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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00149/11.4BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/28/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:MATERIALIDADE CONTROVERTIDA – ABERTURA DE UM PERÍODO DE PRODUÇÃO DE PROVA – “DIREITO À PROVA” DAS PARTES
Sumário:I- Detetando-se a existência de matéria de matéria de facto contravertida essencial à boa decisão da causa, não pode o Tribunal a quo avançar para o julgamento da causa sem proceder à abertura de um período de produção de prova, sob pena de violação do “direito à prova” das partes.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:J., E OUTRO
Recorrido 1:FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS E OUTRO
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso do FGD, julgar prejudicado o recurso de J.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS e J., devidamente identificados nos autos, vêm interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que, em 06.06.2021, julgou a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência, (i) julgou “(…) improcedente o pedido do autor J. deduzido contra o Fundo de Garantia de Depósitos e, em consequência, absolver este do pedido contra o mesmo deduzido por aquele (…)”; e (ii) procedente “(…) o pedido do autor A. deduzido contra o Fundo de Garantia de Depósitos e, em consequência, condenar este a pagar-lhe a quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora sobre tal montante à taxa legal, contados a partir do oitavo dia posterior a 16 de abril de 2010 quanto a uma parcela de € 10.000,00, e a partir do vigésimo primeiro dia posterior a 16 de abril de 2010 quanto ao remanescente, até efetivo e integral pagamento (…)”.
Alegando, o Recorrente Fundo de Garantia de Depósitos formulou as seguintes conclusões: “(…)
I. O tribunal a quo afirmou na sentença que o facto de o Autor J. ter contribuído para as dificuldades financeiras do BPP não foi alegado, quando, na verdade, tal factualidade foi alegada nos artigos 45.° a 54.° da Contestação do FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS, razão pela qual a sentença recorrida padece de erro de julgamento.
II. O Autor J., na Réplica, pronunciou-se sobre esse facto, negando-o e impugnando-o, o que fez com que tal facto se tornasse controvertido e carecido de prova (cfr. artigo 410.° do CPC ex vi artigo 1.° do CPTA).
III. O FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS indicou que pretendia produzir prova testemunhal sobre tal facto.
IV. Trata -se de um facto com uma importância central para aplicação do direito, que o tribunal que tinha que ter dado como «provado» ou «não provado».
V. O tribunal não conheceu de questão que tinha que conhecer, razão pela qual a sua decisão é nula - artigo 615.°, n.° 1, alínea d) do CPC (ex vi artigo 1.° do CPTA).
VI. Mais: ao decidir desta forma, o Tribunal violou as normas relativas à prova dos factos controvertidos constantes dos artigos 410.°, 411.° e 572.° do CPC (ex vi artigo 1.° do CPTA) pelo que a sentença padece de erro de julgamento, devendo ser revogada.
VII. É decisivo o facto de o Autor J. ter contribuído para as dificuldades financeiras do BPP, pois esse facto implica que a decisão recorrida tenha de ser alterada.
VIII. J. enquadra-se simultaneamente nas alíneas e) e f) do n.° 1 do artigo 165.° do RGICSF, pois o mesmo foi membro do conselho de administração da sociedade P., S.A., entre 30.01.2009 e 29.01.2010, sociedade que era titular das 125.000.000 ações representativas de 100% do capital social do BPP, S.A. e contribuiu para as dificuldades financeiras do BPP, razão pela qual o seu depósito está efetivamente excluído da garantia do FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS por estas duas alíneas.
IX. Sucede que no caso dos autos tem toda a relevância fazer um rigoroso enquadramento jurídico da situação de J., pois isso influenciará a decisão a ser proferida quanto ao seu pai (o co-Autor A.).
X. Após a prova de que o Autor J. contribuiu para as dificuldades do BPP, a sua situação terá também de ser integrada na transcrita na alínea f) do RGICSF (e não apenas na alínea e) do mesmo artigo — como fez a decisão a quo), na redação em vigor à data, impondo-se, assim, para além da alteração dos factos provados, também uma alteração na fundamentação jurídica da decisão 1.a instância quanto a J..
XI. Aí chegados, e enquadrada desse modo a situação do Autor J., ter-se-á, inevitavelmente, de alterar o enquadramento jurídico do seu pai, o Autor A., aplicando-lhe a causa de exclusão prevista no artigo 165.°, n.° 1, alínea g), que determinava que “Excluem-se da garantia de reembolso: (...) g) Os depósitos de que sejam titulares cônjuge, parentes ou afins em 1.0 grau ou terceiros que atuem por conta de depositantes referidos na alínea anterior” (destaque e sublinhado nosso).
XII. Ao aplicar-se tal causa de exclusão ao Autor A., a ação terá de ser declarada improcedente também quanto a este Autor, por se concluir que o mesmo não tem direito ao reembolso que peticiona nestes autos.
XIII. Não tendo sido produzida prova sobre o facto de J. ter contribuído para as dificuldades do BPP deve a sentença recorrida ser revogada, ordenando-se que os autos baixem à 1ª instância para produção de prova sobre todos os factos alegados e controvertidos, com a consequente ampliação da matéria de facto - artigo 662.°, n.° 2, alínea c) do CPC (ex vi artigo 1.° do CPTA).(…)”.
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Já quanto ao seu recurso, o Recorrente J. - doravante J. - rematou nos seguintes termos: “(…)
I. Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica da Meritíssima Juíza a quo, afigura-se ao Recorrente que a douta sentença de fls., objeto do presente recurso, não poderá manter-se.
II. A douta sentença violou o disposto nos arts. 165.°, 166.° e 167.° do RGICSF.
III. O ora Recorrente intentou a presente ação administrativa contra o FGD e a Massa Insolvente do Banco Privado Português, S.A. peticionando o reconhecimento do seu direito enquanto beneficiário elegível do reembolso de depósitos constituídos nas instituições de crédito que participem naquele FGD;
IV. Peticionando, concretamente, o reconhecimento do seu direito a aceder à garantia constituída pelo FGD relativamente ao saldo dos depósitos ou de outras aplicações que devam ser classificadas como tal, de que era titular junto do Banco Privado Português, S.A.
V. Resultou provado que o Recorrente foi membro do Conselho de Administração da P., S.A. entre 31.01.2009 e 29.01.2010, sociedade essa que detinha 100% do capital social do BPP, S.A.; e
VI. O art°. 165.°, n.° 1, alínea e), do RGICSF exclui da garantia de reembolso os membros dos órgãos de administração ou fiscalização da instituição de crédito, dispondo aquele normativo legal que estão excluídos da garantia de reembolso “os depósitos de que sejam titulares os membros dos órgãos de administração ou fiscalização da instituição de crédito, acionistas que nela detenham participação, direta ou indireta, não inferior a 2% do respectivo capital, revisores oficiais de contas ao serviço da instituição, auditores externos que lhe prestem serviços de auditoria ou pessoas com estatuto semelhante noutras empresas que se encontrem em relação de domínio ou de grupo.”
VII. Ora, conforme resultou provado (alínea D dos factos assentes), o Banco de Portugal dispensou o BPP do cumprimento pontual das suas obrigações ao abrigo da alínea c) do n.° 1 do art°. 145.° do RGICSF, a 1 de dezembro de 2008, 2 meses antes da nomeação do Recorrente para o cargo na “P., S.A.
VIII. O momento de referência para a efetivação do reembolso, o estabelecimento dos direitos sobre o FGD e os limites da garantia é a data em que os depósitos se tenham tornado indisponíveis, circunstância que, como referido, ocorreu a 1 de dezembro de 2008.
IX. Se o momento de referência para se poder exigir o reembolso dos depósitos corresponde ao momento em que os depósitos se tornaram indisponíveis, então, também terá que ser esse o momento de referência para aferir das eventuais exclusões.
X. A este propósito referiu a Meritíssima Juíza a quo, na sentença recorrida, que a lei não dá relevância à circunstância do momento em que depósitos se tenham tornado indisponíveis;
XI. Mas, salvo o devido respeito por opinião diversa, sem razão.
XII. Não determinar um período temporal ou um momento de referência para a exclusão prevista na alínea e) do art. 165.° do RGICSF é, não só incompreensível, como absolutamente desprovido de sentido.
XIII. Ponderada a lógica subjacente à criação deste regime e ao espírito que presidiu à identificação de todas as situações que configuram exclusões, parece-nos também evidente que esse momento há de ser o momento em que os depósitos se tornaram indisponíveis.
XIV. A génese deste preceito - das exclusões previstas no art. 165.° do RGICSF - é a de não beneficiar quem direta ou indiretamente contribuiu ou permitiu a situação em que a instituição de crédito se encontra e que determina o acionamento da garantia concedida pelo FGD.
XV. Conforme mencionámos, os depósitos tornaram-se indisponíveis logo em 01/12/2008 com a deliberação do Banco de Portugal a dispensar o BPP das suas obrigações e não posteriormente com a revogação da sua licença; e
XVI. Em 1 de dezembro de 2008, o Recorrente não desempenhava, nem tinha desempenhado anteriormente, qualquer função ou cargo de administração da sociedade “P., S.A.
XVII. Assim sendo, na data em que os depósitos se tornaram indisponíveis - 01 de dezembro de 2008 - o Recorrente não desempenhava qualquer cargo nem era membro de nenhum órgão de administração da sociedade referida, pelo que, naquela data, não existia qualquer motivo de exclusão ou impedimento para o reembolso.
XVIII. Acresce que foi precisamente a intervenção do Banco de Portugal que determinou a perda pela “P., S.A.” de qualquer domínio ou sequer influência sobre o BPP;
XIX. Pelo que nunca aqueles que depois foram administradores da “P., S.A.” poderiam ter tido qualquer participação, mesmo que indireta, sobre a gestão ou os destinos do BPP.
XX. Penalizar aqueles que, após a decisão do Banco de Portugal de suspender o BPP das suas obrigações, foram eleitos para os órgãos sociais, quer do BPP quer da Privado Holding, é não só desprovido de sentido como injusto.
XXI. Em suma, a exclusão prevista na alínea e) do art. 165.° do RGICSF, tem que se reportar a um determinado momento; e
XXII. Sendo o momento de referência no regime do FGD aquele em que os depósitos se tornaram indisponíveis, terá que se considerar esse o momento para efeito da verificação das exclusões aplicáveis.
XXIII. Mas ainda que se considere que os depósitos só se tornaram indisponíveis na data da revogação da autorização do BPP - o que não se consente e apenas se alega por mera hipótese académica – a verdade é que, ainda assim, a ação deveria ter sido julgada totalmente procedente.
XXIV. É que, o Banco de Portugal por decisão de 15.04.2010 revogou a autorização de exercício da atividade bancária, decisão essa que foi tornada pública no dia seguinte, ou seja em 16.04.2010.
XXV. Conforme resultou provado, o ora Recorrente foi nomeado membro do Conselho de Administração da P., S.A. em 30.01.2009 tendo apresentado renúncia em 29.01.2010.
XXVI. Assim, caso se considere que os depósitos se tornaram indisponíveis com a revogação da autorização da licença do BPP, então forçosamente terá que se considerar que, nessa data, o Recorrente não desempenhava nenhum cargo no órgão de administração da Privado Holding, uma vez que tinha renunciado a esse cargo três meses antes.
XXVII. A ser assim, apenas poderia ser excluído ao abrigo da alínea f) do art. 165.° do RGICSF, o que também não se verifica uma vez que não foram alegados - porque não se verificam - quaisquer factos que permitissem aferir do cumprimento de um dos seus pressupostos: o de a sua atuação ter estado na origem das dificuldades financeiras da instituição de crédito ou ter contribuído para o agravamento de tal situação (…)”.
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Notificados da interposição do recurso jurisdicional por parte do Recorrente Fundo de Garantia de Depósitos, os Recorridos A. e J., produziu contra-alegações, defendendo a inviabilização do recurso.
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O Recorrido Fundo de Garantia de Depósitos também contra-alegou o recurso apresentado pelo Recorrente J., tendo advogado a improcedência do mesmo.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão dos dois recursos interpostos, fixando os seus efeitos e o modo de subida, tendo ainda sustentado a inexistência de qualquer nulidade da decisão judicial recorrida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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III- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir são as seguintes:
(i) Recurso jurisdicional interposto pelo Fundo de Garantia de Depósitos: (i.1) Nulidade de sentença, por omissão de pronúncia; e (i.2) Erro de julgamento, por violação das “(…) normas relativas à prova dos factos controvertidos constantes dos artigos 410.º, 411.º e 572.º do CPC (ex vi artigo 1.º do CPTA) (…)”;
(ii) Recurso interposto por J.: (ii.2) Erro de julgamento de direito, por violação do “(…) disposto nos arts. 165.º, 166.º e 167.º do RGICSF (…)”.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
IV.1 – DE FACTO
O quadro fáctico [positivo, negativo e respetiva motivação] apurado na decisão recorrida foi o seguinte: “(…)
A. O Banco Privado Português, S.A., era uma instituição de crédito regularmente constituída e devidamente autorizada a receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicar por conta própria mediante a concessão de crédito, nos termos e ao abrigo do disposto naquele Regime, com o capital social de € 125.000.000,00, representado por 125.000.000,00 ações, no valor nominal de € 1,00 cada uma - cfr. doc. 1 junto com a p.i.
B. A sociedade P., S.A., é titular das 125.000.000 ações representativas de 100% do capital social daquele Banco - acordo.
C. O autor foi nomeado membro do conselho de administração da sociedade P., S.A., em 30.01.2009 e apresentou a respectiva renúncia em 29.01.2010 - acordo.
D. Em reunião extraordinária de 01.12.2008, o conselho de administração do Banco de Portugal tomou as duas seguintes deliberações - cfr. doc. 3 junto com a p.i.:
“Designar, nos termos das alíneas a) e b) do n° 1 do artigo 143° do RGICSF, para o Banco Privado Português, os seguintes administradores provisórios:
• Professor Doutor F., que exercerá as funções de Presidente
• Dr. J.
• Dr. C.
• Dra. S.
Nos termos da alínea b) do n° 1 do artigo 145° do RGICSF, dispensar o Banco Privado Português, durante um período de três meses, do cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas, prioritariamente no âmbito da atividade de gestão de patrimónios, na medida em que tal se mostre necessário à reestruturação e saneamento da instituição.”
E. Em 07.04.2009, o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou, “Ao abrigo do disposto na alínea b) do n.° 1 e no n.° 3 do artigo 145.° do RGICSF, renovar até ao dia 1 de junho de 2009 a dispensa de cumprimento pontual de obrigações anteriormente contraídas pelo BPP, devendo a dispensa ser utilizada na medida necessária à reestruturação e saneamento do BPP, sem prejuízo das despesas indispensáveis à gestão corrente do BPP. ” - cfr. fls. 1189 e ss. do SITAF.
F. Em 31.03.2010, o autor J. era titular de um depósito no montante de € 841.067,27 - monetário-liquidez” - acordo (cfr. ata de audiência de fls. 1158 e ss. do SITAF).
G. Em 31.03.2010, o autor A. era titular de 50% de um depósito no montante de € 278.425,02 - monetário-liquidez” - acordo (cfr. ata de audiência de fls. 1158 e ss. do SITAF).
H. O autor J. é filho do autor A. - cfr. fls. 457 do SITAF.
I. O Banco de Portugal, por decisão de 15.04.2010, revogou a autorização de exercício de atividade bancária pelo BPP - acordo e doc. 1 junto com a contestação da ré Massa Insolvente.
J. A decisão que antecede foi tornada pública em 16.04.2010 - cfr. https://www.bportugal.pt/comunicado/revogacao-da-autorizacao-do-bpp-sa e doc. 1 junto com a contestação da ré Massa Insolvente.
K. No âmbito do processo de insolvência do Banco Privado Português, S.A., o autor A. apresentou em conjunto com M., reclamação de créditos pelo valor de € 335.822,00, crédito esse que foi reconhecido na sua totalidade pela Comissão Liquidatária do BPP, na proporção de metade para cada um dos reclamantes, reconhecendo-se ao aqui autor A. o crédito de € 169.493,50, tendo tal crédito sido graduado como comum quanto à quantia de € 168.205,42, e como subordinado quanto à a quantia de € 1.288,08 - cfr. doc. 4 B junto com a p.i. aperfeiçoada apresentada pelo autor A., a fls. 465 e ss. do SITAF.
L. No período compreendido entre 2004 e 2010, eram os seguintes os acionistas da P., S.A. - cfr. fls. 1359 e ss. do SITAF:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

M. O Fundo de Garantia de Depósitos remeteu, a 27.04.2010, uma carta ao autor informando-o de que estaria abrangido pela causa de exclusão da garantia do Fundo de Garantia prevista na alínea e) do n.° 1 do artigo 165.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, pelo que não teria direito a ser reembolsado relativamente ao depósito de que era titular junto do BPP - cfr. doc. 6 junto com a p.i.
N. Em 30.04.2010, o autor solicitou a indicação da causa concreta de exclusão do mesmo da garantia de reembolso - cfr. doc. 7 junto com a p.i.
O. Em 19.05.2010, o Fundo respondeu ao autor no sentido de remeter para a referida norma legal - cfr. doc. 8 junto com a p.i.
P. Após, insistência do autor por carta de 24.05.2010, em 25.06.2010, a Massa Insolvente do BPP afirmou que havia sido a mesma a dar indicação de exclusão do autor pela circunstância de, durante o período compreendido entre a data de tomada de providências de recuperação e saneamento relativamente ao BPP e a data de acionamento do Fundo, exercer a função de membro do órgão de administração da sociedade P., S.A., existindo uma relação de domínio total entre a referida sociedade e o BPP - cfr. doc. 9 e 10 juntos com a p.i.
Q. Por carta de 12.07.2010, o autor interpelou novamente o Fundo no sentido de reconhecer a validade da garantia sobre os depósitos de que era titular no BPP e de lhe pagar os valores respetivos em 15 dias, não tendo o Fundo dado qualquer resposta ao autor - cfr. doc. 11 junto com a p.i.
R. O autor A. foi excluído da garantia do Fundo por ser pai do autor J. e nos termos da alínea g) do n.° 1 do artigo 165.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras - confissão do réu Fundo de Garantia de Depósitos (arts. 48 e ss. da sua contestação apresentada no processo apensado).

Não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos, com relevância para a decisão da causa.

Motivação:
A decisão da matéria de facto assentou na análise nos documentos constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada concreto ponto do probatório, no acordo das partes e na confissão do réu Fundo quanto facto R.. Quanto à data da publicação da decisão do Banco de Portugal de revogar a autorização do BPP, S.A., trata-se de facto notório, constante do sítio da internet daquela instituição (…)”.
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IV.2 - DO DIREITO
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Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas nos recursos jurisdicionais em análise.
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I- Recurso jurisdicional interposto pelo Fundo de Garantia de Depósitos
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I.1- Da imputada nulidade de sentença
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Vem o Recorrente arguir a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº.1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Invoca, para tanto, que o Tribunal a quo não considerou no probatório determinada factualidade por si alegada nos artigos 45º a 54º da contestação e impugnada pelo Autor na Réplica, nem sequer lhe deu a oportunidade de produzir a prova que requereu sobre essa factualidade na contestação, o que permite concluir, desde logo, que o Tribunal não tomou conhecimento de questão que deveria conhecer.
Quid iuris?
Nos termos do n.º 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – alínea d).
A nulidade de sentença por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixar de apreciar questão que devia conhecer.
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia, por sua vez, constitui o reverso da emergente da omissão de pronúncia.
Verifica-se esta, quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
Ao que sejam “questões”, para estes efeitos, respondem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto no Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 2.ª edição, pág. 704: são “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, não significando “considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito [artigo 511-1] as partes tenham deduzido…”[página 680].
No mesmo sentido se podendo ver, A. Varela, RLJ, 122,112 e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 195.
E tem sido particularmente reiterada a jurisprudência que o juiz deve conhecer de todas as questões, não carecendo de conhecer de todas as razões ou de todos os argumentos [cfr-se., por todos, os Ac. de 25.2.1997, no BMJ, 464 – 464 e de 16.1.1996, na CJ STJ, 1996, 1.º, 44 e, em www.dgsi.pt, os de 13.9.2007, processo n.º 07B2113 e de 28.10.2008, processo n.º 08A3005].
Munidos destes considerandos de enquadramento doutrinal e jurisprudencial, e regressando ao caso concreto, adiante-se, desde já, que, atendendo aos fundamentos concretamente invocados, não assiste razão ao Recorrente na arguida nulidade de sentença.
Na verdade, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 95º, nº. 1 do C.P.T.A.
Efetivamente, segundo o ensinamento de Alberto dos Reis [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146.]: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão (…)”.
Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento.
Com efeito, e ainda de acordo com o supra citado Autor “(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.» [idem].
Nesta esteira, é de manifesta evidência que a circunstância do Tribunal a quo não ter considerado no probatório determinada factualidade por si alegada nos artigos 45º a 54º da contestação e impugnada pelo Autor na Réplica é absolutamente imprestável para apontar-se à decisão judicial recorrida uma qualquer nulidade de sentença, por violação do disposto no artigo 615º, nº.1, alínea d) do CPC.
Questão diversa é a de saber se a decisão judicial recorrida incorreu em desrespeito do “direito à prova” do Recorrente.
Mas, como emerge grandemente do supra exposto, tal interrogação não se insere no vício de nulidade de sentença, por omissão e/ou excesso de pronúncia, antes se incluindo no âmbito de eventual erro de julgamento.
Como quer que seja, esta interrogação é integrável no âmbito da segunda questão decidenda elencada no presente recurso, pelo que nela há de ser objeto de devida apreciação.
Não se reconhece, portanto, a existência de nulidade de sentença, por omissão de pronúncia.
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I.2- Do imputado erro de julgamento, por violação das “(…) normas relativas à prova dos factos controvertidos constantes dos artigos 410.º, 411.º e 572.º do CPC (ex vi artigo 1.º do CPTA) (…)”;
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Esta questão está veiculada nos pontos XI) a XIII) das conclusões de recurso supra transcrita, substanciando-se, no mais essencial, na alegação de que o Tribunal violou o “direito à prova” do Recorrente, pelo que a sentença padece de erro de julgamento, devendo ser revogada.
Realmente, o Recorrente sustenta que, tendo alegado na sua contestação que “J. contribuiu para as dificuldades do BPP”, e tendo tal materialidade sido impugnada pelo Autor na Réplica, a mesma tornou-se controvertida e, como tal, necessitada de prova, pelo que, tratando-se de tecido fáctico com uma importância central para a aplicação do direito, deveria o Tribunal a quo ter determinado a abertura de um período de produção de prova, o que não veio a suceder.
Em função do que sustenta a baixa à 1.ª instância para produção de prova sobre todos os factos alegados e controvertidos, com a consequente ampliação da matéria de facto – artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do CPC [ex vi artigo 1.º do CPTA].
Vejamos, sublinhando, desde já, que, nos casos de comprovada ausência de factualidade controvertida, maxime, por se encontrar documentalmente fixada, a situação de dispensa de um período de produção de prova não consubstancia nenhuma violação de qualquer ato ou formalidade imposta por lei, já que é a própria lei que expressamente atribui ao juiz a faculdade de dela poder prescindir.
De facto, estabelece o nº. 2 do artigo 90º do C.P.T.A., na versão anterior ao DL n.º 214-G/2015, de 02/10 [aqui aplicável], que:
“(…) O juiz ou relator pode indeferir, mediante despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova quando, o considere claramente desnecessário, sendo, quanto ao mais, aplicável o disposto na lei processual civil no que se refere à produção de prova (…)”.
Assim, e nestas situações, não se vislumbra compatível que, de um passo, se confira ao juiz o poder de não produzir prova requerida pelas partes litigantes, e, em simultâneo, se sancione a utilização de tal poder com invalidade.
O mesmo, todavia, já não se pode afirmar quando nos defrontemos com a comprovada situação de existência de tecido fáctico controvertido essencial à boa decisão da causa.
A este propósito, entendemos citar o afirmado por esta Instância no Acórdão produzido em 31.05.2013 no processo nº. 00724/10.4BEPR, porque esclarecedora desta temática: “(…)
XIV.O julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.
XV. Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objeto da ação, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e selecionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória [arts. 511.º, n.º 1 CPC, 87.º e 90.º do CPTA], seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida [arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC, e 90.º do CPTA] e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto [arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC, 91.º e 94.º do CPTA].
XVI. Não pode o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa e sob pena de ilegalidade por preterição das mais elementares regras, suprimir ou omitir qualquer daquelas fases processuais precludindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de ação ou de defesa.
XVII. Note-se que face ao nosso sistema probatório o julgador no julgamento de facto detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos objeto de discussão em sede de julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
XVIII. Este sistema não significa minimamente puro arbítrio por parte do julgador já que este pese embora livre no seu exercício de formação da sua convicção não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão (…)”.
Posição que se manteve no Aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte de 14.03.2014, no processo nº. 02699/09.3BEPRT:
“(…)
II. O julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa considerando, mormente, toda a realidade factual relevante para apreciação de todos os fundamentos de ilegalidade invocados, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.
III. Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objeto da ação, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e selecionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão impugnatória formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória [arts. 511.º, n.º 1 CPC/2007, 87.º e 90.º do CPTA], seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida [arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC/2007, e 90.º do CPTA] e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto [arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC/2007, 91.º e 94.º do CPTA].
IV. Ou, para utilizar a atual terminologia do CPC/2013, importa que se haja procedido à definição/identificação do objeto do litígio e à enunciação dos “temas da prova” [art. 596.º do referido Código - conceito que pressuporá na sua base apenas realidade factual controvertida tanto mais que a instrução, incidindo sobre aqueles temas e portanto num enquadramento tendencialmente “menos limitador”, prende-se ainda assim com a demonstração da veracidade ou não de determinados factos alegadamente ocorridos de cuja reconstituição do processo histórico se pretende obter e aos quais partes, testemunhas, perícias e documentos, respetivamente, são ouvidos, prestam depoimentos, incidem, respondem ou demonstram - cfr., entre outros, arts. 410.º, 420.º, 423.º, n.º 1, 452.º, n.º 2, 454.º, 466.º, 475.º, n.º 1, 516.º, n.ºs 1 e 2 do CPC/2013] considerando também sempre as várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa.
V. Não pode o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa considerando os vários fundamentos de ilegalidade invocados e sob pena de ilegalidade por preterição das mais elementares regras, suprimir ou omitir qualquer daquelas fases processuais precludindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de ação ou de defesa.
VI. Note-se que face ao nosso sistema probatório o juiz administrativo no julgamento de facto detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos objeto de discussão em sede de julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
VII. Este sistema não significa minimamente puro arbítrio por parte do julgador já que este pese embora livre no seu exercício de formação da sua convicção não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.
VIII. Importa ter presente que com a Lei n.º 15/2002, que aprovou o CPTA, se procedeu à revogação dos diplomas que disciplinavam a tramitação, poderes instrutórios e de julgamento nos processos do anterior contencioso, mormente, os normativos que nos mesmos regulavam tais matérias e fases [v.g., arts. 12.º e 24.º da Lei Processo Tribunais Administrativos (abreviadamente «LPTA») (aprovada pelo DL n.º 267/85), 817.º , 845.º e 847.º do Código Administrativo (aprovado pelo DL n.º 31.095, de 31.12.1940) e 20.º da Lei Orgânica Supremo Tribunal Administrativo (vulgo «LOSTA») (aprovado pelo DL n.º 40.768, 08.09.1956)].
IX. Assim, passou a disciplinar-se no art. 90.º do CPTA que no “caso de não poder conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o juiz ou relator pode ordenar as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade” [n.º 1], podendo o juiz/relator “indeferir, mediante despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova quando, o considere claramente desnecessário, sendo, quanto ao mais, aplicável o disposto na lei processual civil no que se refere à produção de prova” [n.º 2].
X. Nessa medida e através da remissão operada pela parte final do n.º 2 do citado preceito mostram-se hoje afastadas as limitações de instrução probatória e de meios de prova legalmente admissíveis no contencioso administrativo e que existiam no anterior contencioso já que as ações administrativas especiais previstas e reguladas no CPTA passaram, nesse âmbito, a ser disciplinadas pelo regime decorrente dos arts. 410.º a 526.º do CPC/2013 [anteriores arts. 513.º a 645.º do CPC/2007], atribuindo-se ao julgador administrativo poderes de controlo e de instrução nesse mesmo domínio, quer em 1.ª instância quer mesmo em sede de recurso jurisdicional [cfr. arts. 90.º, n.º 1 e 149.º, n.º 2 ambos do CPTA], o que aporta claras consequências para e no julgamento de facto a realizar [cfr. arts. 91.º do CPTA, 653.º e 655.º do CPC/2007 - 607.º, n.ºs 4, 5 e 6 do CPC/2013] e mais amplamente, no nosso entendimento, no objeto do processo e da pronúncia a emitir.
XI. Neste domínio da instrução e da prova cumpre, ainda, ter presentes os princípios da investigação [do inquisitório ou da verdade material - cfr. arts. 06.º e 411.º do CPC/2013], da aquisição processual [cfr. art. 413.º do CPC/2013], da universalidade dos meios de prova [o qual só sofre compressão por força de limitação dos meios de prova decorrente de proibições de prova determinadas por normas constitucionais, mormente, relativas a direitos, liberdades e garantias] e, bem assim, o da livre apreciação das provas [cfr., nomeadamente, os arts. 83.º, n.º 4 do CPTA e 607.º, n.º 5 do CPC/2013], princípios esses que se mostram válidos e plenamente operantes no nosso contencioso administrativo vigente.
XII. Detendo o julgador administrativo, de harmonia com os normativos enunciados, amplos poderes inquisitórios em matéria de investigação e de instrução probatória o mesmo poderá ter em consideração os elementos probatórios que se mostrem constantes do processo administrativo/instrutor, enquanto lastro documental à sua disposição, sem que daí derive ou possa derivar qualquer entendimento que limite ou condicione a possibilidade do autor apresentar ou indicar e produzir outros meios de prova com os quais vise contraditar os pressupostos factuais nos quais se estribou o ato administrativo impugnado.
XIII. Note-se que o processo administrativo/instrutor, mormente, documentos e depoimentos/declarações nele prestados ou insertos, enquanto prova documental não possui ou lhe pode ser conferido ou reconhecido um qualquer valor probatório acrescido face ou no confronto com outros meios de prova legalmente admitidos no processo judicial, valendo, assim, em pleno as regras decorrentes dos arts. 341.º e segs. do Código Civil, 653.º e 655.º do CPC/2007 -607.º, n.º 5 do CPC/2013.
XIV. Com efeito, o teor ou conteúdo do processo administrativo/instrutor não faz fé em juízo e a sua valoração como meio de prova não pode implicar uma ofensa ao princípio da igualdade de armas entre as partes.
XV. Atente-se que o respeito pelo princípio da separação de poderes não impede o julgador administrativo de apreciar e julgar da exatidão de determinada realidade factual que se mostra controvertida e na qual a Administração assenta a sua decisão.
XVI. De facto, se é para nós certo que o julgador administrativo não pode substituir-se à Administração na formulação de valorações que envolvam ou se prendam com juízos sobre a conveniência e/ou a oportunidade do exercício de determinados aspetos do poder administrativo, aquilo que em geral se denomina de “discricionariedade administrativa”, temos, ao invés, que não se enquadra naquele juízo a apreciação da exatidão ou veracidade da referida factualidade.
XVII. É que na fixação dos factos que funcionam como pressupostos das decisões/pronúncias administrativas a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa já que não nos situamos no domínio da “discricionariedade administrativa”, pelo que nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação face àquele que foi adotado pela Administração, mormente, por reputar existir uma situação ilegalidade objetiva material relativa aos pressupostos de facto, ou seja, por insuficiência probatória e erro na valoração e fixação do quadro factual tida por apurado em sede de procedimento administrativo.
XVIII. Por outro lado, temos para nós que inexistem hoje, como vimos, quaisquer limitações de instrução e de prova salvo as restrições decorrentes de proibições de prova determinadas por normas constitucionais, mormente, relativas a direitos, liberdades e garantias, não sendo hoje mais legítimas a justificação de decisões que deneguem o acesso à prova e, mais vastamente, à defesa e igualdade de armas, denegação essa que se traduz e redunda num claro "deficit" do direito à tutela jurisdicional efetiva e na infração dos comandos constitucionais constantes, mormente, dos arts. 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
XIX. Tal como afirma Michelle Taruffo “… o direito a apresentar todas as provas relevantes constitui parte essencial das garantias gerais sobre a proteção do direito defesa, pois a oportunidade de provar os factos nos quais assentam as pretensões das partes é condição necessária da efetividade de tais garantias (…). (…) o direito a apresentar todos os meios de prova relevantes que estejam ao alcance das partes é um aspeto essencial do direito de ação e deve reconhecer-se como pertencendo às garantias fundamentais das partes …” [in: “La Prueba”, 2008, pág. 56 - tradução livre nossa].
XX. De referir, ainda, que, face ao que se mostra disciplinado em sede da tramitação da ação administrativa especial no art. 87.º do CPTA, o juiz administrativo confrontado com a falta de acordo das partes quanto à dispensa da prova e com a existência de factualidade controvertida relevante para a decisão da causa deve, em sede de despacho saneador e apesar da falta expressa de referência à aplicação do CPC na tramitação da fase de saneamento e condensação, atualmente denominada de “gestão inicial do processo e da audiência prévia”, proceder à fixação do objeto do litígio e definir aquilo que são os temas da prova tal como determina o art. 596.º do CPC/2013 à luz das várias soluções plausíveis de direito, preceito este que importa convocar e aplicar para assegurar uma regular e adequada tramitação do referido meio processual.
XXI. Será sobre os factos alegados pelas partes ponderadas e consideradas as regras e ónus probatórios a atender ao caso [cfr. arts. 342.º e segs. do CC, 513.º, 514.º, 515.º, 523.º, 552.º, 554.º, 568.º, 578.º e 638.º do CPC/2007 - 410.º, 412.º, 413.º, 423.º, 452.º, 454.º, 466.º, 475.º, 516.º todos do CPC/2013] que irá ou deverá incidir a prova carreada para os autos ou oficiosamente determinada pelo julgador, ressalvados os factos que, nos termos do art. 412.º do CPC/2013 [art. 514.º CPC/2007] não careçam de alegação ou de prova, na certeza de que na enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova não poderá o julgador administrativo deixar de ter em linha de conta aquilo que constitui o objeto do processo, a causa de pedir e o pedido deduzido (…)”.
Acompanhando e acolhendo a interpretação assim declarada por este Tribunal Superior, tem-se, portanto, por assente, no mais fundamental para o que ora importa julgar, que não pode o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa, e sob pena de ilegalidade por preterição das mais elementares regras, suprimir ou omitir qualquer daquelas fases processuais, precludindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de ação ou de defesa.
Assente o que se vem de expor, e volvendo ao caso concreto, importa determinar se estamos [ou não] perante uma situação de comprovada ausência de tecido fáctico controvertido justificativa da opção tomada pelo Tribunal a quo, aqui sob censura.
Neste domínio, dir-se-á que os Autores intentaram a presente ação e a ação apensa n.° 1977/11.6BEPRT visando o (i) reconhecimento do seus direitos a aceder à garantia constituída pelo Fundo de Garantia de Depósitos relativamente ao saldo dos depósitos, ou de outras aplicações que devam ser classificadas como tal, de que eram titulares junto do Banco Privado Português, S.A., até ao limite de € 100.000,00, bem como a (ii) condenação do Fundo de Garantia de Depósitos a pagar-lhe a quantia as quantias peticionadas nos autos, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal, para além da (iii) condenação da Massa Insolvente do Banco Privado Português, S.A., a pagar-lhe as demais quantias peticionadas, também elas acrescidas de juros de mora.
Regularmente citado, e com reporte para a presente ação, o Fundo de Garantia de Depósitos contestou pela forma inserta a fls. 151 e seguintes dos autos [suporte virtual], tendo alegado, de entre outras realidades, que J. contribuiu para as dificuldades financeiras do Banco BPP, enquadrando-se, por isso, a sua atuação no âmbito da alínea f) do n.º 1 do artigo 165.º do RGICSF, que o exclui da garantia de reembolso dos depósitos por si constituídos em instituições de crédito.
O Autor J. replicou, tendo expressamente impugnado tal alegação, conforme facilmente se apreende do artigo 39º da peça processual que faz fls. 335 e seguintes dos autos [suporte digital], desembocando assim em matéria controvertida, cujo ónus de prova impendia sobre o Réu.
Ora, sendo este tecido fáctico controvertido essencial à boa decisão da causa, ademais e especialmente, no domínio assinalado de uma atuação subsumível numa condição de exclusão da garantia de reembolso dos depósitos em instituições de crédito, impunha-se a possibilidade de produção de prova neste desígnio, sob pena de se coartar o “direito à prova” dos seus apresentantes.
De facto, este “direito à prova” postula a ideia as partes têm o direito (i), por via de ação e da defesa, de utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, de (ii) contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como o (iii) direito à contraprova.
Assim, cabendo ao Réu o ónus da prova dos factos actos impeditivos, modificativos, ou extintivos do direito invocado nos autos, não lhe podia ter sido recusada a possibilidade de provar que o “Autor J. contribuiu para as dificuldades financeiras do Banco BPP”.
Note-se que não estamos perante uma mera questão interpretativa.
De facto, não é pelo facto deste Autor exercer uma função meramente consultiva que se pode afirmar que, sem mais, o mesmo contribuiu [ou não] para as dificuldades financeiras do Banco BPP.
Realmente, é preciso perceber o universo de atuação da função consultiva do Autor J. em ordem a concluir-se [ou não] no sentido propugnado pelo Réu.
E isso só pode ser feito com recurso à prova dos factos alegados no domínio assinalado.
Naturalmente, poder-se-á objetar que tal tecido fáctico controvertido não se afigura relevante ou pertinente para a boa decisão da causa, não se impondo, por isso, a abertura de um período de produção de prova.
Porém, assoma evidente que assim não o é.
De facto, basta ver que, como se viu supra, se trata de matéria decisiva para o desfecho da causa, já que, na exata medida em que se mostram excluídos da garantia de reembolso os depósitos de que sejam titulares os membros dos órgãos de administração ou fiscalização da instituição de crédito, e que tenham contribuído, por ação ou omissão, para as dificuldades financeiras da instituição de crédito ou tenham contribuído para o agravamento de tal situação [cfr. alínea f) do nº.1 do artigo 165º do RGICSF], a sua aquisição processual permitirá estear a conclusão de que assiste [ou não] ao Autor J. o direito reclamado nos autos.
Neste quadro, é de manifesta evidência a necessidade de abertura de um período de produção de prova com vista a proporcionar ao Réu, aqui Recorrente, a possibilidade de fazer prova da matéria por si alegada nos artigos 45º a 54º da contestação inserta a fls. 151 e seguintes dos autos [suporte digital].
Assim deriva, naturalmente, que se antolha a existência de elementos substanciais que permitem concluir pela existência de algo de grave e ostensivamente errado na tramitação processual adotada pelo Tribunal a quo, que, como sabemos, avançou para a prolação da sentença recorrida sem proceder à abertura de um período de produção de prova.
Efetivamente, não podia o Tribunal a quo ter antecipado o julgamento da pretensão com preterição ou omissão das fases processuais acima aludidas, e, dessa forma, postergar claramente o “direito à prova” legalmente conferido às partes.
Consequentemente, impõe-se conceder provimento ao recurso da sentença recorrida, devendo ser anulado o todo o processado praticado até à sua prolação para que se proceda à instrução dos autos com a produção da prova testemunhal oferecida seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença.
Ao que se provirá no dispositivo, o que determina a prejudicialidade do conhecimento dos demais argumentos aduzidos no presente recurso jurisdicional e, bem assim do recurso interposto pelo Recorrente J. da sentença promanada nos autos [artigo 95º, nº. 1 in fine do C.P.T.A. e 608º nº.2 do CPC].
* *
V – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em:
(i) CONCEDER PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Recorrente Fundo de Garantia de Depósitos e, em consequência, anular o todo o processado praticado desde a sua prolação para que se se proceda à instrução dos autos com a produção da prova testemunhal oferecida seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença.
(ii) JULGAR PREJUDICADO o conhecimento do recurso interposto pelo Recorrente J. da sentença recorrida.

Sem custas.

Registe e Notifique-se.
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Porto, 28 de janeiro de 2022,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia