Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02438/08.8BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/08/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL – NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário:I – Detetando-se que a produção dos danos reclamados emergem da prestação de garantia bancária em processo judicial, imediatamente se conclui, na exata medida de que a presente ação serve o propósito de efetivação de responsabilidade extracontratual por violação do direito a uma decisão jurisdicional em “prazo razoável”, que o facto ilícito e culposo imputado ao Réu não possa ser considerado como causa adequada da produção dos danos sofridos pela Recorrente.

II- O que serve para atingir a evidência da falta de verificação do pressuposto basilar da responsabilidade civil extracontratual relativo ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo praticado pelo R. e os danos sofridos pelo A, o que é determinante da improcedência do presente recurso.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J., LDA
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUES
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

J., LDA, devidamente identificada nos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que, em 16.11.2020, julgou a presente ação totalmente improcedente, e, em consequência, absolveu o Réu ESTADO PORTUGUÊS, aqui Recorrido, do pedido.

Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:“(…)

1. Vem a Autora recorrer da sentença de fls... que considerou totalmente improcedente a ação interposta por esta contra o Estado Português por violação do direito a uma decisão em prazo razoável ou sem dilações indevidas, devidamente previsto na Lei 67/2007, de 31 de dezembro.
2. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão por ter considerado como não provado o facto de a Autora ter visto afetado o seu nome e reputação durante os anos em que durou o processo de impugnação judicial, e, como tal, não provada a existência de dano e nexo de causalidade adequado.
3. Ora, tal facto deveria ter sido julgado provado, atendendo à prova testemunhal apresentada, nomeadamente da testemunha M. e P., bem como das declarações da Autora através do Sócio-gerente, J., conforme o transcrito nas Alegações, pelo que, por brevidade, para lá se remete e dão aqui por reproduzidas.
4. Provado que foi tal facto, encontram-se preenchidos todos os requisitos referentes à responsabilidade civil extracontratual do Estado por violação do direito à obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável ou em dilações indevidas.
5. No que à ilicitude diz respeito, relativamente ao processo judicial tributário, o artigo 96.°, n.°2, do CPPT estatui que este não deve ter duração acumulada superior a dois anos contados entre a data da respectiva instauração e a da decisão proferida em 1.a instância.
6. No caso em apreço, o processo judicial tributário, em 1.a instancia, teve uma duração aproximada de 7 anos, o que consubstancia uma ultrapassagem do prazo razoável de duração média do processo, o que se afigura excessivo, face às legítimas expectativas das pessoas que recorrem a tribunal.
7. Para além disso, como se disse e se reitera, fora detetada uma delonga processual de 3 anos e 4 meses, desde 15.01.2013 até 13.05.2016.
8. Nessa medida, e mesmo que se atenda às circunstâncias concretas do caso, à sua complexidade e ao comportamento das partes, impõe-se concluir que o processo de impugnação judicial, não fora decidido num prazo razoável ou inaceitável para os critérios e expectativas do homem comum.
9. Como tal, entende-se verificado o pressuposto da ilicitude e da culpa, não apenas numa estrita análise global da duração do processo, mas atendendo ao não cumprimento de determinados prazos processuais, por culpa leve, que se presume ou, quanto mais não seja, por «funcionamento anormal do serviço».
10. Ocorreu um atraso injustificado que afetou o andamento do processo, contribuindo para a duração do processo; não relevando a existência de um número elevado de processos pendentes no tribunal para isentar o Estado de responsabilidade por atrasos na administração da justiça.”
11. Quanto à culpa, esta resulta da ilicitude e do próprio facto de o serviço não funcionar de acordo com os standards de qualidade e eficiência que são esperados e constituem uma obrigação do Estado de Direito perante os cidadãos.
12. Quanto aos danos, como se retira das declarações prestadas pelas testemunhas acima referidas, a existência da garantia bancária atingiu a imagem da Recorrente pelo tempo em que se encontrou inscrita no Relatório Anual de Contas da Recorrente.
13. Não procede o argumento do Tribunal de que os danos alegados referentes à existência de uma garantia bancária nada se relacionam com danos provocados pela delonga do processo.
14. Em boa verdade, e como se retira do depoimento prestado pela testemunha M. e das declarações do sócio-gerente da Recorrente, para o qual, por brevidade, se remete, a garantia bancária foi prestada para suspender a execução fiscal, sendo certo que nunca seria expectativa de que o processo demorasse tanto tempo.
15. Assim, dúvidas não há de que o facto de se ter violado a obtenção de decisão em tempo útil acarretou consequências para a imagem e reputação da Recorrente perante as instituições bancárias e Clientes e, como tal, gerou um dano merecedor de tutela, ainda que um dano não patrimonial.
16. O juiz, desde que se contenha na causa de pedir invocada, é livre de qualificar os danos como patrimoniais ou não patrimoniais.
17. A ofensa ao bom nome e reputação das sociedades comerciais não releva apenas como dano patrimonial indireto, podendo também relevar como dano não patrimonial.
18. Quanto ao nexo de causalidade, caso o processo não se tivesse prolongado por tanto tempo, a aqui Recorrente não teria a sua imagem, bom nome e crédito afetado, pelo menos não na proporção em que o teve.
19. Pelo que, também se encontra preenchido o derradeiro requisito.
20. Termos em que deverá ser substituída a sentença recorrida por outra que condene o Recorrido pelos danos causados por violação do Direito de obtenção de uma decisão em prazo razoável (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido produziu contra-alegações, tendo defendido a improcedência do presente recurso jurisdicional.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir são as de saber se a decisão judicial recorrida incorreu em erro[s] de julgamento de (i) facto e de (ii) direito.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO

O quadro fáctico [e respetiva motivação] apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte: “(…)
A. A J., Lda. é uma sociedade por quotas que tem por objeto a importação, exportação, representação e comércio de eletrodomésticos, motociclos, peças e acessórios, máquinas e equipamentos para a indústria e comércio, constituída em 22.06.1982 (cf. certidão permanente junta aos autos com a petição inicial constante de fls. 40 a 43 do SITAF, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
B. Em 30.11.2009, deu entrada no Tribunal Tributário de Braga de petição inicial que originou o processo n.° 1769/09.2BEBRG e através do qual a “J., Lda.” impugnou judicialmente as liquidações dos anos de: 2004 (n.° Liquidação n.° 08053121, de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), do mês de dezembro, no valor de € 39.115,92 e Liquidação n.° 08053122, de juros compensatórios, do mês de dezembro, no valor de € 4.316,68), 2005 (Liquidação n.° 08084639, de imposto sobre o valor acrescentado, do mês de junho, no valor de € 24.444,25, Liquidação n.° 08084640, de juros compensatórios, do mês de junho, no valor de € 2.212,71, Liquidação n.° 08053127 de imposto sobre o valor acrescentado, do mês de dezembro, no valor de € 26.559,78, e Liquidação n.° 08053128, de juros compensatórios, do mês de dezembro, no valor de € 1.868,64), peticionando a anulação das sobreditas liquidações (cf. fls. 1 e seguintes do processo n.° 1769/09.2BEBRG do SITAF que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
C. A petição inicial que deu origem ao processo n.° 1769/09.2BEBRG tem o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido e do qual consta, designadamente, o seguinte (cf. fls. 1 e seguintes do processo n.° 1769/09.2BEBRG do SITAF que se dão aqui por integralmente reproduzidas):
«(... J., LDA., sociedade comercial por quotas, pessoa coletiva número (…), e sede social sita na Rua (…), nos termos dos artigos 99° e 102°, n.° 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), apresenta contra as seguintes liquidações:
Do ano de 2004: Liquidação n.° 08053121, de imposto sobre o valor acrescentado, do mês de dezembro, no valor de € 39.115,92, conforme doc. 1, fls. 1, apenas quanto ao valor de € 33.000,34; Liquidação n.° 08053122, de juros compensatórios, do mês de dezembro, no valor de € 4.316,68, conforme doc. 1, fls. 2, apenas quanto ao valor de € 3.641,79; Do ano de 2005: Liquidação n.° 08084639, de imposto sobre o valor acrescentado, do mês de junho, no valor de € 24.444,25, conforme doc. 1, fls. 3, apenas quanto ao valor de € 20.987,74; Liquidação n.° 08084640, de juros compensatórios, do mês de junho, no valor de € 2.212,71, conforme doc. 1, fls. 4, apenas quanto ao valor de € 1.899.83; Liquidação n.° 08053127 de imposto sobre o valor acrescentado, do mês de dezembro, no valor de € 26.559,78, conforme doc. 1, fls. 5, apenas quanto ao valor de € 23.350,61; Liquidação n.° 08053128, de juros compensatórios, do mês de dezembro, no valor de € 1.868,64, conforme doc. 1, fls. 6, apenas quanto ao valor de € 1.642,86;
(...)
III. DO REENVIO PREJUDICIAL
106. Na presente impugnação judicial suscitam-se questões de interpretação das normas comunitárias, mais concretamente o disposto no art.° 2°, n.° 1 e no n.° 6 do art.° 5° da Sexta Diretiva, com interesse relevante na solução do caso submetido a julgamento.
107. O art.° 234° do Tratado CE, permite a qualquer jurisdição nacional interrogar o Tribunal de Justiça sobre a interpretação a dar a determinadas normas comunitárias de que depende a solução do litígio de forma a garantir uma aplicação uniforme do direito comunitário, através do mecanismo do reenvio prejudicial.
108. Sendo assim, e se se vier a considerar que não estão reunidas as condições que permitam excecionar aquele reenvio, designadamente por se considerar a manifesta ilegalidade do critério fornecido pela circular 19/89, requer-se seja promovido o reenvio prejudicial do presente processo ao Tribunal de Justiça podendo formular-se as seguintes questões com relevância na solução a dar ao presente caso:
1.- A circular 19/89, de 18 de dezembro da Administração Fiscal Portuguesa, fixa valores e critérios acima dos quais se verifica a incidência de IVA, nomeadamente ao determinar o conceito de ofertas de pequeno valor como sendo aquelas que não ultrapassam unitariamente o valor de € 14,99:
a) a fixação de tal critério é compatível com o artigo 5 o, n.° 6 da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho de 17 de maio?
b) Aquele valor aplica-se ao conjunto dos bens “oferecidos” e constantes de determinada fatura, como sucede nos casos em que a “oferta” está dependente da aquisição de determinada quantidade de outro produto? (Ex: o produto oferecido tem o custo unitário de € 10,00 e é atribuído na compra de uma unidade de outro produto. Se o comprador adquirir duas unidades deste produto receberá 2 unidades do produto oferecido. Neste caso, o valor total da oferta é de € 20,00, superior, portanto, ao valor fixado na circular. Neste caso está-se perante uma transmissão gratuita?).
2. - A fatura evidencia, ao menos formalmente, que determinado produto é transacionado a preço 0. Porém, resulta dos demais elementos contabilísticos, que o preço do bem principal inclui quer o preço de custo deste quer o preço de custo do bem “oferecido” acrescido de uma margem de lucro. Nestas circunstâncias, estamos perante uma transmissão gratuita de bens, no conceito resultante do art.° 5°, n.° 6 da Sexta Diretiva, ou perante uma transmissão onerosa, nos termos do art.° 2°, n.° 1 da mesma Diretiva, uma vez que estamos perante uma relação jurídica durante a qual são transacionadas prestações recíprocas?
IV. DA INDEMNIZAÇÃO POR PRESTAÇÃO INDEVIDA DE GARANTIA
109. Para suspensão do processo de execução fiscal, a correr termos no serviço de finanças de Vila Nova de Famalicão - 2, para cobrança coerciva das liquidações aqui impugnadas, e demais acréscimos legais, foi ainda apresentada garantia bancária.
110. Dispõem os artigos 53° da LGT e 173° do CPPT, a possibilidade de a impugnante vir a ser indemnizada pelos prejuízos resultantes da sua prestação, nos casos em que se reconheça, independentemente do tempo da sua prestação, erro imputável aos serviços na liquidação dos tributos.
111. Motivo pelo qual, na decisão a proferir na presente impugnação, e no caso da sua procedência, deve ser reconhecido o erro imputável aos serviços, em decorrência dos vícios imputados aos atos tributários,
112. e, em consequência, determinar-se a indemnização pelos prejuízos que, em execução de sentença, se vierem a quantificar. (...)».
D. Em 04.12.2009, a juiz titular do processo n.° 1769/09.2BEBRG proferiu despacho recebendo a petição inicial e ordenando a notificação da Fazenda Pública para, no prazo de 90 dias, contestar e solicitar a produção de prova adicional, e juntar o processo administrativo, invocando o disposto nos artigos 110.° e 111.° do CPPT (cf. fls. 55 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
E. Em 23.03.2010, a Fazenda Pública contestou a ação n.° 1769/09.2BEBRG, do que o Autor foi notificado por ofício datado de 24.03.2010 (cf. fls. 60 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
F. Em 21.04.2010, foi aberta conclusão, e em 18.10.2010 foi proferido despacho no processo n.° 1769/09.2BEBRG, ordenando que os autos aguardassem na Unidade Orgânica até janeiro de 2011, a fim de ser marcada data de inquirição de testemunhas por a agenda do Tribunal estar preenchida até dezembro de 2010 (cf. fls. 72 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
G. Em 29.01.2011, foi proferido despacho no processo n.° 1769/09.2BEBRG designando o dia 12.04.2011 para a inquirição de testemunhas (cf. fls. 77 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
H. Em 12.04.2011, no âmbito do processo n.° 1769/09.2BEBRG realizou-se audiência de inquirição de testemunhas, onde foram inquiridas duas testemunhas, e as Partes foram notificadas para apresentarem as suas alegações escritas, no prazo de 30 dias, e nos termos do disposto no artigo 120.° do CPPT (cf. fls. 92 e 95 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
I. Em 09.05.2011, a J., SA apresentou as suas alegações escritas da (cf. fls. 96 e seguintes do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
J. Em 09.06.2011, no âmbito do processo n.° 1769/09.2BEBRG foi proferido despacho ordenando que o processo fosse apresentado ao Ministério Público, o qual promovera que fosse pedida informação à Administração Tributária (cf. fls. 103 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
K. Nessa sequência, em 30.09.2011 a Administração Tributária apresentou requerimento no processo n.° 1769/09.2BEBRG, prestando as informações que lhe haviam sido solicitadas (cf. fls. 118 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
L. Face ao ordenado em 04.10.2011, as Partes e o Ministério Público foram notificados da informação prestada pela Administração Tributária (cf. fls. 124 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
M. Face à promoção do Ministério Público de 19.10.2011, por despacho de 20.10.2011, ordenou-se que a Direção de Finanças de Braga remetesse cópia de decisão final que recaiu sobre o procedimento de revisão (cf. fls. 129 e seguintes do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
N. Em 04.11.2011, a Administração Tributária juntou ao processo n.° 1769/09.2BEBRG os documentos solicitados (cf. fls. 129 e seguintes do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
O. Como ordenado por despacho de 17.01.2012, o processo foi remetido ao Ministério Público que emitiu parecer em 27.01.2020 (cf. fls. 146 a 152 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
P. Por despacho de 28.09.2012, foi ordenado que o parecer do Ministério Público fosse notificado às Partes (cf. fls. 155 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
Q. Por despacho de 09.11.2012 foi ordenado que os autos aguardassem a decisão a proferir pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do reenvio prejudicial suscitado no processo n.° 117/11.6BEBRG (em que se pretendia saber se a sentença deveria ser proferida pelo juiz que presidiu à fase da instrução ou pelo então titular do processo), do qual o mandatário da J., Lda. foi notificado por ofício datado de 12.11.2012 (cf. fls. 163 a 167 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
R. Em 15.01.2013, foi aberta conclusão contendo “em 2013-01.15, conforme Acórdão proferido no proc. 117/11.6BEBRG, da 3.a UO”, e em 10.01.2014, foi proferido o seguinte despacho: “Abro mão dos autos a fim de ser junto expediente” (cf. fls. 175 a 177 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
S. Em 13.05.2016, foi proferida sentença no processo n.° 1769/09.2BEBRG, julgando procedente a impugnação judicial, anulando os atos de liquidação impugnados, e absolvendo a Fazenda Pública da instância no tocante ao pedido indemnizatório, por ineptidão parcial da petição inicial e com os seguintes fundamentos: «(...) J. ELECTRODOMÉSTICOS, LDA., NIPC 501 293 710, veio, no seguimento do indeferimento da reclamação graciosa n° 3590200804000730, deduzir impugnação judicial contra as liquidações de IVA e juros compensatórios, referentes aos meses de dezembro de 2004 e de junho e dezembro de 2005, no valor global de €84.523,17.
Para fundamentar a sua impugnação invocou a ilegalidade e inconstitucionalidade do critério usado para determinar o montante d “pequeno valor”, a que a AT lançou mão recorrendo à circular n° 19/89, de 18 de dezembro, e o erro nos pressupostos de facto e de direito na medida em que, do seu ponto de vista, estariam em causa, não transmissões gratuitas e sim onerosas. Conclui pedindo a anulação das liquidações, com a consequente indemnização pelos prejuízos causados com a prestação indevida de garantia, que em execução de sentença se vierem a quantificar.
A Fazenda Pública (FP) apresentou contestação, aderindo aos fundamentos de facto e de direito referidos na decisão proferida no procedimento de reclamação graciosa.
Após instrução dos autos, foram as partes notificadas para apresentarem alegações escritas, prerrogativa usada apenas pela Impugnante, que no essencial sustentou o que havia dito na petição inicial.
(...)
D) SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO
1. Do vício de violação de lei por utilização de um critério ilegalmente estabelecido na Circular no 19/89.
No relatório que serve de fundamentação às liquidações aqui em causa, concluiu-se estarmos em “presença de uma transmissão gratuita, por consequência sujeita à disciplina da alínea f) do n.° 3 do art.° 3° do CIVA” , utilizando como único critério para firmar tal conclusão “o valor unitário de € 14,96” de cada bem ofertado, fundado na Circular 19/89, de 18 de dezembro, da DGCI.
Conforme assinala a Impugnante, a administração tributária não põe em causa que está perante “ofertas” e que tais ofertas “estão de acordo com os usos comerciais” (cf. página 21 do relatório onde expressamente se refere - sublinhado nosso: “No caso em apreço esta situação não se coloca na medida em que o beneficiário das ofertas se encontra devidamente identificado e estarmos perante em operação efetuada em conformidade com os usos comerciais”).
A questão que se coloca é, pois, tão só a de saber se a determinação de “pequeno valor” se pode efetuar com base num critério objectivo, prévia e administrativamente fixado através de uma circular, independentemente das circunstâncias do caso concreto.
Dito de outro modo, a questão jurídica a resolver é, então, a de saber se a circular 19/89, de 18 de dezembro, é ou não ilegal quando limita a norma de incidência negativa prevista no segundo parágrafo do art.° 3°, n.° 3 alínea f), ao estabelecer, como na situação que nos ocupa, o valor unitário da oferta que deva considerar-se de “pequeno valor”.
Vejamos.
A alínea f) do n° 3 do art. 3° do CIVA, na redação então vigente, continha um conceito indeterminado ao fazer referência a «ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais». Com efeito, o preceito recorria a um conceito indeterminado na definição das ofertas que deviam considerar-se excluídas do regime geral de equiparação das transmissões gratuitas
Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga transmissões onerosas, as quais teriam, assim, de ser de «pequeno valor» e estar «em conformidade com os usos comerciais».
Apesar de o legislador não ter dado qualquer outra indicação que ajudasse o sujeito passivo a conhecer se as ofertas que efetua preenchem ou não os requisitos legais para se considerarem fora da regra de incidência de IVA, o certo é que a referência à “conformidade com os usos comerciais” aponta claramente no sentido de que tenha pretendido que o valor relevante para preenchimento do conceito de «oferta de pequeno valor» fosse determinado não em função de um valor objectivo, genérico e preestabelecido, mas em função de cada tipo de atividade comercial, da prática corrente em matéria de ofertas.
Por outro lado, não havendo qualquer razão para crer (nem tendo sido alegado) que em todas as atividades comerciais os usos sejam no sentido de não ser excedido o valor de unitário de € 14,96 de cada bem ofertado, não se vê qualquer suporte no texto da alínea f) para a fixação de um limite genérico máximo por parte da Administração nos moldes em que o fez na referida Circular.
Ou seja, a Circular procedeu à fixação de limites máximos para que as ofertas de pequeno valor pudessem ser consideradas não abrangidas pelo regime das transmissões gratuitas de bens e, como tais, não tributáveis, com total desprezo pelos usos comerciais que a norma refere. E fixou um limite máximo para as ofertas unitárias e um limite máximo global calculado em função do volume de negócios do ano anterior, sem qualquer relação com o valor da oferta em si e os usos comerciais em vigor na atividade do ofertante.
Nessa medida, a Circular n.° 19/89 regula/altera as regras de incidência do imposto quanto às ofertas de pequeno valor, incidência que passou, assim, a ser definida por uma orientação administrativa genérica, e não por lei ou decreto-lei emitido ao abrigo de autorização legislativa, o que constitui violação clara do princípio da legalidade tributária garantida na Constituição da República (art. 103° n° 2) e plasmado no art. 8° da LGT.
Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga
Pelos mesmos motivos, essa Circular não pode deixar de violar o princípio da reserva de lei formal da Assembleia da República previsto no art. 165o, no 1, al. i), da CRP, sendo organicamente inconstitucional na medida em que contém uma regra de incidência objetiva de IVA que não foi criada por diploma emanado da Assembleia da República, em matéria que se insere na reserva relativa de competência legislativa desta.
Tal entendimento foi, aliás, reiteradamente sufragado pelo STA, designadamente nos acórdãos proferidos em 21/3/2007, em 26/4/2007, em 14/07/2008 e em 18/9/2008, que julgaram material e organicamente inconstitucional a criação por circular administrativa de um limite máximo, calculado em função do volume de negócios do ano anterior, para “ofertas d e pequeno valor” referidas na alínea f) do no3 do art. 3°do CIVA, o que levou à alteração da redação do artigo 3°do CIVA pela Lei do OE para 2008.
Consequentemente, as liquidações de IVA impugnadas enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação.
Quanto ao pedido indemnizatório: Não tendo sido alegados os factos constitutivos do direito à indemnização reconhecido no artigo 53.°, n.°s 1 a 2, da LGT, mormente, a data e o tipo de garantia constituída e os prejuízos sofridos, a petição mostra-se, nesta parte inepta, por falta de causa de pedir, nos termos do artigo 186.°, n.°1, alínea a), do CPC, o que determina a absolvição da instância da Fazenda Pública, no tocante ao pedido de indemnização formulado pela Impugnante. (...)» (cf. fls. 182 a 193 do processo n.° 1769/09.2BEBRG no SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
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T. J., Lda., através do Banco Banif, prestou a garantia bancária n.° 091/08/00034 a favor da Direção Geral de Impostos no valor de €74.019,00, tendo pago de encargos o valor de €22.370,12, desde 10.12.2009 a 10.06.2016, por forma a suspender o processo de execução relativas às liquidações impugnadas (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 45 a 87 do SITAF, e depoimento da testemunha M., que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
U. As demonstrações financeiras da J., Lda., do exercício de 2011, têm o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 88 a 108 do SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
V. As demonstrações financeiras da J., Lda., do exercício de 2012, têm o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 110 a 129 do SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
W. As demonstrações financeiras da J., Lda., do exercício de 2013, têm o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 130 a 149 do SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
X. As demonstrações financeiras da J., Lda., do exercício de 2014, têm o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 130 a 149 do SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
Y. As demonstrações financeiras da J., Lda., do exercício de 2015, têm o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. documento junto aos autos com a petição inicial constante de fls. 130 a 149 do SITAF, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
Z. A J., SA é uma sociedade comercial que lida, nas compras, essencialmente com o mercado asiático (cf. depoimento da testemunha P. e declarações de Parte do Autor, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
AA. Das prestações anuais da J., Lda., que são públicas, consta a existência da prestação de garantia bancária a favor da Direção-Geral dos Impostos (cf. depoimento da testemunha M. e A., e documentos n.°s 5 a 9 juntos aos autos com a petição inicial, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
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BB. Em 2015 estavam pendentes dos Tribunais Administrativos e Fiscais 23335 processos de impugnação, em 2016 estavam pendentes 22889 processos de impugnação e em abril de 2016, verifica-se que o número de processos pendentes nos tribunais administrativos e fiscais sofreu um aumento, e que os processos de impugnação contribuíram para esse aumento (admitido por acordo; cf. artigo 49.° a 53.° da petição inicial e “Movimentos de processos nos tribunais administrativos e fiscais da 1.a instância, por espécie, disponível em www.dgpj.mi.pt).
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CC. Em 06.11.2018, deu entrada neste Tribunal, via SITAF, de petição inicial que originou os presentes autos (cfr. fls. dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas).
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Factos não provados:
- A J., Lda. viu afetado o seu bom nome e reputação, e durante os anos que durou o processo de impugnação judicial viu as instituições bancárias agirem com desconfiança e as avaliações de risco repercutiram essa desconfiança, tendo os créditos dados à Autora repercutido essa desconfiança e a sua capacidade de negociação no mercado internacional também foi afetada.
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Motivação de Facto:
A matéria de facto julgada provada foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida, assentando a convicção deste Tribunal na análise crítica dos documentos integrantes do processo, que se dão como integralmente reproduzidos, e que se encontram discriminados nos vários pontos do probatório, os quais, dada a sua natureza e qualidade, mereceram a credibilidade do tribunal, em conjugação com o princípio da livre apreciação da prova e com as regras da experiência comum.
Tendo sido ainda fundamental, no que tange, não só aos factos provados como aos não provados, o depoimento da testemunha M., contabilista e funcionária da Autora desde 1998, que confirmou que fora prestada uma garantia bancária para suspender o processo de execução relativamente às liquidações impugnadas e que só pediram o cancelamento após ter sido proferida a sentença. Mais referiu que por via da existência da garantia bancária nas contas da empresa, a linha de crédito diminuiria pelo aumento do risco, não sabendo ao certo se o crédito foi efectivamente menor ou a uma taxa mais elevada. Por fim, asseverou que houve um esforço maior por parte do representante da Autora para evitar as perdas.
De igual modo, a testemunha Pedro Manuel de Freitas Pereira Junqueira, gestor bancário da Autora entre 1998 e 2009, depôs não saber se apesar de em teoria a existência de uma garantia bancária agradar o rating interno, na prática tal se verificou.
Tanto mais que, tendo em conta a data em que a garantia terá tido início e o tempo em que a testemunha P. se manteve como gestor da Autora, apenas conheceria a realidade em causa até 2009.
O Tribunal apreciou ainda livremente, e nos termos do consignado no artigo 466.° do CPC, ex vi o artigo 1.° do CPTA, as declarações de Parte prestadas pelo representante da Autora, J., designadamente, na parte em que referiu ter envidado esforços para evitar as perdas que pudessem advir da existência da dita garantia (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
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Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas nos recursos jurisdicionais em análise.
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I- Do imputado erro de julgamento de facto
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A primeira questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto no ponto indicado pela Recorrente.
Vejamos.
A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria de facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objectivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.
Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».
Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.

De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.

Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.

Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no recentíssimo Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:

“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” (…)”.

Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.

E, nesse domínio, dir-se-á que a Recorrente faz expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

O que serve para concluir que a Recorrente cumpre adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.

Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.
Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.
Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.

Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.

Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Cientes destes considerandos de enquadramento, atentemos, agora, no caso sub juditio.

A Recorrente veio pugnar pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo errou ao não dar como provado o seguinte tecido fáctico: “(…) A J., Lda. viu afetado o seu bom nome e reputação, e durante os anos que durou o processo de impugnação judicial viu as instituições bancárias agirem com desconfiança e as avaliações de risco repercutiram essa desconfiança, tendo os créditos dados à Autora repercutido essa desconfiança e a sua capacidade de negociação no mercado internacional também foi afetada.”

A motivação que estriba o erro de julgamento em análise prende-se com a circunstância de se tratar de tecido fáctico com relevo para a boa decisão da causa, cuja aquisição processual deriva da prestação dos depoimentos da testemunha M., do depoimentos do Dr. P. e das declarações de parte da Recorrente, através do seu representante legal, J..
Adiante-se, desde já, que esta argumentação não irá proceder.

Na verdade, escrutinado o teor destes depoimentos - cuja transcrição se mostra efetivada nas alegações de recurso da Recorrente -, não se apura qualquer lastro factual que permita concluir que (i) a lesão do bom nome e reputação desta e, bem assim, (ii) a desconfiança com que agiram as instituições financeiras com repercussão na atribuição de operações de mutuo com mais onerosidade para a Recorrente, emergiram da demora excessiva da tramitação do processo de impugnação judicial n.° 1769/09.2BEBRG.

Realmente, e em bom rigor, o que se descortina é que os prejuízos ali tratados relevam da prestação de garantia bancária no âmbito do processo de impugnação judicial n.° 1769/09.2BEBRG por parte da Autora, aqui Recorrente, a favor da Administração Tributária com vista a suspender os efeitos da liquidação dos anos de 2004 e 2005, relativas ao Imposto sobre o valor acrescentado [IVA].

Ora, este circunstancialismo é absolutamente imprestável ao efeito de demonstração dos danos tratados no tecido fáctico que ora se pretende ver assente.

De facto, se é certo que a prestação de garantia bancária é susceptível de ser refletida na prestação de contas da Autora, aqui Recorrente, sendo, por isso, acessível a clientes, fornecedores e instituições bancárias, que, em face de um eventual incremento do risco associado, poderão exigir medidas adicionais com vista à proteção dos seus interesses, nesta perspetiva entroncando a produção dos prejuízos patrimoniais indiretos invocados nos autos, também não é menos verdade que a prestação de garantia bancária em processo judicial consubstancia um ato processual voluntário do sujeito do processual que nada releva da eventual violação do direito a uma decisão jurisdicional em “prazo razoável”.

Realmente, e com reporte para o caso sub juditio, a opção de proceder à prestação de garantia bancária recaiu exclusivamente sobre a vontade da Autora, aqui Recorrente, e não do tempo que demorou a tramitar um processo judicial.

Assim, na exata medida em que os danos [patrimoniais indiretos] aqui tratados emergem exclusivamente da prestação de garantia bancária a favor da Administração Bancária, imediatamente se conclui que o facto ilícito e culposo praticado pelo Réu – que, como se sabe, se prende, não com a imposição de prestação de garantia indevida, mas antes com a violação do direito a uma decisão jurisdicional em “prazo razoável” - não pode ser considerado como causa adequada da produção dos danos sofridos pela Autora, aqui Recorrente.

Quer isto tanto significar que não existe um nexo ligante entre os efeitos derivados da atuação ilícita descrita nos autos e os prejuízos reclamados nos autos, donde emerge a falta de aptidão do lastro probatório dos referenciados depoimentos para sustentar a aquisição processual do tecido fáctico pretendido aditar.

O que serve para concluir não se antolha a existência de qualquer elemento substancial que permita concluir que existe algo de grave e ostensivamente errado ou desacertado que permita alterar a matéria de facto em análise.

Ainda que assim não se entendesse, e para não restem dúvidas, sempre a resolução pretendida integraria um exercício inócuo e estéril, por desprovido de qualquer utilidade.

De facto, a inclusão da factualidade “(…) A J., Lda. viu afetado o seu bom nome e reputação, e durante os anos que durou o processo de impugnação judicial viu as instituições bancárias agirem com desconfiança e as avaliações de risco repercutiram essa desconfiança, tendo os créditos dados à Autora repercutido essa desconfiança e a sua capacidade de negociação no mercado internacional também foi afetada (…)” é absolutamente inócua e insuficiente para alterar o quadro decisório assumido na decisão judicial recorrida, por não revelarem os danos ali descritos da atuação ilícita descrita nos autos.

E nesta impossibilidade de “apropriação” da alegação da Recorrente reside o “punctum saliens” distintivo da falta de préstimo à boa decisão de causa.

Nestes termos, por falta de utilidade para a decisão de mérito a proferir e também por não se antolhar a existência de qualquer elemento substancial que permita concluir que existe algo de grave e ostensivamente errado ou desacertado quanto ao julgamento da matéria de facto em análise, improcede o invocado erro de julgamento de direito.
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III- Do imputado erro de julgamento de direito
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A Autora, aqui Recorrente, em devido tempo, intentou a presente ação contra o Estado Português, peticionando o provimento do presente meio processual por forma a ser o Réu condenado no pagamento da quantia de €22.370,12, a título de danos patrimoniais, e de €100.000,00, a título de danos patrimoniais indiretos.

Fundamentou a sua pretensão, brevitatis causae, no direito de indemnização emergente da violação do direito a uma decisão jurisdicional em “prazo razoável” no âmbito do processo de impugnação judicial n.° 1769/09.2BEBRG, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, tendo por objeto as liquidações dos anos de 2004 e 2005, relativas ao Imposto sobre o valor acrescentado [IVA].

O T.A.F. de Braga, julgou improcedente a presente ação, no mais essencial, por entender que não se encontravam reunidos todos os pressupostos para a efetivação da responsabilidade civil extracontratual do R., mais concretamente, o pressuposto basilar da responsabilidade civil extracontratual relativo ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo praticado pelo R. e os danos sofridos pela Autora.

A ponderação de direito na qual se estribou o juízo de inverificação do nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo praticado pelo R. e os danos sofridos pela Autora foi o seguinte: “(…)
Por seu turno, a respeito do dano e do nexo de causalidade, recorda-se que o Autor veio solicitar o pagamento de danos patrimoniais directos e indirectos.
Para efeito dos danos patrimoniais, o Autor alegou que estes reportam-se aos montantes pagos a títulos de encargos suportados referentes à garantia bancária com o n.° 091/08/00034, constituída junto do Banif (actualmente Santander Totta) e prestada a favor da Direcção Geral de Impostos.
O Autor invoca ainda que sofreu danos patrimoniais indirectos, por ter sido lesado na sua imagem e bom nome comercial, e no seu crédito comercial, utilizado para a aquisição de produtos ou na prestação dos seus serviços.
Concluindo que vira afectada a sua imagem, reputação e bom nome, o que constitui um facto notório e do conhecimento geral, levando a que as instituições bancárias durante os seis anos em que decorreu a tramitação do processo judicial olhassem com desconfiança para o Autor, designadamente, aquando da concessão de crédito, não podendo oferecer os produtos a preços mais apelativos e bem assim negociar de forma mais favorável aos interesses da Autora.
Todavia, desde já, se diga que relativamente aos danos invocados - prestação de garantia bancária -, o Autor não logrou provar o nexo de causalidade entre a ilicitude e os danos, isto é, o Autor não provou que fora em virtude do atraso na justiça, que sofrera os concretos danos peticionados, e que fora em virtude do atraso na justiça que teve que prestar aquela concreta garantia.
Até porque, como o Autor bem refere prestou a garantia para suspender o processo de execução fiscal associado às liquidações impugnadas, e não com fundamento na delonga processual deste último processo.
Ou seja, o facto que determinou a constituição da garantia bancária, não fora o tempo que demorou a tramitar o processo judicial tributário, mas sim, o intuito de fazer suspender o processo de execução fiscal, e para esse efeito, sempre teria que ser prestada a garantia.
Sendo que a escolha de prestar ou não uma garantia, para a suspensão da execução fiscal, recaiu apenas sobre o Autor, podendo ter optado por pagar a alegada dívida.
Ademais, o legislador tributário previu uma indemnização por prestação de garantia indevida, consagrando no artigo 53.° da Lei Geral Tributária que: «1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida. 2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo. (...).
Quanto à forma de exercício do aludido direito de indemnização é o artigo 171.° do CPPT que determina que: «1 - A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda. 2 - A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.».
Ocorre que a presente acção de responsabilidade não se funda na prestação de garantia indevida (que sempre teria que seguir os trâmites contidos nos aludidos artigos 53.° da LGT e 171.° do CPPT), mas na delonga do processo de impugnação judicial tributário.
E que na petição inicial que dera origem ao processo n.° 1769/09.2BEBRG, o Autor já requerera o pagamento de uma indemnização pela prestação da dita garantia bancária, tendo sido decidido na sentença que: «Não tendo sido alegados os factos constitutivos do direito à indemnização reconhecido no artigo 53.°, n.ºs 1 a 2, da LGT, mormente, a data e o tipo de garantia constituída e os prejuízos sofridos, a petição mostra-se, nesta parte inepta, por falta de causa de pedir, nos termos do artigo 186.°, n.o1, alínea a), do CPC, o que determina a absolvição da instância da Fazenda Pública, no tocante ao pedido de indemnização formulado pela Impugnante».
Donde decorre, que o Autor bem sabia qual o meio processual a que tinha que lançar mão, caso pretendesse ser indemnizado pela prestação de garantia bancária indevida, e que tal indemnização não tinha (nem podia ter) por fundamento o tempo de duração do processo de impugnação.
Não se podendo, por isso, concluir pela existência de nexo de causalidade entre os alegados danos e a ilicitude invocada.
Já no que respeita ao que o Autor apelida de danos patrimoniais indirectos, relativamente ao alegado dano à sua imagem e à diminuição do crédito concedido pelas instituições bancárias, não ficara provada o dano, nem tão-pouco a existência de nexo de causalidade entre o eventual dano e a ilicitude; porquanto mesmo que existisse tal dano, o que não se concede, mesmo assim os prejuízos pela prestação de uma garantia bancária não poderiam ser imputados a qualquer delonga processual.
Por fim, face ao ónus da prova que recai sobre o Autor, será ainda de sufragar o o entendimento adoptado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.° 1081/16.0BEALM, segundo o qual: «Porque se está em causa um processo relativo a questões fiscais, excluído do âmbito de aplicação do art.° 6.° da CEDH, não há que seguir a jurisprudência do TEDH relativa ao citado art.° 6.° da CEDH, que presume a existência de danos não patrimoniais como consequência da demora excessiva de um processo judicial, sem necessidade de alegação e prova por banda do A.».
Pelo que, e por todo o quanto exposto, se impõe julgar pela não verificação dos pressupostos indispensáveis à procedência da pretensão indemnizatória, nos termos sobreditos (…)”.

Escrutinada a ponderação de direito que se vem de transcrever, logo se constata que o Tribunal o a quo fundou o juízo de inverificação do nexo de causalidade na consideração, para além da falta de prova dos invocados danos patrimoniais indiretos, da circunstância de que os danos patrimoniais diretos e indiretos descritos nos autos relevaram, não do tempo excessivo que demorou a tramitar o processo n.° 1769/09.2BEBRG, mas antes da prestação de garantia bancária a favor da Administração Tributária com vista a suspender os efeitos da liquidação dos anos de 2004 e 2005, relativas ao Imposto sobre o valor acrescentado [IVA].

A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, impetrando-lhe erro de julgamento de direito estribado, fundamentalmente, no entendimento de que não pode proceder “(…) o argumento do Tribunal de que os danos provocados pela garantia bancária nada se relacionam com danos [de natureza patrimonial indireta] provocados pela delonga do processo (…)”, mostrando-se preenchido o requisito relativo ao nexo de causalidade.

Em suma, vem confrontar o entendimento preconizado pelo Tribunal a quo de que os danos descritos nos autos não relevam do tempo que demorou a tramitar o processo de impugnação judicial n.° 1769/09.2BEBRG, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, mas antes do ato de prestação de garantia bancária efetivado no mencionado processo impugnatório.

Porém, sem qualquer amparo de razão.

Na verdade, e no domínio dos invocados danos patrimoniais diretos – traduzidos nos montantes pagos a títulos de encargos suportados referentes à garantia bancária com o n.º 091/08/00034, constituída junto do Banif [actualmente Santander Totta] e prestada a favor da Direção Geral de Impostos -, é para nós absolutamente insofismável que a necessidade de pagamento destes montantes não emergiu da demora na prolação de decisão jurisdicional.
De facto, a Autora e[ra] livre de optar pela prestação [ou não] desta garantia, não sendo condicionada de forma alguma pelo tempo excessivo que demorou a tramitar o processo nº. 1769/09.2BEBRG.
O que serve para atingir a evidência da falta de nexo ligante entre os danos patrimoniais diretos e a ilicitude da atuação do Réu.
Logo, e sopesando os pressupostos de que depende o direito a uma indemnização que, reitera-se, são de verificação cumulativa, assoma como evidente que o Réu não podem ser considerado civilmente responsável pelos danos patrimoniais sofridos pela Autora, na medida em que falta o pressuposto apontado, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à pretensão da Recorrente. no âmbito do recurso.
Idêntica conclusão é extraível no que tange aos invocados danos patrimoniais indiretos.

Neste domínio, entendemos que seria até deselegante aqui reproduzir tudo o quanto já ficou exposto no domínio do invocado erro de julgamento de facto, que, nesta altura, nos limitamos a remeter para tudo o quanto o lá ficou exposto no domínio em questão, donde grassa à evidência, para o que ora nos interessa, que não existe um nexo ligante entre os efeitos derivados da atuação ilícita descrita nos autos e os danos patrimoniais indiretos reclamados nos autos.

Derradeiramente, saliente-se que não se ignora a corrente jurisprudencial – antes se subscreve - de que a lesão da imagem, reputação e bom nome comerciais não releva apenas como dano patrimonial indireto, podendo também relevar como dano não patrimonial.

Contudo, a procedência da tese da Recorrente com base na apontada corrente jurisprudencial esbarra igualmente com a exigência de causalidade adequada imposta pela lei como condição de ressarcimento indemnizatório, que já vimos inexistir in casu.

Por tudo o quanto ficou exposto, julgamos que os termos em que a Recorrente desenvolve a sua argumentação são incapazes de fulminar a sentença recorrida com erro de julgamento de direito.

E assim improcedem todas as conclusões deste recurso.

Consequentemente, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e mantido a sentença recorrida.

Ao que se provirá no dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional, e manter a decisão judicial recorrida.
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Custas a cargo do Recorrente.
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Registe e Notifique-se.
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Porto, 08 de outubro de 2021,


Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Luís Migueis Garcia