendo que, como se referiu supra, a única questão que se mostra controversa e objeto do presente recurso jurisdicional consiste em saber se o despacho saneador recorrido, ao julgar improcedente a exceção de prescrição quanto ao valor remanescente de 66.605,25 € e correspondentes juros moratórios, incorreu em erro de julgamento de direito.

12. A decisão que a 1.ª Instância proferiu a este respeito tem o seguinte teor, que consideramos útil transcrever para a melhor compreensão da questão prévia acima elencada e que ora nos cumpre decidir: ”(…)

b) Prescrição

A Lei n° 23/96, de 26 de julho (Lei dos Serviços Públicos Essenciais - LSPE), consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente, abrangendo, nomeadamente, o serviço de fornecimento de água e o serviço de recolha e tratamento de águas residuais (cfr. artigo 1°, n.ºs 1 e 2, al. a) da LSPE).

Para os efeitos previstos nessa lei, considera-se utente a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo (cfr. n° 3 do mesmo preceito legal).

Por sua vez, o artigo 9°, n.ºs 1 e 2 da LSPE prevê que o utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta, a qual deve ter uma periodicidade mensal, devendo discriminar os serviços prestados e as correspondentes tarifas.

Finalmente, o artigo 10° do mesmo diploma legal, sob a epígrafe de “Prescrição e caducidade”, dispõe o seguinte:

“1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.

2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.

3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efetuar o pagamento.

4 - O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.

5 - (…)”.

A Entidade Demandada defende, com base nestas disposições legais, que o direito de crédito da Autora estaria prescrito.

No que respeita à prescrição, vale aqui o enquadramento efetuado no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/02/2014, proferido no Proc. n° 155374/12.4 YIPRT.L1-8, que se transcreve parcialmente, dada a sua pertinência:

“(...) iv) O CC não acolhe uma noção de prescrição. Prescreve, no entanto, no artigo 298.°, n.° 1, que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.

v) Acrescenta o artigo 304.°, n.° 1, que, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo ao exercício do direito prescrito.

vi) Podem, portanto, convocar-se, três ideias essenciais: a) uma ideia de paralisação dos direitos de outrem; b) pelo não exercício por este do direito de que é titular; c) pelo decurso de um certo lapso de tempo.

vii) O fundamento da prescrição continua objeto de controvérsia. Julgamos não fugir à verdade se afirmarmos que a para a maioria dos autores aquele fundamento é feito radicar na exigência de certeza das relações jurídicas e na necessidade de paralisar o exercício de direitos após um período, maior ou menor de inércia do seu titular, adequado a justificar que na comunidade se forme a convicção da sua inexistência.

viii) O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição (artigo 306.°, n° 1, CC).

ix) A prescrição pressupõe a inércia do titular do direito; não existe, por conseguinte, inércia, enquanto não for juridicamente possível exercer esse direito.

x) O cômputo do prazo da prescrição é efetuado segundo o calendário comum que é o gregoriano (artigo 279.° CC).

xi) O prazo ordinário da prescrição, que vale para qualquer situação para a qual a lei não preveja prazo diferente, é de vinte anos (artigo 309.°, CC).

xii) O CC prevê prazos mais breves, de cinco anos, para o exercício de certos direitos, designadamente em relação às prestações periodicamente renováveis (artigo 310.°, alínea g)).

xiii) Se a inércia é o pressuposto da prescrição, esta não opera quando sobrevenha uma causa que, tornando impossível, ou extremamente difícil o exercício do direito justifique a inércia, e quando a inércia cesse enquanto o direito é exercido ou reconhecido pela contraparte. Estamos então em presença dos institutos da suspensão ou interrupção da prescrição (artigos 318.° ss e 323.° e ss do CC). A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, sendo equiparado à citação ou notificação qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra o direito pode ser exercido.

xiv) Justaposta à prescrição extintiva, a lei consagrou a chamada prescrição presuntiva. Nesta hipótese, o decurso do prazo não produz o efeito extintivo, mas a presunção (relativa ou juris tantum) de cumprimento (artigo 312,° CC).

xv) A prescrição presuntiva exonera o devedor de fazer em juízo a prova da extinção da obrigação, como em princípio, de acordo com as regras gerais, lhe competiria (artigo 342.°, n.° 2, CC).

xvi) Presume-se, em conformidade com as regras de experiência, que algumas das relações da vida quotidiana se desenvolvem sem formalidades, e que alguns débitos são pagos prontamente, muitas vezes sem quitação ou sem o hábito de comprovar a prova dos mesmos.

xvii) Preveem-se quanto aquelas relações prazos curtos de prescrição, de seis ou de dois anos (artigos 316.° e 317.° do CC).

xviii) Pode hoje considerar-se dominante o entendimento de que o artigo 10.°, n.° 1, da Lei 23/96 consagra uma prescrição extintiva ou liberatória (o Ac. do STJ n.° 1/2010, de 03.12.2009, fixou, como é consabido, jurisprudência no sentido de que «nos termos do disposto na redação originária do n.° 1 do artigo 10.°, da Lei n.° 23/96, de 26 de julho, e no n.° 4 do artigo 9.° do DL 381-A/97, de 30 de dezembro, o direito ao pagamento do preço de serviços de telefone móvel prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação).

xix) Prevalece hoje uma corrente reforçada que sufraga, e bem, o entendimento de que o prazo prescricional de seis meses se conta desde a efetiva prestação dos serviços (tratando-se de serviços reiterados ou periódicos, a partir de cada um dos períodos do serviço), sem que a apresentação da fatura tenha efeito interruptivo”.

Contudo, como é bom de ver, a LSPE não é aplicável à situação em causa nestes autos, mas sim a relações contratuais de consumo, em que o utente é o consumidor final do serviço público de fornecimento de água ou da recolha de efluentes domésticos.

De facto, é isso que se retira, desde logo, do artigo 15° da LSPE, nomeadamente do seu n° 1, que se refere expressamente a “litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais”.

E também aponta no mesmo sentido o acórdão acima citado, quando refere que “na base deste regime está a compreensão de que o equilíbrio entre fornecedores e consumidores deve revestir a tendência para infletir em proveito do consumidor final o direito a ser protegido”.

Neste caso, como resulta do “Contrato de Concessão entre o Estado Português e a [SCom01...], S.A.” e do contrato de recolha de efluentes alegadamente celebrado entre as partes processuais, a Autora é a entidade gestora do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, tendo-se obrigado, nessa qualidade, a recolher efluentes provenientes do sistema próprio do Município ....

Daí resulta que era a Entidade Demandada quem tinha de fazer a recolha dos respetivos efluentes domésticos, ou seja, dos consumidores finais e, portanto, dos utentes dos serviços públicos essenciais por si prestados.

Nessa medida, é à relação contratual estabelecida entre a Entidade Demandada e os seus munícipes que se aplica a LSPE, mas não àquela estabelecida entre a Autora e a Entidade Demandada, que está a jusante dessa, no caso do saneamento (cfr., no mesmo sentido, Ac. Tribunal de Conflitos n° 024/14, de 09/02/2014, citado pela Autora).

Por outro lado, como resulta da respetiva alegação, a Entidade Demandada não invocou a prescrição presuntiva, prevista no artigo 312° e ss. do Código Civil, mas sim a prescrição extintiva.

Ora, como admite a Autora na sua réplica, a Base n° XXIX, n° 3 das Bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, aprovadas pelo Decreto-Lei 162/96, de 4 de setembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n° 195/2009, de 20 de agosto, prevê que “às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas”.

De resto, o n° 1 da Base acima mencionada dispõe que “os serviços prestados pela concessionária devem ser objeto de medição para efeitos de faturação, salvo disposições transitórias previstas contratualmente, e ser faturados mensalmente, com um prazo de pagamento de 60 dias”.

Transpondo estas disposições normativas, a cláusula 37º, n° 16 do contrato de concessão acima aludido fixa também um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas para as dívidas dos utilizadores em mora.

Portanto, é com base nestas disposições legais e contratuais que se deve aferir se o crédito da Autora está ou não prescrito, tanto mais que o Tribunal não está sujeito às alegações de direito das partes (cfr. artigo 5°, n° 3 do CPC).

Ora, a fatura respeitante aos valores mínimos garantidos, cujo pagamento é peticionado nestes autos, foi emitida pela Autora em 31/12/2014, com vencimento 60 dias depois, sendo relativa a todo o ano de 2014.

Por seu lado, o requerimento injuntivo deu entrada em juízo em 16/12/2016, como se encontra aposto no respetivo formulário, pelo que, independentemente da data da citação/notificação da Entidade Demandada, teve a virtualidade de interromper a prescrição cinco dias depois (cfr. artigo 323°, n.ºs 1 e 2 do Código Civil).

Deste modo, dir-se-ia que a prescrição foi tempestivamente interrompida pela Autora em 21/12/2016, antes ainda de se completarem dois anos desde a data da emissão da fatura em causa.

Todavia, não se pode perder de vista que a Autora tinha a obrigação de faturar mensalmente os serviços prestados, pelo que não se pode deixar de incluir aqui os valores mínimos garantidos.

Assim, se a Autora tivesse cumprido a obrigação legal que lhe competia, as faturas respeitantes aos meses de janeiro a setembro de 2014 estariam efetivamente prescritas. Com efeito, a fim de não esvaziar de sentido útil a referida disposição legal, é a partir do final de cada mês que se deve contar o prazo de vencimento, posto o que se inicia o prazo de prescrição. De outro modo, estaria a abrir-se a porta para a Autora alargar artificialmente os prazos de prescrição, mediante o atraso da faturação dos serviços prestados.

Neste caso, estando em causa valores mínimos garantidos, é possível presumir que o montante anual corresponde à soma de parcelas iguais no valor de 1/12 daquele total.

Ora, dividindo 266.421,03€ por 12, obtém-se o valor mensal de 22.201,75€. Nesse sentido, o valor prescrito alcança o total de 199.815,75€.

Por contraste, os valores mínimos garantidos correspondentes ao último trimestre do ano de 2014 não estão prescritos, no total de 66.605,25€, uma vez que a Autora logrou interromper entretanto o respetivo prazo.

Face ao exposto, procede parcialmente a exceção de prescrição invocada pela Entidade Demandada na sua contestação, quanto ao montante de 199.815,75€ e respetivos juros de mora, improcedendo quanto ao valor remanescente de 66.605,25€ e correspondentes juros moratórios.

Nestes termos, absolve-se parcialmente a Entidade Demandada do pedido, quanto ao valor de 199.815,75€ e respetivos juros de mora (…)”.

13. Ora, o Recorrente não discorda do decidido pelo Mm°. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela senão no que respeita à declarada improcedência exceção de prescrição no tocante aos valores mínimos garantidos correspondentes ao último trimestre do ano de 2014, no total de € 66.605,25.

14. O Recorrente sustenta que tal segmento decisório deve ser revisto no sentido de abranger, para além dos declarados meses de meses de janeiro a setembro de 2014, também os meses de outubro e novembro de 2014.

15. Pretensão que funda, no mais essencial, no entendimento de que “(…) se Autora, aqui recorrida, tivesse cumprido o que determina a lei e estabelece o contrato, as faturas referentes aos serviços prestados no ano de 2014 deveriam ter sido emitidas no último dia de cada mês, ou, o mais tardar, até ao dia 15 do mês seguinte (…) E, se tal sucedesse, como deveria ter sucedido, a Autora, aqui recorrida, deveria ter reclamado judicialmente o seu pagamento dentro do prazo de 2 anos a contar da emissão, ou seja, até 30.11.2016 ou, o mais tardar, até 15.12.2016. Não o tendo feito, estão prescritas as faturas de janeiro a novembro de 2014 (…)”.

16. Conforme ressuma grandemente do que se vem de transcrever, na génese da invocação do erro de julgamento em análise, radica o entendimento de que a contagem do prazo prescricional aplicável à situação trazida a juízo inicia-se, não da data de emissão da fatura, mas antes da data em que a mesma deveria ter sido emitida.

17. Realmente, o Recorrente sustenta que, não obstante o valor anual da fatura que serve de suporte à presente ação, a mesma é relativa à prestação mensal de serviços sobre recai a exigência regulamentar de faturação mensal.

18. Assim, se o Recorrente tivesse cumprido esta exigência de faturação mensal, já estariam prescritos, para além dos declarados valores mínimos relativos aos meses de janeiro a setembro de 2014, também os meses de outubro e novembro de 2014.

19. Espraiadas as considerações pertinentes da constelação argumentativa do Recorrente, adiante-se, desde já, que a razão não está do seu lado.

20. De facto, o cotejo da realidade em equação permite-nos verificar que a fatura que serve de suporte à presente ação é referente aos “valores mínimos garantidos” de saneamento respeitantes ao ano de 2014.

21. Nos termos do ponto 1.3 do Anexo 2 ao contrato de recolha de efluentes celebrado entre o Município ... e a [SCom02...]:”(…) Quando o valor do caudal efetivo recolhido do Município, em cada ano, seja inferior ao valor mínimo fixado no Anexo I, a faturação do mês de janeiro será acrescida da importância necessária para perfazer o pagamento total anual do valor mínimo garantido estabelecido (…)” [cfr. doc. ... junto com a PI.].

22. Donde se capta que a faturação dos valores mínimos garantidos é realizada por acerto [no mês de janeiro do ano seguinte - 2015] e não mensalmente, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à tese do Recorrente quanto à exigência da faturação mensal dos valores reclamados nos presentes autos.

23. Por outra banda, e quanto ao modo de contagem do prazo prescricional visado nos autos, impera ressaltar o teor da jurisprudência emanada por este Tribunal Central, de 08.05.2015, sumariada no processo nº. 00048/13.5BEMDL: “(…) O prazo de prescrição de dois anos aplicável, nos termos das Bases dos respetivos contratos de concessão, às dívidas dos municípios utilizadores dos sistemas municipais de tratamento de resíduos sólidos urbanos, dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público e dos sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, conta-se a partir da data emissão das respetivas faturas e tem natureza de prescrição extintiva (…)” [destaque e sublinhado nosso].

24. Posição que se manteve no Arestos deste T.C.A.N., de 23.06.2017, no processo nº. 00050/13.7BEMDL e de 07.07.2017, no processo nº. 00022/14.4BEMDL.

25. E subscrita pelo Tribunal Cúpula desta Jurisdição no Acórdão prolatado em 30.06.2016, sumariada no processo nº. 01542/15, de 30.06.2016: “(…) I – Resulta da Base XXXI anexa ao DL n.º 319/94, de 24/02 e da Base XXIX anexa ao DL n.º 162/96, de 4/09, nas redações que lhes foram introduzidas pelo DL n.º 195/2009, de 20/08, que a dívida do Município utilizador à concessionária está sujeita a um prazo prescricional de 2 anos, a contar da data da emissão da fatura em dívida (…)” [destaque nosso e sublinhado nosso].

26. Acompanha-se plenamente a referida orientação jurisprudencial.

27. Em termos normativos, a Base nº XXIX, nº 3 das Bases do Contrato de Concessão da Exploração e Gestão dos Sistemas Multimunicipais de Recolha, Tratamento e Rejeição de Efluentes, aprovadas pelo Decreto-Lei 162/96, de 4 de setembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de agosto, prevê que “(…) às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas (…)”.

28. Interpretando esta normação como manda o artigo 9º do C.C., conclui-se que a contagem do prazo prescricional em referência não pode ser interpretada no sentido preconizado pelo Recorrente.

29. Na verdade, se é certo que a letra da lei é o ponto de partida da tarefa de interpretação jurídica, não menos é que esse mesmo elemento hermenêutico constitui o limite do resultado interpretativo [artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil].

30. Tendo o Legislador previsto que “(…) às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável (…) um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respetivas faturas (…)” [sublinhado nosso], não há como concluir que a contagem do prazo prescricional em referência inicia-se a partir da data em que deveria ter sido emitida a fatura por oposição à data em que a mesma foi emitida.

31. Nem se diga que estamos perante um lapso do legislador: nada nas normas em apreço inculca a ocorrência de tal lapso e, ademais, deve presumir-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados [artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil].

32. O que basta para assentar que o prazo prescricional em referência nos autos conta-se a partir da data de emissão da[s] fatura[s].

33. Neste enquadramento, e emergindo cristalino que a fatura que serve de suporte à presente ação foi emitida em 31.12.2014 [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos – suporte digital], é de manifesta evidência que, à data de propositura da presente ação [16.12.2006] e, bem assim, de interrupção da prescrição [21.12.2006], ainda não tinha ocorrido a prescrição do direito da Autora ao recebimento dos montantes relativos aos meses de outubro e novembro de 2014 [que constituem o plano temporal focado no presente recurso], por ainda não se mostrar esgotado o prazo de dois anos para o seu exercício.

34. Pelo que, ainda que com motivação diversa, não se pode deixar de concluir que bem andou o MMº Juiz a quo ao decidir em conformidade com o sentido final que se vem expor.

35. Concludentemente, improcedem as todas conclusões de recurso em análise.

36. Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e, ainda que com fundamentação diversa, mantida a decisão judicial recorrida.

37. Ao que se provirá no dispositivo.


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V – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e, ainda que com fundamentação diversa, confirmar o despacho saneador recorrido.

Custas do recurso pelo Recorrente.

Registe e Notifique-se.


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Porto, 30 de novembro de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa

Antero Pires Salvador

Helena Maria Mesquita Ribeiro