Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00511/13.8BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/13/2020
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:COMISSÃO DE PROTEÇÃO DE VÍTIMAS DE CRIME; CADUCIDADE DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO.
Sumário:I-O regime legal aplicável ao adiantamento pelo Estado das indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, previsto Lei n.º 104/2009, de 14.09, estabelece como requisito para a concessão da indemnização às vitimas de crimes violentos, entre outros, o de a mesma não ter ainda obtido a reparação efetiva do dano ( cfr. alínea c) do n.º1 do art.º 2.º).

II-A não reparação do dano pode resultar de várias causas: (i) não ter sido obtida efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória; (ii) ser previsível que o agressor e responsáveis civis não venham a reparar o dano; (iii) não ser possível obter a reparação do dano a partir de outra fonte; (iv) não ser possível acusar ou condenar o autor dos atos de violência por não se conhecer a sua identidade ou por ser inimputável.

III- A indemnização a que têm direito as vítimas de crimes violentos, está sujeita ao prazo de caducidade de um ano a contar da prática do crime, nos termos do n. º1 do art.º 11.º da Lei 104/2009. Por força do disposto no n.º3 desse preceito, tendo sido instaurado processo crime, poderá haver prorrogação desse prazo se o Presidente da CPVC decidir nesse sentido, a qual não esse prazo, que não pode ir para além do prazo máximo de um ano a contar da decisão que pôs termo ao processo-crime.

IV- O requisito estabelecido na alínea c) do n.º1 do artigo 2.º da dita Lei não conflitua com o prazo de apresentação do requerimento à CPVC, consagrado no seu artigo 11º da mesma Lei.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Recorrente:A.
Recorrido 1:COMISSÃO DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE CRIME
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

1.1. A., com os demais sinais dos autos, doravante Autor (A.), intentou a presente ação administrativa especial contra a COMISSÃO DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE CRIME, pedindo que fosse declarada “nula a decisão que considerou extemporâneo o pedido deduzido pelo requerente e substituída por outra que permita a final a ser admitido o pedido formulado pelo requerente”.
Alegou, para tanto, em síntese, que a decisão impugnada viola a lei, ao julgar extemporânea a tramitação processual que respeitou os requisitos legais sendo que a interpretação que fez da Lei 104/09, de 14/09, é violadora da exigência constante da alínea c) do nº 1, do artigo 2º, do mesmo diploma legal.
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1.2. Citada, a entidade demandada contestou, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência da presente ação.
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1.3. Proferiu-se despacho saneador de fls. fls. 129/132 do SITAF.
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1.4. As partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, tendo-o feito.
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1.5. O TAF de Aveiro proferiu sentença, constando da mesma o seguinte segmento decisório:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º, da Constituição da República Portuguesa, julgo a presente ação totalmente improcedente.
Custas a cargo do Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Registe e notifique
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1.6. Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida, apresentando as seguintes conclusões:
«1.ª A exigência prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09 é, na prática, incompatível com os prazos previstos no artigo 11º da referida Lei, interpretados literalmente.
2.ª Para se poder afirmar “não ter sido efetiva reparação do dano em execução de sentença” conforme consta da referida alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09, é necessário levar a cabo atividade processual até à execução da sentença condenatória no plano civil.
3.ª Tal atividade processual não permite respeitar o prazo de 1 (um) ano após o ato ilícito causador da lesão.
4.ª A exigência legal de 1 (um) ano para reclamar junto da Comissão a indemnização prevista na lei deve ser interpretada no sentido de tal prazo começar a correr sobre a decisão que põe termo à atividade processual exigida pela alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09.
5.ª Esse prazo foi respeitado pelo recorrente.
6.ª Em consequência da agressão de que foi vítima o recorrente ficou sem um dos olhos.
7.ª Tal perda constitui incapacidade permanente enquadrável na alínea a) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09.
8.ª A decisão de que se recorre (e que manteve a decisão da Comissão) fez errada interpretação das referidas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que acolha a pretensão do recorrente vindo, a final, a ser ordenado à Comissão de Proteção às Vítimas de Crime que indemnize nos termos legalmente previstos o recorrente assim se fazendo Justiça».
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1.7. O apelado contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª A Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro distingue (i) os requisitos para a concessão da indemnização (ii) dos prazos para apresentação do pedido de indemnização, distinção essa que se releva essencial à compreensão das normas aplicáveis in casu.
2.ª A norma que trata dos requisitos da concessão da indemnização – o artigo 2.º da Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro - exige, na alínea c) do n.º 1, que não tenha sido obtida reparação efetiva do dano (o que pode suceder por várias ordens de razões as quais englobam casos em que não há, sequer, instauração de processo-crime e casos em que, embora haja instauração desse processo, o mesmo não garantirá qualquer reparação efetiva dos danos).
3.ª O apuramento do preenchimento de tal requisito não depende do desfecho de eventual execução que o lesado esteja a promover nas sedes próprias, estando apenas em causa averiguar se, à data em que é apresentado o pedido à CPVC, foi já obtida a reparação efetiva dos danos derivados do crime ou não.
4.ª No caso de o lesado vir a obter essa reparação efetiva dos danos, tem o Estado o direito e dever ao reembolso (artigo 16.º da referida Lei).
5.ª Uma coisa é o preenchimento dos requisitos cumulativos que a citada Lei estabelece no seu artigo 2º, nº 1, e outra o procedimento a observar para a concessão do adiantamento.
6.ª O requisito estabelecido no artigo 2º, nº 1, alínea c), da Lei n.º 104/2009 não conflitua com o prazo de apresentação do requerimento à Comissão, consagrado no seu artigo 11.º. Basta ler atentamente, por exemplo, o disposto nos artigos 10º e 13º da Lei n.º 104/2009, para se concluir pela inexistência de qualquer conflito.
7.ª O requisito constante do artigo 2.º, n.º 1, al. c) do regime em causa, dá-se por preenchido quando o Autor, à data em que apresenta o pedido indemnizatório à CPVC, ainda não obteve reparação efetiva do dano, seja a que título for (seja por via de processo executivo seja por outra via, independentemente desse processo estar a correr ou não).
8.ª É entre o momento de apresentação do requerimento à Comissão e até à sua decisão, que o requisito previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea c), da Lei 104/2009, é apreciado. Se antes de proferir a decisão, a Comissão concluir que a vítima ainda não obteve efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória, o requisito do artigo 2.º, nº 1, alínea c), verifica-se.
9.ª Quanto ao prazo dentro do qual o pedido de concessão da indemnização à CPVC (ou do seu adiantamento) tem de ser realizado é aplicável a regra geral e inultrapassável do artigo 11.º, n.º 1: o pedido de indemnização (ou de adiantamento) tem de ser feito no prazo de um ano após a ocorrência do crime violento, sob pena de caducidade.
10.ª A caducidade só não ocorre nos casos em que tenha aplicação o n.º 3 da referida norma: Se tiver sido instaurado processo criminal, os prazos referidos nos números anteriores podem ser prorrogados pelo presidente da Comissão e expiram após decorrido um ano sobre a decisão que lhe põe termo.
11.ª Assim, decorrendo um ano após a ocorrência do crime violento sem que nenhum pedido de ressarcimento tenha sido feito à CPVC, o direito à indemnização caduca, sem mais.
12.ª Só não ocorre a caducidade se o caso tiver sido comunicado à CPVC, com um pedido ao seu Presidente para que prorrogue aquele prazo, o qual, a ser deferido, sempre expirará definitivamente um ano após a decisão que ponha termo ao processo criminal.
13.ª Encontra-se plenamente comprovado através da documentação constante dos autos que o crime em causa ocorreu em 12.02.2009 e que o processo-crime subsequente conheceu o seu fim em 30.09.2010. Portanto, em 12.02.2009 iniciou-se o prazo de caducidade previsto no artigo 11.º, n.º 1 da Lei n.º 104/2009 de 14 de setembro, ocorrendo o seu termo em 12.02.2010. A partir desse momento, o direito à indemnização que pudesse resultar da referida Lei extinguiu-se.
14.ª Não houve qualquer pedido de prorrogação, mas, mesmo que a prorrogação fosse concedida a posteriori pelo Presidente da CPVC, caso em que se poderia aplicar o disposto no artigo 11.º, n.º 3 da Lei n.º 104/2009 de 14 de setembro, como a decisão que pôs termo ao processo-crime ocorreu em 30.09.2010, o Recorrente tinha até 30.09.2011 para apresentar o pedido indemnizatório à CPVC, certo é, que não o fez.
15.ª Assim, quando o Recorrente apresentou o pedido indemnizatório à CPVC - em 16.02.2013 - já há muito o seu direito à eventual indemnização tinha deixado de existir (já tinha caducado).
16.ª A caducidade (artigos 298º, n.º 2 e ss. do Código Civil) carateriza-se como o instituto através do qual os direitos que, por força da lei ou de convenção das partes, se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante o mesmo período que tem por fundamentos vectores como a certeza e a ordem pública, vistos no sentido de que é necessário que, ao fim de certo lapso de tempo, as situações jurídicas se tornem certas e inatacáveis., e que esta prevalência de considerações de ordem pública constitui a razão explicativa para que o prazo de caducidade corra sem suspensões e interrupções e, em princípio, que só o exercício do direito durante o mesmo impeça que a caducidade opere.” (Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo – Sul, de 27.11.2012, proferido no Processo n.º 05908/12, disponível em www.dgsi.pt).
17.ª Assim, não pode a CPVC conceder um direito inexistente (que irrecuperavelmente se extinguiu), tal como não pode o Recorrente pedir um direito ou benefício que sabe ter deixado caducar, por força do decurso do tempo e da sua conduta omissiva (não ter apresentado o pedido à CPVC dentro do tempo em que o podia fazer).
18.ª Quanto à apreciação do demais que o Recorrente alega (sobre a qualificação da incapacidade que o Recorrente sofreu devido ao crime), o TAF-Aveiro, e bem, sequer se pronunciou, pois tal análise ficou prejudicada pela ocorrência da caducidade. Em todo o caso, por cautela de patrocínio, mantém-se quanto a esses aspetos os termos e fundamentos enunciados na contestação.».
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1.8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
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1.9. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem são as de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito por ter considerado que o direito a pedir indemnização á CVPC foi formulado extemporaneamente.
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III.FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO.
3.1. Com interesse para a apreciação da causa, o Tribunal a quo considerou assente a seguinte matéria de facto:
«A) Em 05/02/2013, o A. enviou à ED., via CTT, um requerimento, acompanhado de três documentos e uma certidão de nascimento, que dou aqui por integralmente reproduzido e respetivos documentos.
B) Por ofício da ED., datado de 05/03/2013, o A. foi notificado, em 07/03/2013, do Parecer da Comissão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 100º e 101º, nº 1, do CPA, que dou aqui por integralmente reproduzido.
C) Em 26/03/2013, o A. enviou à ED., via CTT, a sua pronúncia, que dou aqui por integralmente reproduzida.
D) Por ofício da ED., datado de 15/04/2013, o A. foi notificado da decisão final da Comissão, que dou aqui por integralmente reproduzida.
E) Correu termos na Comarca do Baixo Vouga o processo comum (Tribunal Singular) nº 19/09.6GDAVR, cuja decisão proferida transitou em julgado em 30/09/2010, conforme certidão junta aos autos, que dou aqui por integralmente reproduzida.»
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III.B. DE DIREITO
b.1. Do erro de julgamento sobre a matéria de direito decorrente da errada interpretação das alíneas a) e c) do n.º1 do artigo 2.º da Lei 104/2009, de 14.09.
3.2.O apelante pretende que este Tribunal ad quem revogue a sentença proferida pelo TAF de Aveiro, por considerar que a mesma fez uma incorreta interpretação e aplicação do regime legal previsto nas alíneas a) e c) do artigo 2.º da Lei 104/2009, de 14.09.
A sentença recorrida julgou a ação intentada pelo apelante contra a Comissão de Proteção de Vítimas de Crime (CPVC) improcedente, por considerar que a apresentação do requerimento a solicitar a atribuição de uma indemnização por parte do mesmo, foi extemporânea.
E, antecipe-se, com total acerto.
Vejamos.
3.2.1.O regime legal de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, encontra-se plasmado na Lei n.º 104/2009, de 14.09, em cujo artigo 1.º, n. º1 se estabelece expressamente que «A presente lei aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado das indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica», determinando-se no n.º2 que «Para efeitos de aplicação da presente lei considera-se:
a) Crimes violentos, os crimes que se enquadram nas definições legais de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta previstas nas alíneas j) e l) do artigo 1.º do Código de Processo Penal;
b) Violência doméstica, o crime a que se refere o artigo 152.º do Código Penal.»

Por sua vez, no artigo 2.º da citada Lei, sob a epígrafe “Adiantamento da indemnização às vítimas de crimes violentos” estabelece-se que:
«(…) 1 - As vítimas que tenham sofrido danos graves para a respectiva saúde física ou mental directamente resultantes de actos de violência, praticados em território português (…), têm direito à concessão de um adiantamento da indemnização pelo Estado, ainda que não se tenham constituído ou não possam constituir-se assistentes no processo penal, quando se encontrem preenchidos os seguintes requisitos cumulativos:
(…)
c) Não tenha sido obtida efectiva reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido deduzido nos termos dos artigos 71.º a 84.º do Código de Processo Penal ou, se for razoavelmente de prever que o delinquente e responsáveis civis não venham a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente.
(…) 3 – O direito ao adiantamento da indemnização mantém-se mesmo que não seja conhecida a identidade do autor dos atos de violência ou, por outra razão, ele não possa ser acusado ou condenado.
Nesta norma, fixam-se os requisitos de que depende a concessão da indemnização às vitimas de crimes violentos, constando, de entre os mesmos, o de a vítima não ter ainda obtido a reparação efetiva do dano ( cfr. alínea c) do n.º1 do art.º 2.º).
Quanto á não reparação do dano, a mesma pode resultar de uma multiplicidade de razões, tais como (i) não ter sido obtida efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória; (ii) ser previsível que o agressor e responsáveis civis não venham a reparar o dano; (iii) não ser possível obter a reparação do dano a partir de outra fonte; (iv) não ser possível acusar ou condenar o autor dos atos de violência por não se conhecer a sua identidade ou por ser inimputável.
Assim, no âmbito daquela disposição legal, abarcam-se, quer as situações em que não chega a haver processo crime, quer as situações em que havendo processo crime daí não resulte a reparação efetiva dos danos sofridos pela vítima. E ter ou não ter sido instaurado processo crime, tem a maior relevância para aferir dos prazos de caducidade previstos no artigo 11.º da Lei n.º 104/2009.
3.2.2.O Apelante considera que a exigência prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09 é, na prática, incompatível com os prazos previstos no artigo 11º da referida Lei, interpretados literalmente, sustentando que para se poder afirmar “não ter sido efetiva a reparação do dano em execução de sentença” conforme consta da referida alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09, é necessário levar a cabo atividade processual até à execução da sentença condenatória no plano civil. E tal atividade processual não permite respeitar o prazo de 1 (um) ano após o ato ilícito causador da lesão.
Entende, por conseguinte, que a exigência legal de 1 (um) ano para reclamar junto da Comissão a indemnização prevista na lei deve ser interpretada no sentido de tal prazo começar a correr sobre a decisão que põe termo à atividade processual exigida pela alínea c) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09, com o que terá de considerar-se que respeitou esse prazo para a apresentação do pedido de indemnização em relação ao crime violento de que foi vítima, em que ficou sem um dos olhos, e com uma incapacidade permanente enquadrável na alínea a) do nº 1 do artigo 2º da Lei 104/2009 de 14.09.
Mas sem razão, como bem decidiu o Tribunal a quo.
3.2.3. Dispõe o artigo 11.º da Lei n.º 104/2009, sob a epígrafe “Prazos”, o seguinte:
«1 - O pedido de concessão do adiantamento da indemnização por parte do Estado deve ser apresentado à Comissão no prazo de um ano a contar da data do facto, sob pena de caducidade.
2 - O menor à data da prática do facto pode apresentar o pedido de concessão do adiantamento da indemnização por parte do Estado até um ano depois de atingida a maioridade ou ser emancipado.
3 - Se tiver sido instaurado processo criminal, os prazos referidos nos números anteriores podem ser prorrogados pelo presidente da Comissão e expiram após decorrido um ano sobre a decisão que lhe põe termo.
4 - Em qualquer caso, o presidente da Comissão pode relevar o efeito da caducidade, quando o requerente alegue razões que, justificadamente, tenham obstado à apresentação do pedido em tempo útil
.»
Resulta do teor deste preceito legal que, em todas as situações em que não se tenha instaurado processo crime, a regra aplicável para efeitos de contagem do prazo de caducidade é a prevista no n.º1 do art.º 11, donde decorre que o requerimento a solicitar à CPVC a atribuição de uma indemnização tem de ser apresentado pela vítima no prazo de um ano a contar da verificação do crime violento, sob pena de caducidade.
Tal só assim não será, caso, conforme previsto no n. º3 do artigo 11.º, tiver sido instaurado processo crime, situação em que os prazos referidos nos n.ºs 1 e 2 dessa norma podem ser prorrogados pelo presidente da Comissão, os quais, porém, expiram decorrido que esteja um ano sobre a decisão que lhe põe termo.
Em suma, poderá haver prorrogação do prazo de um ano após a ocorrência do crime (previsto no n.º 1) se: (i) tiver sido instaurado processo-crime; e se (ii) o Presidente da CPVC tiver prorrogado esse prazo, o qual, contudo, tem como baliza o prazo máximo de um ano a contar da decisão que pôs termo ao processo-crime, após o que o direito em causa se extingue.
3.2.4.O Tribunal a quo considerou, e bem, que o requisito estabelecido na alínea c) do n.º1 do artigo 2.º da dita Lei não conflitua com o prazo de apresentação do requerimento à CPVC, consagrado no seu artigo 11º, dissertando do seguinte modo:
«(…) Basta ler atentamente e nomeadamente o disposto nos artigos 10º [artigo 7º do Decreto-Lei nº 120/2010, de 27/10] e 13º [artigo 8º do Decreto-Lei nº 120/2010, de 27/10] da Lei nº 104/2009, para se concluir pela inexistência de qualquer conflito.
Por exemplo, o artigo 10º, nº 3, alínea d), refere expressamente “A indicação de ter sido concedida qualquer indemnização e qual o seu montante, caso tenha sido deduzido pedido de indemnização no processo penal ou fora dele, ou a mera indicação do processo, caso este se encontre pendente. e o artigo 13º, nº 1, alínea b), refere expressamente “Aceder às denúncias e participações relativas aos factos criminosos e a quaisquer peças de processo penal instaurado, ainda que pendente de decisão final;” (sublinhado da signatária).
É entre o momento da apresentação do requerimento à Comissão e até à sua decisão, que o requisito previsto no artigo 2º, nº 1, alínea c), da Lei 104/2009, é apreciado.
A interpretação da lei não pode cingir-se à sua letra, mas reconstituir-se a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cf. artigo 9º do Código Civil).
Se antes de proferir a decisão, a Comissão concluir que a vítima ainda não obteve a efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória, quando existe pedido deduzido nos termos dos artigos 71.º a 84.º do Código de Processo Penal ou for razoavelmente de prever que o delinquente e responsáveis civis não venham a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma reparação efetiva e suficiente, o requisito do artigo 2º, nº 1, alínea c), verifica-se».
Quanto aos prazos de caducidade previstos no artigo 11.º da citada Lei, entendeu o Tribunal a quo resultar do mesmo que «(…) tendo sido instaurado processo criminal, os prazos referidos nos seus nºs 1 e 2, mesmo que prorrogados pelo Presidente da Comissão, expiram após o decurso de um ano sobre a decisão que ponha termo ao processo criminal, podendo, em qualquer caso, o Presidente da Comissão relevar o efeito da caducidade, quando o requerente alegue razões que, justificadamente, tenham obstado à apresentação do pedido em tempo útil.
O prazo de caducidade não se suspende, nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine (artigo 328º do Código Civil).
A Lei 104/2009 não estabelece qualquer regime de suspensão ou interrupção dos prazos.»
A respeito do instituto da caducidade, estabelece o artigo 298.º, n.º2 do Código Civil (CC), que «Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade (…)», e no art.º 328.º do mesmo CC estipula-se que «(…) O prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine (…)”. Por outro lado, conforme decorre do disposto no art.333.º do CC «(…) O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido (…)» e a mesma «(…) é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo (…).»
A este respeito, conforme se sumariou no Acórdão do TCAS, de 27.11.2012, processo n.º 05908/12, «1. Pode definir-se a caducidade como o instituto através do qual os direitos que, por força da lei ou de convenção das partes, se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante o mesmo período.
O instituto da caducidade tem por fundamentos vectores como a certeza e a ordem pública, vistos no sentido de que é necessário que, ao fim de certo lapso de tempo, as situações jurídicas se tornem certas e inatacáveis.
Esta prevalência de considerações de ordem pública constitui a razão explicativa para que o prazo de caducidade corra sem suspensões e interrupções e, em princípio, que só o exercício do direito durante o mesmo impeça que a caducidade opere
Note-se, que o prazo especial de caducidade estabelecido no artigo 11.º da Lei 104/2009, é conforme à natureza especial de cariz solidário que tem a indemnização prevista nessa Lei n.º 104/2009, como bem assinala o apelado, e se afirma em aresto do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.03.2002, processo n.º 046717, segundo o qual «Este dever de indemnizar não significa o reconhecimento, pelo Estado, de uma obrigação decorrente de não ter sido mantida, «in casu», a segurança pública, mas advém unicamente de uma ideia de solidariedade social”, entendimento que se mantém válido em face da Lei 104/2009.
3.2.5. Na situação em juízo, o crime de que o apelante foi vítima ocorreu em 12.02.2009, resultando dos factos assentes que a sentença proferida no âmbito do processo crime que correu termos com processo n.º 19/09.6GDAVR, transitou em julgado no dia 30/09/2010.
Mais se apurou que o apelante apenas requereu à CPVC a atribuição de indemnização, em 05/02/2013.
Aplicando ao caso a regra quanto a prazos prevista no n.º 1 do art.º 11.º da Lei 104/2009, o prazo de caducidade de um ano aí previsto, iniciou-se em 12.02.2009 e o seu termo eclodiu em 12.02.2010.
A partir da referida data- 12.02.2010- o direito à indemnização de que o apelante pudesse beneficiar enquanto vítima de um crime violento por parte da CPVC, extinguiu-se, uma vez que o apelante não requereu nenhum pedido de prorrogação.
E ainda que tivesse apresentado pedido de prorrogação o mesmo tinha como data limite o dia 30.09.2011, ou seja, um ano a contar da data da decisão que pôs termo ao processo crime, que como provado, é de 30.09.2010 (cfr. art.º 11.º, n.º 3)
Assim sendo, perante o enunciado legal do art.º 11.º, n.º 3 da Lei 104/2009, nenhuma dúvida se coloca quanto à extemporaneidade da apresentação do pedido de indemnização.
Impõe-se ainda considerar que, conforme provado nos autos, o Presidente da CPVC e a própria Comissão não relevaram o efeito da caducidade, ao abrigo do disposto no artigo 11º, nº 4, da mesma Lei, por considerarem que o mesmo só é aplicável a casos muitos excecionais, não considerando que fosse o caso do Autor/apelante. Ademais, o apelante também não apresentou razões que justificadamente tivessem obstado à apresentação do seu pedido em tempo útil (alínea C) do probatório).
Perante o quadro factual traçado, é apodítico que o direito do apelante a deduzir pedido de indemnização junto da CPVC já estava caducado aquando da sua apresentação, pelo que, não podia aquele organismo atribuir-lhe uma indemnização à qual deixou de ter direito em virtude dos efeitos da caducidade por força do decurso do tempo. Não tem enquadramento legal a tese sustentada pelo apelante quando pretende que apenas se poderá dar como verificado o requisito previsto no citado artigo 2.º, n.º 1, alínea c) quando se tiver levado “a cabo atividade processual até à execução da sentença condenatória no plano civil” (cfr. 2.ª conclusão das alegações do apelante).

Em face do exposto, soçobram os fundamentos de recurso invocados pelo apelante, impondo-se confirmar a sentença recorrida.
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IV- DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e, confirmam a decisão recorrida.

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Custas pelo Apelante, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique.

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Porto, 13 de novembro de 2020.



Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro