Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01650/09.5BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/23/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Irene Isabel Gomes das Neves
Descritores:IVA; TRANSMISSÕES GRATUITAS;
"BÓNUS CRUZADO";
CIRCULAR; INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:
I – Dispunha o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA que as transmissões gratuitas de bens da empresa, quando tenha havido dedução total ou parcial do imposto, constituem transmissões sujeitas a IVA, excepto quando se tratasse de amostras e ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais. Este conceito indeterminado de ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais, não se mostrava preenchido na lei pelo que se impõe à Administração naturalmente que o preencha. Tal conceito não é rígido e não pode aplicar-se uniformemente a todos os sectores económicos. O legislador terá querido que o valor de tais ofertas fosse determinado não em função de um valor objectivo, mas sim tendo em atenção, relativamente a cada tipo de actividade comercial, a prática corrente em matéria de ofertas.

II – É material e organicamente inconstitucional a criação, por Circular da DGCI, de um limite máximo,
calculado em função do volume de negócios do ano anterior, para «ofertas de pequeno valor» (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i) CRP; art.3.º, n.º 3, al. f) 2ª parte do CIVA, na redacção vigente à data da prática dos factos).*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira (Recorrente), notificada da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto datada de 07.08.2020, pela qual foi julgada procedente a impugnação judicial contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios relativos a períodos de 0701 a 0712, no montante de € 12.948,65, instaurada pela Recorrida no seguimento do indeferimento da reclamação graciosa, inconformada vem dela interpor o presente recurso jurisdicional.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«(...)
A. Com a ressalva do sempre devido respeito por melhor opinião, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim decidido, porquanto considera existir erro de julgamento em matéria de facto e em matéria de direito na interpretação efectuada pelo Tribunal a quo sobre o âmbito e alcance do disposto na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA.
B. A douta sentença sob recurso, concedendo provimento à impugnação, considerou, por um lado, que a Administração Tributária não provou os factos constitutivos subjacentes às correcções ao valor da matéria tributável considerada pela Impugnante nas suas declarações de imposto por aquelas operações [“bónus cruzados”] não reunirem as condições para se subsumirem ao disposto na al. b), do n.º6, do art.º 16.º do CIVA (…)”, determinando a anulação das liquidações na parte que lhe corresponde, e, por outro lado,
C. no que respeita à correcção relativa à colocação de material no ponto de venda (MPV), entendeu o aliás douto decisório, em suma, que a AT quanto a esta correcção não provou os pressupostos das correcções efectuadas, quando tal ónus lhe incumbia, pois, subsumiu a transmissão da posse dos referidos bens a uma transmissão de bens, sem curar de contextualizar a operação em causa no quadro mais vasto em que se integra para confirmar ou infirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a actividade da Impugnante, decidindo ordenar a anulação das liquidações impugnadas, na parte correspondente.
D. Considerando que a factualidade dada como provada não suscita qualquer reparo, não pode, todavia, a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido, porquanto considera que, da prova produzida, não é possível extrair a conclusão que serviu de base à decisão proferida, padecendo a mesma de erro na análise da matéria de facto,
E. não se conformando também, com a aplicação do direito realizada em sede de dispositivo, nomeadamente, sobre o âmbito e alcance do disposto na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA, da douta decisão sob recurso.
F. Importa, assim, averiguar se existe ou não vício de violação de lei por falta de prova, por parte da AT, dos factos constitutivos subjacentes às correcções efectuadas relativas aos “bónus cruzados”, ou seja, se perante a transferência de propriedade dos bens (mercadorias) da esfera jurídica da Impugnante para a dos seus clientes, a mesma deve ser excluída do valor tributável nos termos do disposto na al. b), do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, ou se, pelo contrário, integram o conceito de incidência de imposto de harmonia com o preceituado na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do mesmo diploma.
G. Bem como, no que se refere à correcção quanto à colocação de material no ponto de venda (MVP), aferir se a AT provou os pressupostos para considerar as operações como transmissão de bens para efeitos da al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA, ou seja, se contextualizou a operação no quadro mais vasto em que se integra para confirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a actividade da Impugnante.
H. Em causa nos presentes autos estão as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios, devidas sobre o valor dos bónus de produto, bónus em quantidade e bónus cruzados efectuados pela empresa “[SCom03...]” aos seus clientes no ano de 2007 e considerados como operações tributáveis sujeitas a imposto, nos termos na al. f), do n.º 3, do art.º 3.º, conjugado com a al. b), do n.º 2 do art.º 16.º ambos do CIVA.
I. Foi apurado pelos Serviços de Inspecção Tributária (doravante SIT) que a impugnante concede aos seus clientes “bónus de produto, bónus em quantidade e bónus cruzados”.
J. Após a análise da entrega das mercadorias, constataram os SIT que algumas dessas entregas não cumpriam os requisitos para serem considerados como bónus, pelo que estavam perante ofertas.
K. Assim, no que respeita às ofertas de bens concedidos, mas diferentes dos que são facturados (os chamados bónus cruzados), os mesmos estão sujeitos a tributação nos casos em que tenha havido dedução total ou parcial do imposto, nos termos da al. f), n.º 3, art.º 3.º do CIVA, com excepção dos que possam ser considerados como ofertas de pequeno valor.
L. Quanto ao material no ponto de venda, consideraram os SIT que estamos perante uma oferta e não uma cedência, uma vez que ocorre a transmissão da posse do material, sendo tributável nos mesmos moldes que os anteriores.
M. A prova dos factos constitutivos subjacentes às correcções das ofertas de bens concedidos, contrariamente ao decidido, foi realizada pelos SIT, tendo por base os próprios elementos e dados informáticos facultados pela impugnante, conforme descrito no relatório da acção inspectiva, e considerado como provado pela douta sentença.
N. A Impugnante deveria ter liquidado e declarado nas declarações periódicas relativas ao ano de 2007, o IVA relativo às ofertas, consoante se tratasse de ofertas de mercadorias ou ofertas de material ponto de venda, em cuja aquisição o sujeito passivo deduziu o respectivo IVA e que excediam o valor de € 14,96, indicado na circular n.º 19/89, e efectivamente não o fez.
O. De acordo com o estabelecido na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA constituem transmissão de bens a afectação de bens da empresa a fins alheios à mesma, bem como a transmissão gratuita, quando tenha havido previamente dedução de imposto, com a correspondente obrigação de sujeição [liquidação] a imposto, como seja o caso das amostras, das ofertas e dos prémios concedidos.
P. Ou seja, estamos perante a saída de bens da empresa, a título gratuito (sem contraprestação por parte de terceiros), mas sujeito a tributação a fim de evitar os consumos privilegiados sem sujeição a imposto (alargamento da base de incidência) e assegurar a neutralidade em sede de IVA.
Q. As transmissões de bens sem contraprestação associada, ainda que tenha sido deduzido o IVA na aquisição dos bens transmitidos, estão excluídas do valor tributável da operação económica, se disserem respeito a “descontos, abatimentos ou bónus” concedidos pelo fornecedor ao seu cliente, de acordo com o estipulado na al. b), do n.º 6, do art.º 16.º do CIVA.
R. No caso em apreço, as correcções efectuadas não incidiram sobre todas as entregas de mercadorias efectuadas a título gratuito, mas apenas sobre aquelas que foram consideradas como ofertas, designadamente, os chamados bónus cruzados, que segundo a terminologia da impugnante, são os “bónus” concedidos em produtos diferentes dos que são facturados, e sobre o material de ponto de venda.
S. A tributação em sede de IVA, nestas situações, ocorre quando tenha havido a dedução total ou parcial do imposto, nos termos da al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA, com excepção das amostras e ofertas de pequeno valor (inferior a € 14,96), em conformidade com os usos comerciais e administrativamente definido (circular n.º 19/89).
T. Como é sabido, o artigo 3.º do Código do IVA dispõe sobre regras de incidência (objetiva) de IVA.
U. Por sua vez, o n.º 3 do mesmo normativo equipara determinadas operações – conceito económico de transmissão – à transmissão de bens, pelo que, nos termos da al. f), do disposto n.º 3, constitui transmissão de bens a afectação de bens da empresa a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando tenha havido previamente a dedução de imposto, o que determina a obrigação de liquidação de imposto.
V. Encontram-se nestas situações as transmissões gratuitas, designadamente, as amostras, as ofertas e os prémios concedidos, em que há uma saída de bens da empresa sem que nela entre a correspondente contraprestação.
W. O objectivo desta regra é o de evitar consumos privilegiados sem que haja o pagamento do correspondente imposto, ou seja, dando cumprimento ao princípio da neutralidade fiscal e evitando a colocação dos sujeitos passivos que efectuam os autoconsumos em situação de concorrência desleal.
X. Apenas não será assim se as transmissões sejam consideradas de pequeno valor face aos usos comerciais, caso em que estarão excluídas da tributação, sendo este regime de amostras e ofertas de pequeno valor uma delimitação negativa de incidência, de natureza excepcional.
Y. A promoção de vendas pode assumir várias formas distintas e naturalmente apresentam enquadramentos em sede de IVA distintos, mostrando necessário interpretar correctamente as disposições legais aplicáveis para defender o princípio da igualdade e da não distorção em termos económicos.
Z. Os bónus de quantidades podem ser definidos como os bónus ou descontos concedidos pela entrega de um produto igual ao produto vendido, constituindo uma forma alternativa de compras de volume superior, permitindo igualmente resolver problemas operacionais relacionados com prazos de validade, sazonalidade e excesso de capacidade e, consequentemente, favorecendo o escoamento de stocks. Por seu turno, os bónus cruzados são diferentes dos anteriores pelo facto do produto concedido ser diferente do efectivamente adquirido pelo consumidor¸idem obra citada, cf. neste sentido Guilherme Evaristo Costa, in “Tributação em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado de Acções de Promoção de Vendas”, de Maio de 2011, Centro de Investigação Jurídico Económica, da Universidade do Porto.
AA. Atento ao exposto, considera a Fazenda Pública que, contrariamente ao decidido, as liquidações em causa respeitaram todos os pressupostos legais não padecendo de qualquer vício passível de suscitar a sua anulabilidade, sendo de manter firme o acto de liquidação na ordem jurídica.
Termos em que, Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, com as devidas consequências legais.»

1.2. A Recorrida ([SCom01...], S.A.), notificada da apresentação do presente recurso, apresentou contra-alegações, que concluí do seguinte modo:
«(...)
1. No caso em apreço, as correções efetuadas pela AT incidiram sobre aquelas (entregas de mercadorias) que foram consideradas como ofertas, designadamente os chamados bónus cruzados e sobre o material de ponto de venda.
2. Conforme refere a Douta Sentença, a Administração Tributária não provou os factos constitutivos subjacentes às correções ao valor da matéria tributável considerada pela Recorrida nas suas declarações de imposto por aquelas operações que por a mesma foram excluídas do valor tributável não reunirem condições para se subsumirem ao disposto na alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do CIVA e, em consequência, impõe-se a anulação das liquidações impugnadas na parte que lhes corresponde.
3. E, ainda, no que concerne à correção relativa à colocação “material promocional” e equipamentos em ponto de venda, a AT não provou os pressupostos das correções efetuadas, quando tal ónus lhe incumbia, pois, subsumiu a transmissão da posse dos referidos bens a uma transmissão de bens, sem curar de contextualizar a operação em causa no quadro mais vasto em que se integra para confirmar ou infirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a atividade da Recorrida.
4. A AT interpôs recurso, no entanto, mais uma vez, nas suas alegações, não logrou esclarecer porque é que a situação em apreço não se subsume ao conceito referido na alínea b), do n.º 6, do art.º 16 do ClVA, mas antes ao conceito da alínea f). do n.º 3. do art.º 3, do mesmo CIVA.
5. Nem tão pouco esclarece a correção efetuada relativamente ao material de ponto de venda, limitando-se a subsumir a transmissão da posse dos referidos bens a uma transmissão de bens, sem curar de contextualizar a operação em causa no quadro mais vasto em que se integra para confirmar ou infirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a atividade da Recorrida.
6. Mais uma vez, conforme se pode constatar pelo teor das presentes alegações de recursos, a AT não acrescenta nada de novo, nem tão pouco prova aquilo a que se propõe.
7. A Recorrida remete para o teor da Impugnação Judicial e para a fundamentação da Douta Sentença.
8. Ora, nos termos das normas legais aplicáveis, os bónus estão excluídos do valor tributável, pelo que foi entregue IVA em excesso aos cofres do Estado;
9. Os bónus em causa inserem-se numa lógica comercial e visam promover as vendas de determinados produtos, em última análise, a satisfação e o bem-estar do consumidor final;
10. Ao contrário do que alega a AT, as normas em vigor não estabelecem que os produtos entregues a título de bónus tenham de ser da mesma natureza dos produtos que estão a ser vendidos;
11. Reforça-se que não tem a Recorrida qualquer intenção de dar, doar ou oferecer esses materiais.
12. Mais uma vez, à semelhança do que sucede com os “bónus cruzados”, não existe qualquer espírito de liberalidade subjacente a esta prática.
13. A colocação de material promocional/publicitário nos pontos de venda, entendamse estabelecimentos comerciais de venda ao público, tem como único e fundamental objetivo o incremento das vendas dos produtos comercializados pela Impugnante.
14. Aliás, esta prática é comum a todos os operadores económicos que atuam na área da Recorrida e não só - o comércio e distribuição de bebidas.
15. Considera, pois, a Recorrida, com a devida vénia, não fazer qualquer sentido a liquidação efetuada pela administração tributária em relação ao material promocional/publicitário colocado nos pontos de venda.
16. Quer pelas suas características marcadamente promocionais e publicitárias quer pelo seu objetivo único será a promoção dos produtos e marcas comercializadas, geridas e distribuídas pela Recorrida.
17. Logo, não se enquadram no conceito de afetação ou utilização de bens a fins alheios à empresa, antes pelo contrário, são de facto afetações ou utilizações de bens às necessidades da própria Impugnante.
18. As atividades promocionais e publicitárias são aquelas que o próprio mercado impõe e que, depois de estudados os seus impactos, são implementadas com o objetivo único de vender.
19. Outra ilação não pode ser retirada desta prática utilizada pela Recorrida.
20. Pelo exposto, entende a Recorrida que não deveria ter sido efetuada qualquer liquidação adicional do IVA em relação ao “MPV”.
21. Quer a jurisprudência do Tribunal Administrativo e Fiscal, quer do Tribunal Arbitral confirma cabalmente o entendimento da Douta Sentença e da Recorrida.
22. Em face do exposto, a Recorrida entende não haver qualquer fundamento para a liquidação adicional de IVA nas situações suprarreferidas.

Nestes termos, pretende a Recorrida que o Exmo. Tribunal Central Administrativo mantenha a decisão do Douto Tribunal a quo com todas as consequências legais daí decorrentes, e, por conseguinte, sejam anuladas as liquidações adicionais de IVA, na parte ora impugnada, relativa ao ano de 2007 e respetivos juros compensatórios.».

1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 236 e ss. do SITAF, no sentido da improcedência do recurso, com o seguinte teor que aqui se reproduz:
« I-ANÁLISE
I-1-A AT ataca a sentença com base em erro de julgamento de facto e de direito na interpretação efectuada pelo Tribunal a quo sobre o âmbito e alcance do disposto na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA.
Nos presentes autos de impugnação judicial, estava em causa aferir da legalidade das liquidações de IVA, emitidas pela AT com referência ao ano de 2007, no seguimento de correções aritméticas efetuadas no pressuposto de que a Impugnante efetuou ofertas de bens sujeitas a IVA nos termos da alínea f) do n.º 3 do art. 3.º do Código do IVA, em cuja aquisição havia deduzido o respetivo IVA e que excedem o valor de €14,96, sem que tenha procedido à devida regularização do IVA deduzido.
A sentença recorrida julgou a acção procedente, anulando as liquidações adicionais de IVA, ano de 2007.
Como delimitado pelas conclusões, no recurso impõe-se saber se perante a transferência de propriedade dos bens (mercadorias) da esfera jurídica da Impugnante para a dos seus clientes, a mesma deve ser excluída do valor tributável nos termos do disposto na al. b), do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA, ou se, pelo contrário, integram o conceito de incidência de imposto de harmonia com o preceituado na al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do mesmo diploma.
E no que se refere à correcção quanto à colocação de material no ponto de venda (MVP), aferir se a AT provou os pressupostos para considerar as operações como transmissão de bens para efeitos da al. f), do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA, ou seja, se contextualizou a operação no quadro mais vasto em que se integra para confirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a actividade da Impugnante.
A posição da AT é a seguinte:
A impugnante concedeu aos seus clientes “bónus de produto, bónus em quantidade e bónus cruzados”. Só que, após a análise da entrega das mercadorias, viu-se que algumas dessas entregas não cumpriam os requisitos para serem considerados como bónus, pelo que se estava perante ofertas.
E no que respeita às ofertas de bens concedidos, mas diferentes dos que são facturados (os chamados bónus cruzados), os mesmos estão sujeitos a tributação nos casos em que tenha havido dedução total ou parcial do imposto, nos termos da al. f), n.º 3, art.º 3.º do CIVA, com excepção dos que possam ser considerados como ofertas de pequeno valor.
Quanto ao material no ponto de venda, insiste a AT, estamos perante uma oferta e não uma cedência, uma vez que ocorre a transmissão da posse do material, sendo tributável nos mesmos moldes que os anteriores.
I-2-Não nos parece que a sentença enferme dos vícios que lhe são imputados.
No que tange aos bónus, é certo que o STA em ac. de 10/11/1999, rec. 20365, já afirmou que “Devem ser consideradas ofertas e não descontos, abatimentos ou bónus, os produtos entregues gratuitamente aquando da venda de um outro diferente.”
Mas não nos parece que tal conclusão se possa extrair sem mais do art. 16 nº 6, al. b), do CIVA. Para este efeito bónus, independentemente da sua identidade, terá de ser algo mais conexo com a operação e por causa dela, ou seja o bónus integra-se na operação comercial e só existe por causa dela. Mas nada impedirá que, como no caso sub judicio, em conexão e por causa da venda de cervejas, se atribua um bónus de quantidade de sumos, desde que tudo esteja no objecto social da empresa, e desde que a atribuição do bónus esteja dependente daquela transmissão tributada.
Por isso é que a sentença recorrida afirma não ter “dúvidas de que os produtos entregues a título de “bónus cruzados” pela Impugnante aos seus clientes foram-no no quadro de relações comerciais com estes estabelecidas, no âmbito do fornecimento continuado de bebidas – cervejas, refrigerantes e águas engarrafadas – e na dependência desses fornecimentos, em função da compra de determinadas quantidades de bebidas, prática generalizada nas empresas que operam no setor de distribuição de bebidas.”
Quanto à colocação de material no ponto de venda, a sentença recorrida considera também como decisiva a conexão dessa colocação com as operações de venda de que a colocação é dependência, o nexo de causalidade entre as operações de venda e a colocação, o facto de ser uma cedência temporária, e remata:
“E porque assim é, esta colocação ou cedência de bens ou material de promoção para uso nos estabelecimentos que vendem os produtos das empresas que os cedem é considerada uma prestação de serviços gratuita efetuada no interesse da atividade da empresa cedente, não estando sujeita a imposto, em virtude de não se enquadrar na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do IVA (conferindo direito à dedução do IVA na aquisição dos mesmos bens).”
Ou seja, como também já se disse na sentença de 24/05/2016 proferida no TAF do Porto no processo nº 1976/08.5BEPRT,: “Assim as designadas colocações de material em ponto de venda mostram justificação na relação entre agentes económicos que não se esgota na transmissão de bens ou prestação de serviços. É frequente no sector da restauração, os fornecedores dos produtos ali comercializados disponibilizarem gratuitamente aos seus clientes, que vendem ao consumidor final, material que identifica e promove a sua marca e, assim, os produtos por si comercializados. Esta colocação ou cedência de bens ou material de promoção para uso nos estabelecimentos que vendem os produtos das empresas que os cedem é considerada uma prestação de serviços gratuita efectuada no interesse da actividade da empresa cedente, não estando sujeita a imposto, em virtude de não se enquadrar na alínea a) do n.º 2 do artigo 4º do Código do IVA (conferindo direito à dedução do IVA na aquisição dos mesmos bens).”
As chamadas colocações de material em posto de venda são na substância igualmente um bónus. Cede-se tal material temporariamente para uso e benefício do comprador ficando este com a obrigação de o utilizar, com publicidade da marca exposta, e com a obrigação de comprar em exclusivo os produtos ao cedente e só por causa disso.
I-3- A sentença não merece censura.
II-CONCLUSÃO O recurso deve ser julgado improcedente.»

1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cfr. art. 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
As questões sob recurso e que importam decidir, suscitadas e delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, são as seguintes: se a sentença incorreu em erro de julgamento de facto e subsequente erro de julgamento de direito na interpretação e aplicação sobre o âmbito e alcance do disposto na al. f), do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada e não provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
«Da prova produzida nos autos, resultou apurada a seguinte factualidade:
1. A Impugnante tem por atividade principal o comércio por grosso de produtos alimentares dedicada ao segmento de mercado “Canal Horeca” (restaurantes, bares, mercearias, hotéis e outras superfícies de distribuição), comercializando, entre outras bebidas, cerveja, refrigerantes, águas, vinhos e cafés - cfr. o relatório de inspeção constante do p.a apenso.
2. No ano de 2007, a Impugnante entregou aos seus clientes produtos diferentes dos produtos faturados, a título de “bónus”, atribuídos em função da compra de determinadas quantidades por parte dos clientes, bónus esses titulados por faturas a preço zero que mencionam a operação tributável que determinou a sua atribuição, cujo valor por artigo ou no conjunto da fatura era superior a €14,96 e relativamente aos quais tinha suportado IVA na aquisição - cfr. a prova testemunhal produzida.
3. Os produtos objeto das entregas referidas em 2) são produtos comercializados pela Impugnante (bebidas), podendo ser da mesma marca dos vendidos, ainda que de categoria diferente (ex: sabores), do mesmo tipo mas de marca diferente ou de tipos diferentes (ex: cerveja e água) e destinavam-se a ser vendidos pelos beneficiários das referidas entregas - cfr. a prova testemunhal produzida.
4. No ano de 2007, a Impugnante colocou bens, em cuja aquisição havia suportado IVA, para serem utilizados nos pontos de venda, tais como cadeiras, mesas, copos, arcas frigoríficas, máquinas de café, entre outros, que serviam para armazenar ou servir os produtos por si transmitidos nos quais se encontram mensagens alusivas à marca dos mesmos - cfr. a prova testemunhal produzida.
5. Na sequência da emissão da ordem de serviço n.º ...86, de 07/03/2007, a Impugnante foi alvo de um procedimento externo de inspeção levado a cabo pelos serviços de inspeção da Direção de Finanças ..., tendo por âmbito, o IVA e extensão, o exercício económico de 2007 – cfr. o relatório de inspeção constante do p.a apenso.
6. Em 05/08/2008, foi elaborado o relatório de inspeção tributária, referente à ação inspetiva mencionada em 5), de onde resultaram correções meramente aritméticas em sede de IVA (imposto em falta), que ascendem ao montante de €347.516,98 e de onde consta, além do mais, o seguinte:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...)» – cfr. o p.a. apenso.
7. Em 27/09/2008, foram emitidas, em nome da Impugnante, as seguintes liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
– Cfr. os docs. 2-9 juntos com a p.i..
8. Em 31/12/2008, a Impugnante deduziu reclamação graciosa contra as liquidações referidas em 7) – cfr. o processo de reclamação graciosa apenso.
9. Em 19/05/2009, foi proferido despacho de indeferimento da reclamação graciosa referida em 8) – cfr. fls. 54 do processo de reclamação graciosa apenso.
10. Em 08/06/2009, a petição inicial da presente Impugnação deu entrada no Serviço de Finanças ... – Cfr. fls. 2 do processo físico. Mais se provou com interesse para a decisão, o seguinte:
11. De acordo com o “Pedido de Contrato Exclusivo” junto aos autos, com data de 30/05/2005, recebido na “[SCom02...]”, relativo ao estabelecimento “[SCom04...]” e ao distribuidor “[SCom05...]” é proposta a celebração de contrato de exclusividade, com a compra de 480 Kg de café /ano e a identificação da marca do fornecedor por “1 luminoso dupla face 6 cortinas tela tecido + MVP” e no local “proposta a apresentar ao cliente” o seguinte teor “1 máquina de café ... Epoca S no valor de 1350€ + IVA 1 moinho ... MD 50/AT no valor de 390€ + IVA 6 cortinas tela tecido no valor de 869€ + IVA 1 luminoso dupla face no valor 259,60€ + IVA Fundo Perdido valor 4200€ + IVA” - cfr. documento junto no seguimento de despacho proferido na diligência de inquirição de testemunhas que teve lugar no processo n.º 1977/08.3BEPRT, conforme ata junta a fls. 107 e seguintes do processo físico.
12. Da minuta de “Contrato de Compra Exclusiva” junta aos autos consta o seguinte:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. documento junto no seguimento de despacho proferido na diligência de inquirição de testemunhas que teve lugar no processo n.º 1977/08.3BEPRT, conforme ata junta a fls. 107 e seguintes do processo físico.»

Motivação:
«O Tribunal formou a sua convicção, quanto à matéria de facto provada, através da ponderação crítica: (i) quanto aos itens 1) e 5) a 9) do probatório, dos documentos constantes do processo administrativo apenso, designadamente, o relatório de inspeção, cuja força probatória se reporta aos factos que nele são referidos como sendo praticados pela administração tributária (v.g. as diligências realizadas, os pedidos de esclarecimento efetuados, as notificações efetuadas), valendo os meros juízos pessoais afirmados pela administração tributária como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, sendo de aplicar o regime geral previsto para a força probatória dos documentos autênticos (art. 371.º, n.º 1 do Código Civil); (ii) quanto aos itens 2) a 4) do probatório, da prova testemunhal produzida, livremente apreciada pelo Tribunal (cfr. o artigo 396.º do Código Civil), atendendo, para tal efeito, à razão de ciência e credibilidade demonstrada pelas testemunhas inquiridas, «AA» que, à data dos factos, exercia funções profissionais de manager de projeto na área da cerveja e «BB», que exercia funções profissionais de gestora fiscal, ambas junto da Impugnante, que, não obstante a relação profissional mantida com aquela, depuseram de forma clara e objetiva, demonstrando conhecimento direto dos factos em questão e de cujos testemunhos resultou, quanto aos designados “bónus cruzados”, que estes eram atribuídos, em correlação com as transmissões de bens a título oneroso realizadas com os seus clientes às quais a fatura correspondente ao bónus fazia referência e que tinham também em vista o incremento futuro das vendas, através do estímulo do cliente a adquirir em maior quantidade, face ao “incentivo” que tais transmissões a custo zero constituíam ou a divulgação junto do cliente outros tipos de produto, com vista a estimular a sua aquisição no futuro e, quanto ao material colocado nos pontos de venda, que os bens em causa ostentam as marcas dos produtos fornecidos pela Impugnante comercializados no estabelecimento, destinando-se a ser utilizados no momento do consumo pelos clientes deste ponto de venda de tais produtos ou a conservar as características dos mesmos num determinado nível de qualidade, sendo usados em conexão com os produtos comercializados pela Impugnante; e quanto aos itens 11) e 12) do probatório, dos elementos documentais juntos aos autos, por determinação do Tribunal, face ao depoimento prestado pela 2.ª testemunha, visando esclarecer a propriedade desses bens colocados nos pontos de venda.
Por seu turno, o depoimento prestado por «CC», inspetor tributário responsável pela elaboração do relatório de inspeção que está na génese das liquidações impugnadas, apenas reiterou os factos materiais referidos no relatório de inspeção, as diligências efetuadas e conclusões retiradas e, por isso, não assumiu relevo adicional para a decisão da presente causa.
Por fim, da instrução da causa não resultaram demonstrados quaisquer outros factos com interesse para a decisão a proferir.»
2.2. De direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto datada de 07.08.2020, pela qual se considerou procedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa intentada pela Impugnante/recorrida versando as liquidações adicionais de IVA do ano de 2007 (relativo aos períodos de 0701 a 0712, no valor global de €347.516,98), assim como contra as correspectivas liquidações de juros compensatórios.
As liquidações supra referidas resultaram de uma acção inspectiva promovida pelos serviços da AT, nas quais se apurou a necessidade de correcções à matéria tributável de natureza meramente técnica, efetuadas no pressuposto de que a Impugnante/recorrida efectuou ofertas de bens sujeitas a IVA nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA, em cuja aquisição havia deduzido o respetivo IVA e que excedem o valor de €14,96, sem que tenha procedido à devida regularização do IVA deduzido.
Antes do mais, cumpre referir que a Recorrente apesar de indicar que o presente recurso incide sobre a matéria de facto, a verdade é que atendendo ao teor global do presente recurso, o que aquela pretende é antes questionar a subsunção jurídica que se fez na sentença recorrida dos factos que foram apurados (nesse sentido é aliás expressiva a alegação feita pela ora Apelante na conclusão «D» deste recurso, “Considerando que a factualidade dada como provada não suscita qualquer reparo, não pode, todavia, a Fazenda Pública conformar-se com o doutamente decidido, porquanto considera que, da prova produzida, não é possível extrair a conclusão que serviu de base à decisão proferida, padecendo a mesma de erro na análise da matéria de facto”).
Assim sendo, o que efectivamente cumpre apreciar e decidir é aferir se a decisão jurisdicional aqui recorrida enferma de erro de julgamento, erro esse que a levou a concluir pela procedência da presente impugnação dirigida contra o acto de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada e deduzida contra as liquidações de IVA e de juros compensatórios aqui em causa.
Em suma, impõe-se saber se perante a transferência de propriedade dos bens (mercadorias) da esfera jurídica da Impugnante/recorrida para a dos seus clientes, a mesma deve ser excluída do valor tributável nos termos do disposto na al. b), do n.º 6 do artigo 16.º do CIVA, ou se, pelo contrário, integram o conceito de incidência de imposto de harmonia com o preceituado na al. f), do n.º 3 do artigo 3.º do mesmo diploma. E, no que se refere à correcção quanto à colocação de material no ponto de venda (MVP), aferir se a AT provou os pressupostos para considerar as operações como transmissão de bens para efeitos da al. f), do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA, ou seja, se contextualizou a operação no quadro mais vasto em que se integra para confirmar a relação de conexão da prestação de serviços com a actividade da Impugnante.
Concretizando, refere a Recorrente que estão aqui em apreço duas situações facticamente distintas: (i) uma primeira referente aos denominados «bónus cruzados» (isto é a transferência de propriedade dos bens (mercadorias) da esfera jurídica da Recorrida para a dos seus clientes) e, outra, (ii) relativa à «colocação de material no ponto de venda» (MVP), material este fornecido pela Recorrida aos seus clientes.
Sendo que, no que respeita às ofertas de bens concedidos, mas diferentes dos que são facturados (os chamados «bónus cruzados»), no seu entender, os mesmos estão sujeitos a tributação nos casos em que tenha havido dedução total ou parcial do imposto, nos termos da al. f), n.º 3, artigo 3.º do CIVA, com excepção dos que possam ser considerados como ofertas de pequeno valor. Quanto ao «MVP», insiste a AT, que estamos perante uma oferta e não uma cedência, uma vez que ocorre a transmissão da posse do material, sendo tributável nos mesmos moldes que os anteriores denominados de «bónus cruzados».
Assim, apesar da referida duplicidade, o que está aqui em causa é saber se tais operações se devem considerar como transmissões de bens à luz da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA e como tal sujeitas, ou se, inversamente, não estarão sujeitas a tributação, sendo esta última a posição assumida na sentença sob recurso.
As questões suscitadas nestes autos foram já objecto de recente acórdão deste TCAN, onde as partes, as alegações de recurso e, portanto, as questões a apreciar são idênticas, divergindo, apenas, o período a que respeitam as liquidações de IVA, ali 2004, aqui janeiro a dezembro de 2007.
Assim, por semelhança ao caso sub judice e por economia de meios, visando a interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. artigo 8.º n.º 3 do Código Civil), acolhemos a argumentação jurídica aduzida no acórdão desta Secção, de 13.01.2022, proferido no âmbito do processo n.º 1854/07.5BEPRT [ainda inédito, mas transcrito e citado no acórdão desta secção de 20.01.2022, in processo n.º 1976/08.5BEPRT, IVA de 2005]:
«(…) Assim, quer numa, quer na outra situação supra relatadas («bónus de venda» e «ofertas de material em ponto de venda») foi determinante para a fundamentação jurídica dos atos recorridos o apelo ao disposto na Circular 19/89.
A propósito do que ia disposto na acima mencionada circular, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a sustentar a respetiva invalidade no que concerne aos limites nela estabelecidos no que tange aos aqui denominados como bónus de venda e ofertas de material em pontos de venda. Com efeito, no aresto daquele supremo Tribunal proferido no recurso n.º 0563/07 e datado de 17-10-2007, veio a relatar-se que:
“[…] Vejamos. Estabelece o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA que as transmissões gratuitas de bens da empresa, quando tenha havido dedução total ou parcial do imposto, constituem transmissões sujeitas a IVA, excepto quando se trate de amostras e ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais.
Este conceito indeterminado de ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais, não se mostra preenchido na lei pelo que se impõe à Administração naturalmente que o preencha.
É evidente que tal conceito não é rígido e não pode aplicar-se uniformemente a todos os sectores económicos.
O legislador terá querido, pois, que o valor de tais ofertas fosse determinado não em função de um valor objectivo mas sim tendo em atenção, relativamente a cada tipo de actividade comercial, a prática corrente em matéria de ofertas.
“O que vale por dizer, como se afirma no acórdão deste Tribunal de 11/4/07, proferido no recurso 35/07, a propósito dum caso idêntico, que não é conforme à lei um critério que ignore as diferenças dos usos comerciais de acordo com o ramo de actividade e o valor do negócio com que a oferta se relaciona. Como é o caso de um critério que exclua da excepção da parte final da alínea f) citada todas as ofertas que, globalmente, e independentemente do valor de cada uma delas e dos usos comerciais próprios da actividade comercial em que se insiram, excedam uma determinada percentagem do volume de negócios do ofertante.
Tudo o que a lei permite e impõe à Administração é que preencha os conceitos de «pequeno valor» e de «usos comerciais»; já lhe não consente que acresça uma exigência não atinente a nenhum daqueles conceitos, consubstanciada num limite total de valor por referência ao volume dos negócios efectuados, sem qualquer relação com o valor da oferta e os usos comerciais em vigor na actividade do ofertante.”.
Ora, foi isso que, no caso em apreço, a Administração Fiscal fez quando através da Circular 19/89, de 18/12, a pretexto de conceituação do “pequeno valor” a aplicar às ofertas, fixou que tal valor não poderia ultrapassar unitariamente o montante de 3.000$00 e em termos globais o valor anual não poderia exceder 5‰ (cinco por mil) do volume de negócios, com referência ao ano anterior.
Tanto assim que, como se aponta na sentença recorrida e a recorrente sublinha, a AF apesar de não pôr em causa a conformidade das ofertas efectuadas pela impugnante com os usos comerciais nem que, consideradas individualmente, sejam de pequeno valor, não obstante as considerou fora da previsão da parte final da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA, apenas por não respeitarem o critério fixado na citada circular.
Critério esse que não tem qualquer suporte no texto daquela alínea f) nem em qualquer outra disposição legal do CIVA.
A liquidação do IVA impugnada não pode, por esse motivo, manter-se, por violação de lei.[…]”
Ora, a referida orientação jurisprudencial seguida pelo STA, têm-se mantido até hoje sendo exemplo disso, entre outros, o ac. proferido no recurso n.º 0202/08, datado de 18-09-2008 e o ac. datado de 06.05.2020, proferido por aquele colendo Tribunal no processo n.º 0928/10.0BESNT (in www.dgsi.pt). Aliás, neste último aresto e em molde que concordamos verteu-se que: “[…] Por outro lado, nesta matéria, não há qualquer disposição que permita à administração tributária fixar «limites razoáveis», ao contrário do que sucede em matéria de IRC, com as taxas de reintegração e amortização (art. 30.º, n .º 2, do CIRC) E com repartição de custos para efeitos de determinação do lucro tributável imputável a estabelecimento estável de sociedades e outras entidades não residentes (art. 50.º, n.º 2, do CIRC).
[…]
Assim, é de concluir que a referida Circular n.º 19/89, no ponto em apreço, é material e organicamente inconstitucional, pois contém uma regra de incidência objectiva de IVA que não foi criada por diploma emanado da Assembleia da República, em matéria que se insere na reserva relativa de competência legislativa desta (arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, na redacção vigente, a que correspondem os arts. 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, alínea i), respectivamente, nas redacções de 1982 e 1989)”.
Na presente situação, acolhendo-se a orientação da referida suprema instância, entendemos que aqui também estão em causa atos de liquidação que assentam em condicionantes de natureza normativa expressas na sobredita circular e que não têm sustento possível na alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA, tendo sido indevidamente criados por via administrativa, tratando-se de condicionantes normativas as previstas nos n.ºs 3, 4, 5 e 6 da Circular supra referida, sendo estas contra legem e materialmente e organicamente inconstitucionais Questão esta debatida pelas partes no presente recurso nos presentes autos, respetivamente na petição inicial e na contestação.
Ora, estas circunstâncias normativas são as que fundamentam os atos aqui em causa, quer os atos de liquidação, quer a própria decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Recorrida. Deste modo, a invalidade dos aludidos requisitos de natureza normativa expressos na supra mencionada circular, inquinam os atos aqui recorridos, projetando-se, também, na invalidade consequente das liquidações de juros moratórios emanadas.
Posto isto, ainda que com fundamentação jurídica não inteiramente coincidente com a sentença ora recorrida, consideramos que terá que improceder o presente recurso. (…)»
Por tudo o exposto, aqui totalmente transponível com as devidas adaptações [recordamos que a Circular 19/89 vigorou até 31/12/2007], impõe-se negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida com os presentes fundamentos.

2.2.1. Da dispensa do remanescente
Uma nota final e ex oficio relativamente à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, nº 7 do RCP.
Com efeito, no Arresto do STA, proferido no processo nº 01953/13, de 07 de maio de 2014, doutrina-se, de forma inequívoca, que: “A norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz, ser lícito, mesmo a título oficioso, dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade”.
No caso sub judice, considera-se que o valor de taxa de justiça devida a final, calculado nos termos da tabela I.A., do RCP, é excessivo. Porquanto, ponderadas as circunstâncias do caso vertente à luz dos critérios escolhidos pelo legislador, em especial, o comportamento processual das partes litigantes, sem qualquer reparo negativo a apontar, a complexidade do processo – atendendo a que as questões decidendas, embora respeitantes a matéria específica, não exigiram do julgador especiais e diversos conhecimentos técnicos e jurídicos, antes se mantiveram dentro de parâmetros normais e comuns, encontra-se preenchido o circunstancialismo do n.º 7, do artigo 6.º do RCP, decretando-se, ex oficio a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

2.3. Conclusões
(Assim, nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC, apresenta-se o seguinte sumário extraído do processo n.º1976/08.5BEPRT)

I – Dispunha o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA que as transmissões gratuitas de bens da empresa, quando tenha havido dedução total ou parcial do imposto, constituem transmissões sujeitas a IVA, excepto quando se tratasse de amostras e ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais. Este conceito indeterminado de ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais, não se mostrava preenchido na lei pelo que se impõe à Administração naturalmente que o preencha. Tal conceito não é rígido e não pode aplicar-se uniformemente a todos os sectores económicos. O legislador terá querido que o valor de tais ofertas fosse determinado não em função de um valor objectivo, mas sim tendo em atenção, relativamente a cada tipo de actividade comercial, a prática corrente em matéria de ofertas.
II – É material e organicamente inconstitucional a criação, por Circular da DGCI, de um limite máximo, calculado em função do volume de negócios do ano anterior, para «ofertas de pequeno valor» (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i) CRP; art.3.º, n.º 3, al. f) 2ª parte do CIVA, na redacção vigente à data da prática dos factos).

3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, mantendo-se o sentido decisório da sentença recorrida com os presentes fundamentos.
Custas a cargo da Recorrente, levando-se em consideração a dispensa da Taxa de remanescente na parte em que excede os € 275.000,00.
Porto, 23 de novembro de 2023

Irene Isabel das Neves
Paula Moura
Margarida Reis