Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01196/05.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/02/2017
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Mário Rebelo
Descritores:DIREITO DE AUDIÇÃO
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO
PROCEDIMENTO DE SEGUNDO GRAU
Sumário:1. O princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes dizem respeito não pode ser afastado a não ser nas exatas situações que a lei define.
2. Por isso, quando a alínea a) do n.º 2 do art. 60 LGT dispensa a audição no “...caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte...” é só mesmo nesta situação que o direito de audição pode ser dispensado. Seria absolutamente desnecessária a participação do contribuinte na formação de um acto em que o próprio já participou através da apresentação da declaração.
3. Mas só é assim se a liquidação se efectuar, factual e juridicamente, de acordo com os dados fornecidos pelo contribuinte na declaração.
4. A consideração de quaisquer outros elementos para além dos declarados pelo contribuinte, ou um enquadramento jurídico diferente, obrigarão à sua audição.
5. Quando não seja legalmente dispensada, a falta de audição prévia constitui a preterição de formalidade essencial, conducente à anulabilidade do acto, por aplicação supletiva do art. 135º do CPA/1991 (a que corresponde, com alterações, o actual 163º CPA).
6. Mas há duas situações em que esta omissão ilegal poderá não ter consequências nvalidantes.
7. Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:C..., Lda.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

C… LDA. melhor identificada nos autos, impugnou a liquidação adicional de IRC, juros compensatórios e moratórios relativa ao ano de 2001 que a MMª Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal Porto julgou improcedente por sentença de 16 de fevereiro de 2016.
Inconformada, interpôs recurso para este TCA concluindo as alegações com as seguintes conclusões:

1ª CONCLUSÃO

Tendo a impugnante na sua p.i., nos termos do artº 108º nº 3 do CPPT, arrolado uma testemunha, que não foi ouvida, nos termos do art. 118º do CPPT.

Esta omissão de acto processual, é uma irregularidade susceptível de integrar invalidade processual, já que pode influir no exame e decisão da causa, tanto mais que era o TOC da empresa, referido nos artigos 5º e 6º da p.i.

Deste modo, nos termos do art. 201º nos. 1 e 2, os actos posteriores à irregularidade praticada, deverão ser anulados, concretamente neste caso, a sentença produzida.

É no âmbito deste recurso que deverá ser atacada tal decisão.


2ª CONCLUSÃO

A recorrente considera que a decisão é injusta, por resultar de uma inapropriada valoração das provas, concretamente neste caso, por injustamente ter sido considerado na sentença recorrida, na alínea “b)” do ponto “3 – OS FACTOS”, é dado como provado que a impugnante, transcrevendo...

“b) Efectuou o cálculo da matéria colectável, aplicando o coeficiente de 0,45 no valor de serviços prestados (€57.039,18x0,45=€25.667,63) (cf. Doc. De fls. 40 a 42 dos autos)”

E mais à frente, no ponto “4 – OS FACTOS E O DIREITO”, também é referido...
“Assim, a liquidação de IRC do ano de 2001, decorre da declaração feita pela impugnante em sede de declaração mod. 22 de IRC, que não foi alvo de qualquer alteração por parte dos competentes serviços.”

Os documentos referidos na sentença, provam que a impugnante apresentou a declaração mod. 22 de IRC, em 03/12/2003, onde declarou o regime de tributação “Geral”.

Assim como apurou, pelo regime geral, a matéria colectável de 4.847,82 €, bem como o imposto a pagar de 170,65 €.

E posteriormente a essa apresentação, o Fisco, oficiosamente, como se prova pela fixação efectuada em 18/06/2004, anexa a essa declaração modelo 22, efectuou o cálculo da matéria colectável pelo regime simplificado de tributação em IRC.


3ª CONCLUSÃO

A recorrente considera que a decisão é errada, por resultar de uma inapropriada valoração das provas, e como consequência, relativamente à liquidação impugnada, se ter considerado que a Administração Fiscal estaria dispensada da audição prévia da impugnante, nos termos da alínea a) do nº 2 art. 60º da LGT.

Quando de facto, foi posteriormente à apresentação da declaração modelo 22, que o Fisco, oficiosamente, fixou a matéria colectável pelo regime simplificado de tributação em IRC e alterou o rendimento declarado pela impugnante.

Tendo de seguida efectuado a liquidação impugnada, sem ter facultado o direito de audição sobre o procedimento de liquidação que havia efectuado, em violação do disposto no art. 60º, nº 1, alínea a) da LGT.

Pois não beneficiava da dispensa de audição prévia, prevista na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, como erradamente consta da sentença recorrida.
4ª CONCLUSÃO

A recorrente considera que a decisão é errada, por resultar de uma inapropriada valoração das provas, tendo-se considerado que a liquidação impugnada estará legalmente fundamentada.

Ora o montante da liquidação recebida pela impugnante, não foi efectuada em função dos valores tributáveis que declarou.

Nem lhe foi facultado o direito de audição sobre esse procedimento de liquidação que havia sido efectuado.

E no procedimento de liquidação efectuado pelo Fisco, diverso do que antes havia declarado a impugnante, estava legalmente obrigado, nos termos do art. 77º nº 2 da LGT, a fundamentar de forma clara e entendível para o seu destinatário, todos os elementos justificativos da tributação efectuada, o que não fez.

Termos em que a Recorrente confia que a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, recorrida em apelação, com os fundamentos alegados no presente recurso, seja anulada, ou alterada (cfr. art. 712º nº 2 CPC) a decisão que põe termo ao processo, consoante proceda ou não a arguição da nulidade da sentença alegada.

Mas em qualquer caso, conhecendo do objecto da apelação (cfr. art. 715º nº 1 CPC), seja substituída por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte – Secção de Contencioso Tributário, que declare procedente a presente impugnação judicial, por provada, mandando anular a liquidação impugnada.

CONTRA ALEGAÇÕES.
Não houve.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCA emitiu esclarecido parecer concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.


II QUESTÕES A APRECIAR.
O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou ao considerar não ter sido violado o direito de audição, bem como o direito à fundamentação e se foi praticada nulidade processual por não ter sido ouvida a testemunha arrolada.

Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o processo submetido à Conferência para julgamento.


III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:
a) Em 03/12/2003, a impugnante apresentou nos competentes serviços a declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, respeitante ao exercício de 2001, com um total de proveitos de €84.977,61, dos quais €57.039,18 de serviços prestados, que constam do anexo B da referida declaração, para o regime simplificado de tributação (cf. doc. de fls. 40 a 42 dos autos e 9 do processo de reclamação apenso aos autos). ---
b) Efectuou o cálculo da matéria colectável, aplicando o coeficiente de 0,45 no valor de serviços prestados (€57.039,18x0,45= €25.667,63) (cf. doc. de fls. 40 a 42 dos autos). ---
c) A este valor foi aplicada a taxa de 20% tendo resultado IRC a pagar no montante de €5.133,52, sobre o qual incidiu a derrama de 10%, no valor de €513,35, num total de €5.646,87 (cf. doc. de fls. 8 do processo de reclamação graciosa). ---
d) A impugnante foi tributada pelo regime simplificado a que se refere o art. 53º do CIRC, uma vez que no exercício anterior atingiu um volume de proveitos inferiores a €149.639,37, e não exerceu a opção pelo regime geral de tributação do lucro tributável (cf. fls. 14 do processo de reclamação graciosa). ---
e) A impugnante ficou enquadrada no regime geral por opção após 01/01/2003 (cf.doc. de fls. 15 do processo administrativo apenso ao autos). ---
f) Foi emitida em 13/07/2004, a liquidação de IRC nº 20042310034219, relativa ao ano de 2001, no montante de €5.269,48, com data limite de pagamento de 06/09/2004 (cf. doc. de fls. 12 e 13 dos autos). ---
g) Na liquidação é dito que “Fica V. Exa. notificado (a) para, no prazo de 30 dias a contar do 3º dia útil posterior ao do registo, efectuar o pagamento da importância
apurada proveniente da liquidação de IRC relativa ao exercício a que respeitam os rendimentos, conforme nota demonstrativa junta” em anexo segue a “demonstração de liquidação de juros” (cf. doc. de fls. 12 e 13 dos autos). ---
h) Por não se conformar com a liquidação, a impugnante deduziu, em 28/12/2004, reclamação graciosa sobre a qual recaiu o projecto de despacho de indeferimento de 01/04/2005 (cf. doc. de fls. 2 a 5 e 17 a 17 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos). ---
i) Naquele projecto era dito, além do mais, “Notifique-se nos termos do art. 60º da LGT” (cf. doc de fls. 17 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos).---
j) Pelo ofício nº 1769, de 08/04/2005, a impugnante foi notificada nos termos do disposto no art. 60º, nº 1 alínea b) da LGT, para o efeito de audição prévia, nada dizendo (cf. doc. de fls. 18 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos). ---
k) A reclamação foi indeferida por despacho de 13/05/2005, notificado à impugnante através do ofício nº 9743/0403, de 25/05/2005 (cf. fls. 19 e 20 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos). ---
l) A presente impugnação foi deduzida em 09/06/2005 (cf. doc. de fls. 3 dos autos). ---

Factos não provados

Dos autos não resultam provados outros factos com interesse para a decisão da causa. ---

*** ***
O tribunal firmou a sua convicção nos documentos juntos aos autos que não foram contestados. ---

ALTERAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO.
Na conclusão 2ª, a RECORRENTE alega que a decisão é injusta por, no que respeita à alínea b) dos Factos Provados, resultar de uma inapropriada valoração das provas.

Esta alínea tem o seguinte teor:
b) Efectuou o cálculo da matéria colectável, aplicando o coeficiente de 0,45 no valor de serviços prestados (€57.039,18x0,45= €25.667,63) (cf. doc. de fls. 40 a 42 dos autos). ---

E surge na sequência da alínea a) onde consta:
a) Em 03/12/2003, a impugnante apresentou nos competentes serviços a declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, respeitante ao exercício de 2001, com um total de proveitos de €84.977,61, dos quais €57.039,18 de serviços prestados, que constam do anexo B da referida declaração, para o regime simplificado de tributação (cf. doc. de fls. 40 a 42 dos autos e 9 do processo de reclamação apenso aos autos).

Mais à frente, na fundamentação de direito, diz a sentença
“Assim, a liquidação de IRC do ano de 2001, decorre da declaração feita pela impugnante em sede de declaração mod. 22 de IRC, que não foi alvo de qualquer alteração por parte dos competentes serviços.”

Contudo, na tese da RECORRENTE este facto (e respetiva consequência jurídica) estão errados:
Os documentos referidos na sentença, provam que a impugnante apresentou a declaração mod. 22 de IRC, em 03/12/2003, onde declarou o regime de tributação “Geral”.

Assim como apurou, pelo regime geral, a matéria colectável de 4.847,82 €, bem como o imposto a pagar de 170,65 €.

E posteriormente a essa apresentação, o Fisco, oficiosamente, como se prova pela fixação efectuada em 18/06/2004, anexa a essa declaração modelo 22, efectuou o cálculo da matéria colectável pelo regime simplificado de tributação em IRC.

A RECORRENTE tem razão. Se analisarmos a declaração modelo 22, relativa ao exercício de 2001 (e que consta de fls. 40 e segs. dos autos), verificamos que o contribuinte assinalou o “Regime de Tributação dos Rendimentos” com um X na quadrícula relativo ao regime Geral e apurou uma matéria colectável de € 484,82 (e não 4.847,82 €, como certamente por lapso de escrita refere na segunda conclusão) e imposto a pagar de 170,65 €.

Só depois a AT assinalou oficiosamente a quadrícula relativa ao Regime Simplificado e efetuou as operações de cálculo próprias deste regime de determinação da matéria coletável.

Ou seja, a AT alterou a declaração apresentada pela Impugnante e aplicou ao total de proveitos do exercício (€ 57.039,18) o coeficiente de 45% vindo a obter um lucro tributável de € 25.667,63 de que resultou imposto a pagar no montante de € 5.269,48 (incluindo derrama).

Ora, se os valores auto declarados pela RECORRENTE foram alterados pela AT, assim como foi alterada a quadrícula que assinalava o regime geral de tributação não pode dizer-se (constar nos factos provados) que a “...impugnante apresentou nos competentes serviços a declaração de rendimentos modelo 22 de IRC...” (alínea a) e que “Efectuou o cálculo da matéria colectável, aplicando o coeficiente de 0,45 no valor de serviços prestados....” (alínea b).

Por conseguinte, ao abrigo do disposto no art. 712º/1-a) do CPC altera-se a alínea b) dos factos provados que terá o seguinte conteúdo:

b) A AT assinalou a quadrícula relativa ao Regime Simplificado de Tributação e efetuou o cálculo da matéria coletável, aplicando o coeficiente de 0,45 ao valor de serviços prestados (57.039,18x0,45=25.667,63) (cfr. doc. de fls. 40 a 42 dos autos).

IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Como já referimos, a Impugnante apresentou declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2001, assinalando a quadrícula relativa ao regime geral de tributação.
Declarou proveitos do exercício no montante de € 57.039,18, calculou a matéria coletável em 484,82 e € 170,65 de imposto a pagar.
A AT alterou o regime de tributação para regime simplificado e calculou a matéria colectável e respectivo imposto de acordo com as regras deste regime.
Notificado da liquidação, o contribuinte reclamou graciosamente alegando não ter preenchido a declaração de opção pelo regime geral por erro do seu ex colaborador, que a liquidação não está devidamente fundamentada e além disso foi preterido o direito de audição.
A reclamação foi totalmente indeferida, com audição prévia do contribuinte.
A impugnação judicial foi deduzida retomando o essencial do que fora alegado na Reclamação Graciosa.
Por sentença de 16/2/2011 a impugnação foi julgada totalmente improcedente.

O presente recurso aponta à douta sentença os seguintes erros:
Não ter considerado preterido o direito de audição, uma vez que a AT alterou oficiosamente o rendimento declarado pela Impugnante e efetuou a liquidação impugnada sem que a Impugnante tenha sido ouvida.
Além disso, a liquidação não está fundamentada de forma clara e entendível para o seu destinatário.
Adicionalmente, ocorreu uma nulidade processual por não ter sido ouvida a testemunha arrolada.

Posto isto, vejamos a última questão, uma vez que a nulidade processual tem precedência sobre as demais questões suscitadas.
Com efeito, no final da petição inicial a impugnante indicou uma testemunha a apresentar, que não foi inquirida nem foi proferido qualquer despacho a dispensar a sua inquirição.

O despacho a dispensar a produção de prova entende-se ser desnecessário. Ac. do TCAS n.º 2330/08 de 30-09-2008 Relator: JOSÉ CORREIA
Sumário: IV) -O juiz não tem que proferir despacho algum a dispensar a produção da prova, quer porque a lei não prevê tal despacho, quer porque o mesmo não teria qualquer utilidade.
V) -A falta de despacho a dispensar a inquirição das testemunhas arroladas não constitui nulidade processual pois, nos termos do art. 201.º, n.º 1, do CPC, só pode ser qualificada como nulidade «a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva».
Mas em relação às consequências da falta de inquirição de testemunhas a corrente dominante da jurisprudência é a de que tal não constitui uma nulidade processual, na medida em que cumpre ao juiz, ou relator, aferir da necessidade ou não de produzir prova.
Quando, após a fase dos articulados o juiz ordena a notificação das partes para alegações, é porque entendeu dispensável a produção de prova. Nesse caso, como é manifesto, a falta de inquirição das testemunhas oferecidas não constitui omissão de um acto que a lei prescreva. E é certo também que a lei não prescreve o dever de efectuar a inquirição das testemunhas, antes permitindo ao juiz aferir da necessidade desse acto (cfr. ac. do STA n.º Ac. do STA n.º 01159/09 de 27/11/2013, Relator: DULCE NETO) Em sentido contrário, o ac. do STA n.º 01565/02 de 05-02-2003 Relator: ALMEIDA LOPES: É de 10 dias o prazo para se arguir uma nulidade derivada da falta de inquirição de testemunhas arroladas na impugnação judicial (artº 105º do CPC)..

Conforme ensina o Prof. Manuel de Andrade, nulidades processuais são desvios do formalismo processual seguido em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais.

A falta de inquirição das testemunhas não consta do rol exaustivo de nulidades insanáveis constante do art. 98º do CPPT, nem constitui uma nulidade processual à luz do regime do art. 201º e segs. do CPC, segundo o qual, “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Mas o facto de a falta de inquirição da testemunha não ser fundamento de nulidade processual, não obsta a que a omissão de diligências de prova, quando existam factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, afetem o julgamento da matéria de facto.
Mas se assim for, a consequência consiste na anulação da sentença por défice instrutório com vista a obter o devido apuramento dos factos.

Quer dizer, se a avaliação efectuada pelo juiz – que suporta a decisão de prescindir da inquirição das testemunhas arroladas – estiver inquinada de erro por, ao contrário do que ele julgou, os elementos disponíveis nos autos não serem suficientes para permitir um cabal conhecimento das causas de pedir e do pedido formulado, esse erro inquinará o valor doutrinal da sentença que venha a ser proferida, por insuficiência da matéria de facto e/ou erro de julgamento de facto.

Improcedendo a alegada nulidade processual decorrente da falta de inquirição da testemunha, a questão seguinte centra-se em torno da preterição do direito de audição antes da liquidação impugnada.

A MMª juiz considerou que não houve preterição do direito de audição porque
“... a liquidação de IRC do ano de 2001 decorre da declaração feita pela impugnante em sede de declaração mod. 22 de IRC, que não foi alvo de qualquer alteração por parte dos competentes serviços”
(...)
“Assim, nos termos do disposto no art. 60º, nº 2, alínea a) da LGT “è dispensada a audição: a) No caso da liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte...”, sendo este, precisamente, o caso dos autos”

Os dois parágrafos transcritos são consequência da prova registada originalmente na alínea b) da sentença assumindo que a AT nenhuma alteração efetuou à declaração apresentada pela Impugnante.

Mas isso não é verdade, como resulta da correção à matéria de facto feita nesta instância.
Pelo contrário, sabemos que a liquidação não foi efectuada com base na declaração do contribuinte, antes lhe foram introduzidas alterações pela AT, que ainda assim dispensou o cumprimento do dever de audição do contribuinte.

Saber se tal dispensa foi ou não acertada do ponto de vista legal, é o que tentaremos averiguar de seguida.

É importante realçar que o princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes dizem respeito não pode ser afastado a não ser nas exatas situações que a lei define, e nada mais. Por isso, quando a alínea a) do n.º 2 do art. 60 LGT dispensa a audição no “...caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte...” é só mesmo nesta situação que o direito de audição pode ser dispensado. O que bem se compreende, pois seria absolutamente desnecessária a participação do contribuinte na formação de um acto em que o próprio já participou através da apresentação da declaração.

Mas isso só é assim se a liquidação se efectuar, factual e juridicamente, de acordo com os dados fornecidos pelo contribuinte na declaração Assim, José Maria Fernandes e outros, in "Lei Geral Tributária" anotada, Almedina, 2015, pp. 617.. A consideração de quaisquer outros elementos para além dos constantes da declaração do contribuinte, ou um enquadramento jurídico diferente, obrigarão à sua audição.

Como a liquidação não se efectuou de acordo com a declaração do contribuinte, este não podia deixar de ser ouvido Cfr. ac. do TCAS n.º 07993/14 de 14-04-2016 Relator: CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Sumário: 2 - Tratando-se de autoliquidação do imposto, não tinha a AT que emitir qualquer liquidação de IVA e notificar tal liquidação ao sujeito passivo.
3 - O direito de audição prévia à liquidação não tem lugar quando não existe nenhuma instrução procedimental, como nos casos em que o imposto é liquidado integralmente com base na declaração do contribuinte”..

Quando não seja legalmente dispensada, a falta de audição prévia constitui a preterição de formalidade essencial, conducente à anulabilidade do acto tributário, por aplicação supletiva do art. 135º do CPA/1991 (a que corresponde, com alterações, o actual 163º CPA).

Mas há duas situações em que esta omissão ilegal poderá não ter consequências invalidantes.

Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.

No primeiro caso, a jurisprudência tem admitido o princípio do aproveitamento do acto tributário quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão.Ac. do STA n.º 0548/12 de 24-10-2012 Relator: FERNANDA MAÇÃS

O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação do interessadoAc. do STA n.º 01391/14 de 25-06-2015 Relator: FRANCISCO ROTHES.

Na segunda hipótese, havendo procedimento de segundo grau, quer o acto primário tenha sido mantido quer tenha sido alterado e substituído pelo acto do segundo grau, “...a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação”Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa in "Lei Geral Tributária" anotada, 2012, pp. 517.

Embora o procedimento de segundo grau seja, neste caso, facultativo, o contribuinte recorreu a ele e teve oportunidade de se pronunciar antes da decisão (de indeferimento) que recaiu sobre a Reclamação Graciosa.

Nestas condições, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia antes da liquidação Ac. do STA n.º 01391/14 de 25-06-2015 Relator: FRANCISCO ROTHES
Sumário: I - Destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que seja inequívoco que esta só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso, se impunha aproveitá-la pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.
II - A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação da requerente.
III - Para a formulação do juízo de prognose póstuma, no âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto tributário, é irrelevante a procedência ou improcedência dos vícios invocados na impugnação judicial.
IV - O facto de a matéria tributável que serviu de base à liquidação se dever considerar já estabilizada e fixada em procedimento autónomo de avaliação no qual o contribuinte teve oportunidade de participar, não significa, sem mais, que seja dispensável a notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação pois o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final.
V - Tendo o contribuinte interposto reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa tido a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.
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A falta ou deficiente fundamentação da liquidação é outro vício imputado ao acto tributário, também retomado neste recurso.
Na douta petição inicial a Impugnante considera que o acto não está devidamente fundamentado e que a fundamentação remetida e facultada é obscura e insuficiente.

Na contestação, a Exma. Representante da Fazenda Pública defende que “o discurso argumentativo da Impugnante, ao longo da sua petição inicial, permite concluir que ela detinha um conhecimento satisfatório do conteúdo do acto tributário” pelo que “foi atingido o objectivo que se visava atingir com a imposição deste conteúdo, designadamente que o seu destinatário se apercebeu correctamente do seu exacto alcance” (art. 17º).

A sentença também julgou improcedente este vício com base em três critérios:
Que a liquidação teve por base os dados fornecidos pela impugnante na declaração de rendimentos.
A notificação da liquidação contem o período a que se reporta, o montante a pagar, a data para o efeito, e a motivação que a ela presidiu.
Prova de que a liquidação está fundamentada é o facto de a impugnante ter impugnado e demonstrado que conhece todos os factos e o direito que a ela presidiu.

Neste recurso, a RECORRENTE alega (e conclui) que a AT estava obrigada a fundamentar de forma clara e entendível para o seu destinatário, todos os elementos justificativos da tributação efectuada, o que não fez.

Ora, sem querer repetir a vasta doutrina e jurisprudência sobre o dever de fundamentação formal, faremos apenas algumas breves alusões ao conteúdo deste direito/dever (art. 77º LGT), como referência e enquadramento para raciocínio posterior.

- É um direito com consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da parte 1ª da CRP (artigo 268º), o que impõe a atribuição de um sentido que lhe dê a maior eficácia.
- O seu cumprimento visa várias objectivos: a ponderação «interna» (reflexão do órgão decisor), a função garantística (facultar ao cidadão o conhecimento do «iter» seguido pela AT na emissão do acto) e permitir aos tribunais o controlo da legalidade aferindo o seu acerto jurídico.
- A fundamentação formal (por oposição à fundamentação substancial) visa esclarecer concretamente as razões que determinaram a decisão tomada e não encontrar a base substancial que a legitime. Fundamentar é enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram a entidade administrativa à prática do acto.
É enunciar as premissas de facto e de direito nas quais a respectiva decisão administrativa assenta.
- O contribuinte deve ficar na posse de todos os elementos de facto e de direito que conduziram à decisão. Deve dar - se – lhe nota do “itinerário cognoscitivo e valorativo” seguido para a tomada da decisão de forma clara, congruente e suficiente (ainda que por remissão ou feita sinteticamente).
- O conteúdo deste dever não obedece a modelo único, antes deve reflectir o tipo de acto praticado e a matéria envolvida.
- O acto tributário está suficientemente fundamentado quando o destinatário esteja em condições de conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, segundo padrão de um destinatário normal - o bonus pater familiae.


De facto, embora o primeiro critério apontado na sentença não se verifique (a liquidação não teve por base os dados fornecidos pelo contribuinte) o contribuinte manifesta ter conhecimento que a liquidação é feita pelo regime simplificado e “justifica” que a não opção pelo regime geral de tributação se deveu unicamente à falta de acatamento de instruções dadas pela empresa ao responsável pela escrita. Este conhecimento aproxima-nos do que tem sido decidido pela jurisprudência que considera fundamentado o acto se o contribuinte percebeu as razões que o determinaram Cfr. ac. do TCAN n.º 0881/08.0BEBRG de 15-02-2012 -Relator: Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro
Sumário: II- Se da impugnação da liquidação resulta que o contribuinte percebeu as razões que determinaram o acto, então este deve considerar-se fundamentado.
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Mas perante o conteúdo da douta sentença, a Recorrente não questiona os seus argumentos, designadamente o conhecimento que mostra deter dos factos e do direito relativos à liquidação impugnada. Não nega esse conhecimento, nem de modo algum lhe retira a amplitude que a sentença lhe confere. Limita-se a dizer que a AT “....estava legalmente obrigada, nos termos do art. 77º n.º 2 da LGT, a fundamentar de forma clara e entendível para o seu destinatário, todos os elementos justificativos da tributação efectuada, por sinal 30 vezes superior à declarada”.

É bem certo que a AT estava obrigada a fundamentar, nos termos do art. 77º LGT, todos os elementos justificativos da tributação efectuada. Mas perante o conteúdo da liquidação que lhe foi comunicado e da decisão proferida na Reclamação Graciosa a Recorrente tinha o ónus de esclarecer o que é que devia ter sido levado ao seu conhecimento e não foi, ou o que só imperfeitamente lhe foi dado a conhecer de modo a podermos falar em fundamentação insuficiente.

E quando a sentença refere que a contribuinte demonstra ter conhecimento dos factos e do direito, cabia-lhe contrariar esta decisão mostrando o seu desacerto invocando factos que desconhece, ou cujo alcance desconhece e são relevantes para conhecer o “iter” seguido pela AT na liquidação.

Não o fez, optando por ignorar, nesta parte, o conteúdo da sentença. Mas este não é um modo eficaz de a impugnar, implicando desde logo a improcedência da arguição deste vício.

Com efeito, sendo objecto do recurso a impugnação da decisão judicial (art. 676º CPC), o recorrente terá de mobilizar os seus argumentos contra os vários fundamentos desfavoráveis da sentença sob pena de o decidido não poder ser alterado, na parte não impugnada. Cfr. ac. do STA n.º 0508/13 de 15-05-2013 Relator: FRANCISCO ROTHES e o ac. do TCAN n.º 01806/09.0BEBRG de 15-02-2012 - Relator: Catarina Almeida e Sousa Sumário: III - Se, em sede de recurso jurisdicional, o Recorrente se alheou em absoluto das razões que fundamentaram a sentença recorrida, limitando-se a repetir o que já havia dito em sede de petição inicial de oposição, não ataca o julgado, pelo que não pode o Tribunal de recurso alterar o decidido pelo Tribunal a quo, já que a tal se opõe o preceituado no nº 4 do artigo 684.º do C.P.C.

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAN em negar provimento ao recurso e, com outros fundamentos, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 2 de fevereiro de 2017.
Ass. Mário Rebelo
Ass. Cristina Travassos Bento
Ass. Paula Maria Dias de Moura Teixeira