Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01079/06.7BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/25/2018
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:IRS
CONVENÇÃO PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL
PRESUNÇÃO DE VERDADE
ARTIGO 128.º DO CÓDIGO DE IRS,
FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO
VALOR DA CAUSA
Sumário:I - Antes da vigência do DL n.º 303/07, de 24/08, no respeitante ao artigo 315.º do CPC, o juiz assumia um papel fiscalizador sobre o valor da causa, dado que sempre que havia acordo das partes - expresso ou tácito – sobre o valor da causa, em princípio era esse o valor atribuído, e só quando houvesse flagrante oposição com a realidade, à luz dos critérios legais, é que o juiz fixava o valor adequado, devendo fazê-lo até ao saneador, ou não o havendo até à sentença. Caso não o fizesse, considerava-se definitiva e tacitamente fixado no valor acordado.
II - Com a entrada em vigor do DL n.º 303/07, de 24/08 e com a redacção por ele introduzida no artigo 315.º do CPC, o juiz tem sempre de fixar o valor da causa, sindicando aquele que foi indicado pelas partes.
III - Para apurar se uma decisão está, ou não, fundamentada impõe-se, antes de mais, que se faça, desde logo, a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.
IV - A presunção legal de que as declarações apresentadas pelos contribuintes à administração tributária são verdadeiras cessa, nomeadamente, quando os contribuintes não cumprem os deveres que lhes couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando for legítima a recusa da prestação de informações – cfr. artigo 75.º da Lei Geral Tributária.
V - É sobre a Administração Tributária que recai o ónus de demonstrar que existem indicadores fundados que legitimam a sua actuação de proceder a correcções às declarações dos contribuintes e provar os factos constitutivos do direito à liquidação adicional; e sobre o sujeito passivo recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à anulação dessa liquidação – cfr. artigo 74.º da Lei Geral Tributária.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:G... e outra
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

G..., NIF 2…, e mulher C..., NIF 1…, residentes na Rua…, Esmoriz, Ovar, interpuseram recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, proferida em 30/06/2017, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o acto de indeferimento da reclamação graciosa que apresentaram, referente à liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2005 4004440945, do ano de 2001.

Os Recorrentes terminaram as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
“1. O valor da presente causa é de € 1.490,71, conforme indicado na PI - e não de € 1.080,42, indicado na douta Sentença recorrida.
2. Com efeito, a RFP/Recorrida não impugnou o valor de € 1.490,71, indicado na PI – pelo que aceitou o valor atribuído à causa pela Recorrente (cfr. artigo 314º nº 4 do CPC, redacção aplicável).
3. O valor da causa é aquele que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, (cfr. artigo 315º nº 1 e nº 2 do CPC, redacção aplicável, ex vi do artigo 31º nº 4 do CPTA, redacção aplicável).
4. Da liquidação aqui impugnada resultou precisamente o valor de € 1.490,71 a pagar.
5. Por conseguinte, a utilidade económica deste processo de Impugnação Judicial é inequivocamente de € 1.490,71 (cfr. artigo 33º do CPTA, redacção aplicável).
6. Atento o disposto nos artigos 31º nº 1 do CPTA (redacção aplicável) e 305º nº 1 do CPC (redacção aplicável), é aquele o valor dos presentes autos.
7. A douta Sentença recorrida violou os artigos 97º-A nº 1 a) do CPPT e 306º do CPC.
8. Aquele artigo 97º-A do CPPT foi aditado pelo DL 34/2008, de 26/2, com entrada em vigor em 20.04.2009, e é aplicável apenas aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor - pelo que não vigorava à data da apresentação da PI - momento, este, em que é determinado o valor (cfr. artigos 108º nº 2 do CPPT e 308º nº 1 do CPC, redacção aplicável).
9. A douta Sentença recorrida também aplicou o artigo 306º do CPC com uma redacção legislativa que não estava em vigor à data da apresentação da PI.
10. Em suma, douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento e violação das sobreditas disposições legais no que concerne à fixação do valor da causa, que deve ser alterado para € 1.490,71.
Acresce que,
11. A RFP não apresentou contestação.
12. Por conseguinte, a douta Sentença recorrida deveria ter retirado daí o efeito cominatório semipleno que advém dessa falta de contestação, com as inerentes consequências probatórias ao nível da factualidade alegada pelos Recorrentes (cfr. artigo 110º nº 7 do CPPT).
Por outro lado,
13. Contrariamente ao entendimento da douta Sentença recorrida, foi violado o direito de audição prévia antes da liquidação.
14. A douta Sentença recorrida incorreu em erro de julgamento e violou os artigos 60º nº 1 a) e e), nº 2 a) e nº 5 da LGT, e 267º nº 5 da CRP.
15. Ao invés do firmado na douta Sentença recorrida, a liquidação não foi feita com base na declaração do contribuinte - outrossim, introduziu alterações à declaração do contribuinte, em prejuízo do mesmo, dela resultando um adicional a pagar pelo contribuinte.
16. A circunstância da AT ter pedido elementos aos Recorrentes não permite concluir que a AT cumpriu esse direito de audição prévia do contribuinte.
Acresce que,
17. A douta Sentença recorrida padece igualmente de erro de julgamento quanto à insuficiência de fundamentação.
18. Com efeito, o vício de insuficiência de fundamentação alegado pelos Recorrentes foi o vício de insuficiência de fundamentação da liquidação - e não o vício de insuficiência de fundamentação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa.
19. Tal como resulta da factualidade provada, a liquidação padece de insuficiente fundamentação, em violação do disposto nos artigos 77º nº 1 e 2 da LGT e 268º nº 3 da CRP – o que vide equivale a falta de fundamentação, nos termos do artigo 125º nº 2 do CPA, em vigora à data.
20. Como resulta da factualidade provada, a liquidação não tem fundamentação de Direito.
21. Por outro lado, também não contém as operações de cálculo e apuramento que terão conduzido à correcção das deduções à colecta de Euro 1.911,69 para apenas Euro 420,98.
22. Assim, a douta Sentença recorrida violou igualmente estas disposições legais.
Acresce que,
23. Alegaram os Recorrentes/Impugnantes, na PI e nas alegações pré-sentenciais, que o requerimento e documentos apresentados pelos Impugnantes por fax de 31.10.2005 e correio registado, junto da DSRI, em resposta ao ofício 027092, de 19.10.2005, não mereceram qualquer resposta ou apreciação por parte da DSRI - necessariamente antes da liquidação.
24. O que se traduz numa violação do artigo 56º nº 1 da LGT, segundo o qual a administração tributária está legalmente obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos que lhe sejam apresentados pelos contribuintes.
25. A douta Sentença recorrida não emitiu qualquer pronúncia sobre esta matéria, nem a sua apreciação estava prejudicada pela solução dada às demais questões.
26. Pelo que padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 125º nº 1, 608º nº 2 e 615º nº 1 d) e nº 4 do CPC.
27. Seja como for, também por virtude do referido, o acto de liquidação padece de insuficiente fundamentação, em prejuízo do direito de defesa dos Impugnantes.
Acresce que,
28. A douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento e violação de lei ao considerar que a AF não violou os princípios e deveres de boa-fé, proporcionalidade e colaboração (artigos 55º e 59º nº 1 da LGT, 46º do CPPT, 5º, 7º e 9º do RCPIT).
29. Estava em causa um pedido da AF aos Recorrentes, pessoas singulares, de inúmeros elementos e documentos, a obter em Itália no curto prazo de 8 dias, quando os Recorrentes estavam a residir em Portugal - nada tendo que ver, pois, com o exercício de qualquer direito de audição prévia e/ou com o prazo legal mínimo do direito de audição, 8 dias.
30. O prazo de apenas 8 dias concedido aos Recorrentes não respeitou sequer o prazo legal mínimo de 10 dias consignado no artigo 23º nº 1 do CPPT.
31. Nestas circunstâncias, os Recorrentes, ela empregada fabril da Y... e ele desempregado, remeteram à AF os documentos de que dispunham, no curto prazo que lhes foi concedido - remetendo à AF os docs. 7, 8 e 9 juntos à PI, pois eram os únicos que tinham, desconhecendo a faculdade de solicitar prorrogações de prazo, que aliás estaria sempre dependente da autorização da AF.
32. A Recorrente/Impugnante mulher trabalhou em Itália apenas em 2001 e por um curto período de tempo (95 dias).
33. Apesar do envio dos docs. 7, 8 e 9 juntos à PI, a AF não se dignou sequer dar uma resposta prévia aos Impugnantes/Recorrentes sobre esses documentos.
34. Por conseguinte, contrariamente ao decidido, a liquidação violou os sobreditos princípios da boa-fé, proporcionalidade e colaboração.
Sem prejuízo, sobre a questão de fundo,
35. A douta Sentença recorrida estriba-se em Jurisprudência do STA, Acórdão de 22.02.2012, Processo nº 00434/09.5BEMDL, o qual tem por base uma situação factual sob a égide de legislação nacional distinta daquela que é aplicável in casu.
Por outro lado,
36. A correcção efectuada pela AF advém do factos dos Recorrentes, alegadamente, não terem exibido junto da DSRI, no prazo de 8 dias, os documentos elencados no ofício nº 027092, de 19.10.2005 – os quais, segundo a AF, seriam “os documentos exigíveis constantes do ofício circulado nº 20.022, de 19.05.2000”, da DSRI.
37. A lei não determina quaisquer “documentos exigíveis” para o efeito.
38. Os Recorrentes desconhecem e não têm obrigação de conhecer aquele ofício circulado nº 20.022, de 19.05.2000, da DSRI - mas sabem que esse ofício circulado não é lei, pelo que não pode fundamentar legalmente qualquer correcção.
39. A douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento ao afirmar que seria exigível aos Recorrentes apresentarem documento que atestasse que o imposto suportado em Itália tinha sido efectivamente pago ao Estado Italiano.
40. Com efeito, à data dos factos não existia qualquer disposição legal, interna ou internacional, que impusesse semelhante ónus probatório aos Recorrentes/Impugnantes.
41. Da factualidade provada e dos documentos juntos pelos Impugnantes/Recorrentes resulta claramente que a Recorrente mulher suportou imposto Italiano, já que o mesmo lhe foi deduzido ao seu salário, por via de retenção na fonte por parte da entidade patronal Italiana (Y... Europe Limited ou “Y... Itália”).
42. Como é elementar, era impossível aos Recorrentes obterem certificado segundo o qual a Y... Itália tinha entregado aquele imposto (retido) ao Estado Italiano - quem tinha condições para atestar esse pagamento era outrossim a AF Portuguesa, colocando a questão à AF Italiana, o que não fez.
43. Com efeito, atento o disposto no artigo 25º nº 1 da CDT celebrada entre Portugal e Itália, compete às autoridades fiscais de ambos os países trocar entre si as informações necessárias para aplicar a CDT, designadamente na parte em que esta respeita à eliminação da dupla tributação internacional (artigo 22º da CDT).
44. Aliás, assim impunham igualmente os princípios legais do inquisitório e da descoberta material (cfr. artigos 58º da LGT e 6º do RCPIT).
45. O artigo 74º nº 2 da LGT tem em vista dispensar os interessados de produzirem prova no procedimento sobre factos que a administração tributária pode comprovar através dos seus serviços - como decidiu a própria AF, por exemplo, na Informação nº 90.AJT/2005, de 22/06/2005, da DSPIT.
46. A AF está juridicamente vinculada à sua doutrina interna, por força dos princípios da igualdade e boa-fé (cfr. artigos 68º-A da LGT, 55º do CPPT e 6º- A do CPA, redacção à data).
47. É conhecido o primado do Direito Internacional em relação ao Direito Interno (artigo 8º da CRP).
48. Tudo o que estava ao alcance dos Recorrentes foi atestado junto da AF – o salário obtido e o imposto Italiano deduzido/retido sobre esse salário.
49. Contrariamente ao entendimento da douta Sentença recorrida, o ónus da prova da factualidade relevante para efectuar a liquidação adicional de imposto, baseada na desconsideração da dedução à colecta declarada pelos Recorrentes, por dupla tributação internacional, competia à AF Portuguesa, e não aos Recorrentes (cfr. artigo 74º nº 1 da LGT).
50. As declarações dos contribuintes gozam da presunção legal de veracidade e boa-fé, conforme advém do disposto no artigo 75º nº 1 da LGT – com a consequente inversão do ónus da prova, passando a competir à AF o ónus de demonstrar a factualidade relevante para exercer o seu direito de liquidação adicional de imposto.
51. Nos termos do artigo 100º nº 1 do CPPT, sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, o acto impugnado deve ser anulado.
52. Assim, a douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento e violação das sobreditas disposições legais.
Por outro lado,
53. Os rendimentos em causa deveriam ter sido tributados, única e exclusivamente, em Itália (Estado do local trabalho), atento o disposto no artigo 15º nº 2 b) “a contrario” da CDT Portugal/Itália.
54. A Impugnante, em 2001, trabalhou 95 dias em Itália, sob as ordens e direcção da sociedade Italiana, sediada em Itália, Y... Europe Limited (cfr. artigo 15º nº 2 a) da CDT).
55. Isto, sem perder a sua qualidade de residente em Portugal.
56. Pelo trabalho em Itália, a Recorrente auferiu da dita sociedade Italiana o rendimento salarial bruto de € 11.343,79.
57. Sobre o qual a mesma sociedade italiana reteve a importância de € 5.470,76, a título de imposto italiano sobre o rendimento do trabalho dependente.
58. Assim, aquela remuneração de € 11.343,79 foi paga por uma entidade patronal ou em nome de uma entidade patronal residente em Itália, a dita “Y... Europe Limited”, sediada em Itália.
59. Pelo que a remuneração do trabalho dependente em causa só podia ter sido tributada em Itália (Estado do trabalho) - e não, como sucedeu, também em Portugal (Estado da residência) (cfr. artigo 15º nº 2 b) “a contrario” da CDT Portugal/Itália).
60. A douta Sentença recorrida violou estas disposições legais.
61. Apesar do rendimento em questão dever ser tributado apenas em Itália, os Recorrentes, erradamente, englobaram a dita quantia de € 11.343,79 (rendimento do trabalho dependente obtido pela Recorrente mulher em Itália, por trabalho dependente aí prestado em 2001) aos seus rendimentos declarados em Portugal,
62. Pelo exposto, a liquidação ora impugnada não deveria considerar, como considerou, aquela parcela de rendimento (do trabalho dependente) proveniente de Itália, paga por entidade Italiana e tributada em Itália.
63. No entanto, uma vez que os Recorrentes cometeram o erro de englobar também esse rendimento (na declaração apresentada em Portugal), deve ser eliminada a dupla tributação internacional verificada (tributação em Portugal e Itália), nos termos do disposto no nº 4 do artigo 22º da CDT Portugal/Itália.
64. Ou seja, deve ser deduzido, ao imposto sobre os rendimentos a pagar em Portugal, o imposto sobre o rendimento pago em Itália, € 5.470,76.
65. O método destinado a evitar a dupla tributação consagrado no artigo 22º nº 4 da CDT Portugal/Itália é o método da imputação normal ou ordinária - que se resume à dedução, ao imposto sobre o rendimento Português, da importância do imposto pago em Itália.
66. Uma vez que a liquidação de IRS ora impugnada desconsiderou a dedução à colecta do imposto Italiano suportado em Itália, e que a douta Sentença recorrida sufraga esta liquidação, padece a mesma, por isso, de errada interpretação e aplicação das sobreditas disposições legais.
Finalmente,
67. A douta Sentença recorrida acaba por reconhecer que a certidão emitida pela entidade patronal, com indicação do salário ilíquido e do imposto retido, não impugnada pela AF, deve ser aceite como documento comprovativo do imposto pago no outro país, para efeitos de aplicação da CDT.
68. Ora, se assim é, não se percebe por que razão a certidão emitida pela Y... Itália, não impugnada pela AF, com indicação do salario auferido em Itália, pelo trabalho aí exercido, e do imposto Italiano ali retido, não foi reconhecida pela douta Sentença recorrida como documento bastante para demonstrar que foi suportado imposto em Itália.
69. Por conseguinte, a douta Sentença recorrida, inclusivamente, está em oposição com Jurisprudência deste Venerando TCAN.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., alterando o valor da acção fixado na douta Sentença recorrida, revogando ou declarando a nulidade da douta Sentença recorrida e julgando a presente Impugnação procedente, com a consequente anulação da liquidação aqui impugnada, V. Exas., como sempre, farão inteira JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em nulidade, por omissão de pronúncia, e se enferma de erro de julgamento, quer quanto à fixação do valor da causa, no concernente aos pressupostos de facto na determinação da matéria colectável, em relação à falta de fundamentação, à omissão do exercício do direito de audição prévia e quanto à violação dos princípios da boa-fé, da proporcionalidade e da colaboração.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Com relevância para a decisão da causa, o Tribunal julga provado:
1. Em 12/03/2002, os Impugnantes apresentaram declaração modelo 3 de Imposto sobre o rendimento das pessoas Singulares referente ao ano de 2001, a que Juntaram o anexo J referente a rendimentos obtidos no estrangeiro no valor de €11.343,79 e imposto pago no valor de €5.470.76 [cfr. consulta ao processo n.º 22/2003];
2. Em 03/08/2002, foi emitida a liquidação de IRS n.º 46024327260 com base em tal declaração da qual resultou o reembolso de €410,29 [cfr. fls. 19 do p.f. e consulta ao processo n.º 22/2003];
3. Em 04/11/2002, os contribuintes apresentaram reclamação graciosa junto do Serviço de Finanças de Ovar-1, a qual veio a ser indeferida por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Ovar 2 [cfr. fls. 47/51 do PA apenso];
4. Em 8/01/2003, inconformados com o indeferimento referido em 3. apresentaram Impugnação Judicial, pedindo a anulação da liquidação, referida no ponto 2. que foi autuada no extinto Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Aveiro sob o n.º 22/2003 [cfr. consulta ao processo n.º 22/2003];
5. Em 19/10/2005, a Direcção de Serviços das Relações Internacionais, notificou a Impugnante mulher, nos seguintes termos:
«(…)

(…)» [cfr. fls. 25 do p.f.];
6. Em 01/11/2005, os Impugnante remeteram à AT, declaração da sociedade italiana pagadora dos rendimentos de trabalho dependente do ano 2001 relativamente à Impugnante mulher e mencionados em 1.– cfr. fls. 34/36 do p.f.;
7. Em 21/11/2005, mediante ofício n.º 106217, a Direcção de Finanças de Aveiro, notificou os Impugnantes nos seguintes termos:
«(…)

(…)»
8. Em 28/11/2005, foi emitida a liquidação adicional de IRS 2005 4004440945, no montante de €1.080,42. – cfr. fls. 15 do p.f.;
9. Os Impugnantes recepcionaram a liquidação referida em 8. em Dezembro de 2005 (admitido por confissão – artigo 35. da PI);
10. Em 10/04/2006, os Impugnantes apresentaram Reclamação graciosa contra a liquidação referida em 8., cfr. fls. 2/10 do PA apenso ;
11. Em 31/05/2006, foi elaborado projecto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa referida em 10., cfr. fls. 54/55 do PA apenso, que aqui se dá por reproduzida e donde consta o seguinte:
«(…)


(…)»
12. Em 01/06/2006, foram os Impugnantes notificados para exercer direito de audição do projecto de decisão referido em 11. mediante carta registada com avisão de recepção RM121580232PT, cujo A/R se mostra assinado em 07/06/2006 – cfr. fls. 56/verso do PA apenso;
13. Em 17/01/2006, o Impugnante marido apresentou na 2.ª Repartição de Finanças de Ovar, requerimento, com o seguinte teor:
«(…)
- imagem omissa -
(…)» [cfr. fls. 21 do p.f.];
14. Em 02/02/2006, mediante ofício n.º 307, a o Serviço de Finanças de Ovar-2, remeteu ao Impugnante e em resposta ao requerido em 13., cópia dos documentos que serviram de base à correcção da liquidação de IRS de 2001 [cfr. fls. 23/30d o p.f.];
15. Em 23/06/2006, foi proferido pelo Sr. Chefe do Serviço de Finanças de Ovar despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa referida em 10, cfr. fls. 57 do p.f., com o seguinte teor: «(…)1. O processo é legal, legítimo e tempestivo.2. Foi cumprido o disposto no artigo 60/1/b) da Lei Geral Tributária – audiência prévia antes do despacho final, e não ocorreu qualquer reacção por parte do reclamante. 3. Assim, com base nos pressupostos enunciados no projecto de decisão de 31 do mês passado, inserto a fls. 54 e 55, oportunamente notificado, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, INDEFIRO a pretensão (…)»
16. Em 26/06/2006, mediante ofício 001551, a AT notificou os ora Impugnantes da decisão de indeferimento referida em 15., cfr. fls. 58 do PA apenso;
17. Pela sociedade italiana Y... EUROPE LIMITED, foi emitida declaração relativa a 2001, com discriminação dos rendimentos pagos à Impugnante mulher e respectivas retenções efectuadas em Itália – cfr. fls. 38/39 e 62/72 do p.f.;
18. A Impugnante mulher trabalhou em 2001, 95 dias em Itália, sob as ordens e direcção da sociedade Y... EUROPE LIMITED - (admitido por confissão – artigo 90. da PI);
19. A presente impugnação foi intentada em 12/07/2006, cfr. fls. 2 do p.f;
*
III. 2 FACTOS NÃO PROVADOS
Da que era relevante para a discussão da causa não há matéria de facto que importe registar como não provada.
*
III. 3 MOTIVAÇÃO
O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao PA, que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados – art. 74º da LGT - também são corroborados pelos documentos juntos aos autos art. 76º nº 1 da LGT e arts. 362º e ss do Código Civil (CC) – identificados em cada um dos factos provados.”
2. O Direito

Na sentença recorrida foi fixado o valor da causa com a fundamentação seguinte:
“Fixa-se o valor da causa em €1.080,42 (artigo 97.ºA nº 1 a) do CPPT e 306.º do CPC ex vi artigo 2º alínea e) do CPPT).”
Nesta conformidade, foi atribuído à presente Impugnação o valor de € 1.080,42, pugnando os Recorrentes que o valor da presente causa é outrossim de € 1.490,71, conforme indicado na petição inicial.
Defendem que a Fazenda Pública não impugnou esse valor indicado na petição inicial, pelo que aceitou o valor atribuído à causa pelos Impugnantes (cfr. artigo 314.º, n.º 4 do CPC, na redacção aplicável).
Sustentam, portanto, que o valor da causa é aquele que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo circunstâncias excepcionais, que entendem aqui não se verificarem nem foram evidenciadas na sentença recorrida (cfr. artigo 315.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, na redacção aplicável, por remissão do artigo 31.º, n.º 4 do CPTA, na redacção aplicável).
Por outro lado, alertam resultar, da conjugação dos documentos n.º 1 e n.º 2 juntos à petição inicial, da liquidação aqui impugnada que o valor a pagar pelos impugnantes até 11/01/2006 é precisamente o montante de € 1.490,71.
Concluem, por conseguinte, que a utilidade económica deste processo de Impugnação Judicial é inequivocamente de € 1.490,71, dado ser este o conteúdo económico da liquidação aqui impugnada (cfr. artigo 33.º do CPTA, na redacção aplicável).
Acrescentam a importância de atender à redacção das normas aplicável à data da apresentação da petição inicial, ou seja, em 12/07/2006 – cfr. artigos 31.º, n.º 1 do CPTA e 305.º, n.º 1 do CPC.
Aludem, ainda, que o artigo 97.º-A do CPPT, referido na decisão recorrida, foi aditado pelo DL n.º 34/2008, de 26/2, com entrada em vigor em 20/04/2009, sendo aplicável apenas aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor; pelo que não vigorava à data da apresentação da petição inicial, em 12/07/2006, momento em que o valor é determinado (cfr. artigo 108.º, n.º 2 do CPPT) e, consequentemente, momento reportado ao qual deve ser aferido o valor da acção, conforme resulta inequivocamente do disposto no artigo 308.º, n.º 1 do CPC, na redacção aplicável.
Por conseguinte, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC, utilizando, quanto a este último, uma redacção legislativa que não estava em vigor à data da apresentação da petição inicial.
Portanto, verifica-se erro de julgamento na fixação do valor da causa, devendo ser alterado para € 1.490,71.
Importa salientar que, qualquer que seja o valor definitivamente fixado à causa - €1.080,42 ou €1.490,71 – é irrelevante quanto à admissibilidade do recurso e não tem qualquer influência, atento o reduzido montante de diferença, na base tributável para efeitos de determinação da taxa de justiça devida.
A admissibilidade de recurso, por efeito das alçadas, é regulada pela lei em vigor à data em que seja instaurada a acção – cfr. artigo 6.º, n.º 6 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e artigo 24.º, n.º 3 da Lei de Organização e do Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ).
Ora, a presente impugnação foi deduzida em 12/07/2006 e, nessa data, o valor da alçada dos tribunais tributários de primeira instância era de €935,25, uma vez que a alçada dos tribunais judiciais de primeira instância foi fixada em €3.740,98 pelo n.º 1 do artigo 24.º da Lei de Organização e do Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/01, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12 –conjugado com o disposto no artigo 6.º, n.º 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (a alçada dos tribunais tributários corresponde a ¼ da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância).
A lei processual civil, na vigência do DL n.º 303/07, de 24.08, a respeito do poder das partes quanto à indicação do valor da causa, diz que no articulado em que deduza a sua defesa, pode o réu impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição, e que nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor [cfr. 314.º, n.º 1 do CPC]. A falta de impugnação por parte do réu, acrescenta, significa que aceita o valor atribuído pelo autor [cfr. 314.º, n.º 4 do CPC].
Por sua vez, sobre a fixação do valor da causa, o artigo 315.º do CPC estipula, no seu n.º 1, que compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes. E explica, no n.º 2, que o valor da causa é fixado no despacho saneador, e não havendo saneador, é fixado na sentença. E por fim, no n.º 3, acrescenta que se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 685.º-C, ou seja, no despacho em que ele se pronuncia sobre a admissão do recurso jurisdicional interposto.
Antes das alterações trazidas por este DL n.º 303/07, de 24.08, a redacção desse artigo 315.º era diferente. Nele se dizia que o valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à causa o valor que considere adequado [n.º 1], e que se o juiz não tiver usado deste poder, o valor se considera definitivamente fixado, na quantia acordada, logo que seja proferido despacho saneador, ou, não havendo saneador, logo que seja proferida sentença [n.º 2 e n.º 3].
Como bem salientam os Recorrentes, na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta – cfr. artigo 308.º, n.º 1 do CPC.
Ora, em 12/07/2006 estamos fora da vigência do DL n.º 303/07, de 24.08. Por outro lado, o artigo 97.º-A do CPPT, referido na decisão recorrida, foi aditado pelo DL n.º 34/2008, de 26/2, com entrada em vigor em 20/04/2009; portanto, também não aplicável aos autos. Acresce que, no contexto em que a sentença recorrida menciona o artigo 306.º, claramente, quis aludir à competência do juiz para fixar o valor da causa, reportando-se à Lei n.º 41/2013, de 26.06 que aprovou o CPC, correspondente ao anterior artigo 315.º do CPC, mas, como vimos, cuja redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24.08 não se aplica. Interessa-nos, por isso, a versão referida do artigo 315.º do CPC anterior a 2007:
“O valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso fixará à causa o valor que considere adequado”.
Manifestamente, a Meritíssima Juíza “a quo” não teve intenção de corrigir o valor tacitamente acordado pelas partes, dada a omissão ostensiva de indicação do disposto no artigo 315.º, n.º 1 do CPC. Não é possível concluir que terá entendido que o acordo estava em flagrante oposição com a realidade, porque se limitou a fixar o valor da causa segundo o actual artigo 306.º do CPC.
Assim, as circunstâncias equivalem a não ter feito uso do poder previsto no artigo 315.º, nº 1 do CPC, considerando-se definitivamente fixado o valor da causa, na quantia acordada (€1.490,71), logo que foi proferida a sentença (uma vez que não há lugar a despacho saneador na impugnação judicial) – cfr. artigo 315.º, n.º 2 e n.º 3 do CPC.
Parece não se justificar qualquer dúvida a respeito da natureza pública dos principais fins visados com a fixação do valor da causa, sejam eles a determinação da competência do tribunal de julgamento ou a possibilidade de abertura de instância de recurso. É verdade que estas finalidades se acabam por repercutir em utilidades particulares, seja do autor ou do réu, porém, a sua matriz não deixa de ser pública: assegurar a organização, competência e actividade do poder judiciário, e assegurar o direito de recurso que emana da Lei Fundamental.
Deixar a fixação do valor da causa exclusivamente no poder das partes seria fragilizar a tutela desses fins públicos, pois seriam elas, no fundo, a decidir sobre a possibilidade de recurso. Isto não significa, porém, que a indicação do valor da causa feita pelas partes não seja importante, e, em certos casos, determinante. Constata-se, na verdade, a partir dos próprios critérios gerais e especiais consagrados na lei [artigos 306.º e 307.º do CPC], que em muitos casos apenas elas, não o tribunal, têm conhecimento dos elementos indispensáveis para a determinação desse valor.
O nosso legislador procurou, pois, harmonizar esta necessidade de indicação do valor pelas partes com a necessidade de preservar o cumprimento de critérios objectivos que lhes retirem o monopólio da fixação do valor da causa.
Fê-lo de forma mitigada, e com cariz fiscalizador, na versão aplicável do artigo 315.º do CPC. Aí, como vimos, sempre que havia acordo das partes - expresso ou tácito – sobre o valor da causa, em princípio era esse o valor atribuído, e só quando houvesse flagrante oposição com a realidade, à luz dos critérios legais, é que o juiz fixava o valor adequado, devendo fazê-lo até ao saneador, ou não o havendo até à sentença. Caso não o fizesse, considerava-se definitiva e tacitamente fixado no valor acordado.
Com o DL n.º 303/07, de 24.08, o legislador fez, cremos, uma clara distinção entre o poder das partes e o poder do juiz: aquelas têm o poder, e o dever, de indicar o valor da causa; este tem o poder-dever de o fixar, nunca ficando dispensado de examinar se a indicação feita pelas partes, por acordo expresso ou tácito, está conforme à realidade, segundo os critérios legais.
Daí que, de acordo com a versão do artigo 315.º do CPC, resultante da alteração feita pelo artigo 1.º do DL n.º 303/07, de 24.08, o juiz passa a ter sempre de fixar o valor da causa, sindicando o valor indicado pelas partes, e, quando o não faça no momento devido, ou seja, no saneador ou na sentença, em violação do dever que o n.º 1 e n.º 2 lhe impõe, o deva fazer ainda, posteriormente, no caso de haver recurso, no despacho que o admite – cfr., neste sentido, Acórdão do TCAN, de 16/09/2011, proferido no âmbito do processo n.º 00638/11.0BEPRT.
Na medida em que na determinação do valor da causa se deve atender ao momento em que a acção é proposta (artigo 308.º, n.º 1 do CPC), em 12/07/2006 o DL n.º 303/07, de 24.08 ainda não estava em vigor.
Pelo exposto, devemos entender que o valor da causa se mostrou definitivamente fixado com a prolação da sentença recorrida na quantia tacitamente acordada de €1.490,71, dado nada fazer crer que a Meritíssima Juíza “a quo” tenha usado os seus poderes, ao fixar o valor, com cariz ou natureza fiscalizadora (mas antes com a convicção de que tinha o poder-dever de fixar o valor da causa) – cfr. artigo 315.º do CPC.
Mas, mesmo que assim não fosse, o montante acordado representa a utilidade económica imediata do pedido, dado que os impugnantes receberam uma notificação constando como quantia a pagar €1.490,71 – cfr. documentos n.º 1 e n.º 2 juntos com a petição inicial a fls. 16 e 17 do processo físico. Não estando, por isso, a quantia acordada em flagrante oposição com a realidade – cfr. artigo 315.º, n.º 1 do CPC.

Os Recorrentes imputam à sentença recorrida o vício de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 125.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4 do CPC, no que tange ao seguinte segmento:
Sustentam que haviam invocado na petição inicial que não foram merecedores de qualquer explicação por parte da AT quanto aos motivos que, aparentemente, terão levado à desconsideração dos documentos que juntaram (cfr. ponto 6 da factualidade apurada) após o pedido referenciado no ponto 5 do probatório. E que a AT os devia ter apreciado antes da emissão da liquidação em crise, defendendo que esta está legalmente obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos que lhe sejam apresentados pelos contribuintes.
Alegam, agora, os Recorrentes que a sentença recorrida não emitiu qualquer pronúncia sobre esta matéria invocada, nem a sua apreciação estava prejudicada pela solução dada às demais questões.
A sentença/decisão pode padecer de vícios de duas ordens:
Por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação;
Por outro lado, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26/6, correspondente ao anterior artigo 668.º do CPC.
No processo judicial tributário o vício de omissão de pronúncia ou a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125.º, n.º 1, do CPPT, no penúltimo segmento da norma.
A nulidade por omissão/excesso de pronúncia traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no artigo 660.º, n.º 2 do CPC (actual artigo 608.º, n.º 2), que impõe ao juiz o dever de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; e, por outro lado, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes, salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente.
Lembramos que ocorre nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, quando se verifica uma violação dos deveres de pronúncia do tribunal sobre questões a que esteja obrigado a pronunciar-se.
Nesta matéria, a jurisprudência tem reiteradamente afirmado que “só pode ocorrer omissão de pronúncia quando o juiz não toma posição sobre questão colocada pelas partes, não emite decisão no sentido de não poder dela tomar conhecimento nem indica razões para justificar essa abstenção de conhecimento, e da sentença também não resulta, de forma expressa ou implícita, que esse conhecimento tenha ficado prejudicado em face da solução dada ao litígio” (cfr. Acórdão do STA, de 19/09/2012, processo n.º 0862/12).
Por conseguinte, só há omissão de pronúncia “quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões” (cfr. Acórdão do STA, de 28/05/2014, processo n.º 0514/14).
Não residem dúvidas que os Recorrentes referiram na petição inicial que a AT estava obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos que lhe sejam colocados, concluindo, de imediato e nessa sequência, que o acto de liquidação padece de insuficiente fundamentação, em prejuízo do direito de defesa dos impugnantes – cfr. artigos 48.º a 51.º
A este propósito, percorrendo a sentença recorrida, verificamos que o Tribunal “a quo” se pronunciou expressamente sobre a falta de fundamentação formal reportada ao acto que indeferiu a reclamação graciosa.
Não podemos esquecer que a apresentação desses documentos surgiu na sequência de expressa notificação da AT, nos termos do artigo 128.º, n.º 1 do Código de IRS, para confirmar as declarações de rendimentos prestadas relativamente ao ano de 2001. E que os Impugnantes foram notificados pela AT (notificação de actos resultantes de acção inspectiva – artigo 77.º da LGT – cfr. ponto 7 do probatório) acerca da correcção da declaração de IRS que iria ser reflectida na liquidação em apreço, com eliminação do crédito de imposto por dupla tributação internacional, uma vez que os contribuintes não entregaram os documentos exigíveis.
Ora, o tribunal recorrido terá entendido, por resultar claro, que os documentos apresentados não foram apreciados por não consubstanciarem os solicitados pela AT na notificação mencionada no ponto 5 do probatório. Mas, é certo ter considerado o acto impugnado fundamentado do ponto de vista formal. Contudo, não deixou de analisar a fundamentação do acto no seu aspecto substancial, ponderando a relevância dos documentos apresentados – cfr. fls. 13 e 16 da sentença recorrida e fls. 251 e 254 do processo físico:
“(…) Desta feita, importar aferir da [i]relevância da documentação junta pelos Impugnantes, em resposta ao solicitado pela AT, e posteriormente juntos perante este Tribunal, i.é. das declarações da sociedade Y... EUROPE LIMITED, relativa aos rendimentos de trabalho dependente do ano de 2001 e respectivas retenções na fonte.
(…)
Desta feita, e revertendo a aludida fundamentação para o caso em apreço, verificamos que, tal ónus não foi cumprido pelos Impugnantes, apesar de a Administração Tributária para tal ter expressamente notificado o sujeito passivo, como resulta da matéria de facto assente.
In casu, inexiste qualquer prova que ateste o pagamento do imposto, uma vez que, para prova do pagamento do imposto no Estado da fonte não era de exigir um documento específico, pois a lei não exige um documento em concreto. No entanto, tal prova teria que passar por um documento cujo conteúdo (quanto ao quantum do imposto pago) fosse validado pelas autoridades tributárias italianas. No entanto toda a documentação junta pelos Impugnantes diz tão só respeito à retenção na fonte e nunca quanto ao imposto pago, nem se comprova que tenha apresentado uma qualquer declaração de rendimentos em Itália. (…)”
Nesta conformidade, o tribunal recorrido apreciou todas as questões colocadas, podendo ter deixado de se referir a alguns argumentos utilizados pelos Impugnantes, o que não consubstancia nulidade, mas eventual erro de julgamento.
Reiteramos que a apontada nulidade por omissão de pronúncia só ocorre nos casos em que o Tribunal, pura e simplesmente, não tome posição sobre qualquer questão sobre a qual devesse tomar posição, inclusivamente não decidindo explicitamente que não pode dela tomar conhecimento; o que não se verifica no caso concreto, não podendo dizer-se que ocorre a invocada nulidade.

Em 12/03/2002, os Impugnantes, aqui Recorrentes, apresentaram declaração modelo 3 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2001, a que juntaram o anexo J referente a rendimentos obtidos no estrangeiro no valor de €11.343,79 e imposto pago no valor de €5.470.76. Nessa sequência, em 03/08/2002, foi emitida a liquidação de IRS n.º 46024327260 com base em tal declaração da qual resultou o reembolso de €410,29.
Esta liquidação foi impugnada graciosa e contenciosamente (cfr. pontos 1 a 4 do probatório), tendo tramitado neste TCA Norte sob o n.º 3511/04-Aveiro. Por Acórdão, de 14/04/2016, foi julgado manter essa liquidação de IRS, relativa ao ano de 2001, na ordem jurídica.
Aí foi decidido caber ao Estado da residência - Portugal - eliminar a dupla tributação: dedução no imposto pago em Portugal, do imposto pago na Itália, não podendo contudo exceder a fracção do imposto, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos auferidos no estrangeiro.
“Da análise do n.º 4 do art.º 22.º da CDT resulta que Portugal deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente importância igual ao imposto sobre o rendimento pago em Itália contudo, a importância deduzida não poderá, exceder a fração do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução corresponde aos rendimentos que podem ser tributados em Itália.
Resulta da interpretação da alínea b) do n.º 1 do art.º 80.º do CIRS que os titulares de rendimentos obtidos no estrangeiro têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, dedutível até à concorrência da parte da coleta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 22.º, que corresponderá à fração da coleta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados.”
Nesse Acórdão do TCA Norte, julgou-se, assim, que a eliminação da dupla tributação, no caso em apreço – estava subjacente a mesma declaração de rendimentos que nos presentes autos – não se faz através da dedução ao imposto português do imposto suportado em Itália (€5.470,76), mas sim através de cálculo antes da dedução correspondente aos rendimentos que podem ser tributados em Itália.
Como referimos, a liquidação de IRS n.º 46024327260, emitida em 03/08/2002, teve em conta nos seus cálculos os normativos referidos no Acórdão do TCAN, de 14/04/2016, proferido no âmbito do processo n.º 3511/04-Aveiro.
Contudo, ainda dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2005 4004440945, relativa ao mesmo ano de 2001, mas eliminando totalmente o crédito de imposto por dupla tributação internacional.
Esta liquidação também foi objecto de impugnação graciosa (cfr. pontos 10 a 12 do probatório), tendo a reclamação sido indeferida com fundamento em não haver lugar a qualquer crédito de imposto por dupla tributação internacional relativamente a tais rendimentos.
Salientamos que estão em causa os mesmos rendimentos que na liquidação de IRS n.º 46024327260, emitida em 03/08/2002, tendo na reclamação graciosa apensa aos autos a AT concluído não assistir razão aos reclamantes, não havendo lugar a qualquer crédito de imposto em virtude de a aqui Recorrente mulher ter permanecido em Itália por um período de 95 dias – cfr. ponto 11 da decisão da matéria de facto.
Na verdade, com este fundamento o acto de indeferimento da reclamação graciosa não pode permanecer na ordem jurídica, atento o decidido no Acórdão deste TCA Norte, de 14/04/2016.
Note-se que a impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação, pelo que cabe ao tribunal conhecer, em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário (neste sentido, entre outros, Acórdãos do STA de 28/10/2009, Processo n.º 595/09, de 18/06/2014, Processo n.º 01942/13 e de 12/10/2016, Processo n.º 0427/16).
Não podemos olvidar que a presente instância esteve suspensa a aguardar a decisão com trânsito em julgado que viria a ser proferida no âmbito do processo n.º 3511/04-Aveiro (antigo processo n.º 22/2003), dado ter sido entendido que a solução a encontrar para o discutido nestes autos estava dependente da definição jurídica que, entretanto, se encontrou nessa causa prejudicial – cfr. decisão proferida nos autos em 05/11/2003 a fls. 206 a 208 do processo físico.
Efectivamente, o acto de indeferimento da reclamação graciosa deve ser eliminado da ordem jurídica por enfermar de vício de violação de lei, infringindo o disposto no artigo 80.º, n.º 1, alínea b) do Código de IRS e no artigo 22.º da Convenção para evitar dupla tributação entre Portugal e Itália (CDT).
Mas, ainda assim, haverá que analisar se o acto de liquidação impugnado (objecto mediato) deverá permanecer na ordem jurídica, uma vez que os Recorrentes não se conformam com o facto de a sentença recorrida ter julgado não se verificarem os vícios que ao mesmo foram assacados na petição inicial.
A sentença recorrida acolhe o julgamento efectuado pelo Acórdão do TCA Norte em 14/04/2016. Todavia, aponta ser de exigir documento comprovativo do imposto pago em Itália; tendo concluído ser de aceitar a desconsideração pela AT dos valores declarados relativamente à eliminação da dupla tributação internacional, para efeitos de dedução à colecta, uma vez que os Recorrentes não cumpriram o ónus de provar que o imposto estava realmente pago.
Os Recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, na medida em que as declarações dos contribuintes gozam da presunção legal de veracidade e boa-fé, conforme advém do disposto no artigo 75.º, n.º 1 da LGT – com a consequente inversão do ónus da prova, passando a competir à AF o ónus de demonstrar a factualidade relevante para exercer o seu direito de liquidação adicional de imposto.
Aqui chegados, impõe-se que a análise se efectue a partir da fundamentação do acto de liquidação em crise, pois somente desta forma se descortinará a motivação subjacente ao acto.
Em 19/0/2005, a Direcção de Serviços das Relações Internacionais notificou a Recorrente mulher, nos termos do artigo 128.º, n.º 1 do Código de IRS, a fim de poder analisar a declaração de rendimentos apresentada, relativamente ao ano de 2001, no que respeita ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, para remeter, no prazo de oito dias, documentos originais ou cópias autenticadas de declaração emitida pelas autoridades fiscais italianas contendo a discriminação da natureza e dos montantes dos rendimentos obtidos em Itália, bem como do correspondente imposto pago e dos descontos obrigatórios suportados para a segurança social; com a expressa menção de que se a declaração fosse elaborada em inglês, francês ou alemão, não carecia de tradução. Solicitava-se, ainda, a declaração da entidade patronal de Portugal, para comprovar os valores inscritos na declaração. Por fim, informava-se que deveria entregar os documentos referidos no indicado prazo de oito dias, sob pena de não lhe ser concedido o crédito de imposto por dupla tributação internacional – cfr. ponto 5 do probatório.
Em 01/11/2005, os Impugnantes, ora Recorrentes, remeteram à AT declaração da sociedade italiana pagadora dos rendimentos de trabalho dependente do ano 2001 relativamente à Impugnante mulher – cfr. ponto 6 da factualidade apurada.
Nesta resposta, a impugnante mulher enviou também a declaração da entidade patronal portuguesa, relativa ao mesmo ano de 2001, com discriminação do total de rendimentos do trabalho dependente pagos e do IRS e contribuições para a Segurança Social retidos. Nessa mesma resposta, a impugnante alertava para o reduzido prazo concedido para obtenção de documentos adicionais junto das autoridades fiscais italianas, dado que já havia deixado Itália há vários anos. Lembrando, também, que compete às autoridades fiscais de ambos os países trocar entre si as informações necessárias para aplicar a Convenção para evitar a dupla tributação – referência ao artigo 25.º, n.º 1 da CDT.
Resulta, portanto, claro que os Recorrentes não apresentaram à AT qualquer documento emitidos pelas autoridades fiscais italianas confirmativo do montante de imposto pago em Itália.
Tendo em vista tomar conhecimento da totalidade dos fundamentos de facto e de direito subjacentes à liquidação em crise, nos termos do disposto no artigo 37.º do CPPT, foi solicitada a respectiva certidão pelo impugnante marido.
Mostrou-se evidente que pouco mais existia além do teor da notificação reproduzida no ponto 7 do probatório – cfr. ponto 14 da decisão da matéria de facto. Alcançando-se que a decisão de correcção da declaração de IRS e subsequente liquidação (aqui em discussão) se fundaram na falta de entrega dos documentos exigíveis na sequência da mencionada notificação da Direcção de Serviços das Relações Internacionais.
É, portanto, esta a fundamentação do acto de liquidação em apreço e é dela que partiremos para a análise da actuação da AT.
Por imperativo constitucional, artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, os actos administrativos carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legitimamente protegidos, pelo que a decisão de correcção da matéria tributável não pode deixar de se mostrar acompanhada da correspondente fundamentação.
Os contornos dessa fundamentação recolhem-se na lei ordinária, artigo 77.º da Lei Geral Tributária que determina que ela se revista de uma sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
Do ponto de vista estritamente formal, alcança-se que, não tendo sido apresentado, no prazo estipulado de oito dias, uma declaração emitida pelas autoridades fiscais italianas, contendo a confirmação de todos os elementos exigidos, incluindo o montante de imposto pago em Itália, a AT procedeu à correcção da declaração dos Recorrentes, eliminando o crédito de imposto por dupla tributação internacional.
Por isso, impõe-se, antes de mais, que se faça a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.
Distinguindo a dimensão formal e a dimensão substancial do dever de fundamentação, Vieira de Andrade, in “O dever de fundamentação expressa de actos administrativos”, Almedina, 2003, pág. 231, diz que a diferença está «em que o dever formal se cumpre pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis; enquanto a fundamentação material exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo».
Sabemos que a fundamentação dos actos administrativos visa, além do mais, dar a conhecer as razões por que foi decidido de uma maneira e não de outra, de molde a permitir aos seus destinatários uma opção consciente entre a sua aceitação e a sua impugnação contenciosa. É, conforme uniforme jurisprudência do STA, um conceito relativo, que varia em função do tipo legal de acto, dos seus antecedentes e de todas as circunstâncias com ele relacionadas, designadamente as típicas condutas administrativas, que permitam dar a conhecer o iter cognoscitivo e valorativo que levou a que fosse decidido dessa maneira e não de outra, estando suficientemente fundamentado quando um destinatário normal se aperceba das razões de ser da decisão.
Para se atingir aquele objectivo basta uma fundamentação sucinta, mas que seja clara, concreta, suficiente, congruente e que se mostre contextual.
Note-se que a fundamentação do acto administrativo é suficiente se, no contexto em que foi praticado, e atentas as razões de facto e de direito nele expressamente enunciadas, forem capazes ou aptas e bastantes para permitir que um destinatário normal apreenda o itinerário cognoscitivo e valorativo da decisão.
É contextual a fundamentação quando se integra no próprio acto e dele é contemporânea.
A fundamentação é clara quando tais razões permitem compreender sem incertezas ou perplexidades qual foi o iter cognoscitivo-valorativo da decisão, sendo congruente quando a decisão surge como conclusão lógica e necessária de tais razões.
In casu, a fundamentação do acto existe, sendo perceptível que a AT efectuou correcções à declaração de rendimentos, liquidando adicionalmente IRS, por entender que os valores declarados não foram devidamente comprovados pelos contribuintes Recorrentes numa fiscalização a posteriori.
Pelo que a AT satisfez o requisito de fundamentação exigível, do ponto de vista formal, permitindo a reconstituição do iter cognoscitivo que determinou a decisão da Administração, dado que deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto.
Como referimos, questão diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.
Sobre a administração tributária recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à liquidação adicional e sobre o sujeito passivo recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à anulação dessa liquidação – cfr. artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária.
O que verdadeiramente releva no caso vertente é saber se a Administração Tributária bem fundou as correcções em causa.
Ora, como alertam os Recorrentes, as circunstâncias em que a AT procedeu à recolha de elementos no caso concreto não são despiciendas.
É verdade que os contribuintes sujeitos a IRS têm a obrigação de comprovar os elementos inscritos nas declarações sempre que lhes for solicitado. Daí a notificação que foi dirigida à impugnante mulher pela Direcção de Serviços das Relações Internacionais, nos termos do artigo 128.º, n.º 1 do Código de IRS – cfr. ponto 5 do probatório.
Contudo, não podemos deixar de analisar os termos específicos de tal solicitação e ter em conta a redacção do artigo 128.º aplicável à data:
“Artigo 128.º
Obrigação de comprovar os elementos das declarações
1 - As pessoas sujeitas a IRS devem apresentar, no prazo que lhes for fixado, os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e abatimentos e de outros factos ou situações mencionadas na respectiva declaração, quando a Direcção-Geral dos Impostos os exija. (Redacção do DL 198/2001, de 3 de Julho)
2 - A obrigação estabelecida no número anterior mantém-se durante os quatro anos seguintes àquele a que respeitem os documentos. (Redacção do DL 160/2003, de 19 de Julho)
3 - O extravio dos documentos referidos no n.º 1 por motivo não imputável ao sujeito passivo não o impede de utilizar outros elementos de prova daqueles factos.”
Como vimos, o prazo que foi fixado à impugnante mulher para apresentar documentos comprovativos dos rendimentos auferidos e dos outros valores inscritos na declaração apresentada, nomeadamente, do imposto pago em Itália, foi de oito dias.
A este respeito, os Recorrentes alegam que o prazo de apenas oito dias que lhes foi concedido pela AF não respeitou sequer o prazo legal mínimo de dez dias consignado no artigo 23.º, n.º 1 do CPPT.
Efectivamente, este artigo 23.º do CPPT, aplicando-se, também, a actos procedimentais, prescreve: “Quando, nos termos da lei, o prazo do acto deva ser fixado pela administração tributária ou pelo juiz, este não pode ser inferior a 10 nem superior a 30 dias.”
Actualmente, o artigo 128.º do Código de IRS tem uma redacção diferente da aplicável à situação dos autos, pois fixa, expressamente, o prazo de 15 dias para apresentação de documentos comprovativos (n.º 1) e prevê que este prazo seja alargado para 25 dias quando o sujeito passivo invoque dificuldade na obtenção da documentação exigida (n.º 2).
Na medida em que, na redacção aplicável, o prazo para prática do acto devia ser fixado pela administração tributária (cfr. artigo 128.º, n.º 1), é forçoso chamar à colação o disposto no artigo 23.º, n.º1 do CPPT, verificando-se que o prazo fixado não podia ser inferior a 10 dias.
Estamos, assim, perante a violação do disposto no artigo 23.º, n.º 1 do CPPT, uma vez que a AT fixou somente o prazo de 8 dias para cumprimento do disposto no artigo 128.º, n.º 1 do Código de IRS.
Não podemos esquecer que está em causa IRS relativo ao ano de 2001, que a notificação mencionada no ponto 5 do probatório concretizou-se em 19/10/2005, sob condição: não sendo apresentados os documentos exigíveis, seriam efectuadas correcções à declaração, não sendo concedido o crédito de imposto por dupla tributação internacional; e que estava em causa uma série de documentos, entre eles, a emitir pelas autoridades fiscais de Itália.
Assim, estamos a falar de documentos que a AT considerou essenciais para comprovação dos rendimentos auferidos e das respectivas deduções e que não estavam na posse dos Recorrentes, dado que teriam ainda que ser emitidos pelas autoridades fiscais em Itália.
Os Recorrentes, em modo de desabafo, afirmam que a AF agiu desse modo, encostando os contribuintes à parede, certamente por causa da iminência da transposição do prazo legal de caducidade, de 4 anos - e os contribuintes não têm culpa que a AF reserve as suas acções de fiscalização para o final dos prazos de caducidade. Sendo certo que os Recorrentes, quando confrontados, em 2005, com aquele pedido, eram residentes em Portugal e há vários anos que não tinham quaisquer ligações com Itália, não compreendendo sequer a língua. Nestas circunstâncias, naturalmente que os Recorrentes, ela empregada fabril da Y... e ele desempregado, remeteram à AF os documentos de que dispunham, no curto prazo que lhes foi concedido, remetendo à AF os documentos n.º 7, 8 e 9 juntos à petição inicial, pois eram os únicos que tinham na sua posse.
Já nessa altura, em resposta ao ofício de 19/10/2005, a impugnante mulher havia chamado a atenção para o facto da inviabilidade de, em tão curto prazo (8 dias), obter e solicitar a emissão de documentos às autoridades fiscais italianas, lembrando competir às autoridades fiscais de ambos os países trocar entre si as informações necessárias para aplicar a Convenção para evitar a dupla tributação – cfr. documento n.º 7 junto a petição inicial.
A Lei n.º 10/82, de 1 de Junho, aprovou para ratificação a Convenção entre a República Portuguesa e a República Italiana para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento.
Efectivamente, dispõe o artigo 25.º desta Convenção para evitar a dupla tributação entre Portugal e Itália (CDT) que as autoridades competentes dos Estados contratantes trocarão entre si as informações necessárias para aplicar esta Convenção e as leis internas dos Estados contratantes relativamente aos impostos abrangidos por esta Convenção, na medida em que a tributação nelas prevista for compatível com esta Convenção.
Salientamos que a expressão “autoridade competente” significa, relativamente a Portugal, o Ministro das Finanças, o Director-Geral das Contribuições e Impostos ou os seus representantes autorizados; e, relativamente a Itália, o Ministério das Finanças – cfr. o artigo 3.º, n.º 1, alínea h) da CDT.
Nesta conformidade, a AT podia ter pedido informação ao Ministério das Finanças italiano acerca dos rendimentos auferidos pela impugnante mulher em Itália e do valor do imposto aí pago, para confirmar os montantes declarados na declaração de rendimentos apresentada em Portugal.
Lembramos que as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei – cfr. artigo 76.º, n.º 1 n.º 4 da Lei Geral Tributária.
Compulsada a motivação do acto tributário, não se detecta um único facto recolhido pela administração tributária que permita, ainda que indiciariamente, suportar a conclusão de que os montantes inscritos na declaração de rendimentos não correspondem à realidade ou que o imposto declarado como pago não o tenha sido em Itália.
Realmente, se atentarmos ao que supra se encontra descrito, verifica-se que a Administração Fiscal não invocou a existência de quaisquer factos, apenas se limitou a constatar que os Recorrentes não juntaram documentos que consideraram exigíveis no prazo fixado. Prazo este, não podemos deixar de concordar, fixado em violação do disposto no artigo 23.º, n.º 1 do CPPT.
Na verdade, existe uma presunção de verdade das declarações e outros elementos dos contribuintes – cfr. artigo 75.º da LGT. Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei (n.º 1). Todavia, a presunção referida neste n.º 1 não se verifica quando o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da Lei Geral Tributária, for legítima a recusa da prestação de informações.
Como referimos, os contribuintes têm o dever de apresentar os documentos comprovativos das declarações que efectuaram sempre que lhes é exigido, como foi o caso, nos termos do artigo 128.º, n.º 1 do Código de IRS.
Não obstante o prazo para o efeito ter sido fixado em infracção ao definido no artigo 23.º do CPPT, também a Lei Geral Tributária esclarece, no seu artigo 57.º, n.º 2, que os actos do procedimento tributário devem ser praticados no prazo de 10 dias, salvo disposição legal em sentido contrário.
In casu, foi fixado o prazo inferior de oito dias ao contribuinte para apresentar documentos que não se encontravam na sua posse, na medida em que tinham que ser emitidos pelas autoridades fiscais italianas e ainda traduzidos. Nestes termos, afigura-se-nos legítima a sugestão da impugnante mulher de recurso directo pela AT às autoridades tributárias italianas, ao abrigo do disposto no artigo 25.º da CDT.
Logo, o incumprimento dos Recorrentes não poderá ter a consequência definida na notificação referida no ponto 5 do probatório – a desconsideração do crédito de importo por dupla tributação internacional – nem afastar a presunção de verdade da sua declaração, dado que a impugnante mulher justificou a impossibilidade de cumprimento do seu dever de comprovar a veracidade do declarado em tão curto prazo, tendo, contudo, entregado todos os documentos que detinha emitidos pela sua entidade patronal em Itália e em Portugal, revelando boa-fé e disponibilidade para cooperar – cfr. artigo 75.º, n.º 1, n.º 2, alínea b) da LGT.
Neste circunstancialismo, tendo a impugnante mulher, na sua resposta em que juntou documentos (cfr. ponto 6 do probatório), feito referência à exiguidade do prazo concedido e já ter deixado Itália há vários anos – não sendo concedido pela AT, nessa sequência, outro prazo; revelando pressa em liquidar adicionalmente no limite do prazo de caducidade do direito à liquidação – e não tendo sido feito uso do disposto no referido artigo 25.º da CDT, inexistem quaisquer razões para suspeitar que os valores declarados pelos contribuintes não correspondam à realidade, sendo forçoso concluir que não se mostra fundamentado o acto de liquidação em apreço.
Assim, para além da omissão de documentos emitidos pelas autoridades fiscais italianas comprovativos dos valores declarados, e que é claramente insuficiente no contexto referido, nenhuma outra prova foi junta aos autos por parte da Administração Tributária.
A Administração Tributária devia ter ido mais longe, investigado mais, eventualmente trocado informações com a autoridade competente italiana, tendo em vista encontrar algum indício no sentido de que o imposto não foi pago em Itália, o que não foi efectuado.
O que quer dizer que a Administração Tributária não fez prova do bem fundado da formação do seu juízo, pelo que a questão relativa à legalidade do seu agir terá de ser resolvida contra ela, revogando-se, por este motivo, a sentença recorrida.
Pelo exposto, impõe-se conceder provimento ao recurso, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelos Recorrentes.

Conclusões/Sumário

I - Antes da vigência do DL n.º 303/07, de 24/08, no respeitante ao artigo 315.º do CPC, o juiz assumia um papel fiscalizador sobre o valor da causa, dado que sempre que havia acordo das partes - expresso ou tácito – sobre o valor da causa, em princípio era esse o valor atribuído, e só quando houvesse flagrante oposição com a realidade, à luz dos critérios legais, é que o juiz fixava o valor adequado, devendo fazê-lo até ao saneador, ou não o havendo até à sentença. Caso não o fizesse, considerava-se definitiva e tacitamente fixado no valor acordado.
II - Com a entrada em vigor do DL n.º 303/07, de 24/08 e com a redacção por ele introduzida no artigo 315.º do CPC, o juiz tem sempre de fixar o valor da causa, sindicando aquele que foi indicado pelas partes.
III - Para apurar se uma decisão está, ou não, fundamentada impõe-se, antes de mais, que se faça, desde logo, a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa.
IV - A presunção legal de que as declarações apresentadas pelos contribuintes à administração tributária são verdadeiras cessa, nomeadamente, quando os contribuintes não cumprem os deveres que lhes couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando for legítima a recusa da prestação de informações – cfr. artigo 75.º da Lei Geral Tributária.
V - É sobre a Administração Tributária que recai o ónus de demonstrar que existem indicadores fundados que legitimam a sua actuação de proceder a correcções às declarações dos contribuintes e provar os factos constitutivos do direito à liquidação adicional; e sobre o sujeito passivo recai o ónus de provar os factos constitutivos do direito à anulação dessa liquidação – cfr. artigo 74.º da Lei Geral Tributária.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, considerar o valor da causa definitivamente fixado na quantia tacitamente acordada pelas partes de €1.490,71 e julgar a impugnação judicial procedente, anulando o acto impugnado de liquidação de IRS n.º 2005 4004440945 relativo ao ano de 2001.
Custas a cargo da Recorrida, em ambas as instâncias; nesta instância, as custas não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.
Porto, 25 de Maio de 2018
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Pedro Vergueiro