Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01477/18.3BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/06/2019
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Maria Cardoso
Descritores:RECLAMAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS; DIREITO DE RETENÇÃO; IMPUGNAÇÃO MATÉRIA DE FACTO
Sumário:
1.ª A expressão “invalidade do contrato” é uma expressão ambígua, não tendo a Recorrente esclarecido em que sentido a usa, mas na doutrina, jurisprudência e legislação é entendida com o significado técnico, segundo o qual ela qualifica o tipo de ineficácia integrado pela nulidade e anulabilidade.
2.ª Uma coisa é a invalidade do contrato-promessa de compra e venda e seu aditamento, outra, bem diferente, é a força probatória do referido contrato e das declarações constantes do mesmo, que em conjugação com a prova testemunhal produzida nos autos, impunha-se ao Tribunal a quo que apreciasse e decidisse.
3.ª O quadro legal que se convoca para avaliar da decisão de facto começa por assentar no princípio da livre apreciação das provas, com dados objectivos, para a formação da convicção, lógico-intuitiva e motivada; e, paralelamente, à parte onerada com o ónus da prova exige-se o dispêndio de esforço necessário ao nível de convencimento probabilístico, na certeza de que lhe desaproveita um certo patamar de dúvida, tido como inadequado a um juízo de certeza aceitável (artigos 346.º do CC e 414.º do CPC); a que se segue a reavaliação das provas.
3.ª O princípio da livre apreciação da prova só não domina quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei, como por exemplo, a força probatória plena dos documentos autênticos (art. 371.º do CC; vide Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 660 e seg.).
4.ª Afigura-se-nos importante lembrar a importância dos factos instrumentais ou indiciários, que configuram aqueles que, sem preencherem, eles próprios, a previsão normativa do direito substantivo, contribuem mediante juízos probatórios, de ilações, sustentados em regras de experiência, de habitualidade e de repetição corrente, para se aceder àqueles que a integram, por poderem dar um contributo valioso, como no caso em apreço, de molde a solidificar a certeza provável de que a traditio não ocorreu (artigos 349.º e 351.º do CC). *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:GI, S.A.
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de acompanhar o entendimento vertido na sentença recorrida
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I- RELATÓRIO
1. GI, S.A., contribuinte fiscal n.º 50xxx36, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que julgou improcedente a reclamação judicial da decisão de verificação e graduação de créditos proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças de Aveiro no processo de execução fiscal n.º 0094200601070452, instaurando contra a SEF, S.A..
2. A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«[A] Indefere a douta sentença a pretendida anulação do despacho do Serviço de Finanças Feira 1 datado de 21.11.2018.
[B] Para tanto, considera provada matéria constante de fls. 6 a 11 da sentença, que por razões de economia processual se dá aqui por reproduzida,
[C] e como não provada a seguinte matéria:
A) A Reclamante pagou à Executada a quantia de €900,00 em 2/4/2015 e a quantia de €8.100,00 no período entre Abril e Dezembro de 2015.
B) Em 4/5/2016, a Executada, SEF, S.A., entregou à Reclamante as chaves do imóvel e a Reclamante entregou a quantia de €50.000,00 à Executada SEF, S.A.
C) A partir de 4/5/2016, a Reclamante realizou diversas obras de manutenção, limpeza e conservação do imóvel em causa nos autos.
D) A partir de 4/5/2015, a Reclamante recebeu as rendas dos inquilinos relativas ao imóvel em causa nos autos.
[D] Suporta-se para tanto o Tribunal ad quo na suposta falta de credibilidade da prova testemunhal e por declarações de parte produzida pela Reclamante, decorrente da análise distorcida de tal prova e da imposição dum ónus probatório kafkiano relativamente a factos acessórios e/ou declarações instrumentais.
[E] Antes disso, porém, recorde-se que constitui objecto dos presentes a reclamação do despacho de 21.11.2018 proferido pelo Serviço de Finanças Feira 1 que recusa o reconhecimento e graduação do crédito reclamado pela ora Reclamante.
[F] Tal despacho tem como fundamento o teor citado pelo ponto 9. da matéria de facto assente, também vertido a fls. 6 do presente requerimento, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido por razões de economia processual.
[G] Constatamos que, analisado o seu teor, os fundamentos de recusa da graduação se reconduzem (a) à posterioridade da celebração do contrato promessa relativamente à data da penhora do imóvel e (b) à inexistência de prova documental da tradição do imóvel.
[H] Releve-se: inexistência, não falsidade nem ineficácia.
[I] A forma processual de reclamação do ato de órgão da execução fiscal tem como objectivo a sindicância da conformidade legal, ou não, dos atos proferidos pelos órgãos de execução, funcionando como um genuíno recurso duma decisão jurisdicional proferida por uma autoridade administrativa.
[J] Em consequência desta estrutura e fim peculiares, as questões submetidas à apreciação do Tribunal serão necessária e exclusivamente as constantes da fundamentação do despacho reclamado e do articulado de reclamação, cabendo à Representação da Fazenda Pública a comprovação da conformidade legal da decisão e não o seu aperfeiçoamento posterior.
[K] In casu, a sentença ora em crise ultrapassou largamente os poderes de cognição que lhe eram conferidos pela lei processual, julgando matéria não constante da decisão reclamada (e objecto do processo) e suscitada pela A.T. somente no articulado de resposta à reclamação (e, nalguns casos, somente mesmo nas alegações finais).
[L] É que só no articulado de resposta à reclamação é que a representação da Fazenda Pública vem alegar a invalidade dos contratos juntos à reclamação de créditos ou a inexistência de prova complementar aos mesmos.
[M] Estas questões novas, não constantes do despacho reclamado, não integram nem podem integrar objecto dos presentes autos e, por isso, o seu conhecimento encontrava-se vedado ao Tribunal ad quo.
[N] Ao Tribunal era exigido, outrossim, o conhecimento quer dos efeitos da posterioridade da celebração dos contratos em relação à data da penhora quer a existência, ou não, de prova documental da tradição do bem – tudo o demais analisado, designadamente a eficácia dos elementos documentais e os efeitos da relação contratual entre as partes, encontrava-se-lhe vedado, por não ter sido objecto de análise pelo órgão da execução fiscal.
[O] O teor dos documentos juntos pela Reclamante à reclamação de créditos nunca se encontrou em crise, pois o órgão da execução não questionou a sua validade e/ou eficácia, nem tão pouco refutou as respetivas assinaturas, limitando-se a alegar a sua inexistência – e, por isso, a eficácia probatória dos documentos, tal como disposta pelo artigo 376º do C.C., não foi abalada.
[P] E nos presentes autos não só comprovou a Reclamante que tal prova existia como corroborou ainda o seu teor.
[Q] Constitui causa de nulidade da sentença o conhecimento de questões de que o Tribunal não podia conhecer, o que consubstancia um excesso de pronúncia – cfr. artigo 125º, nº 1, do C.P.P.T.
[R] Nessa decorrência, a douta sentença ad quo, conhecendo de matérias cuja apreciação lhe estava vedada, padece de nulidade, por manifesto excesso de pronúncia, o que se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
[S] Caso assim não se entenda, sempre se diga que o Tribunal ad quo incorreu num manifesto erro de apreciação da prova, que inevitavelmente se reflectiu na determinação das matérias dadas como provada e não provada e na decisão final.
[T] Da análise realizada pela Reclamante, e a que estamos certos o Venerando Tribunal superior aderirá, resulta à saciedade que o Tribunal ad quo não esgrimiu um único argumento, racional e objetivo, que justifique o afastamento da credibilidade da prova testemunhal e por declarações produzida em audiência de julgamento.
[U] De facto, a análise da prova levada a cabo pelo Tribunal ad quo centra-se simultaneamente em declarações e factos acessórios á lide, assentando na imposição dum ónus kafkiano, e na desconsideração, pré-determinada e injustificada, da coerência e corroboração mútua dos elementos probatórios.
[V] No que aos pontos A) e B) da matéria de facto não provada concerne, defende o Tribunal ad quo que, destarte a eficácia probatória dos documentos juntos à reclamação de créditos e até da matéria dada como provada nos pontos 4. e 5., as declarações contantes de tais documentos não correspondem à realidade dos respectivos factos materiais.
[W] Isto porque diz ter encontrado uma série de contradições e fragilidade que contribuem para formar a convicção de que tais factos não ocorreram na realidade.
[X] A primeira fragilidade apontada pelo Tribunal ad quo consiste no facto de as declarações de parte da legal representante da Reclamante serem, pasme-se, declarações de parte, circunstância que entende fragilizar a força probatória das respetivas declarações.
[Y] Ora, constitui hoje jurisprudência e doutrina unânimes (como as citadas a fls 10 e 11 do presente requerimento) que é infundada e incorrecta a postura que desconsidera antecipadamente o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte no litígio.
[Z] É que, entendem os tribunais superiores e a maioria dos autores, ninguém terá melhor razão de ciência dos factos do que as partes – o que importa, outrossim, é filtrar adequadamente sinais transmitidos aquando do depoimento, como a contextualização espontânea dos acontecimentos, em termos temporais, espaciais e até emocionais; a descrição de cadeias de interacção; a existência de corroborações periféricas; a seguração e assertividade da fundamentação ou a vividez e espontaneidade das declarações.
[AA] E com segurança afirmamos que nenhum dos requisitos suscitados pela doutrina e/ou pela jurisprudência foi apontado como imperfeito ou ineficaz pelo Tribunal ad quo.
[BB] De facto, constatamos que, na sua ânsia de desconsideração das declarações da legal representante da Reclamante, o Tribunal ad quo assume precisamente a postura rejeitada pela doutrina e pela jurisprudência superior – parte do juízo “não credível porque interessada” para a análise das declarações, relevando assim primeiramente a qualidade da pessoa e só depois as suas declarações e desenvolvendo um juízo destinado unicamente à sua descredibilização.
[CC] E, não sendo tal suficiente, ainda se dedica a analisar factos e declarações acessórias, absolutamente irrelevantes para a análise do objecto do processo, e pretende impor um ónus probatório genuinamente kafkiano relativamente a esses factos e declarações acessórios.
[DD] Note-se que, exceptuada a circunstância de os pagamentos terem sido efectuados em numerário, e nesta matéria apenas invocando a sua opinião e sem qualquer fundamento objetivo válido, o Tribunal ad quo não aponta uma única discrepância ou incoerência dos depoimentos relativamente aos factos essenciais ao julgamento do objecto do processo.
[EE] Considera, desde logo, o Tribunal ad quo que as declarações da legal representante da Reclamante não são credíveis porque afirma (…) que os documentos que constam de fls. 85 a 94 do processo físico foram lançados na contabilidade, não tendo sido junto qualquer documento relativo à contabilidade da empresa ora Reclamante que o comprove.
[FF] Os documentos em apreço foram juntos aos autos por iniciativa do Tribunal (e não da Reclamante) no decurso da audiência de julgamento, aberta e encerrada no dia 22 de Fevereiro de 2019 e de cujo encerramento decorreu o encerramento da fase de instrução.
[GG] Foi, pois, o Tribunal quem determinou o relevo probatório de tais elementos documentais, suspendendo-se o encerramento da fase instrutória até à pronúncia da Fazenda Pública sobre os mesmos – à Reclamante estava, pois, vedada a produção de qualquer prova a esse respeito.
[HH] Mas, mesmo que assim não ocorresse, como poderia a Reclamante considerar a produção de prova de factos acessórios, por si não alegados e decorrentes de declarações periféricas da sua legal representante, sem qualquer relevo para a decisão da causa?
[II] Manter esta exigência probatória, que roça o desvario, teria como inevitável consequência a impossibilidade de concretizar o ónus probatório de qualquer facto, por necessidade de prova complementar sucessiva de cada um dos seus factos complementares.
[JJ] E o mesmo se diga da invocada ausência de prova da origem duma parte do valor entregue pela Reclamante à Executada – entende o Tribunal ad quo que não poderão ser valorizadas as declarações da sua legal representante porque, tendo afirmado que parte desse montante, 30.000,00€ foi-lhe entregue por um familiar (…), não arrolou o referido familiar como testemunha.
[KK] Considera pois o Tribunal ad quo que, mais relevante do que a legal representante da Reclamante declarar, sob juramento, que entregou tal valor ao legal representante da Executada, que, também sob juramento, declarou tê-lo recebido - declarações que objetivamente não coloca em causa -, era fazer prova de que 30.000,00€ dos 50.000,00€ foram mutuados por um familiar, levando-o a depor – se não fosse tão ridículo e revelador da pré-determinação do juízo do Tribunal relativamente à prova, teria até piada.
[LL] De igual sorte, considera o Tribunal ad quo que as declarações da legal representante da Reclamante não são de atender porque não foi junto aos autos qualquer documento que comprove a transferência (bancária ou por cheque) desse montante e respetivo destinatário e porque a entrega de tais quantias em numerário não é credível.
[MM] Quer a legal representante da Reclamante quer o legal representante da Executada (a testemunha MB) declararam, sob juramento, que os pagamentos efectuados/recebidos pelas respetivas representadas aconteceram em numerário e nas suas próprias pessoas – como poderia, então, a Reclamante juntar aos autos, como pretendia o Tribunal ad quo , qualquer documento comprovativo da transferência dos fundos?
[NN] E mais entende descredibilizar as declarações porque a entrega de tais quantias em numerário não é credível, atentas as regras da experiência – sem invocar, porém, qual o concreto facto ou declaração que permite concluir pela falsidade de tal ocorrência.
[OO] Invoca ainda o Tribunal ad quo uma alegada discrepância entre os depoimentos da legal representante da Reclamante e da testemunha MB relativamente ao local constante do aditamento ao contrato – mais um facto acessório e irrelevante para a decisão da causa.
[PP] De facto, do instrumento consta a menção “Guiné”, tendo ambos os declarantes assumido que foi assinado em Esmoriz, Portugal, e elaborado a responsabilidade da testemunha MB.
[QQ] O Tribunal ad quo decidiu centrar o seu juízo na suposta discrepância das declarações quanto o local da redacção do contrato – mais um facto acessório e irrelevante -, ignorando a coerência e uniformidade das declarações relativamente aos factos essenciais, como sejam o teor do instrumento contratual, as obrigações assumidas pelas partes, o local e a data da celebração ou a responsabilidade pela sua redução a escrito.
[RR] Acentue-se que, na sua busca por supostas incongruências nas declarações o Tribunal ad quo entra até em contradição com os seus próprios argumentos e chega a distorcer a ordem da produção da prova, afirmando que a testemunha fora inquirida pelo Representante da Fazenda Pública e depois inquirido pela mandatária da Reclamante, quando tal inquirição ocorreu precisamente ao contrário.
[SS] A Reclamante deixa, a fls. 13 a 19 do presente requerimento, referência mais completa a toda a prova produzida nos autos que demonstra o evidente erro de julgamento em que incorreu o Tribunal ad quo, para a qual se remete por razões de economia processual.
[TT] As declarações da legal representante da Reclamante e da testemunha MB corroboram, inequívoca e coerentemente, o teor dos elementos documentais juntos à reclamação de créditos que, recorde-se, o órgão de execução se limitou a afirmar não existirem.
[UU] Evidente fica, no entanto, que o juízo do Tribunal assenta numa exigência kafkiana de produção de prova, relativa quer a factos instrumentais/acessórios quer a factos não ocorridos, não discorrendo um único argumento que coloque em causa a coerência e credibilidade da prova relativamente aos factos essenciais à decisão da causa.
[VV] Impõe-se, assim, a correção do evidente erro de apreciação da prova em que incorreu o Tribunal ad quo, revogando-se a sentença em crise e dando-se outrossim como provados os pontos A) e B) da matéria de facto não provada.
[WW] E mutatis mutandis se diga quanto ao ponto C) da matéria de facto não provada – o Tribunal ad quo sustenta o seu juízo no facto de as faturas juntas pela Reclamante à reclamação de créditos não indicarem em que local foram realizadas, a que soma a falta de credibilidade das declarações da legal representante da Reclamante e da testemunha AB.
[XX] No que às declarações da legal representante da Reclamante concerne, supra ficou já exposto o ridículo dos argumentos que sustentam a suposta falta de credibilidade, que se dão por reproduzidos.
[YY] Quanto à testemunha AB, a posição do Tribunal não diverge do caricato que vem sendo demonstrado relativamente aos demais meios de prova – as declarações são desconsideradas porque alegadamente não se recordava com certeza de quais os serviços que foram prestados e porque a testemunha respondeu que não se recordava do que funcionava no interior do imóvel, chegando a afirmar que quanto à fatura de fls. 36, declarou que não foi ele quem fez as alegadas reparações.
[ZZ] Confrontada com os documentos que titulam o pagamento de obras, a identificada testemunha confirmou a sua emissão e a autoria da letra nela aposta, descrevendo, com lapsos pontuais de detalhe, os serviços a que cada uma correspondeu e localizando-os no pavilhão industrial detido pela Reclamante na zona industrial de Ovar.
[AAA] Mais contextualizou a testemunha, temporal e até afectivamente, cada uma das memórias que declarou, esclarecendo que, quanto ao serviço traduzido na fatura de fls. 36, por ter dificuldades de locomoção na subida de escadas, subcontratou a prestação do serviço a terceira pessoa, que acompanhou ao local e auxiliou na determinação das reparações a levar a cabo.
[BBB] Onde o Tribunal pretende fazer ver o desconhecimento do serviço prestado, afinal encontra-se apenas a subcontratação a terceiro, com o devido acompanhamento da obra e conhecimento direto e imediato dos factos.
[CCC] A fls. 20 a 23 do presente requerimento expõe a ora Recorrente, de forma detalhada, toda a prova produzida que revela a dimensão do erro em que incorreu o Tribunal ad quo, que dá por integralmente reproduzida por razões de economia processual.
[DDD] Constatamos, concluindo, que as declarações da testemunha AB se pautam pela espontaneidade, contextualização temporal e espacial e segurança e autenticidade, e que as razões que subjazem à pretensa descredibilização das declarações são, afinal, questões periféricas/acessórias, inúteis ao objecto do processo e alvo de conveniente descontextualização.
[EEE] Impõe-se, pois, a correção do manifesto erro de apreciação da prova e, revogando-se a sentença em crise, dar como provado o ponto C) da matéria de facto não provada.»
3. Não foram apresentadas contra-alegações.
3. A Mma Juiz a quo pronunciou-se sobre a suscitada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos constantes de fls. 195, dos autos de suporte físico.
4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo, foi dada vista nos autos à Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta que emitiu parecer, no sentido de acompanhar o entendimento vertido na sentença recorrida.
5. Foram dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo (artigo 657º, nº 4 do CPC e artigo 278º, nº 5 do CPPT), vêm os autos à Conferência da Secção do Contencioso Tributário deste TCAN para julgamento do recurso.
*
II - Questões a decidir:
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir: (i) se a sentença padece de nulidade por excesso de pronúncia; (ii) se a sentença incorreu em erro de julgamento de facto por valorar erradamente a prova produzida nos autos.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1 – OS FACTOS
Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A ora Reclamante dedica-se à compra, venda, administração e construção de prédios e compra de imóveis com destino a revenda, detenção e administração de participações sociais.
(cfr. certidão permanente de fls. 103 a 108 do processo físico, que foi junta aos autos pelo Tribunal ao abrigo do art. 13.º, n.º 1, do CPPT);
2. Contra a SEF, S.A., NIF n.º 50xxx55, foi instaurado o processo de execução fiscal (PEF) n.º 0094200601070452 por dívidas de IV A do ano de 2002, no valor de €17.165,95.
(cfr. docs. que constam de fls. 70 e 71 do P A em apenso);
3. Em 17/8/2011, e no âmbito do PEF n.º 0094200601070452, procedeu-se à penhora do prédio urbano sito na Zona Industrial O…, União de Freguesias de Ovar, São João, Arada e São vicente de Pereira Jusã, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 1380, descrito como edifício para indústria de confecção.
(cfr. docs. que constam de fls. 89 e 94 a 96 do PA em apenso);
4. Foi redigido um documento datado de 2/4/2015 e intitulado "contrato promessa de compra e venda", no qual a ora Reclamante e a Executada no PEF n.º 0094200601070452 (a SEF, S.A.), representada por MABB, declaram celebrar um contrato promessa de compra e venda, tendo como objecto o prédio urbano sito na Zona Industrial O…, União de Freguesias de Ovar, São João, Arada e São vicente de Pereira Jusã, descrito na Conservatória do registo predial de Ovar sob o n.º 138O, correspondente a uma indústria de confecção.
(cfr. contrato promessa a fls. 60 a 61 do PA em apenso - cujas assinaturas não foram impugnadas pela Fazenda Pública, não tendo, esta, posto em causa a autoria do documento - cfr. arts. 374.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do CC);
5. Do contrato referido no ponto anterior, o qual se dá, aqui, por reproduzido, consta o seguinte:
«(. . .)
CONTRAENTES:
-SEF, SA.« (. . .) «PRIMEIRA CONTRAENTE E PROMITENTE VENDEDORA
- GI, SA» (. . .) « SEGUNDA CONTRAENTE E PROMITENTE COMPRADORA.»
(…)
SEGUNDA: Pelo presente Contrato, a PRIMEIRA CONTRAENTE promete vender à SEGUNDA CONTRAENTE, que por sua vez promete comprar, o prédio descrito na cláusula primeira, pelo valor de 90.000,00 (noventa mil euros), pago da seguinte forma:
a) Entregar na data de assinatura do presente Contrato como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 900,00 (novecentos euros) da qual a PRIMEIRA CONTRAENTE com a respectiva quitação.
b) Entregar nos nove meses seguintes à assinatura do presente contrato, Abril de 2015 a Dezembro de 2015) a quantia de 900,00 (novecentos euros), como reforço de sinal, até ao fim do mês em curso, perfazendo as entregas o montante de 8.100,00.
c) Na data da Escritura definitiva de compra e venda, os compradores entregarão a restante quantia, de 81.000,00 (oitenta e um mil euros),»
(…)
QUARTA: A Escritura definitiva de compra e venda será outorgada até ao dia 03/04/2017, cabendo à PRIMEIRA OUTORGANTE o agendamento do dia e hora, e respectiva comunicação à SEGUNDA OUTORGANTE; A comunicação deverá ser efectuada por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 15 dias, para a morada constante do presente contrato.
QUINTA: Caso o prazo estipulado seja desrespeitado por qualquer uma das partes, cabe à contraparte, o direito de resolver o presente contrato, implicando para a Segunda a perda do sinal e para a Primeira, a devolução do sinal em dobro. (…).».
(cfr. contrato promessa a fls. 60 a 61 do PA em apenso);
6. Foi redigido um documento datado de 4/5/2016 e intitulado "aditamento", o
qual se dá, aqui, por reproduzido e do qual consta o seguinte:
«(…)
PRIMEIRA CONTRAENTE – SEF, S.A.,» (…)
«SEGUNDA CONTRAENTE – GI, S.A.»,(…)
«SEGUNDO: Relativamente ao preço devido pela prometida venda a Segunda Contraente entregou já à Primeira Contraente a quantia de 9.000,00 Euros, em cumprimento do disposto na Cláusula segunda do referido contrato, do que a Primeira Contraente dá plena quitação.
(…)
QUARTO: Por conta do preço devido pela celebração do contrato prometido, a Segunda Contraente, solicitação da Primeira Contraente, faz entrega nesta data da quantia de 50.000,00 Euros (CINQUENTA MIL EUROS), de que a Primeira Contraente dá plena quitação,
(…)
SÉTIMA: Em face do pagamento ora efectuado a Primeira Contraente, nesta data, faz entrega das chaves correspondentes ao imóvel prometido vender, autorizando expressamente a Primeira Contraente a tornar posse do mesmo, autorizando-a ainda a arrendá-lo e fazer suas as rendas pagas pelos actuais inquilinos ou por quem lhes venha a suceder.
(…).».
(cfr. doc. a fls. 62 do P A em apenso - cujas assinaturas não foram impugnadas pela Fazenda Pública, pelo que se consideram verdadeiras, não tendo esta impugnado, assim, a respectiva autoria - cfr. arts. 374.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do CC);
7. Em 30/05/2018, GI, S.A., ora Reclamante, apresentou reclamação de créditos, no âmbito da execução n.º 0094200601070452, a qual se dá, aqui, por reproduzida e na qual pede que seja reconhecido o direito de crédito da Reclamante, sobre a Executada, no montante de 118.000,00 Euros, acrescido de juros, à taxa legal vigente; e que seja reconhecido o direito de retenção sobre o prédio objecto do contrato-promessa referido, até que lhe seja paga a quantia reclamada, e, consequentemente, seja reconhecido o direito de ser paga com preferência em relação a todos os demais credores, com o produto da venda do imóvel penhorado, prevalecendo o direito da Reclamante sobre eventuais direitos de hipoteca e/ou penhoras, independentemente da data da constituição.
(cfr doc. que consta de fls. 54 a 59 do P A em apenso);
8. Em 22/6/2018, procedeu-se à venda do bem penhorado no âmbito do PEF n.º 0094200601070452, pelo valor de €222.200,00.
(cfr. doc. que consta de fls. 98 do P A em apenso),
9. Em 21/11/2018, foi proferido despacho pelo Chefe do Serviço de Finanças de Aveiro, o qual se dá, aqui, por reproduzido, e do qual consta o seguinte:
«(…)
Decisão
O credor GI, SA NIF 50xxx36, em 01-06-2018, apresentou a petição para reclamar o seu crédito no valor de 118.000,00, dentro do prazo estipulado no art. 2400 do CPPT. Nos termos do art. 240º, n.º 1 do CPPT, podem reclamar créditos os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados. Ora, à data da penhora (2011/08/17) a reclamante GI, S.A., NIF 50xxx36, não era ainda promitente-comprador do prédio objeto de venda (contrato promessa de compra e venda datado de 2015/04/02), nem gozava da tradição da coisa, pelo que não detinha ainda um direito real de garantia.
Com efeito, os atos de disposição e oneração dos bens penhorados são inoponíveis à execução, nos termos do art. 819 do Código Civil.
Sem prescindir:
Do contrato apresentado não resulta que tenha havido tradição. As faturas apresentadas (DOC 3 e DOC 4) não identificam o imóvel a que respeitam, delas não se podendo extrair a tradição do mesmo.
Ainda que o direito de retenção não careça de ser reconhecido ou declarado por sentença, (conforme argumenta a reclamante na sua petição), para operar os seus efeitos, sempre a reclamante terá que fazer prova dos seus pressupostos. No presente caso não é feita a prova da tradição do imóvel.
Pelo anteriormente descrito, verificando-se que o contrato promessa apresentado é posterior à penhora da Autoridade Tributária e face: à inexistência de prova documental da tradição do bem subjacente ao direito de retenção invocado, pela firma GI, S.A., NIF 50xxx36, não reconheço o crédito reclamado pela mesma, ficando desde já excluída da presente verificação e graduação de créditos.
(…).».
(cfr. fls. 101,102 e 103 do PA em apenso);
10. Em 30/11/2018, a presente reclamação foi apresentada no Serviço de Finanças da Feira -l.
(cfr. Informação a fls. 47 do processo físico).
A decisão quanto à matéria de facto dada como provada realizou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, conforme é especificado nos vários pontos da matéria de facto provada.
Com interesse para a decisão da causa, não ficaram provados os seguintes factos:
A) A Reclamante pagou à Executada a quantia de €900,00 em 2/4/2015 e a quantia de €8.100,00 no período entre Abril e Dezembro de 2015.
B) Em 4/5/2016, a Executada, SEF, S.A., entregou a Reclamante as chaves do imóvel e a Reclamante entregou a quantia de €50.000,00 à Executada SEF, S.A.
C) A partir de 4/5/2016, a Reclamante realizou diversas obras de manutenção, limpeza e conservação do imóvel em causa nos autos.
D) A partir de 4/5/2015, a Reclamante recebeu as rendas dos inquilinos relativas ao imóvel em causa nos autos.
Relativamente ao facto dado como não provado na alínea A), apesar do facto dado como provado nos pontos 4 e 5 do probatório, o Tribunal não se encontra impedido de conhecer da veracidade do teor do documento que consta dos referidos pontos do probatório. Como explica o Supremo Tribunal de Justiça, no ac. de 9/12/2008, proferido no proc. n.º 08A3665, «(...) Quanto à sua força probatória dispõe o artigo 376º do mesmo diploma legal que "o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento" (nº 1), sendo que "os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante" (nº 2). A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência e de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito (José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 248 e 249). Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos. É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas. Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, edição, Coimbra, 1985, página 523, nota 3). Com tudo isto queremos dizer que, sendo certo que os RR. produziram o documentado a fls. 9., nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do seu teor, nomeadamente através da prova testemunhal produzida: é que, como referido, a eficácia probatória de um documento diz apenas respeito à materialidade das declarações e já não à exactidão das mesmas.». Assim, apesar de terem sido juntos pela Reclamante vários documentos em que MABB declara que recebeu da SEF, S.A., o montante de €900,00, correspondente à primeira prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 2/4/2015); o montante de €900,00, como segunda prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 30/4/2015); o montante de €900,00, correspondente à terceira prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 29/5/2015); o montante de €900,00, correspondente à quarta prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 30/6/2015); o montante de €900,00, correspondente à quinta prestação acordada no contrato referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 31/7/2015); o montante de €900,00, correspondente à sexta prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 31/8/201; o montante de €900,00, correspondente à sétima prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 30/6/2015); o montante de €900,00, correspondente à oitava prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 30/10/2015); o montante de €900,00, correspondente à nona prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 30/11/201 ); o montante de €900,00, correspondente à décima prestação acordada no contrato promessa referido no ponto 4 do probatório (documento datado de 31/12/2015) - cfr. docs. que constam de fls. 85 a 94 do processo físico), considera o Tribunal que tais declarações não correspondem à realidade dos respectivos factos materiais. E isto na medida em que, primeiro e como já referido, tais documentos, assim como o contrato promessa de compra e venda, não provarem, por si, que as declarações neles contidas correspondem à realidade dos respectivos factos materiais. E depois na medida em que a prova testemunhal produzida revela-se repleta de contradições e fragilidades que contribuem fortemente para formar a convicção de que tais factos não ocorreram na realidade. As declarações prestadas por JCSR, enquanto administradora da Reclamante, são, precisamente, declarações prestadas por quem é parte, e tal facto acaba por fragilizar a força probatória das respectivas declarações. Além disso, algumas das declarações prestadas demonstram ser inverosímeis e algumas contraditórias tendo em conta informações que constam de documentos juntos aos autos, o que enfraquece a força probatória das declarações prestadas na sua globalidade. Designadamente, afirmou JCSR que os documentos que constam de fls. 85 a 94 do processo físico foram lançados na contabilidade, não tendo sido junto qualquer documento relativo à contabilidade da empresa ora reclamante que o comprove; afirmou que entregou em 2/4/2015 e de Abril a Dezembro desse ano o montante de €9.000,00, não constando qualquer documento que comprove a transferência (bancária ou por cheque) desse montante e o respectivo destinatário; afirmou que entregou o montante de €50.000,00 em 4/5/2016, e que todas as quantias entregues foram entregues em numerário. Ora, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. art. 607, nº 5, do CPC). No caso, e de acordo com a experiência de vida e conhecimento do modo como operam as sociedade, toma-se inverosímil que uma sociedade faça uma entrega de valores elevados sem ser por cheque ou por transferência bancária. A entrega de tais montantes em numerário não é credível, atentas as regras da experiência. Há, ainda, que referir que JCSR afirmou que a AAD, Lda., enquanto arrendatária do imóvel em causa nos autos, efectuou obras nesse imóvel no valor de €270.000,00, e na audiência de julgamento afirma que desconhece os pormenores relativos à realização de tais obras, por exemplo o tempo que as mesmas demoraram, na medida em que quando assumiu a gerência da AAD as obras já se encontravam concluídas. Ora, compulsados os autos, verifica-se que em Agosto de 2015 foi celebrado contrato de arrendamento entre a SEF, S.A., e a AAD (cfr. fls. 68 e 69 do processo físico) e que da certidão permanente da AAD consta que à data da celebração do contrato de arrendamento entre esta e SEF, S.A., a GI, ora Reclamante, era sócia maioritária da AAD, e analisada a certidão permanente da ora Reclamante verifica-se que, nessa data, da celebração do contrato de arrendamento, JCSR era administradora única da GI - cfr. certidões a fls. 103 a 112 do processo físico, que foram juntas aos autos pelo Tribunal ao abrigo do art. 13.º, n.º 1, do CPPT, por decisão proferida em sede de audiência de julgamento. Pelo que se torna inverosímil que JCSR não tivesse conhecimento pormenorizado das obras realizadas pela AAD no imóvel em causa nos autos. Assim como JCSR afirmou que entregou o montante de €50.000,00 em 4/5/2016, em numerário, e que parte desse montante, €30.000,00, foi-lhe entregue por um familiar, quando não arrolou o referido familiar como testemunha para corroborar tal afirmação. Há, ainda, que referir uma outra contradição, que acaba por, igualmente, contribuir para a perda de credibilidade do depoimento prestado por MABB. JCSR afirmou que o aditamento ao contrato-promessa de compra e venda foi elaborado por MABB, não negando que o tenha sido na Guiné, dada a referência feita no aditamento ao contrato-promessa, mas assinado nos escritórios da GI. Já MABB afirma que os contratos foram redigidos pelo seu advogado em Portugal, embora, inicialmente, não evidencie certezas quanto a quem elaborou os contratos. A falta de credibilidade das declarações prestadas por JCSR reside, ainda, no facto de na respectiva petição inicial ter alegado, para efeitos de provar a traditio do prédio em causa nos autos, que a partir do momento em que alegadamente lhe foram entregues as chaves do imóvel ter passado a receber as rendas, e, posteriormente, através de requerimento apresentado no processo físico e na própria audiência, ter afirmado que não tinha recebido quaisquer rendas, pois não havia rendas a receber. A convicção do Tribunal em não dar como provado o referido facto alicerça-se, ainda, no facto de não reconhecer credibilidade ao depoimento prestado por MABB, não só devido a contradição já referida entre o seu depoimento e as declarações prestadas pela administradora da ora reclamante, como pelo facto de no início da inquirição ter respondido que não se recordava em que anos fez parte do Conselho de Administração da SEF, mas, ao ser inquirido pela mandatária da Reclamante, já saber responder às perguntas com exactidão, designadamente se em 2015 e em 2016 fazia parte do Conselho de Administração. Afirmou, ainda, não se recordar de quem escreveu o contrato, embora acabe por afirmar que o mesmo foi elaborado pelo seu advogado em Portugal. No entanto e apesar de não se recordar de tais circunstâncias ínsitas a todo o circunstancialismo que envolveu a assinatura dos contratos e de demonstrar hesitações no momento de responder a tais perguntas feitas pelo Representante da Fazenda Pública, depois, ao ser inquirido pela mandatária da Reclamante, demonstra recordar-se com pormenor das datas em que foi celebrado o contrato promessa e o aditamento, assim como das datas em que recebeu os montantes indicados pela Reclamante, assim como dos montantes recebidos. As incongruências, contradições, as hesitações, a falta de aproximação à realidade da forma como alegadamente ocorreram as operações de entrega de quantias monetárias, formaram a convicção no Tribunal de que as referidas entregas de dinheiro não ocorreram, devido, essencialmente, à falta de credibilidade dos depoimentos prestados e, consequentemente, a falta de força probatória dos mesmos. E, como resulta do art. 342.º, n.º 1, do CC, cabia à Reclamante provar tal facto, o que não ocorreu pelos motivos expostos.
Quanto ao facto dado como não provado na alínea B), a convicção do Tribunal fundou-se, mais uma vez, e nos termos já acima expostos, na falta de credibilidade dos depoimentos prestados pela administradora da ora Reclamante e por MABB. Além do que e como já o que consta no aditamento ao contrato-promessa só faz prova de que foi redigido o referido documento e que tais declarações foram prestadas. Cabia, então, à Reclamante provar que entregou os €50.000,00 e que recebeu as chaves do imóvel. Sendo que a prova testemunhal produzida não contribui para formar a convicção de que tais factos ocorreram, devido às contradições e falta de credibilidade da mesma, o Tribunal conclui que os referidos factos não foram provados pela Reclamante.
No que concerne ao facto dado como não provado na alínea C), foram juntas pela Reclamante duas facturas, as quais se dão, aqui, por reproduzidas, uma emitida por «TSPS, AMSB », dirigida à Reclamante, no valor de €1.290,43, datada de 22/3/2018, e na qual se refere que foram prestados serviços nas instalações da Reclamante; e outra factura emitida por «SPS, AMSB », dirigida à Reclamante, no valor de €274,61, datada de 12/4/2017, e na qual se refere que foi realizada obra de reabilitação em imóvel - cfr. facturas que constam de fls. 36 e 37 do processo físico e prova testemunhal. Porém, tais facturas não indicam em que imóvel tais obras foram realizadas. Quanto às declarações prestadas pela administradora da ora Reclamante, como já se referiu, o Tribunal entende que as mesmas não merecem credibilidade, na sua globalidade. Quanto ao depoimento prestado por AMSB, este confirmou que emitiu as referidas facturas, uma vez confrontado com as mesmas, mas não se recordava com certeza de quais os serviços que foram prestados à GI, afirmando que "pensava" serem relativas a determinados serviços em funções dos valores nelas indicados. Quanto à descrição do imóvel, importante para concluir que as alegadas obras foram realizadas no imóvel em causa nos autos, aquela não permite concluir que a testemunha se referia ao imóvel aqui em causa. Isto na medida em que a testemunha respondeu que não se recordava do que funcionava no interior do imóvel. Afirma que o mesmo se localizava na zona industrial O…. Porém, a verdade é que nessa zona industrial podem existir outros imóveis. E isto igualmente em virtude de a testemunha ter afirmado realizar obras para a Reclamante "às vezes". E, quanto à factura de fls. 36, declarou que não foi ele quem fez as alegadas reparações. Ou seja, o depoimento prestado pela testemunha não permite ao Tribunal concluir que as obras indicadas nas facturas juntas aos autos foram de facto realizadas no imóvel em causa nos autos.
Quanto ao facto dado como não provado na aI. D), a própria Reclamante alega que em Maio de 2015 a Executada, a SEF, S.A, celebrou contrato de arrendamento sobre o imóvel em causa com a sociedade AAD, Lda., nos termos do qual a arrendatária AAD ficaria dispensada do pagamento de renda pelo período de 12 meses, ou seja, de Agosto de 2015 a Julho de 2016 - cfr., ainda, o contrato de arrendamento referido, que consta de fls. 68 a 69 do processo físico, e que se dá, aqui, por reproduzido. A Reclamante alega, ainda, que a própria Reclamante e a AAD acordaram que de Agosto de 2016 a Julho de 2020 a AAD não teria de pagar qualquer renda - cfr. requerimento junto pela Reclamante e que consta de fls. 66 e 67 do processo físico.
Nada mais foi dado como prov ado ou como não provado com interesse para a decisão da causa.
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2 - O DIREITO
2.1. Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia
Está em causa no presente recurso a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a reclamação judicial, que teve por objecto o despacho do órgão de execução fiscal que não reconheceu o crédito reclamando pela aqui Recorrente, com o fundamento de que não resultou provado a tradição do imóvel, nem o pagamento das quantias a título de sinal ao abrigo do contrato-promessa e respectivo aditamento, nem que o incumprimento do aludido contrato seja imputável ao promitente-vendedor.
A Recorrente invoca a nulidade da sentença nos termos do disposto artigo 125.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por o tribunal a quo ter ultrapassado os poderes de cognição que lhe eram conferidos pela lei processual, julgando matéria não constante da decisão reclamada (e objecto do processo) e suscitada pela AT somente no articulado de resposta à reclamação (e, nalguns casos, somente mesmo nas alegações), ou seja, a invalidade dos contratos juntos à reclamação de créditos ou a inexistência de prova complementar aos mesmos.
A Mma. Juiz a quo sustentou a inexistência da invocada nulidade por excesso de pronúncia, posição com a qual concordou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta.
Vejamos, então.
Nos termos do artigo 125.º, n.º 1, do CPPT constituem causas de nulidade da sentença (…), a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer.
Por sua vez, o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT preceitua que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está directamente relacionada com o dever que é imposto ao juiz pela segunda parte do n.º 2 do actual artigo 608.º do CPC, ao estabelecer que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
O excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal decide uma questão que não foi chamado a resolver, isto é, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido.
Assim, a sentença em que o Juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que a parte colocou na base (causa de pedir) das suas conclusões (pedido) deve considerar-se nula, por vício de ultra petita.
No caso sub judice, manifestamente, a Recorrente não tem razão.
Lidas as alegações de recurso retira-se a conclusão que a Recorrente defende que o objecto da reclamação judicial é o despacho de 21/11/2018, proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Feira 1 que recusa o reconhecimento e graduação do crédito reclamado, e que tal despacho tem como fundamento a posterioridade da celebração do contrato promessa relativamente à data da penhora do imóvel e a inexistência de prova documental da tradição do imóvel, pelo que, as questões submetidas à apreciação do tribunal são as constantes da fundamentação do despacho reclamado e do articulado de reclamação.
Olhando agora a petição inicial, constata-se que foram alegados factos relativos ao contrato-promessa de compra e venda do imóvel e ao seu aditamento (pontos 4 e 9), à cláusula do contrato que prevê a entrega das chaves do imóvel (pontos 11 e 12) ao pagamento do sinal e pagamentos posteriores (pontos 5, 6, 7 e 10), recebimento de rendas (pontos 13 e 14) e à falta de interesse na realização da escritura por parte da promitente-vendedora por se ter mantido no mais absoluto silêncio (ponto 17).
A resposta da Fazenda Pública de fls. 56 a 60, dos autos de suporte físico, pronuncia-se sobre os argumentos apresentados pela Reclamante.
Na sentença recorrida, a Mma. Juiz a quo julgou a reclamação improcedente registando, em síntese a seguinte fundamentação:
«Uma vez que o objecto da presente reclamação é o despacho praticado pelo órgão de execução fiscal, é sobre a actuação tributária tal como ela ocorreu que irá incidir a apreciação do tribunal.
(…)
Como tal, o facto de o direito real de garantia invocado pela Reclamante se ter alegadamente constituído antes da penhora do bem não impede o reconhecimento do crédito, nos termos do art. 819.º do CC, pois o que com este artigo se visa garantir é que a existência de tal direito não impeça o prosseguimento da execução.
Quanto ao segundo fundamento invocado pela A T para não reconhecer o crédito invocado pela Reclamante, ou seja, quanto a saber se a Reclamante provou a existência da traditio e, como tal, do direito de retenção, vejamos.
Como é entendido de forma unânime, o direito de retenção é um direito real de garantia, e não simples instrumento de coerção. Quanto aos pressupostos de que depende o reconhecimento do direito de retenção nos termos do art. 755.º, n.º, al. f), a lei basta-se com a demonstração: (i) da existência de um contrato promessa de compra e venda de uma coisa; (ii) que essa coisa tenha sido entregue ao promitente comprador; (iii) que a compra e venda se não, venha a realizar por causa imputável ao promitente vendedor; (iv) existência de um crédito relativo ao dobro do sinal (ou qualquer dos outros direitos consignados no art. 442º do CC). Ou seja, para a constituição da retenção não se exige sequer a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente a contraparte, em virtude do incumprimento do contrato-promessa. Por sua vez, para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente, é suficiente uma traditio ficta - a entrega de um objecto que representa simbolicamente a coisa e permita a actuação material sobre ela. É o que ocorre, frequentemente, no caso de prédios urbanos ou de fracções de prédio urbano, em que basta para a realização da traditio a entrega das chaves - que não ocorra no local - que permitam aceder aqueles bens. A tradição material é a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões. (cfr., a título meramente exemplificativo, os acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2014, no proc. n.º 1729/12.6; do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/1/2016, no proc. n.º 464/12.0; do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/17/013, no proc. n.º 511/10.0).
No caso sob apreciação, resulta do probatório que foi dado como não provado que à Reclamante tenham sido entregues as chaves do imóvel e que esta tenha realizado diversas obras de melhoria, conservação no imóvel. Assim como foi dado como não provado que a partir de 4/5/2016 tenha recebido as rendas relativas ao arrendamento do imóvel em causa nos autos (cfr. alíneas B), C), e D) dos factos dados como não provados).
Ou seja, resulta do probatório que não ocorreu sequer a tradição simbólica do imóvel, e resulta do probatório que não foram praticados actos que demonstrassem que a Reclamante passou a aceder a esse imóvel como se sobre o mesmo detivesse a respectiva posse, em virtude do "abandono" do mesmo pelo seu proprietário e da sua apropriação pela ora Reclamante.
Como tal, e com base no já referido, não se verificando uma das condições
essenciais para a formação do direito de retenção - a traditio - há que concluir pela inexistência desse direito.»
Assim se vê que o Tribunal a quo limitou-se a apreciar as questões que foram invocadas, sendo certo que a qualificação jurídica dos factos é do conhecimento oficioso.
Como já se deixou expresso, na resposta da Fazenda Pública também não se vislumbra qualquer alegação relativa à invalidade dos aludidos contratos; naquele articulado analisou-se os contratos como meio de prova para corroborar os factos alegados pela Reclamante.
A expressão “invalidade do contrato” é uma expressão ambígua, não tendo a Recorrente esclarecido em que sentido a usa, mas na doutrina, jurisprudência e legislação é entendida com o significado técnico, segundo o qual ela qualifica o tipo de ineficácia integrado pela nulidade e anulabilidade.
Uma coisa é a invalidade do contrato-promessa de compra e venda e seu aditamento, outra, bem diferente, é a força probatória do referido contrato e das declarações constantes do mesmo, que em conjugação com a prova testemunhal produzida nos autos, impunha-se ao Tribunal a quo que apreciasse e decidisse.
À Recorrente competia o ónus da prova do alegado direito de retenção e ao Tribunal cumpria apreciar se se verificavam ou não, no caso concreto, os pressupostos de que dependia o reconhecimento do aludido direito de retenção, com base nos factos alegados pelas partes e com a prova produzida nos autos.
O instituto do ónus da prova encontra-se ligado, intimamente e de forma directa, à actividade das partes, ao tentarem, com os meios de prova disponíveis, fazer a demonstração dos factos alegados que convençam o juiz da sua pretensão, ou contra-pretensão, isto é, persuadindo o juiz da existência dos factos que servem de sustentação à base legal da sua pretensão ou esgrimindo argumentos contrários que convenção o julgador da inexistência desses factos (artigos 342 Código Civil e 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária).
In casu, a sentença recorrida o que fez foi apreciar e decidir a causa, com base nos factos alegados e na prova produzida nos autos, não se vislumbrando a invocação e apreciação da invalidade dos contratos, e quanto à inexistência de prova complementar aos mesmos, não configura questão nova, antes tem a ver com o ónus probandi, no caso concreto, como resulta da decisão sob recurso, por não resultarem dos autos provas bastantes e suficientes dos factos alegados, sem esquecer que foi a Recorrente quem produziu prova testemunhal e declarações de parte, impondo-se, por isso, ao Juiz a quo a sua valoração, e a existir erro nessa valoração, estamos face a erro de julgamento e não já excesso de pronúncia.
Como bem refere a Mma Juiz a quo, no despacho proferido nos termos do n.º 1, do artigo 617.º do CPC, no presente caso, a sentença proferida apenas se pronunciou sobre aquilo que lhe foi pedido: a legalidade da decisão objecto de reclamação e a substituição da mesma por outra que reconhecesse o crédito reclamado pela Reclamante e a graduação do mesmo como crédito privilegiado.
Pelo exposto, o Tribunal a quo moveu-se dentro dos parâmetros das questões que lhe foram postas pelas partes, pelo que a sentença não incorreu em pronúncia excessiva.
Não se verifica, pois, a nulidade imputada pela Recorrente à sentença.
2.2. Do erro de julgamento da matéria de facto por errada valoração da prova produzida nos autos.
A Recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de apreciação da prova, pretendo que os factos constantes das alíneas A), B) e C) da matéria de facto não provada, sejam dados como provados, por em seu entender as declarações da legal representante da Recorrente e o depoimento das testemunhas MB e AB corroborarem o teor dos elementos documentais juntos à reclamação de créditos.
Afirma que o juízo do Tribunal assenta numa exigência kafkiana de produção de prova, relativa quer a factos instrumentais/acessórios quer a factos não ocorridos, não discorrendo um único argumento que coloque em causa a coerência e credibilidade relativamente aos factos essenciais.
Os factos questionados pela Recorrente como não provados encontram-se descritos supra, bem como a motivação para esse juízo exarada na sentença.
Vejamos.
Para legitimar o TCA a corrigir a matéria de facto dada como provada na primeira instância por erro de apreciação das provas seria necessário que os meios de prova indicados determinassem decisão diversa da que foi proferida.
Preceitua o artigo 341.º do Código Civil (CC) que As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Nos termos do n.º 5, do artigo 607.º do CPC, as provas estão submetidas à livre apreciação pelo tribunal recorrido, sendo que o princípio da livre apreciação da prova só cede perante situações de prova legal que fundamentalmente se verifica nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais (artigos 350.º, n.º 1, 358.º, 371.º e 376.º, todos do Código Civil).
No caso em apreço, a Recorrente impugna a matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (documentos particulares cujas assinaturas não foram reconhecidas presencialmente, declarações de parte e depoimentos de testemunhas).
A este Tribunal ad quem, nos limites objectivo e subjectivo do recurso, cumpre reapreciar as provas e após formação de convicção própria e autónoma quanto à matéria de facto impugnada, aderir ao formulado pelo tribunal a quo, se achar que a convicção se sustente objectiva e ajustadamente nos meios de prova disponíveis, ou introduzir modificações na medida em que ache que estes conduzem a distinta ilação.
Nas palavras de Ana Luísa de Passos Martins Silva Geraldes « (…) nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido. O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade. Conforme se salienta no Ac. do STJ, de 1/07/2010 (www.dgsi.pt),sendo embora certo que o recurso não significa um julgamento ex novo, mas a reapreciação da decisão recorrida, daí não pode inferir-se, como decorre de uma certa corrente jurisprudencial que ainda se revela em alguns Tribunais de 2ª instância, que essa reapreciação não imponha da parte da Relação a formação de uma convicção própria que deverá ser cotejada com aquela que está em causa e posteriormente firmada e decidida em conformidade.» (in “Impugnação e Reapreciação da Decisão da Matéria de Facto, pág. 18).
Conforme resulta dos autos, em suma, a Recorrente deduziu reclamação de créditos no âmbito do processo executivo fiscal n.º 0094200601070452, no valor total de € 118.000,00, relativo ao valor do sinal e princípio de pagamento em contrato-promessa de compra e venda, crédito que não foi admitido pelo órgão de execução fiscal, com fundamento no facto do contrato-promessa ser posterior à penhora e por inexistência de prova documental da tradição do bem subjacente ao direito de retenção; e tendo deduzido reclamação desta decisão para o TAF de Aveiro, foi a mesma julgada improcedente, por não se verificar uma das condições essenciais para a formação do direito de retenção – a traditio.
Assim, em crise nos autos está a questão de saber se a Recorrente demonstrou a traditio da coisa objecto mediato do contrato prometido antes do incumprimento do contrato-promessa, mediante a prova dos factos dados como não provados na decisão sobre a matéria de facto.
Este Tribunal ouviu a totalidade da prova, o depoimento das testemunhas e as declarações de parte da administradora da Recorrente, e analisou a prova documental.
O quadro legal que se convoca para avaliar da decisão de facto começa por assentar no princípio da livre apreciação das provas, com dados objectivos, para a formação da convicção, lógico-intuitiva e motivada; e, paralelamente, à parte onerada com o ónus da prova exige-se o dispêndio de esforço necessário ao nível de convencimento probabilístico, na certeza de que lhe desaproveita um certo patamar de dúvida, tido como inadequado a um juízo de certeza aceitável (artigos 346.º do CC e 414.º do CPC); a que se segue a reavaliação das provas.
O juiz aprecia livremente a prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, nos termos do n.º 5, do artigo 607.º do CPC, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas.
O princípio da livre apreciação da prova só não domina quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei, como por exemplo, a força probatória plena dos documentos autênticos (art. 371.º do CC; vide Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág.566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
Regressando ao caso dos autos.
Estão em crise os factos vertidos em A), B) e C) da matéria de facto não provada.
Na decisão sob recurso foi dado como não provado:
A) A reclamante pagou à Exequente a quantia de € 900,00 em 2/4/2015 e a quantia de € 8.100,00 no período entre Abril e Dezembro de 2015.
B) Em 4/5/2016, a Executada, SEF, S.A., entregou à Reclamante as chaves do imóvel e a Reclamante entregou a quantia de €50.000,00 à Executada SEF, S.A.
C) A partir de 04/05/2016, a Reclamante realizou diversas obras de manutenção, limpeza e conservação do imóvel em causa nos autos.
Ora, como se refere, e bem, na decisão da matéria de facto, os documentos juntos à reclamação de crédito – contrato promessa de compra e venda e declarações de quitação – não declaram por si se as declarações nelas contidas correspondem à realidade dos respectivos factos materiais.
Por outro lado, não é credível que uma sociedade, como a Recorrente, faça entrega de valores monetários elevados em numerário, sobretudo numa situação de cumprimento de um contrato promessa de compra e venda de um imóvel que se encontra onerado com uma penhora, atentas as regras de experiência.
Com efeito, na factura n.º 0019 da “TS”, que constitui o documento n.º 3 da reclamação de créditos, no valor de € 1.290,43, foi manuscrito “Pago ch. n.º 70xxx29/BCP a 15/05/2018 500,00 + che. n.º 090xxx14/NB a 17/05/2018 de 719,43”.
Assim, quando está em causa o valor de € 1.290,43, a Recorrente efectua o pagamento através de cheque, e quando estão em causa valores elevados efectua o pagamento em numerário, colocando-se voluntariamente em posição muito difícil na prova do cumprimento do contrato promessa em apreço, sendo que a Recorrente é uma sociedade que se dedica à compra e venda de prédios (ponto 1 da matéria de facto dada como provada).
Não se olvida que a administradora da Recorrente, JSR, afirmou que entregou as quantias em numerário a MBB, gerente da promitente vendedora, e que este também confirmou que recebeu as referidas quantias no escritório da “GI”, bem como confirmaram a entrega das chaves do imóvel, porém, quanto a outros factos relevantes as declarações foram contraditórias, ou não souberam esclarecer, por não saberem ou não se lembrarem.
Sobre as declarações de parte pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 11/10/2017, processo n.º 568/16.0T8FNC.l1 4ª Secção, que sufragamos na íntegra, cuja sumário transcrevemos: «1 - Desde a entrada em vigor do actual CPC - aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho - as declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, sendo valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova.
II - Essas declarações devem, porém, ser atendidas e valoradas com algum cuidado uma vez que são declarações de pessoas interessadas no desfecho da acção, e, por conseguinte, tendencialmente parciais, vindo a jurisprudência a entender que, quanto a factos essenciais e que são favoráveis à parte, as respectivas declarações serão, em princípio, insuficientes, só por si, desacompanhadas de outras provas, para as sustentar.» (disponível em http://www.pgdlisboa.pt/).
É justamente o caso dos autos, em que a fragilidade da prova produzida e as contradições contribuem para formar a convicção de que os factos alegados não ocorreram na realidade.
Na motivação da matéria de facto, a Mma. Juiz a quo indicou de forma pormenorizada, quiçá exaustiva, os motivos que a determinaram a formular o juízo probatório relativos aos factos considerados provados e não provados, nos termos da prova documental e depoimentos colhidos, atenta a credibilidade e a desconsideração feita, o que permite concluir não ter sido feito prova dos factos constantes das alíneas A), B) e C) dos factos não provados.
A título de exemplo, destacamos uma contradição entre as declarações da administradora da Recorrente (JR) e do depoimento do gerente da promitente-vendedora (MB) relativamente ao local da elaboração do aditamento do contrato promessa de compra e venda, enquanto aquela afirmou que foi redigido na Guiné-Bissau, este afirmou que foi redigido em Lisboa, no escritório do advogado, tendo acrescentado que nessa altura ainda encontrava-se em Lisboa.
Ora, tal documento seria da máxima importância para ambas as sociedades, uma vez que, para além do mais, foi no mesmo acordado o pagamento da quantia de € 50.000,00, em numerário, e a entrega das chaves, na data da sua assinatura, a que acresce o facto de o referido aditamento indicar como local a Guiné-Bissau, outra discrepância, pelo que, não se compreende as versões contraditórias apresentadas pelos dois outorgantes do aludido aditamento ao contrato-promessa.
Acresce realçar ainda que a administradora da Recorrente é igualmente gerente da sociedade “AAD, Lda.”, a quem foi dado de arrendamento o imóvel prometido vender pela “SEF, S.A.” (promitente-vendedora), no qual aquela arrendatária terá alegadamente efectuado obras avultadas, no valor de € 270.000,00. Ora, JR nas declarações que prestou ao Tribunal a quo disse desconhecer pormenores relativos àquelas obras, afirmando que quando assumiu a gerência já as obras se encontravam concluídas, o que não se mostra possível, uma vez que, “ GI, S.A.” era à data da celebração do aludido contrato de arrendamento sócia maioritária da “AAD” e a administradora da “GI” era já na altura JR, pelo que teria que ter forçosamente conhecimento das mesmas e, por outro lado, a mesma administradora passou a ser gerente da “AAD” cerca de 2 meses depois da assinatura do contrato de arrendamento, não sendo, pois, crível que obras daquele vulto se tenham completado em tempo record.
Sobre este contrato de arrendamento, a testemunha MB, que teve intervenção no contrato de promessa de compra e venda e no contrato de arrendamento, em representação da “SEF, S.A.”, disse, não só não se lembrar do acordado naquele contrato, como também, não se lembrar se deu ou não autorização à aqui Recorrente para receber as rendas.
No que respeita às obras de manutenção, limpeza e conservação do imóvel em causa nos autos (alínea C)), do depoimento da testemunha AB apenas se retira com certeza que realizou trabalhos à aqui Recorrente, ficando por esclarecer, com o mínimo de solidez, em que imóvel é que foram efectuadas as reparações, uma vez que as duas facturas juntas aos autos, não identificam os trabalhos, nem o local em que foram realizados, sendo certo que, de acordo com as declarações de JR, a aqui Recorrente tem vários imóveis, o que até lhe cria dificultada em descrever o imóvel.
Em boa verdade, o que importava demonstrar era a entrega à Recorrente do bem objecto do contrato promessa de compra e venda, pelo menos através da entrega de um objecto que represente simbolicamente a coisa prometida vender, que permita a actuação material sobre ela.
Ora, como seu viu, os testemunhos concretamente apontados pela Recorrente não se podem ter por inequívocos e concludentes a este propósito, uma vez que, não se pode considerar apenas umas afirmações, como pretende a Recorrente, desgarradas da totalidade e contexto dos depoimentos.
É consabido que a certeza absoluta é sempre uma miragem, mas no caso em apreço a relativa não se afigura atingida.
Invoca a Recorrente que o juízo do Tribunal a quo assenta numa exigência Kafkiana de produção de prova, relativa quer a factos instrumentais/acessórios, quer a factos não ocorridos, não discorrendo um único argumento que coloque em causa a coerência e credibilidade da prova relativamente aos factos essenciais à decisão em causa (conclusão UU).
Porém, sem nenhuma razão.
Os factos alegados pela Recorrente não comportam compleição probatória suficiente sólida que os sustente.
O Tribunal a quo avaliou com justeza e ponderação as provas, no âmbito dos limites circunscritos pela regra da livre convicção.
Afigura-se-nos importante lembrar a importância dos factos instrumentais ou indiciários, que configuram aqueles que, sem preencherem, eles próprios, a previsão normativa do direito substantivo, contribuem mediante juízos probatórios, de ilações, sustentados em regras de experiência, de habitualidade e de repetição corrente, para se aceder àqueles que a integram, por poderem dar um contributo valioso, como no caso em apreço, de molde a solidificar a certeza provável de que a traditio não ocorreu (artigos 349.º e 351.º do CC).
A Mma. Juíza do TAF de Aveiro na fundamentação de facto descreveu de forma exaustiva a atribuição de falta de credibilidade da prova, que se basou na imediação e na oralidade, não merecendo qualquer critica, pois, não se demonstrou que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras de experiência comum.
Acresce sublinhar que incumbia à Recorrente o ónus da prova dos factos alegados, o qual acarreta as consequências negativas para a sua pretensão decorrentes de não ter logrado realizar a prova desses factos, por dos autos não resultarem provas bastantes e suficientes. Tal contexto só à parte a quem incumbe o ónus da prova é imputável, nada tendo a ver com a imposição dum ónus Kafkiano pelo tribunal de primeira instância.
De referir, por último, que no âmbito do processo n.º 964/18.8VEAVR, em recurso interposto pela aqui também Recorrente, da sentença do TAF de Aveiro que julgou improcedente a reclamação judicial deduzida do despacho da Directora de Finanças Adjunta que lhe indeferiu o pedido de anulação de venda do imóvel identificado nos presentes autos, em acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 24/01/2019, em que a relatora interveio como adjunta, também não resultou provado a traditio do prédio, elemento necessário para o reconhecimento do alegado direito de retenção.
Em conclusão, da valoração conjunta que fazemos dos elementos probatórios disponíveis, depois de termos procedido à audição do registo áudio das declarações e depoimentos, incluindo os excertos que a Recorrente transcreve nas alegações, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade ou infracção de regras de experiência comum, nem fundamento que nos imponha uma solução diferente da que consta da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Termos em que improcede a impugnação de facto e se mantém o juízo probatório a que procedeu o tribunal de primeira instância.
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Conclusões/Sumário:
1.ª A expressão “invalidade do contrato” é uma expressão ambígua, não tendo a Recorrente esclarecido em que sentido a usa, mas na doutrina, jurisprudência e legislação é entendida com o significado técnico, segundo o qual ela qualifica o tipo de ineficácia integrado pela nulidade e anulabilidade.
2.ª Uma coisa é a invalidade do contrato-promessa de compra e venda e seu aditamento, outra, bem diferente, é a força probatória do referido contrato e das declarações constantes do mesmo, que em conjugação com a prova testemunhal produzida nos autos, impunha-se ao Tribunal a quo que apreciasse e decidisse.
3.ª O quadro legal que se convoca para avaliar da decisão de facto começa por assentar no princípio da livre apreciação das provas, com dados objectivos, para a formação da convicção, lógico-intuitiva e motivada; e, paralelamente, à parte onerada com o ónus da prova exige-se o dispêndio de esforço necessário ao nível de convencimento probabilístico, na certeza de que lhe desaproveita um certo patamar de dúvida, tido como inadequado a um juízo de certeza aceitável (artigos 346.º do CC e 414.º do CPC); a que se segue a reavaliação das provas.
3.ª O princípio da livre apreciação da prova só não domina quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei, como por exemplo, a força probatória plena dos documentos autênticos (art. 371.º do CC; vide Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág.566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
4.ª Afigura-se-nos importante lembrar a importância dos factos instrumentais ou indiciários, que configuram aqueles que, sem preencherem, eles próprios, a previsão normativa do direito substantivo, contribuem mediante juízos probatórios, de ilações, sustentados em regras de experiência, de habitualidade e de repetição corrente, para se aceder àqueles que a integram, por poderem dar um contributo valioso, como no caso em apreço, de molde a solidificar a certeza provável de que a traditio não ocorreu (artigos 349.º e 351.º do CC).
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IV – DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e, nessa conformidade:
a) Improcede a nulidade de excesso de pronúncia imputada pela Recorrente à sentença;
b) Mantém-se a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, no segmento correspondente aos pontos da matéria de facto dada como não provada, impugnados pela Recorrente;
c) Consequentemente, confirma-se a sentença recorrida, que julgou a reclamação de acto do órgão de execução fiscal improcedente.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Porto, 6 de Junho de 2019.
Ass. Maria Cardoso
Ass. Pedro Vergueiro
Ass. Ana Patrocínio