Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00179/06.8BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/25/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:RETRIBUIÇÃO, RENDIMENTOS DE CATEGORIA A, IRS, QUALIFICAÇÃO, ÓNUS DA PROVA
Sumário:I - Apurar se às quantias pagas por uma sociedade a um accionista/administrador que é simultaneamente trabalhador dependente deve ser atribuída natureza remuneratória, implica um trabalho de “qualificação do facto tributário” que, por não ter hoje expressão no artigo 100.º do CPPT, nos leva a afastar a possibilidade de no caso sancionar totalmente a decisão recorrida, por a dúvida não dever reverter a favor do contribuinte, tratando-se de uma questão jurídica em que o tribunal tem o dever de julgar imposto pelo artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil.
II – No entanto, é sobre a Administração Tributária que recai o ónus de demonstrar que as quantias não declaradas constituem retribuição, ou seja, que são rendimentos que têm carácter remuneratório, para efeitos de incidência de IRS – categoria A, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código de IRS.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:A., e Outra
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Representação da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, proferida em 21/12/2015, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A. e M., contribuintes n.°s (…) e (….), respectivamente, com domicílio no lugar de (…), contra a liquidação de IRS, relativa ao ano de 2001, e respectivos juros compensatórios, no valor total de €55.254,26.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

“A. O Meritíssimo juiz a quo julgou procedente a impugnação judicial à margem referenciada, anulando a liquidação de IRS n.º 20055004373857, de 31.10.2005, respeitante ao ano de 2001, e respectivos juros compensatórios, no valor global de €52.225,62, por considerar que, à luz do regime consignado no n.º 1 do art. 100.º do CPPT, a prova produzida pelos serviços de inspecção tributária era passível de gerar fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário.
B. Porém, conforme reconhece o próprio Ilustre Julgador, nenhuma controvérsia existe quanto à existência e quantificação do facto tributário.
C. Com efeito, de acordo com a douta sentença recorrida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), conseguiu comprovar a existência do recebimento da quantia pelos Impugnantes e que esse pagamento foi efectuado pela C., bem como os Impugnantes não negam que receberam a referida quantia (página 11 da sentença).
D. E concluiu o Meritíssimo juiz a que que a dúvida subsiste apenas quanto à qualificação dos recebimentos, no todo ou em parte, como “rendimento” e como rendimento da categoria A do IRS (página 14 da sentença).
E. O dispositivo legal invocado pelo Ilustre Julgador para julgar procedente a presente impugnação não determina a anulação do acto quando houver dúvidas sobre a qualificação do facto tributário.
F. É certo que, na redacção inicial do n.º 1 do art. 100.º do CPPT, para além dos casos de dúvida sobre a existência do facto tributário, determinava-se a obrigatoriedade de anulação do acto quando houver dúvidas sobre a qualificação do facto tributário.
G. No entanto, aquela redacção veio a ser alterada pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, substituindo-se a palavra qualificação por quantificação, com efeitos a partir de 01.01.2000, por força do seu art. 103°.
H. Consequentemente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, materializado numa incorrecta interpretação e aplicação do n.º 1 do art. 100.º do CPPT, ao determinar a anulação da liquidação sindicada, por considerar que a prova produzida pela AT originou fundada dúvida quanto à qualificação do facto tributário.
I. Por outro lado, a materialidade fáctica dada como assente na douta sentença recorrida é bem demonstrativa que a subsunção operada, em sede inspectiva, das verbas pagas pela sociedade C. e recebidas pelos ora Recorridos, na esfera de incidência da categoria de A do IRS, está fundada em indícios fortes e consistentes - Letra B dos factos dados como provados — páginas 2 a 8 da sentença.
J. Tal como vem devidamente evidenciado no Relatório de Inspecção Tributária (RIT), para além dos Impugnantes não oferecerem qualquer prova documental quanto à concreta e efectiva realização dos empréstimos, também na contabilidade da C., os valores evidenciados na conta de empréstimos não correspondem aos valores que aqueles alegam ter emprestado à referida sociedade - Letra B dos factos dados como provados — páginas 7 e 8 da sentença.
K. E da factualidade dada como assente, resulta claro que foram efectuadas, pelos serviços de inspecção tributária, todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, na tentativa de esclarecer a que título os agora Recorridos receberam a quantia titulada no cheque emitido pela C. e depositada nas suas contas pessoais - Letra B dos factos dados como provados — página 4 da sentença.
L. Em contraponto, os autos demonstram à saciedade que os Impugnantes não colaboraram com a AT no intuito de identificarem a verdadeira natureza das verbas recebidas, justificando-se, o primeiro Recorrido, com o singelo argumento de que «já não ter qualquer cargo na mesma desde 30.11.2002, estando assim, impossibilitado de consultar a contabilidade para poder esclarecer com prontidão e clareza o pedido formulado» - Letra B dos factos dados como provados — página 4 e 7 da sentença.
M. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, entendemos que face ao quadro indiciário que suporta a conclusão da AT, no sentido de que os montantes recebidos correspondem a rendimentos da categoria A do IRS, impunha-se aos Impugnantes, ora Recorridos, fazer a prova de que os mesmos traduzem efectivos e concretos reembolsos de empréstimos feitos à C..
N. Todavia, o quadro factual fixado no probatório da douta sentença recorrida não integra quaisquer factos passíveis de evidenciar que as concretas verbas recebidas pelos ora Recorridos correspondem a reembolsos de empréstimos concedidos à C..
O. A factualidade dada como assente nas letras E, F e G, pela sua vacuidade e imprecisão, não permite concluir de per si que os concretos montantes recebidos pelos ora Recorridos representam reembolsos dos empréstimos alegadamente concedidos.
P. A ausência de prova a tal respeito tem de ser valorada contra a parte por ela onerada, ou seja, contra os ora Recorridos, e, assim, face ao preceituado no art. 414.° do CPC, a única conclusão possível de retirar dos factos dados como provados é que as verbas in quaestio correspondem a rendimentos do trabalho dependente, os quais integram o campo de incidência da categoria A do 1RS.
Q. Face ao exposto, entendemos, ressalvado o devido respeito que a douta sentença recorrida incorreu em,
i. erro de julgamento quanto ao critério de repartição do ónus de prova ao resolver a questão com base em “dúvida fundada”, por aplicação do disposto no art. 100.º n.º 1 do CPPT;
ii. erro de julgamento de facto, consubstanciado numa incorrecta apreciação e valoração da matéria de facto dada como assente e, concomitantemente, errónea subsunção da matéria considerada como provada às normas que regem o ónus da prova (cfr. art.s 74.° da LGT, 414.° do CPC , 125°, n.º 1 do CPPT e 607.º, n.º 4 do CPC).
Nos termos vindos de expor e nos que Vs. Exas, sempre mui doutamente, poderão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, substituir a decisão por outra que julgue a Impugnação Judicial improcedente, como se nos afigura estar mais consentâneo com o Direito e a Justiça.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa analisar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, ao ter decidido verificar-se dúvida fundada relativamente à existência do facto tributário. A questão fulcral a decidir neste recurso é a de saber se a verba paga pela sociedade ao seu accionista/administrador se integra na contrapartida do trabalho prestado, ou seja, se tem carácter remuneratório e, consequentemente, se está sujeita a incidência de IRS – categoria A.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto


Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:

III-A - Factos provados
Com interesse para a decisão a proferir, resultam provados os seguintes factos:
A). Os Impugnantes foram objecto de acção inspectiva, relativa ao período de 2000 e 2001, cfr. Relatório da Inspecção Tributária de fls. 11 a 16 do Processo Administrativo (PA).
B). Foi seguidamente elaborado o respectivo Relatório, que se encontra junto a fls. 1 a 34 do PA, e aqui se dá por integralmente reproduzido, bem como os seus anexos, do qual consta o seguinte:
I. DESCRIÇÃO SUCINTA DAS CONCLUSÕES DA ACÇÃO DE INSPECÇÃO
Exercício de 2001
II. OBJECTIVOS, ÂMBITO E EXTENSÃO DA ACÇÃO DE INSPECÇÃO
II .1 Credencial e período em que decorreu a acção
O procedimento inspectivo foi realizado a coberto da 01200500168 de 2005/01/25, com código PNAIT 32135.
O procedimento inspectivo teve origem em factos verificados na acção realizada à "C." aos anos de 2000 e 2001.
II .2 Motivo, âmbito e incidência temporal
O objectivo desta acção foi verificar se na declaração de rendimento, modelo 3 de IRS, do sujeito passivo A., referente ao ano de 2001, foram incluídos os valores de um cheque emitidos a seu favor, e transferência bancária, pela empresa, de que foi sócio/administrador, "C. S.A”.
A acção é de âmbito parcial e abrange os exercícios de 2001 em relação ao IRS
II .3 Outras situações
O contribuinte A. foi accionista e administrador da empresa "C. S.A", NIPC (…), com sede em (…).
Esta sociedade foi constituída em 1987 com o capital social de 29.927,88E. Após sucessivas alterações ao pacto social e aumentos de capital social, este, no ano de 2000, ascendia ao montante de 498.797,90E (100.000 contos), possuindo C. 39,85% do capital social desta empresa. Em 2001/07/01 este contribuinte vendeu as suas acções.
No exercício de 2001 o contribuinte A., para além de sócio/accionista da C., também foi trabalhador dependente desta.
Ill. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1 EXERCÍCIO DE 2001
III.1.1 Em sede de IRS
Na sequência da acção inspectiva realizada na empresa "C. S.A", NIPC (…). com sede em (….), da qual o sujeito passivo A. possuiu até 2001 participação no capital social e da qual auferiu rendimentos da categoria A , verificamos o seguinte:
A) Foi emitido, no exercício de 2001, por aquela empresa, um cheque no montante de 24.000.000$00 (119.711,49E) a favor do referido sujeito passivo.
Foi solicitada fotocópia, frente e verso, do referido cheque (n° 2059035717 do BPI) e constatou-se que este foi depositado numa conta bancária particular que não pertence à empresa, mas sim a A..
Em 21 de Junho de 2004 notificamos pessoalmente este sujeito passivo com o objectivo deste esclarecer a que título recebeu os referidos montantes da empresa C., já que na data de emissão do cheque era administrador e accionista da empresa, constando a sua assinatura daquele cheque (anexo 1).
Em 13 de Julho de 2004 foi recepcionada na Direcção de Finanças de Aveiro, entrada n° 13132, a resposta a esta notificação pessoal sendo referido por este sujeito passivo que desde 30/11/2002 deixou de ocupar qualquer cargo na C. estando assim impossibilitado de consultar os elementos contabilísticos a fim de esclarecer o nosso pedido (anexo 2).
Fomos informados pela actual administração que se encontra a decorrer um processo judicial contra os anteriores administradores por aqueles terem verificado, após o início das suas funções, a existência de várias anomalias financeiras da responsabilidade dos anteriores administradores.
Em 03/08/2004 foi enviada, por via postal, nova notificação ao sujeito passivo A. (anexo 3), com o objectivo deste esclarecer a que titulo recebeu o cheque referido anteriormente já que os rendimentos declarados por si nas declarações de rendimentos modelo 3 de 1RS relativas aos exercícios de 2001 não são compatíveis com o valor evidenciado naquele cheque.
Em 18 de Agosto de 2004 foi recepcionada na Direcção de Finanças de Aveiro (entrada n° 15386) a resposta a esta notificação referindo a mesma o seguinte:
"(...) a importância de 24.000.000$00 (Vinte e quatro milhões de escudos) constante do cheque n°2059035717 do BPI, emitido em 26/03/2001 pela C. S.A a meu favor, refere-se ao reembolso de empréstimos efectuados à firma por mim nos anos de 1997, 1998 e 1999, que se destinaram a cobrir dificuldades financeiras da C.. (...)" (anexo 4)
Refira-se que o sujeito passivo não junta à resposta enviada provas documentais da efectivação de tais empréstimos.
ANÁLISE DOS SUPRIMENTOS EFECTUADOS À C.
Perante a resposta do sujeito passivo analisamos a evolução do saldo da conta "2551000 - empréstimos" (suprimentos) e verificamos que a contabilidade evidenciou em 31/12/1999, relativamente a esta conta, um saldo credor de 28.608,96 E (5.735.581$50) e em 31/12/2000 de 6.163,06E (1.235.582$00), conforme documentos em anexo 5, valores não compatíveis com os montantes que o sócio/administrador diz que emprestou à empresa.
B) Através da análise do extracto bancário do BCP, conta n° (...) da C. (anexo 6), verificou-se que em 20/07/2001 foram feitas duas transferências bancárias para outras duas contas bancárias, também do BCP, que nada têm a ver com a empresa C., no montante de 1.284.892$00 (6.409,00 E) cada. No entanto tal movimento não se encontra reflectido na contabilidade.
Posteriormente detectou-se que as contas bancárias para onde foram transferidos os referidos valores são a n° (...) e a n° (…) pertencentes aos sócios/accionistas da C., Sr. C. e A., respectivamente.
Estes valores foram efectivamente retirados da empresa em benefício dos sócios sem que os mesmos os declarassem como rendimentos. Note-se que o saldo desta conta bancária em 2001/07/03, de 2.569.785$00, foi repartido equitativamente por estes dois sócios/ accionistas ficando a conta bancária sem qualquer saldo.
Assim, face ao anteriormente relatado consideramos que os valores recebidos da C., através do cheque e por transferência bancária, são rendimentos que o sujeito passivo omitiu na sua declaração de rendimentos modelo 3 de IRS de 2001, e que nos termos dos n°s 2 do art° 1° do Código de IRS devem ser sujeitos a tributação. Estes são considerados como rendimentos da categoria A nos termos dos n°s 1 e 2 do art° 2° do código do IRS.
Em relação ao montante de 24.000.000$00 (119.711,49E), relativo ao cheque n° 2059035717 do BPI , o mesmo não é considerado reembolso de empréstimo já que:
• o contribuinte não prova documentalmente como foram efectuados tais empréstimos;
• os valores evidenciados na contabilidade na conta de empréstimos não corresponde aos valores que o contribuinte diz ter emprestado.
IV INFRACÇÕES VERIFICADAS
IV.1, EM SEDE DE IRS
Com o procedimento descrito no ponto II, omissão de rendimentos na declaração mod. 3 de IRS de 2001, o contribuinte infringiu o disposto no art 57° do Código do IRS, infracção prevista e punível pelo art° 119° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho.
V. REGULARIZAÇÕES EFECTUADAS PELO SUJEITO PASSIVO NO DECURSO DA ACÇÃO DE INSPECÇÃO
Não aplicável
VI. DIREITO DE AUDIÇÃO - FUNDAMENTAÇÃO
Através do oficio n° 8418907, enviado em 28/09/2005 pela Direcção de Finanças de Aveiro, o sujeito passivo foi notificado, nos termos do art° 60° da Lei Geral Tributária (1.101) e art° 60° do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT), para exercer o direito de audição sobre o projecto de conclusões do relatório anexo à referida notificação.
Em 7 de Outubro de 2005, entrada n° 16731, foi recepcionado na Direcção de Finanças de Aveiro o "direito de audição" do sujeito passivo, que consta como anexo n° 7 .
ANÁLISE DO DIREITO DE AUDIÇÃO
No direito de audição o sujeito passivo refere que "(...). Lendo e reflectindo sobre o Projecto de relatório afigura-se ao sujeito passivo que se tratou, efectivamente, de um procedimento interno.
(…)
Efectivamente a correcção notificada ao contribuinte do projecto de relatório foi efectuada internamente. Porém, esta teve origem numa inspecção externa realizada à empresa "C.", da qual o contribuinte foi administrador e accionista, em relação aos exercícios de 2000 e 2001.
Em relação ao sujeito passivo "A. e esposa" não se verificou qualquer suspensão do procedimento inspectivo, não se verificando igualmente qualquer obrigatoriedade de notificar o mesmo do reinício da acção. Refira-se que em Agosto de 2004 o contribuinte prestou esclarecimentos no âmbito de inspecção que se encontrava a decorrer C.. Posteriormente foi efectuado novo procedimento inspectivo aquela empresa e recolhidos novos elementos que entretanto foram notificados ao contribuinte.
Após elencar um conjunto de normativos legais que definem os princípios a seguir pela Administração Tributária, no seu direito de audição o sujeito passivo refere que "(...) os princípios da justiça e da imparcialidade impõem à Administração Tributária que no domínio do procedimento tributário se norteie por critérios de isenção na averiguação das situações tácticas realizando todas as diligências necessárias para averiguar a verdade material (…)” e acrescenta no ponto 27° que "(...) Do principio da legalidade resulta como corolário o principio da verdade material, conforme ensina Alberto Xavier " a averiguação da verdade material não é objecto de um simples ónus mas de um dever jurídico, de um verdadeiro encargo da prova ou dever de investigação... (…)" e por fim no 28° "(...) E este encargo de prova incumbe à Administração de modo que em caso de "incerteza,
deva abster-se de praticar o acto tributário... (…)".
Não existe, por parte da Administração Tributária, qualquer dúvida ou incerteza sobre o destino dado ao dinheiro retirado da empresa C. através de diversos cheques nominativos. Estes foram depositados nas contas de dois dos sócios.
Por isso, foram efectuadas todas as diligências necessárias à descoberta da verdade ou seja perante a saída de dinheiro das contas bancárias da empresa, através de cheques emitidos a favor de dois dos sócios/accionistas, que estes depositaram nas suas contas particulares, foram os mesmos notificados pessoalmente, em 21/06/2004, para esclarecerem a que titulo receberam estes cheques da empresa.
A resposta a esta notificação em, 13/07/2004, foi a que a seguir se transcreve:
"(...) De facto, tal notificação, que me é feita na qualidade de administrador e accionista daquela empresa, não tem razão de ser em virtude de já não ter qualquer cargo na mesma desde 30/11/02, estando assim, impossibilitado de consultar a contabilidade para poder esclarecer com prontidão e clareza o pedido formulado.(…)”
Esta é uma resposta pouco esclarecedora. Afinal o cheque a que nos referimos foi depositado na conta particular do contribuinte, que à data era administradora da empresa que emitiu o cheque. Acresce ainda referir que esse cheque foi assinado pelo contribuinte na qualidade de administrador da empresa C..
Dada a pouca colaboração e falta de esclarecimento por parte dos ex administradores da "C.", voltamos a notificar cada um deles, na qualidade de sujeitos passivos de IRS, já que não existem na contabilidade da empresa evidências de débitos daqueles montantes, por parte da empresa, a estes sujeitos passivos.
Após a segunda notificação o ex administrador responde dizendo que os valores recebidos são reembolsos de empréstimos efectuados à sociedade nos anos de 1997, 1998 e 1999.
No ponto 16° do direito de audição o contribuinte refere que "(...) a Administração Tributária é que tem que provar que a Declaração do sujeito passivo está omissa nos rendimentos declarados, ou seja, tem que provar que o contribuinte não emprestou dinheiro à Firma e que tal justificação apresentada pelo sujeito passivo não é verdadeira.”
A Administração Tributária provou que o cheque recebido da C. foi depositado na conta bancária particular do contribuinte, ou seja, este recebeu dinheiro da empresa. A que titulo? O contribuinte justifica dizendo que fez empréstimos à sociedade e que este dinheiro é o reembolso desses empréstimos. Porém, nos registos contabilísticos da empresa não existem evidências desses empréstimos, vejam-se as fotocópias dos balancetes e extractos das contas de empréstimos de sócios (anexo n.º ). Então a Administração Fiscal provou documentalmente que esta justificação não é válida.
Refira-se também que em data recente a C. foi objecto de acção inspectiva externa, relativamente ao ano de 2000, sendo o direito de audição exercido pelos referidos ex administradores.
Neste nada foi referido sobre omissão de registos nas contas. Por outro lado refere o art° 1143° do Código Civil que o contrato de mútuo de valor superior a 20.000E só é válido se for celebrado por escritura pública.
Assim, excluída também a hipótese de estes rendimentos serem enquadráveis na categoria E do CIRS, dado que não se verificaram as condições estabelecidas no artº 297 do Código das Sociedades Comerciais (condições a ser observadas pelas sociedades anónimas em matéria de adiantamentos por conta de lucros), o dinheiro retirado da empresa C. pelo accionista A. só pode corresponder a um rendimento enquadrável nos nºs 1 e 2 do art° 2° do CIRS uma vez que este possuía vínculo contratual com a mesma.
Nunca se pôs em causa, nem se duvida que o sujeito passivo possua, para além dos rendimentos de trabalho, outros rendimentos, "designadamente os referidos na alínea c) do n" 6 do art. 71.º do Código do IRS", conforme refere, o ponto 22° do direito de audição. O que refutamos é que este valor seja reembolso de empréstimos já que os mesmos nunca existiram conforme demonstramos através dos registos contabilísticos da empresa C.. Convém referir que aquando da entrega das declarações de rendimentos de 97 e 98 os representantes legais da empresa, entre os quais figura A., as assinaram declarando que as mesmas correspondiam à verdade e estavam de acordo com os registos contabilísticos, (veja-se fotocópia do rosto das referidas declarações anexo 8).
Face ao exposto considerados o valor recebido pelo sócio accionista A. rendimento da categoria A do CIRS, trabalho dependente, nos termos dos n°s 1 e 2 do art° 2° do referido código.
C). Os Impugnantes foram notificados da liquidação IRS e Juros Compensatórios/compensação n° 200500012894002, no valor total de € 55.254,26, cujo prazo de pagamento voluntário terminou em 14-12-2005, cfr. teor de fls. 24 a 26 dos autos (p.f.);
D). A presente impugnação foi apresentada no SF de Vale de Cambra em 06-02-2006, cf. teor do doc. de fls. 4 dos autos.
E). Era habitual os acionistas suprirem necessidades de tesouraria da C., nomeadamente para pagamento de despesas com fornecedores da empresa, cfr. prova testemunhal.
F). Essas verbas eram depois devolvidas aos acionistas, quando existisse disponibilidade financeira para tal, cfr. prova testemunhal.
G). Por norma, esses empréstimos não eram registados na contabilidade, só o sendo nos casos em que a conta caixa não tinha saldo suficiente para o pagamento de despesas, cfr. prova testemunhal.
H). O Impugnante além de acionista da Caimonox, trabalhava na mesma, recebendo uma remuneração mensal por esse trabalho prestado, cfr. prova testemunhal.
III-B - Factos não provados
Inexistem, com relevância para a decisão a proferir.
Motivação:
A factualidade supra referida, foi apurada com base nos documentos juntos aos autos e no Processo Administrativo anexo ao mesmo.
Relevou-se ainda o depoimento das testemunhas arroladas pelos Impugnante, designadamente, quanto aos pontos E) a G) da matéria assente, C. e M., respectivamente, sócio-gerente e TOC da C., que confirmaram tal factualidade com pormenor e de forma coerente.”

2. O Direito

Para se decidir pela procedência da impugnação considerou a decisão recorrida que ocorria dúvida fundada relativamente à existência do facto tributário.

É nossa convicção não ser aplicável ao caso o disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), pois que o ónus nele consagrado se refere exclusivamente às situações em que é a AF a afirmar e a quantificar um facto tributário e não às situações em que está em causa a natureza ou qualificação de determinado rendimento, cujo recebimento e quantificação não vêm questionados. In casu, é conhecido o rendimento que ninguém contesta e a sua qualificação como facto tributário depende da qualificação que lhe deva ser dada – cfr. Acórdão do STA, de 05/07/012, proferido no âmbito do processo n.º 0764/10.

Se tal rendimento for considerado como retribuição do trabalho constituirá por certo, e por cair na previsão do artigo 2.º do CIRS, facto tributário para efeitos de IRS.

Este artigo 2.º do CIRS estabelece uma ampla regra de incidência, fazendo incidir o imposto sobre qualquer tipo de rendimentos de trabalho.

A sorte da presente impugnação está, pois, dependente de apurar se às quantias entregues ao accionista/administrador, que também era trabalhador dependente, pela sociedade C. deve ser atribuída natureza remuneratória, implicando um trabalho de “qualificação do facto tributário” que, por não ter hoje expressão no artigo 100.º do CPPT, nos levou a afastar a possibilidade de no caso sancionar essa parte da decisão recorrida, por a dúvida não dever reverter a favor do contribuinte, tratando-se de uma questão jurídica em que o tribunal tem o dever de julgar imposto pelo artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil (É certo que na redacção original do n.º 1 do artigo 100.º do CPT fazia-se referência a “dúvidas sobre a qualificação do facto tributário”, mas com a Lei n.º 3-B/2000 de 4 de Abril substituiu-se a palavra “qualificação” por “quantificação” o que leva J. Lopes de Sousa, com pertinência e propriedade, no seu CPPT anotado 6.ª edição vol. II pag. 134 e 135, a considerar que se trataria de um lapso da redacção inicial, entretanto reparado pelo legislador, até porque no n.º 1 do artigo 121.º do CPT, a que corresponde hoje o artigo 100.º do CPPT, fazia-se referência à quantificação e não à qualificação do facto tributário).

Nestes termos, a fundamentação constante da sentença recorrida, nesta parte, não pode manter-se, procedendo as conclusões das alegações de recurso A) a H).

Importa, pois, tomar posição quanto à natureza jurídica a atribuir aos montantes pagos pela sociedade C. ao Recorrido marido.

Com efeito, de acordo com a sentença recorrida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) conseguiu comprovar a existência do recebimento da quantia pelos Impugnantes e que esse pagamento foi efectuado pela C., bem como os Impugnantes, ora Recorridos, não negam que receberam a referida quantia. A qualificação destes recebimentos, no todo ou em parte, como “rendimento” e como rendimento da categoria A do IRS, terá que partir da fundamentação constante do acto em crise, como, aliás, o efectuou a sentença recorrida. Vejamos:

“(…) Desde logo, quanto à primeira questão a apreciar, entendem os Impugnantes que a inspecção tributária não cumpriu o ónus probatório que lhe incumbia, para sustentar as correcções efectivadas.

Vejamos.
Nos termos do n° 1 do artigo 74° da LGT "O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque".

A AT pretende tributar o recebimento de determinada quantia, tendo conseguido comprovar a existência do recebimento dessa quantia pelos Impugnantes e que esse pagamento foi efectuado pela C..

Por seu turno, os Impugnantes não negam que receberam a referida quantia.
A AT considera que o valor desses recebimentos correspondem a "rendimento sujeito a IRS nos termos do 2 do artigo 1° do respectivo Código."

No entanto, o n° 2 do artigo 1° do CIRS, segundo o qual "Os rendimentos, quer em dinheiro quer em espécie, ficam sujeitos a tributação, seja qual for o local onde se obtenham, a moeda e a forma por que sejam auferidos" não contém uma noção de rendimento mas uma regra de incidência. Essa regra dispõe que ficam sujeitos a imposto quaisquer rendimentos. Ou seja, a referida sujeição pressupõe a existência de um rendimento.

A noção de rendimento sujeito a IRS é dada pelo conjunto de regras de incidência de cada uma das respectivas "categorias" discriminadas nos artigos 2° a 11° segundo a respectiva fonte ou origem.

Os ganhos só são sujeitos a imposto na medida em que exista norma de incidência que expressamente preveja a sua prévia sujeição a imposto legalmente criado (n° 2 e n° 3 do artigo 103° e al. i) do n° 1 do artigo 165° da CRP, n° 4 do artigo 11° e nas 1 e 4 do artigo 12 da LGT).

Competia pois à AT comprovar que os acréscimos obtidos pelos Impugnantes são "rendimento" e que, no caso dos autos, são rendimento do trabalho dependente, sujeito à regra de incidência do artigo 2° do CIRS e enquadrados na categoria A do Código.

Para isso, a AT teria de provar que esses rendimentos tiveram como fonte o exercício de função, serviço ou cargo resultante de trabalho dependente prestado sob autoridade e direcção da pessoa ou entidade que ocupa a posição de patrão.

No caso, não vem discutido que o Impugnante era trabalhador da C., entidade pagadora do suposto rendimento.

A questão a resolver consiste em saber se a AT logrou provar que o pagamento feito pela C. resultou da "prestação ou em razão da prestação" de trabalho dependente como "trabalhador assalariado" (ou como "membro dos órgãos estatutários das pessoas colectivas e entidades equiparadas", nos termos da al. a) do n° 2 do artigo 2° do CIRS).

A AT partiu da verificação de que, para além da saída do dinheiro, a C. não registou na contabilidade qualquer movimento de entrada ou saída que permita qualificar o rendimento do Impugnante e, por outro lado, os Impugnantes não declararam esses rendimentos nem colaboraram para a descoberta da verdade material.

Ou seja, aquela saída de dinheiro não foi acompanhada do registo do custo em conta de "resultados" adequada, nos termos do Plano Oficial de Contabilidade (POC), pelo que a AT ficou impossibilitada de saber, por esse meio, qual o destino dado a tal dinheiro.

Por isso, a AT solicitou ao Impugnante que informasse a que título havia recebido as quantias em causa.

No caso dos autos, vieram os Impugnantes alegar que os pagamentos feitos pela C. correspondiam ao reembolso de empréstimos feitos à sociedade ao longo do tempo, para fazer face a necessidades financeiras da empresa. Ou seja, a ser assim, o valor daqueles recebimentos não corresponderia a "rendimento", já que, dito daquele modo, o recebimento não corresponderia à retribuição de trabalho, de capitais, de rendas ou pensões, em suma não corresponderia a qualquer incremento patrimonial.

Cumprido, pois, pelo contribuinte, esse dever de colaboração, passou a competir à AT fazer a prova ou convencer fundadamente de que, não obstante aquela argumentação dos Impugnantes, o valor dos recebimentos em causa constitui um rendimento e tem enquadramento em alguma das normas de incidência do IRS.

A AT assumiu que o valor em causa não poderia constituir reembolso de empréstimos ou suprimentos porque a contabilidade da sociedade não revela esses saldos nas contas respectivas e os Impugnantes não provaram a existência dos empréstimos.

Quanto ao primeiro dos argumentos, se é de afastar a possibilidade de qualificar aqueles valores como reembolsos de empréstimos efectuados à sociedade com fundamento no facto de a contabilidade não relevar tais empréstimos também é verdade que, identicamente, terá de se afastar a qualificação desses valores com rendimentos do trabalho porque a contabilidade não relevou, nas contas de custos com pessoal ou outras, tais remunerações ao agora Impugnante.

O mesmo se diga quanto ao argumento da AT segundo o qual tais importâncias também não poderiam ser rendimentos de capitais/distribuição de lucros e que para isso teriam de ser efectivadas formalidades que no caso não se verificaram. Assim como a contabilidade não releva a distribuição de lucros também não releva a remuneração do trabalho.

Mesmo que não existisse qualquer indício formal da existência de empréstimos, nunca essa falta poderia contribuir para a qualificação do fluxo em causa como rendimento do trabalho.

Impunha-se prioritariamente distinguir os indícios e efeitos da qualificação como rendimento e do enquadramento na categoria A, E ou outra, dos indícios e efeitos da qualificação como não rendimento, caso se reconhecesse a hipótese de se tratar de reembolso de empréstimos não documentados.
Nada nos autos permite distinguir ou quantificar essas situações.

Cumpria à AT realizar as diligências de instrução que considerasse indispensáveis.

A AT deparou-se com uma situação de dúvida acerca da existência e quantificação de um facto tributário e não conseguiu desfazê-la (subsistindo dúvida acerca da qualificação dos recebimentos, no todo ou em parte, como "rendimento" e como “rendimento da categoria A do IRS”). (…)”

A fundamentação do acto aponta para uma técnica de exclusão de hipóteses, restando o rendimento de trabalho dependente, na medida em que o accionista/administrador aqui Recorrido também prestava trabalho para a sociedade em causa; sem que a AT se apoiasse, por exemplo, na identidade ou semelhança com as verbas pagas a título de remuneração, que seriam, provavelmente, de natureza fixa, periódica ou regular, ou sequer encontrando um nexo de causalidade com a contraprestação do trabalho realizado, assentando a ilação numa mera conjectura ou probabilidade.

Ora, face ao princípio da veracidade das declarações dos contribuintes, (lembramos que os Recorridos não declararam as quantias em discussão) - artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT) - incumbe à Administração Tributária provar que tais quantitativos são rendimentos da categoria A de IRS.

Como decorre do artigo 74.º da LGT, cabe, por isso, à AT reunir indicadores que, por si só ou conjugadamente, suportem a conclusão de que as quantias percebidas são consideradas remuneração de trabalho dependente.

Não é despiciendo recordar que, no Direito Fiscal, vigora o princípio da tipicidade. O facto tributário, ao ser um facto típico, só existe como tal, desde que na realidade se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos, que, por esta nova óptica se convertem em elementos do próprio facto, bastando a não verificação de um deles para que não haja, pela ausência de tipicidade, lugar à tributação – cfr. Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, página 342.

No Direito Tributário, a tipologia é dominada não só por um princípio de taxatividade, como também por um princípio de exclusivismo. Opera-se o fenómeno que a lógica jurídica designa por implicação intensiva. Verifica-se a implicação intensiva sempre que os elementos enunciados no pressuposto não são apenas suficientes, mas ainda necessários para a verificação da consequência: se esses elementos se verificarem, segue-se a consequência, mas esta só se segue se eles se verificarem – cfr. sobre o princípio da tipicidade em Direito Fiscal, Alberto Pinheiro Xavier, obra citada, onde na página 327 cita Castanheira Neves, Questão-de-facto-Questão-de-direito, página 264. Veja-se neste preciso sentido o acórdão do TCA, de 22 de Junho de 1999, no recurso n.º 457/98, citado no acórdão do TCA Sul, de 07 de Março de 2006, no processo n.º 00371/03 e também aludido no acórdão deste TCA Norte, de 17 de Dezembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 7/10.0BUPRT, originariamente sob o n.º 36/04-Porto.

A qualificação da natureza das quantias recebidas tem sempre subjacente um problema de prova, no caso agravado pelo facto de o Recorrido marido ter sido simultaneamente trabalhador dependente, accionista e administrador da sociedade pagadora. Porém, em princípio, não havendo qualquer exigência formal especial para prova da natureza dos pagamentos efectuados a trabalhador, é admissível qualquer meio de prova, em conformidade com o preceituado no artigo 72.º da LGT e 115.º do CPPT.

Importava, então, demonstrar que os montantes foram pagos pelo trabalho prestado pelo Recorrido à entidade patronal e por causa de serviço assim prestado.

O fim a que se destina o pagamento de determinada verba - a trabalhador dependente, a administrador, a accionista - constitui matéria de facto, e, conforme consta do probatório, tal não se mostra, em concreto, apurado.
Caberia, por isso, à Administração Tributária reunir outros indicadores que, por si só ou conjugadamente, suportassem a conclusão de que as quantias percebidas são consideradas remuneração de trabalho, como vimos. Não bastando excluir a hipótese de estes rendimentos serem enquadráveis na categoria E do IRS, por não se verificarem as condições estabelecidas no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais (condições a ser observadas pelas sociedades anónimas em matéria de adiantamentos por conta de lucros), e, consequentemente, concluir que o dinheiro retirado da empresa C. pelo accionista A. só podia corresponder a um rendimento enquadrável nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do CIRS, uma vez que este possuía vínculo contratual com a mesma. Desde logo, permite alguma perplexidade que, por exemplo, o montante de 24.000.000$00 (€119.711,49), relativo ao cheque n.º 2059035717 do BPI, entregue pela sociedade ao Recorrido e depositado nas contas pessoais dos Recorridos, consubstancie pagamento efectuado por trabalho dependente, sem mais explicações ou justificações para uma tal quantia dessa ordem, nomeadamente, se estariam em atraso retribuições e a que períodos de serviço prestado à C. seriam referentes, etc.

A verdade é que se a contabilidade da sociedade não relevou a distribuição de lucros nem a remuneração do trabalho, não se compreende por que motivo a AT optou por excluir várias possibilidades (incluindo poder tratar-se de devolução/pagamento de suprimentos), mas resolveu acolher a hipótese de que os valores depositados nas contas pessoais dos Recorridos deveriam ser qualificados como rendimento proveniente de trabalho dependente do Recorrido marido.

Ora, o artigo 2.º do CIRS, sistematicamente inserido nas normas de incidência real, não se traduz numa norma de delimitação negativa de incidência, como o é, por exemplo, o artigo 10.º do CIRS, que afasta da categoria G os ganhos que, pese embora decorrentes dos factos enunciados no artigo, forem considerados rendimentos empresariais e profissionais (categoria B), de capitais (categoria E) ou prediais (categoria F). Não tendo a categoria A de rendimentos um cariz apenas residual, não é admissível que a AT adopte na fundamentação do acto uma argumentação “por exclusão de partes”, ao invés de identificar factos concretos que pudessem ser consentâneos com as proveniências elencadas no artigo 2.º do CIRS e que, então, permitissem a ilação de estarmos perante remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular por via de trabalho dependente.

Só que os serviços de inspecção tributária não reuniram ou não invocaram quaisquer outros indícios pertinentes que suportassem essa conclusão – de que se tratava de rendimento da categoria A de IRS. Assim sendo, é irrelevante que os Recorridos não tenham oferecido qualquer prova documental quanto à concreta e alegada realização de empréstimos, ou que, na contabilidade da C., também os valores evidenciados na conta de empréstimos não correspondessem aos valores que aqueles alegam ter emprestado à referida sociedade, pois que a AT não demonstrou, como lhe incumbia, a legalidade da sua actuação, improcedendo, portanto, as conclusões I) a Q) das alegações de recurso.
Do exposto, como, nesta parte, a sentença sublinhou, afigura-se-nos que a AT não carreou indícios suficientes para a fundamentação do acto tributário, sendo, em consequência, a sentença recorrida de manter com a presente motivação e ao recurso deve ser negado provimento.

Conclusões/Sumário

I - Apurar se às quantias pagas por uma sociedade a um accionista/administrador que é simultaneamente trabalhador dependente deve ser atribuída natureza remuneratória, implica um trabalho de “qualificação do facto tributário” que, por não ter hoje expressão no artigo 100.º do CPPT, nos leva a afastar a possibilidade de no caso sancionar totalmente a decisão recorrida, por a dúvida não dever reverter a favor do contribuinte, tratando-se de uma questão jurídica em que o tribunal tem o dever de julgar imposto pelo artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil.

II – No entanto, é sobre a Administração Tributária que recai o ónus de demonstrar que as quantias não declaradas constituem retribuição, ou seja, que são rendimentos que têm carácter remuneratório, para efeitos de incidência de IRS – categoria A, nos termos do disposto no artigo 2.º do Código de IRS.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida com a presente fundamentação.
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Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.
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Porto, 25 de Fevereiro de 2021


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