Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00715/19.0BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/10/2023
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:INTERESSE EM AGIR; ARTIGO 55.º, N. º2, DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
ACTO QUE ORDENA A REALIZAÇÃO DE OBRAS;
COMINAÇÃO DE DEMOLIÇÃO DE OBRAS JÁ REALIZADAS;
Sumário:1. Tem interesse em agir, face ao disposto no artigo 55.º, n.º2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a ex-esposa do visado no procedimento administrativo em que foi proferido o acto impugnado, o qual, embora no contexto da audiência prévia facultada ao ex-marido da autora, adianta já a solução da demolição das obras realizadas na casa onde esta habita, caso não seja dada “execução da reposição da legalidade urbanística”.

2. Tal acto impõe já a realização de obras, como condição para não despoletar aquilo que se entendem ser medidas coercivas com vista á reposição dessa legalidade; imposição contra a qual a Recorrente tem interesse evidente em reagir porque a obriga a efectuar obras, com as consequentes despesas, incómodos e perturbação da vida familiar.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

AA veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 26.09.2023, pelo qual foi o Réu, Município ..., absolvido da instância, por falta de interesse em agir por parte da Autora, na acção que a Autora moveu para declaração de nulidade ou a anulação do acto que ordenou a demolição de obras, proferido pelo Vereador da Câmara Municipal ..., de 26 de Julho de 2019, absolvendo, em consequência, o Réu da instância.

Invocou para tanto, em síntese, que: 3) Isto mesmo viola manifestamente o art. 3.º, n.º 3 do CPC, que é, como já foi decidido pelos Tribunais superiores administrativos, plenamente aplicável no contencioso administrativo - ex vi, se necessário fosse, do art. 1.º do CPTA -, enfatizando-se que a decisão foi efectivamente, para todas as partes, e não cremos que a parte contrária possa ou diga em rectidão o contrário, uma verdadeira surpresa (cfr. por todos, o Acórdão do TCA-S de 01-10-2009, proferido no proc. n.º 2832/07; por violação do estatuído no art. 2.º, art. 55.º, mormente a al. a) do n.º 1 e o n.º 3, e, ainda, no art. 67.º, mormente n.º 4 ali b), todos do CPTA (estes, entre o mais) e afrontando mesmo o estatuído no art. 286.º do CC e, bem assim, o estatuído no art. 162.º, mormente o seu n.º 2, do CPA.


Não foram apresentadas contra-alegações.


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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1) Trata-se de uma decisão de demolição de um espaço com 22 m2, fechado, no segundo piso de uma fracção de uma habitação colectiva na cidade ... que serve de casa de morada da família da Autora, ora Recorrente, divorciada, que não interveio no procedimento que a tal decisão conduziu por força de uma denúncia anónima que a autarquia decidiu ilicitamente investigar, revelando-se ademais, porque o direito não é avesso à ética e à moral (digamos assim para quem possa entender o direito como coisa apartada dos valores pelos quais as pessoas de bem se regem), que esta construção se repete na zona, como consta, sem margem para dúvidas, da peritagem.

2) Ora, liminarmente, independentemente do mais que se concluirá, não podia o Tribunal a quo decidir como decidiu, no sentido de que falta interesse em agir à Autora, tratando-se agravadamente de uma decisão absolutamente agressiva e que toca o cerne de direitos fundamentais (os de propriedade e de habitação), sem dar a oportunidade à Recorrente de se pronunciar, coisa que esta nunca fez no procedimento e quando, agravadamente, uma perícia (com pedido de esclarecimentos satisfeito) já tinha ocorrido.

3) Isto mesmo viola manifestamente o art. 3.º, n.º 3 do CPC, que é, como já foi decidido pelos Tribunais superiores administrativos, plenamente aplicável no contencioso administrativo - ex vi, se necessário fosse, do art. 1.º do CPTA -, enfatizando-se que a decisão foi efectivamente, para todas as partes, e não cremos que a parte contrária possa ou diga em rectidão o contrário, uma verdadeira surpresa (cfr. por todos, o Acórdão do TCA-S de 01-10-2009, proferido no proc. n.º 2832/07).

4) Acrescendo que - depois de percorrer criticamente as definições de interesse em agir no contencioso administrativo Alemão, Francês, Italiano e Espanhol de que demos específica e justificada nota no texto das presentes alegações - se deve concluir que, ao contrário do que a sentença recorrida sustenta em erro de julgamento, o interesse da Autora, esse interesse em recorrer à via judicial, é actual, é real e é concreto (formulação de Vieira de Andrade).

5) Sendo, pois, claro que alguém que, não tendo participado no procedimento que conduziu ao acto, visa evitar uma demolição dentro da sua casa, inclusivamente no plano da sustentação da nulidade desta medida, privando este acto a si e à sua Família o poder dispor e gozar de mais 22 m2 de construção [construção esta que, bem se veja, apenas foi levada a efeito com o objetivo de solucionar os problemas de insalubridade presentes na habitação – infiltrações de água e humidade] é ostensiva, manifesta e evidentemente prejudicado (na modalidade negativa de evitar um dano) com o acto que impugna, verificando-se, inequivocamente, violação do estatuído nos arts. 9.º, 55.º, 66.º, ali. a) e 68.º, n.º 1 do CPTA.

6) Aliás, no percurso comparado que fizemos não encontrámos uma só referência dogmática ou jurisprudencial que, de longe ou de perto, sustente este inovador e inédito entendimento, que qualificámos como procedimentalmente devorista, que o Tribunal recorrido sustenta, sendo que nem o sistema alemão, onde vigora a regra do esgotamento da via administrativa, tal sustenta!

7) Para recorrer à jurisdição do contencioso administrativo não é forçosamente necessário esgotar a via administrativa, sendo este um dos erros que se descobre no estranho raciocínio levado a efeito pela decisão recorrida (devolvendo a Autora ao procedimento), verificando-se, pois, erro de julgamento por violação do estatuído no art. 2.º, art. 55.º, mormente a al. a) do n.º 1 e o n.º 3, e, ainda, no art. 67.º, mormente n.º 4 ali b), todos do CPTA (estes, entre o mais) e afrontando mesmo o estatuído no art. 286.º do CC e, bem assim, o estatuído no art. 162.º, mormente o seu n.º 2, do CPA.

8) Tentando justificar a sua decisão, a Meritíssima Juiz adianta que a administração tem de notificar o infractor edilizo, alegando exemplos e outras coisas - a natureza in re ipsa destas medidas de legalidade urbanística que ninguém põe, nem no caso, em causa -, mas que nada têm tem a ver com a questão.

9) A questão, na verdade, não é essa, nem se confunde isso mesmo quer com a legitimidade processual, quer com os interesses materiais que subjazem ao sofrimento da medida administrativa!

10) A questão é se um terceiro que sofre (é lesado!) com a medida, que até a desconhecia sem culpa sua, pode ou não a impugnar, mormente assacando-lhe vícios que conduzem à sua nulidade!

11) Ora, e como STA já o disse, temos, isso sim, que: “I - Interessado no procedimento administrativo é todo aquele que, sendo titular de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido, o pode desencadear podendo, por isso, vir a ser lesado pelos actos que nele vierem a ser praticados. II – Goza, também, dessa qualidade aquele que, não tendo sido interveniente directo nesse procedimento, pode vir a ser afectado, directa e imediatamente, pelas decisões nele proferidas. III – Deste modo, e ainda que a Autora mulher não tenha participado no procedimento, certo é que ela tem interesse directo e imediato no seu desfecho se o mesmo termina com a prolação de uma ordem de demolição de um bem comum do casal. E que, por isso, a mesma tem de ser notificada desse acto. IV – E isto porque a al. b) do art.º 66.º do CPA estende a qualidade de interessado para efeitos de notificação a todos aqueles a quem o acto cause prejuízos directos e porque a ordem de demolição prejudicaria a Autora mulher. V - É, assim, seguro que a circunstância de ter sido o Autor marido a desencadear o procedimento da legalização do anexo e dele ter sido o único interveniente nesse processo não é, por si só, motivo de exclusão da qualidade de interessada da Autora mulher nesse procedimento e, portanto, motivo para a mesma não ser notificada da sua decisão final se esta tiver sido uma ordem de demolição de um bem comum do casal. VI - O prazo para a impugnação dos actos que não foram notificados aos interessados e que não tenham de ser obrigatoriamente publicados começa a correr a partir do conhecimento do acto ou da sua execução (art. 59.º/3/c) do CPTA) cabendo ao Réu o ónus da prova dos factos integradores da extemporaneidade da impugnação contenciosa.” - cfr. o Ac. datado de 01-06-2016 e tirado do proc. n.º 1636/15.

12) A sentença não pode, nem deve, manter-se na ordem jurídica.

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II –Matéria de facto.

Para conhecimento da excepção em apreço, da falta de interesse em agir, a decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) A 7 de Novembro de 2018 é dirigido ofício n.º ...03 ao Administrador do Condomínio do prédio da Rua ..., onde consta:
(Imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).
(Facto Provado por documento, a fls… do PA).

2) A 6 de Novembro de 2018 é dirigido a BB, ofício ...79, onde consta em especial:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(Facto Provado por documento, a fls… do PA).

3) A 31 de Janeiro de 2019 BB responde ao réu, alegando:
(Imagem da decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).
(Facto Provado por documento, a fls… do PA).

4) AA é proprietária da fração sita na Rua ..., ..., 6.º FTE, em ..., pelo menos desde 11 de novembro de 2019, data da consulta à caderneta predial urbana.

(Facto Provado por documento, a fls. 39 dos autos – paginação eletrónica).

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III - Enquadramento jurídico.

III.I. A questão prévia da inimpugnabilidade do acto.

Defende a Recorrente que a excepção da inimpugnabilidade do acto foi suscitada na contestação, mas não no presente recurso pelo que não pode aqui ser apreciada, devendo ser desconsiderada nessa parte a pronuncia do Ministério Público.

Sucede que esta pronúncia não vai no sentido de pedir qualquer pronúncia em sede de recurso. Limita-se a repetir a posição do réu na contestação.

Quanto ao recurso jurisdicional é expressamente dito no parecer que “deverá tal excepção suscitada pelo R., ser conhecida em 1° instância”.

Pelo que nada se impõe dizer nem sobre o parecer nem sobre a questão da inimpugnabilidade do acto, nesta sede de recurso.

III.II. A falta de interesse em agir por parte da Autora.

III.II. I. A falta de contraditório no processo quanto a esta questão.

Refere a Recorrente que não tendo a questão sido suscitada no processo não podia o Tribunal decidir como decidiu, no sentido de que falta interesse em agir à Autora, sem dar a oportunidade à Recorrente de se pronunciar, coisa que esta nunca fez no procedimento e quando, agravadamente, uma perícia (com pedido de esclarecimentos satisfeito) já tinha ocorrido«; isto mesmo viola manifestamente o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

E tem razão.

Diz-se no despacho de sustentação, de essencial quanto a esta invocada nulidade processual:

“E nessa medida quando o Tribunal fala em falta de interesse em agir, é relevante que se leia a fundamentação, está indissociavelmente ligada à exceção suscitada pelo réu de inimpugnabilidade do ato, já que ela nunca o poderia impugnar, já que não foi sua destinatária.

Ora, o Tribunal não está vinculado à configuração do direito alegado pelas partes, pelo que a sua decisão decorre da exceção suscitada de inimpugnabilidade do ato.”

O que aqui se sustenta não contraria a invocação de preterição do contraditório.

Apenas se reafirma o acerto da decisão.

E, na verdade, tratou-se de uma decisão surpresa, com a qual a Autora não podia contar porque foi suscitada pela primeira vez na própria decisão recorrida.

Sucede que a declaração de nulidade processual e a consequente prática, na primeira instância, dos actos processuais impostos pelo exercício do direito ao contraditório iria revelar-se no caso, como prática de actos inúteis e, como tal, proibidos por lei – artigo do Código de Processo Civil.

Isto porque em sede de recurso a Autora já teve a oportunidade de exercer o contraditório quanto a esta questão.

Sendo certo que, adianta-se, a este Tribunal se impõe dar-lhe razão quanto a esta questão suscitada em sede de recurso, a da falta de interesse em agir.


III.II. II. O acerto da decisão.

A Autora tem manifestamente legitimidade activa, face ao disposto no artigo 55.º, n.º2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e essa questão não é sequer suscitada como tal, na decisão recorrida.

E tem também interesse em agir, ao contrário do decidido.

O acto impugnado, embora no contexto da audiência prévia facultada ao ex-marido da Recorrente, adianta já a solução da demolição caso não seja dada “execução da reposição da legalidade urbanística”:

Ou seja, impõe já a realização de obras, como condição para não despoletar aquilo que se entendem ser medidas coercivas com vista à reposição dessa legalidade.

Imposição contra a qual a Recorrente tem interesse evidente em reagir porque a obriga a efectuar obras, com as consequentes despesas, incómodos e perturbação da vida familiar.

Termos em que se impõe revogar a decisão recorrida.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

A) Revogam a decisão recorrida.

B) Ordenam a baixa dos autos para que se conheça do mérito da impugnação se nada mais a tal obstar.

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Porto, 10.03.2023


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre