Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01296/14.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/15/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PENA DE DEMISSÃO;
REGRESSO AO SERVIÇO;
NOTIFICAÇÃO;
Sumário:
1. O que importa, para avaliar o acerto do acto punitivo, por faltas injustificadas ao serviço, é a relação substantiva subjacente, a relação de emprego público, no caso concreto entre a autora e um município, as obrigações e direitos dela decorrentes para as partes e as suas vicissitudes, pois é aí que se situam os pressupostos, de facto e de direito, da decisão punitiva.

2. O poder conformador da relação jurídica de emprego público cabe à entidade empregadora, dentro dos limites da lei. Não cabe ao funcionário.

3. No caso concreto foi o município que no exercício desse poder conformador e disciplinar que fez cessar a relação jurídica de emprego público da autora, pela aplicação da pena de demissão, pelo que cabia também ao município, no exercício desse poder conformador, retomar o contrato de emprego público, notificando a autora para voltar ao serviço.

4. Objectivamente não chegou sequer a constituir-se a obrigação de a autora se apresentar ao serviço pelo que também não se podem ter por verificadas, sequer objectivamente, faltas ao serviço, menos ainda injustificadas.

5. E, ainda que objectivamente se pudessem ter por verificadas faltas o que não pode, de todo, é considerar-se como provado que a autora tinha consciência de que devia apresentar-se ao serviço no período em causa, assim como, consequentemente, da obrigação de justificar as faltas.

6. Não se verificando um pressuposto essencial do acto punitivo, o elemento subjectivo da infracção, neste caso sob a forma mais grave, de dolo, forçoso é anular o acto de demissão, por erro nos pressupostos de facto (intenção de faltar ao serviço e consciência da ilicitude da conduta) e de direito (comprometimento definitivo da relação de emprego público).*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

«AA», veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença de 17.05.2022, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Juízo Administrativo Social, que julgou totalmente improcedente a acção administrativa que intentou contra o Município ..., para anulação da deliberação da Câmara Municipal ..., datada de 11.03.2014 pela qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de demissão e para reconstituição da sua situação caso não tivesse sido praticado o acto impugnado.

Invocou para tanto, em síntese, que: a deliberação punitiva constitui uma manifesta ofensa do princípio do princípio constitucional da tutela da confiança e do princípio da proporcionalidade, bem como da boa-fé (artigo 10° do Código de Procedimento Administrativo e artigo 268°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa), por o Recorrido, na sequência da interposição de uma providência cautelar de suspensão de eficácia de um acto de demissão e da citação expressa de proibição da execução do acto, nos termos do art.º 128º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não ter informado a Recorrente de que deveria regressar ao serviço ou de que estavam asseguradas as condições para o seu regresso, sancionando-a passados três meses com nova pena de demissão por faltas injustificadas; foi violado o disposto no n°. 1 do art.º 3, e art.º 18 do Estatuto Disciplinar (à data em vigor), o disposto no art.º 128º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, bem como os princípios constitucionais da tutela da confiança, proporcionalidade e boa-fé (artigo 10° do Código de Procedimento Administrativo e artigo 268°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa), ocorrendo, assim, claro erro de julgamento de direito.

O Recorrido contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso quanto ao julgamento da matéria de facto e sustentado, em todo o caso, a improcedência do recurso.

O Ministério Público junto deste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1- O objecto da presente apelação decorre de ter improcedido o pedido da Recorrente de anulação da deliberação da Câmara Municipal ..., datada de 11.03.2014 e notificada por carta datada de 14.03.2014 que lhe aplicou a pena disciplinar de DEMISSÃO, bem como os pedidos subsequentes, tendo sido considerado que o acto impugnado não padece de vícios de violação de lei, nomeadamente dos art°s. 3, n.° 1, e 18.° do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas (adiante ED), bem como do art. 128.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e erro nos pressupostos de facto e de direito, designadamente:

G) Que a deliberação proferida pelo Recorrido no âmbito do processo disciplinar n°. ...3 (infração 10.01.2013), não padece de erro nos pressupostos de facto e de direito, embora resulte dos autos que do comportamento da Recorrente não resultou qualquer prejuízo para o serviço, e sem que haja prova dos fundamentos que sustentaram a aplicação da pena, designadamente a falta de respeito no exercício de funções e o exercício livre e consciente por parte daquela de conduta proibida por lei, afectando o prestígio da função, o que configura uma violação do art°. 3, n°1, do ED.
H) Que a deliberação proferida no âmbito do processo disciplinar n.° ...3 (faltas injustificadas), não incorre simultaneamente em erro nos pressupostos de facto e de direito, alegando que, decretada a proibição da execução do acto de demissão de um trabalhador por interposição de providência cautelar de suspensão de eficácia do acto (art.° 128 do CPTA), tem ele o dever imperioso de se apresentar ao serviço, incorrendo em faltas injustificadas se o não fizer, ainda que não tenha sido notificado para esse efeito por parte da entidade requerida/empregadora, o que configura uma errada aplicação do art°. 128 do CPTA.
I) Que a deliberação proferida no âmbito do processo disciplinar n.° ...3 (faltas injustificadas), não viola os princípios da confiança e da boa-fé pela qual a Administração deve pautar a sua conduta (artigo 10° do CPA e artigo 268°, n° 1 da CRP), o que configura uma errada aplicação desses princípios ao caso presente.
J) Por não ter dado como provado que a Recorrente apresentou justificação para a sua ausência ao serviço entre 13.05.2013 e 24.07.2013
K) Por ter considerado que o Recorrido demonstrou e provou a inviabilidade da manutenção da relação laboral, o que configura uma errada aplicação do art°. 18, n°1, do ED.

2- No âmbito do processo disciplinar n°. ...3 (infração 10/01/2013), em nenhum momento a Recorrente aceitou que tivesse desobedecido a uma ordem emitida ou desrespeitado o exercício de funções.

3- Dos factos alegados na acusação e considerados provados no referido processo, não se descortina qualquer desrespeito pelo exercício de funções, nem o exercício livre e consciente por parte daquela de conduta proibida por lei, afectando o prestígio da função, e que fundamentou a aplicação da pena disciplinar.

4- Resulta provado que do comportamento da Recorrente não resultou qualquer prejuízo para o serviço, tanto mais que o respectivo dinheiro do fundo de maneio foi efectivamente levantado pela A. e entregue à Presidente da CPCJ, embora com alguns minutos de atraso, pelo que não se está perante um ilícito disciplinar, conforme defendem Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar (vide Comentários à Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, 1° volume/Artigos 1° a 240°, Coimbra Editora, pág. 541.).

5- Assim, a sentença em crise ao decidir em sentido contrário, violou o disposto no n°. 1 do art°. 3 do ED.

6- Quanto ao processo disciplinar n.° ...3 (faltas injustificadas), a questão colocada é, nuclearmente, a de saber se, decretada a proibição da execução do acto de demissão de um trabalhador por interposição de providência cautelar de suspensão de eficácia do acto, tem ele o dever imperioso de se apresentar ao serviço, incorrendo em faltas injustificadas se o não fizer, ainda que não tenha sido notificado para esse efeito por parte da entidade requerida/empregadora.

7- E, complementarmente, na afirmativa, se tais faltas integram justa causa para o despedimento.

8- Contrariamente ao referido na sentença em crise, com a citação do duplicado do pedido de suspensão o acto de demissão não ficou suspenso, ainda que provisoriamente, pois tal só veio a suceder quando por douta sentença proferida em Outubro de 2013 foi deferido o pedido de suspensão.

9- Conforme referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, em anotação ao art. 128°, “Na comparação entre o artigo 128°. e o anterior artigo 80°. da LPTA, a primeira diferença que salta à vista prende-se com a epígrafe. Com efeito, a epígrafe do art°. 80°. falava, a este propósito, numa «suspensão provisória» (da eficácia do acto administrativo, supõe-se). Mas a verdade é que a letra do artigo não parecia ter em vista um verdadeiro fenómeno de suspensão provisória da eficácia do acto administrativo, antes se limitando – em termos que, no essencial se mantêm, apenas com nova epígrafe, neste artigo 128º. – a proibir a Administração de iniciar ou prosseguir a execução do acto durante a pendência do processo de suspensão até ao trânsito em julgado de decisão a proferir nesse processo.”

10- O regime previsto no art°. 128 do CPTA traduz-se numa imposição à entidade requerida, e apenas a essa, de uma obrigação de proibição de execução do acto de demissão, o que resulta, inegavelmente, no dever de reintegração do trabalhador demitido.

11- Por sua vez, tem o trabalhador o direito a ser readmitido depois de operada a proibição decretada no art°. 128°. do CPTA.

12- Porém, uma vez que a relação jurídica substancial se mantém instável e o direito controvertido continua por definir, na pendência da providência o trabalhador tem uma simples faculdade, de exercício não obrigatório, de se apresentar na entidade requerida.

13- A restauração provisória do vínculo jurídico de emprego público, extinto com a aplicação da pena de demissão, não decorre do simples exercício do dever de abstenção do Recorrido após citação do pedido de suspensão de eficácia do acto, mas da reintegração efectiva do trabalhador na entidade requerida, que dependerá do exercício ou não do direito de reintegração por parte do trabalhador.

14- Pelo que a sua (mesmo que total) passividade com vista à reintegração, nunca poderia consubstanciar uma situação de faltas injustificadas.

15- Pelo que a decisão em crise fez uma errada interpretação do art°. 128°. do CPTA, ao considerar que a citação do Recorrido conduziu a uma suspensão automática do acto e, nessa sequência, à restauração imediata do vínculo de emprego público.

16- Na hipótese de ser considerado que o artigo 128º do CPTA consagra um efeito suspensivo automático do acto de demissão, o que se traduz na restauração provisória do vínculo jurídico de emprego público, ainda assim, salvo o devido respeito, não pode vingar o entendimento da decisão em crise.

17- A proibição de execução do acto apenas opera a partir do momento em que a entidade requerida seja citada para deduzir oposição, pelo que não basta o conhecimento da data em que foi proferido despacho liminar de admissão da providência ou da data em que a secretaria judicial recebeu indicações a fim de se proceder à citação.

18- E da data da citação, nem a Recorrente ou o seu mandatário foram notificados quer pelo Tribunal, quer pela Câmara Municipal.

19- Pelo que a Recorrente não devia e não podia apresentar-se sem mais na Recorrida, tanto mais que ignorava a data em que aquela foi citada.

20- O entendimento sufragado pela decisão em crise, ao não escrutinar, em termos de efeitos práticos - que são os que revelam nas relações entre os sujeitos de direito -, as consequências de uma decisão judicial, acaba por legitimar uma posição que conduzirá a situações de incerteza jurídica e, consequentemente, de insegurança dos trabalhadores, pois consagra um dever de regresso ao serviço sem que aqueles tenham conhecimento da data exacta da citação da entidade requerida.

21- Acresce que, a proibição prevista no artº. 128 do CPTA é dirigida à entidade requerida/empregadora, a quem cabe tomar todas as medidas necessárias para assegurar a efectividade da proibição da prossecução da execução da demissão, tendo o dever de não iniciar ou prosseguir a execução do acto, bem como o dever de impedir que os serviços competentes ou os interessados o façam.

22- Os actos administrativos que podem ser objecto de impugnação, e, por isso, de suspensão de eficácia, compreendem os actos de conteúdo ambivalente ou de conteúdo positivo, o que justifica que a proibição da execução possa implicar, por parte da entidade requerida, a comunicação ao interessado (no caso a Recorrente) do dever de se apresentar ao serviço.

23- “Interessado” no processo administrativo é, desde logo, todo aquele que, sendo titular de um determinado direito subjectivo ou de interesse legalmente protegido, pode vir a ser lesado nos seus direitos ou interesses pelos actos que vierem a ser praticados e que, por isso, se configura como o destinatário desses actos.

24- Sendo certo que não restam dúvidas de que a Recorrente era interessada e destinatária da sanção de demissão.

25- Com a extinção do vínculo de emprego público, cessaram todos os deveres da Recorrente para com o Recorrido, inclusive o dever de assiduidade e de prestação de trabalho.

26- De modo a impedir a Recorrente (interessado) de prosseguir fora do serviço, sem prestação de trabalho ao Recorrido, este tinha o dever de notificar/comunicar a aquela, informando-a, simultaneamente, de que tinha dado ordens e instruções aos serviços para o seu regresso.

27- Tal interpretação é a única que respeita os princípios da boa-fé e da colaboração entre empregador e trabalhador público, aos quais o empregador público também se encontra vinculado por força do respeito devido aos princípios da igualdade, justiça e boa-fé consagrados no Código do Procedimento Administrativo.

28-No que concerne as “faltas sem justificação”, quanto ao disposto na al. g), n°.2 do art°. 18 do ED, há que ressaltar não só que terá que ser conjugado o comportamento com a cláusula geral inserta no n°1 do artigo, mas, também, que existe uma diferença entre faltas sem justificação e faltas injustificadas. As primeiras são as ausências em que o trabalhador não apresenta qualquer justificação para tal comportamento, as segundas serão as faltas em que o trabalhador apresenta justificação que não se enquadra nas situações previstas no n.° 2, 3 e 4 do art.° 185 do RCTFP

29- A Recorrida não comunicou à Recorrente que se encontrava em situação e faltas injustificadas, nem a notificou do despacho de 21 de Junho de 2013, que considerou injustificadas as alegadas faltas, ao contrário do que ocorreu no processo disciplinar n°. ...2, que desaguou na deliberação de 15.01.2013 que aplicou à Recorrente uma pena disciplinar de demissão.

30- A Recorrente só tomou conhecimento das alegadas faltas em Agosto de 2013, aquando da notificação da Acusação, tendo-se apresentado ao serviço, provisoriamente, no dia 9 desse mês e antes de ter sido proferida a decisão a decretar a suspensão do acto.

31- Isto é, foi a notícia dos processos disciplinares instaurados e a dúvida sobre o dever de apresentação em caso de não notificação que levou a Recorrente a apresentar-se ao serviço.

32- A Recorrente indicou expressamente, quer no requerimento apresentado aquando do regresso ao serviço (fls. 151 do processo administrativo instrutor), quer na defesa, que a ausência ao serviço foi motivada pela não notificação/comunicação do Recorrido para aquela se apresentar serviço após citação da providência cautelar, bem como da ausência de qualquer notícia de que estariam asseguradas as condições para o seu regresso ao serviço, pelo que apresentou justificação, ainda que não atendida.

33- Na hipótese de se entender que as alegadas faltas da Recorrente devem ser consideradas “sem justificação”, o que apenas por hipótese se concebe, tal não implica, por si só, que se mostrem preenchidos os pressupostos de aplicação da pena de demissão ao abrigo da alínea g), n°.2 do art°. 18 do ED, necessário se tornando que a conduta faltosa da Recorrente pela sua gravidade e pelas circunstâncias em que ocorreu mereça uma censura ética que conduza à impossibilidade de manter a relação funcional com o serviço.

34- A interpretação da deliberação punitiva não se deve esgotar na alegada ausência ao serviço da Recorrente após citação para proibição da execução do acto, sendo elementos igualmente relevantes para a fixação do sentido e alcance da deliberação as circunstâncias que rodearam a instauração do processo, nomeadamente os seus antecedentes, bem como os elementos posteriores que revelem o sentido que a própria Administração lhe atribuir.

35- Na fundamentação da sanção de demissão de 11.03.2014, o Recorrido limita-se a reproduzir integralmente as considerações genéricas e vagas proferidas na deliberação do processo disciplinar anterior (de 15.01.2013), a qual foi anulada por decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 17 de Julho de 2018, sob o processo n°.192/13.4BEPRT o que é revelador da verdadeira intenção do Recorrido.

36- No âmbito do processo de 11.03.2014 (n°.s 6/13 e 11/13), sob o ponto 6.2 - tipificação da infracção disciplinar - é tida em conta como circunstância agravante da conduta da Recorrente, a pena de demissão proferida em 15 de Janeiro de 2013, tendo a mesma sido posteriormente anulada, através da decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 17 de Julho de 2018, sob o processo n°.192/13.4BEPRT, pelo que a sua valoração deve ser suprimida.

37- No circunstancialismo alegado para fundamentar a sanção disciplinar, o Recorrido não toma em consideração a instauração da providência cautelar de suspensão de eficácia do acto de demissão e, consequentemente, da vontade expressa da Recorrente em continuar a prestar trabalho para a Câmara Municipal.

38- Não é crível que depois de instaurada providência cautelar de suspensão de eficácia do acto de demissão, sustentada na necessidade imprescindível da Recorrente continuar a prestar trabalho e a receber o respectivo salário, pedido que foi considerado procedente, que aquela recusasse o regresso pretendido, após citação do Recorrido, tendo a consciência de que estaria obrigada a apresentar-se ao serviço.

39- O Recorrido omite a ausência de notificação/comunicação da Recorrente, quer da data da citação do pedido de suspensão, quer do dever de se apresentar ao serviço, quer da transmissão de que tinham sido dado ordens aos serviços para não impedir o seu regresso.

40- Pelo que não existe fundamento que sustente a inviabilidade da manutenção do trabalho.

41- Por tudo o exposto a deliberação punitiva constitui uma manifesta ofensa do princípio do princípio constitucional da tutela da confiança e do princípio da proporcionalidade, bem como da boa-fé (artigo 10° do CPA e artigo 268°, n° 1 da CRP), por o Recorrido, na sequência da interposição de uma providência cautelar de suspensão de eficácia de um acto de demissão e da citação expressa de proibição da execução do acto, nos termos do art°. 128 do CPTA, não ter informado a Recorrente de que deveria regressar ao serviço ou de que estavam asseguradas as condições para o seu regresso, sancionando-a passados três meses com nova pena de demissão por faltas injustificadas.

42- Foi violado o disposto no n°. 1 do art°. 3, e art°. 18 do Estatuto Disciplinar (à data em vigor), o disposto no art°. 128 do CPTA, bem como os princípios constitucionais da tutela da confiança, proporcionalidade e boa-fé (artigo 10° do CPA e artigo 268°, n° 1 da CRP), ocorrendo, assim, claro erro de julgamento de direito.

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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) A Autora é trabalhadora da Câmara Municipal ..., desde Março de 2009, na carreira/categoria de assistente operacional (cfr. nota biográfica a fls. 23 do processo administrativo).

2) Em 15/01/2013, por deliberação da Câmara Municipal ..., foi aplicada à Autora, a sanção disciplinar de demissão (cfr. nota biográfica e notificação da decisão a fls. 23 e 24 do processo administrativo).

3) Em 14/02/2013, foi instaurado outro processo disciplinar à Autora, ao qual foi atribuído o n.º ...1 (cfr. acusação a fls. 36/39 da 2ª pasta do processo administrativo).

4) Em 05/04/2013, a Autora apresentou providência cautelar peticionando a suspensão de eficácia da decisão disciplinar proferida, em 15/01/2013, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, tramitado sob o n.º 887/13.7BEPRT (consulta via Sitaf do processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT).

5) Em 13/05/2013, o mandatário da Autora, constituído nos autos n.º 887/13.7BEPRT, foi notificado da admissão liminar do processo cautelar e do despacho que manda citar o Município ... com a advertência prevista no art. 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr. notificação e despacho a fls. 14 e 25 do processo administrativo); consulta via Sitaf do processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT).

6) Em 13/05/2013, o Município ... foi citado para deduzir oposição no processo cautelar identificado em 4), com expressa menção dos efeitos do art. 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr. citação a fls. 12/14 do processo administrativo).

7) Em 20/05/2013, a Autora recebeu a acusação referente ao processo disciplinar n.º ...1, da qual resulta:

“Artigo 12º// A arguida em vez de se deslocar imediatamente à Tesouraria da Câmara como era seu dever, face ao que lhe foi determinado e à urgência que a sua presença implicava, junto daquele Serviço, ou, pelo menos, em vez de pedir às Comissárias que a deixassem prioritariamente junto a Câmara, acompanhou aquelas até ... e Campo ....

Artigo 13.º// Pelo que a Tesouraria incomodou e pressionou várias vezes a Presidente da CPCJ, telefonicamente, a partir das 16h21, pois aquele Serviço encerraria às 16h e o dinheiro do fundo de maneio ainda não tinha sido levantado àquela hora, por incúria da arguida.”, com indicação do prazo de 10 dias para apresentar a sua defesa escrita.

(Cfr. acusação a fls. 36/39 da 2ª pasta do processo administrativo).

8) Em 29/05/2013, a Autora apresentou a defesa no processo disciplinar n.º ...1, da qual se extrata:

“1º Tendo a Câmara Municipal aplicado a pena de demissão à arguida, não entende nem percebe o levantamento do presente processo disciplinar e Acusação.

Sempre se dirá que,

2.º No dia e hora constante da acusação a arguida pediu boleia para ir na carrinha convicta que esta se iria dirigir ao Campo ... e não ao Campo ....

3.º Quando se apercebeu do destino da carrinha já estava no sentido contrário aos eu destino. Assim,

4.º Da sua parte não existiu nem falta de respeito pela ordem emitida, nem atentou contra a dignidade e prestígio da função.

5.º a arguida, de imediato, ao chegar ao serviço pediu desculpa à Dra. «BB» pelo sucedido.

(...)”.

(Cfr. defesa a fls. 48/49 da 2ª pasta do processo administrativo).

9) Em 21/06/2013, por decisão da Diretora do Departamento Municipal da Educação, foi instaurado novo processo disciplinar à Autora, com o n.º ...3, ao abrigo do seguinte despacho:

Considerando que desde dia 14 de maio de 2013, a trabalhadora não se apresentou ao serviço, nem apresentou qualquer justificação para a sua ausência, nos termos e para os efeitos legais, injustifico todas as faltas praticadas desde a referida data. Determino a instauração de processo disciplinar à funcionária «AA»”.

(Cfr. fls. 2 processo administrativo).

10) Em 23/07/2013, por despacho da Chefe de Divisão Municipal de Contencioso e Apoio à Contratação, o processo disciplinar n.º ...3, instaurado em 21/06/2013, foi apensado ao processo disciplinar n.º ...3, instaurado em 14/02/2013 (cfr. fls. 11 do processo administrativo).

11) Em 24/07/2013, a Entidade Demandada enviou à Autora, acusação da qual se extrata:

“Artigo 24.º// Ora, após o dia 13 de Maio de 2013 até hoje, a arguida não se apresentou ao serviço.

Artigo 25.º// A arguida não apresentou qualquer justificação para as suas ausências ao Serviço no mencionado período de tempo. (...)”, com indicação do prazo de 15 dias para apresentar a sua defesa escrita.

(Cfr. fls. 26/38 do processo administrativo).

12) Em 09/08/2013, a Autora apresentou-se ao serviço no Município ... (não controvertido).

13) Em 14/08/2013, a Autora apresentou defesa no processo disciplinar nº ...3 (cfr. fls. 39/40 do processo administrativo).

14) Em 05/09/2013, o instrutor dos processos disciplinares n.º 6/13 e n.º 11/13 elaborou Relatório Final, do qual se retira:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

(Cfr. relatório final a fls. 41/63 do processo administrativo).

15) Em 08/10/2013, o TAF do Porto, nos autos n.º 887/13.7BEPRT, julgou procedente o pedido de suspensão de eficácia do acto proferido em 15/01/2013 (consulta via Sitaf do processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT).
16) Em 11/03/2014, em reunião privada, foi proferida deliberação da Câmara Municipal ..., em votação por escrutínio secreto, aprovada com 9 votos a favor, 3 abstenções e 1 voto contra, de aplicação de sanção disciplinar de demissão à Autora, no âmbito dos processos disciplinares n.º 6/13 e n.º 11/13 (cfr. notificação decisão a fls. 71/97 do processo administrativo).

17) A deliberação mencionada no ponto anterior, foi objeto de execução (não controvertido).

18) Em 23/04/2014, a Autora apresentou no TAF do Porto, providência de cautelar de suspensão da eficácia da sanção disciplinar de demissão proferida em 11/03/2014, que correu termos sob o n.º 942/14.6BEPRT (cfr. comprovativo de entrega via Sitaf.

19) Por sentença de 05/06/2014, foi julgada procedente a providência cautelar de suspensão de eficácia do acto, nos autos n.º 942/14.6BEPRT.

20) Em 03/06/2014, a Autora intentou a presente acção (cfr. comprovativo de entrega via Sitaf).


*
III - Enquadramento jurídico.

Discorre-se na decisão recorrida, até dado ponto, no que aqui releva:

“(…)

O processo disciplinar n.º ...3, foi iniciado em 21/06/2013, em virtude da ausência da Autora ao serviço, após ter sido suspensa a execução da sanção de demissão, de 15/01/2013 (objeto de execução), no âmbito do processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT.

O n.º 1 do art. 128.º do CPTA (na redação dada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, em vigor à data), com vista a salvaguardar os interesses do requerente de uma providência cautelar, proíbe ope legis, isto é, de forma automática, a execução do ato, logo que haja conhecimento de interposição de providência cautelar de suspensão. Assim, uma vez recebido o duplicado do requerimento cautelar, entenda-se através da citação judicial no âmbito de processo cautelar, impõe-se o dever, à Entidade Requerida, de não iniciar ou prosseguir a execução do ato, bem como, o dever de impedir que os serviços competentes ou os interessados o façam.

Esta suspensão mantem-se até à decisão final do processo cautelar, caso não seja apresentada resolução fundamentada, cujo prazo, em consonância com a redação do CPTA em vigor à data, era de 15 dias, após recebido o duplicado do requerimento cautelar.

Ora, resulta da matéria assente, que a Entidade Demandada foi citada em 13/05/2013, no âmbito do processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT, para apresentar oposição.

Pelo que, em 13/05/2013, o ato suspendendo de 15/01/2013, viu a sua eficácia suspensa, e não, como expõe a Autora no ponto 14.º da sua petição inicial, apenas com a prolação da sentença nos citados autos, em outubro de 2013.

Nesta sequência, vem a Autora alegar que se impunha à Entidade Demandada obstar à execução do ato punitivo de 15/01/2013, atuação que concretiza no dever de a notificar para se apresentar ao serviço.

(…)

Note-se que o artigo 128.º do CPTA, refere que a Entidade Requerida, “Quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo, a autoridade administrativa, recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução (...)” (n.º 1), devendo “impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do acto.” (n.º 2).

De modo que, a suspensão da eficácia do ato punitivo, neste caso, se traduz no dever da Entidade Demandada, sustar a execução do ato, obstando à prática de atos materiais que impeçam a Autora de prestar o serviço/exercer funções e, por outro lado, obstar à prática de atos materiais que a impeçam de o receber, considerando a restauração provisória do vínculo jurídico de emprego público, extinto com a aplicação da pena de demissão.

Simplificando, imposto o efeito suspensivo da eficácia do ato, cumpria à Autora prestar o trabalho e à Entidade Demandada recebê-lo, não se podendo desconsiderar que, em circunstâncias normais, o conteúdo da prestação do funcionário se concretiza na efetiva prestação de serviço e a sua contraprestação, no recebimento dessa prestação e no pagamento do seu salário.

Aliás, é o que dimana do Regime e Regulamento do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, constante da Lei n.º 59/2008, de 11/09, nos artigos 87.º e seguintes, relativo aos deveres e garantias dos trabalhadores e da entidade empregadora pública, e bem assim, do Estatuto Disciplinar já mencionado (Lei n.º 58/2008, de 09/09).

Nesta senda, não é obrigação legal ou contratual da entidade empregadora instar os seus trabalhadores ao cumprimento das suas obrigações contratuais, devendo o trabalhador observar os seus deveres funcionais, de motu próprio, assim como, as obrigações contratuais e os deveres que decorrem da lei, e sejam aplicáveis à sua relação laboral.

Face às considerações aduzidas, não se impunha à Entidade Demandada a notificação da Autora para se apresentar ao serviço, nos termos alegados.

Continuando, é facto não controvertido que a Autora se apresentou ao serviço em 09/08/2013.

Porém, resulta do processo administrativo, que o mandatário da Impetrante, foi notificado em 13/05/2013 (notificação a 10/05/2013), no processo cautelar n.º 887/13.7BEPRT, do despacho liminar de admissão do processo cautelar, com indicação para se proceder à citação da Entidade Requerida para apresentar oposição, e com expressa referência ao regime de suspensão do supra mencionado art. 128.º do CPTA”.

Até este ponto acompanhamos a decisão recorrida.

Segue-se no um entanto um fundamento que não podemos acompanhar e que se mostra decisivo, impondo uma posição oposta à adoptada na decisão recorrida:

“Logo, de acordo com o regime do mandato judicial (cfr. arts. 40.º e ss do CPC; 1157.º do CC), e com as regras da experiência comum, não é se afigura credível que a Autora desconhecesse os efeitos da lei processual, neste caso do art. 128.º do CPTA, uma vez que com a interposição do processo cautelar, o objetivo seria precisamente a paralisação da produção dos efeitos do ato sancionatório em crise nos referidos autos”.

O mandato judicial cria para o mandatário judicial a obrigação, entre outras, de informar o mandante sobre o andamento processual, os actos relevantes praticados no processo e as consequências substantivas para o mandante.

No caso impunha que o Advogado da Autora a informasse de que o acto punitivo se encontrava suspenso na sua execução.

Ora, em primeiro lugar, esta é uma obrigação do Advogado e não da Autora e diz respeito apenas aos dois, os únicos sujeitos da relação jurídica criada pelo contrato de mandato judicial.

Em segundo lugar há obrigações, ensinam-nos as regras de experiência comum, que são cumpridas e outras que não são. De qualquer modo, repete-se, esta obrigação, e o respectivo incumprimento, apenas diz respeito à Autora e ao seu Mandatário, de nada valendo na relação com terceiros.

Por fim, sempre se dirá que do ponto de vista substantivo, da verificação ou não dos pressupostos da decisão punitiva, o que interessa é o facto de a Autora ter sido informada, ou não, de que o Município tinha sido citado no processo cautelar, de que essa citação implicava a suspensão automática do acto punitivo e, por fim, que a suspensão da eficácia implicava, só por si, a obrigação por parte da Autora de retornar ao serviço.

O que não está minimamente provado nos autos.

Na verdade, o que importa para avaliar o acerto do acto punitivo não é a relação processual do pedido cautelar, mas é a relação substantiva subjacente, a relação de emprego público da Autora com o Município ..., as obrigações e direitos dela decorrentes para as partes e as suas vicissitudes, pois é aí que se situam os pressupostos, de facto e de direito, da decisão punitiva.

Ora o poder conformador da relação jurídica de emprego público cabe à entidade empregadora, dentro dos limites da lei. Não cabe ao funcionário.

No caso concreto foi o Município ... que no exercício desse poder conformador e disciplinar que fez cessar a relação jurídica de emprego público da Autora, pela aplicação da pena de demissão.

Cabia também ao Município, no exercício desse poder conformador, retomar o contrato de emprego público, notificando a Autora para voltar ao serviço.

Até porque podiam ter surgido circunstâncias supervenientes que impedissem esse retorno da Autora ao seu posto de trabalho e que só o Município podia avaliar e decidir em conformidade.

Isto sendo certo que só o Município ... foi citado para se opor ao pedido cautelar com a advertência de que não podia prosseguir com a execução do acto. A Autora não foi notificada deste acto relevante, o da citação do Município ..., nem da respectiva cominação (facto provado sob o n.º6).

Nem sequer o Mandatário da Autora foi notificado da citação do Município ..., mas apenas de que tinha sido ordenada a citação, o que são realidade distintas (facto provado sob o n.º 5).

Objectivamente não chegou sequer a constituir-se a obrigação de a Autora se apresentar ao serviço pelo que também não se podem ter por verificadas, sequer objectivamente, faltas ao serviço, menos ainda injustificadas.

E, ainda que objectivamente se pudessem ter por verificadas faltas o que não pode, de todo, é considerar-se como provado que a Autora tinha consciência de que devia apresentar-se ao serviço no período em causa, assim como, consequentemente, da obrigação de justificar as faltas.

Em suma não se pode considerar como provado o elemento subjectivo da infração, afirmado no acto punitivo:

“A arguida sempre teve consciência da ilitude do seu comportamento” e de “incumprir os seus deveres de trabalhar assiduamente” o que “o que demonstra inequivocamente o propósito de romper definitivamente a relação labora, com esta Câmara”.

Não se verificando um pressuposto essencial do acto punitivo, o elemento subjectivo da infracção, neste caso sob a forma mais grave, de dolo, forçoso é anular o acto de demissão, por erro nos pressupostos de facto (intenção de faltar ao serviço e consciência da ilicitude da conduta) e de direito (comprometimento definitivo da relação de emprego público).

Ao contrário do decidido em Primeira Instância.

Procedendo o pedido de anulação do acto punitivo procedem os demais pedidos que são mera decorrência legal do primeiro.

Não existindo nos autos elementos suficientes para fixar as retribuições vencidas e vincendas até integral pagamento, importa, tal como pedido, relegar a respetiva liquidação para execução de sentença.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Julgam a acção totalmente procedente e, em consequência:

2.1. Anulam a deliberação impugnada.

2.2. Condenam o Réu condenado a:

a) Reintegrar a Autora no seu posto de trabalho com todas as consequências legais; e a

b) Proceder ao pagamento de todas as retribuições vencidas e vincendas até integral pagamento, a liquidar em execução de sentença.

c) Retirar do seu cadastro a pena aplicada.

Custas em ambas as instâncias pelo Recorrido.

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Porto, 15.12.2023


Rogério Martins
Fernanda Brandão
Isabel Costa