Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00872/15.4BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/20/2019
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:MÉDICO; AUTONOMIA TÉCNICA E CIENTÍFICA; CONDICIONAMENTO DE REALIZAÇÃO DE CIRURGIAS; ALÍNEA A) DO ARTIGO 7º-A DO DECRETO-LEI 177/2009, DE 04.09,
NA REDACÇÃO DADA PELO DECRETO-LEI N.º 266º -D/2012, DE 31.12.
Sumário:1. É impugnável a deliberação do conselho de administração do réu na parte em que, apesar de ter determinado o arquivamento do inquérito por não haver indícios de prática médica censurável por parte do autor, bem como a extinção da medida preventiva de inibição do mesmo para intervir em cirurgias por laparoscopia nos seus estabelecimentos hospitalares, determinou que apenas lhe poderia ser cometida a intervenção em cirurgias, no Centro Hospitalar demandado, depois de atestada pelo director do serviço, se necessário com recurso à avaliação por outros especialistas, com validação pela directora clínica, a respectiva capacidade actual no contexto dos requisitos enunciados na deliberação.

2. Face ao disposto na alínea a) do artigo 7º-A do Decreto-Lei 177/2009, de 04.09, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 266º -D/2012, de 31.12, é inválida a deliberação descrita no ponto anterior, por violar a autonomia técnica e científica do médico visado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Centro Hospitalar de L..., E.P.E.
Recorrido 1:M. S. D. S.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

Centro Hospitalar de L..., E.P.E. veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção de inimpugnabilidade e da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 29.10.2018, pela qual foi julgada procedente a acção que M. S. D. S. instaurou contra o Recorrente e anulado o acto impugnado, na parte em que o foi, isto é, na parte em que se determinou que ao Autor só deveria ser cometida a intervenção em cirurgias com recurso à técnica laparoscópica, depois de atestada a respectiva capacidade no contexto dos requisitos enunciados em b) 9 da deliberação, pelo director de serviço de Ginecologia/obstetrícia, se necessário com recurso à avaliação por outros especialistas, tudo com validação da Directora Clínica.

Invocou para tanto, em síntese, que o acto impugnado é inimpugnável, contrariamente ao sustentado no despacho saneador, com fundamento em que tal acto não coartou o direito do Autor a exercer medicina com a autonomia científica e técnica, porque não lhe nega qualquer direito nem inverte qualquer presunção, pois que a avaliação contínua é a regra e a liberdade de definição das tarefas que, dentro do seu conteúdo funcional, são distribuídas a cada médico pelos seus superiores hierárquicos, também; é válido porque conforme com o estabelecido no artigo 7º-A do Decreto-Lei nº 177/2009, de 04.09, na redação introduzida pelo Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31.12, ainda que interpretado à luz do artigo 47º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, e ainda com as normas profissionais relativas ao impedimento para o exercício, total ou parcial da medicina, emergentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, ao tempo o Decreto-Lei nº 282/77, de 05.07, na redação resultante do Decreto-Lei nº 217/94 de 20.08, nomeadamente no seu artigo 12º e no Regulamento 14/2009, que contém o Código Deontológico dos Médicos, nomeadamente do seu artigo 134º, n.º1; que o acto impugnado visou garantir os padrões de segurança na prestação de cuidados de saúde, no quadro da distribuição de tarefas no serviço e da avaliação contínua das capacidades dos profissionais para executarem cada uma das tarefas diferentes entre si que há para distribuir, sob pena de esvaziar o poder hierárquico do diretor clínico e do diretor do Serviço, convocando para salvaguardar a sua capacidade de intervenção in casu, o artigo 134º do Código Deontológico aplicável ao tempo, que regula meras relações entre pares e convolando a hierarquia jus-laboral e técnico-científica entre o trabalhador Autor e o Director do Serviço a que pertence e a Directora Clínica, de ordens para propostas, e assim a distribuição das tarefas num processo negocial, contra o estabelecido nos artigos 74º e 82º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – Anexo à Lei nº 35/2014, de 20.06.
O Recorrido contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1ª – Tem por objeto o presente recurso a d. Sentença final, que declarou inválida a deliberação do Conselho de Administração do R. de 25-Jun.-2015 – que aqui se tem por reproduzida - e ainda, ao abrigo do disposto no artigo 142º/5 do CPC, a decisão proferida no d. Despacho Saneador de 22/09/2017, que declarou improcedente a exceção da inimpugnabilidade (por ilesividade) do ato impugnado.

2ª – Do d. Saneador que julgou pela lesividade do ato e da s. Sentença final, extrai-se que a referida deliberação é:
a) Impugnável na medida em que, independentemente da sua validade “…tem um efeito lesivo e desfavorável concreta e individualmente para o Autor.”.
b) Inválido, porque o Autor deveria ter sido notificado da intenção da respetiva prolação para se pronunciar em sede de Audiência Prévia, tendo assim ocorrido violação do disposto no artigo 121º/1 do CPA, por se não verificar a exceção prevista no artigo 124º/1 f) desse Código.
c) Também inválida, porque pressupõe que a deliberação em equação proibiu ou coartou o direito de o A. praticar – no contexto da relação laboral que o liga ao R. - um dos atos médicos (laparoscopia) que integram o conteúdo funcional da sua categoria profissional.

3ª - Concluem o d. Despacho Saneador e a d. Sentença pela lesividade da deliberação em apreço, considerando que a mesma afecta o direito do autor a exercer medicina com a autonomia científica e técnica.

4ª – Não se afigura ao recorrente que assim seja; a deliberação em questão, tendo em conta o seu teor, designadamente os considerandos em que se suporta e para que remete, para além de consubstanciar um esclarecimento e uma advertência para que a hierarquia clínica exerça as suas competências de avaliação, na verdade em nada inibe o Autor, não lhe nega qualquer direito nem inverte qualquer presunção, pois que a avaliação contínua é a regra e a liberdade de definição das tarefas que, dentro do seu conteúdo funcional, são distribuídas a cada médico pelos seus superiores hierárquicos, também.

5ª – Afigura-se, aliás, impossível ao R. poder praticar acto oposto ao que praticou, isto é, que determinasse à hierarquia clínica que o A. fosse afecto a tarefas de realização de cirurgias por laparoscopia independentemente daas necessidades do Serviço e dos resultados da avaliação contínua às suas capacidades físicas e mentais para o exercício dessa tarefa.

6ª – Independentemente da ilesividade, o acto é sempre válido, conformando-se com o estabelecido no artigo 7º-A do Decreto-Lei nº 177/2009, de 4-Set. na redação introduzida com o Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31-Dez., ainda que interpretado à luz do artigo 47º/1 da CRP, e ainda com as normas profissionais relativas ao impedimento para o exercício, total ou parcial da medicina, emergentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, ao tempo o Dec. Lei nº 282/77, de 05 de Julho, na redação resultante do Dec. Lei nº 217/94 de 20/08, nomeadamente no seu artigo 12º e no Regulamento 14/2009, que contém o Código Deontológico dos Médicos, nomeadamente do seu artigo 134º/1.

7ª- Na verdade, a deliberação em questão não é uma ordem dirigida à hierarquia clínica no sentido de declarar o impedimento ou de impedir o A. de praticar qualquer acto médico ou médico-cirúrgico integrado ou integrável no conteúdo funcional da sua categoria profissional, nomeadamente cirurgias com utilização da técnica laparoscópica.

8ª – Sendo ainda, que a limitação na distribuição de tarefas clínicas dentro do Serviço relativamente a um qualquer profissional em razão de uma incapacidade ou inabilidade observadas no quadro da sua avaliação contínua para praticar, com garantia adequada de segurança para a vida e saúde do utente determinada técnica, não se trata de uma dúvida sobre as capacidades do profissional, pressuposto de raciocínio enunciado na d. Sentença, mas antes uma conclusão técnica e hierarquizada, necessariamente concretizável por forma a garantir os padrões de segurança na prestação de cuidados de saúde.

9ª – A d. Sentença recorrida vem a concluir – erradamente na opinião do recorrente - que estamos não no quadro da distribuição de tarefas no serviço e da avaliação contínua das capacidades dos profissionais para executarem cada uma das tarefas diferentes entre si que há para distribuir, mas antes no quadro da declaração de impedimento de um médico para o exercício, total ou parcial da sua profissão.

10º - E nesta linha de raciocínio não tem alternativa senão a de esvaziar o poder hierárquico do diretor clínico e do diretor do Serviço, convocando para salvaguardar a sua capacidade de intervenção in casu, o artigo 134º do Código Deontológico aplicável ao tempo, que regula meras relações entre pares e convolando a hierarquia juslaboral e técnico-científica entre o trabalhador A. e o Diretor do Serviço a que pertence e a Diretora Clínica, de ordens para propostas, e assim a distribuição das tarefas num processo negocial.

11ª – Na realidade, a deliberação em questão conforma-se com o estabelecido no artigo 7º-A nº 1 al. a) e 2 do Decreto-Lei nº 177/2009, de 04-Set. na redação do Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31-Dez., no artigo 12º do Estatuto da Ordem dos Médicos aplicável ao tempo, bem como no artigo 134º do Código Deontológico respetivo.

12º - No entendimento do recorrente o enquadramento jurídico da deliberação impugnada, convoca:
a) A aplicação das normas que fixam o objeto do R., nomeadamente a prestação de cuidados de saúde à população no âmbito do Serviço Nacional de Saúde para efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva; nomeadamente o estabelecido – e supra citado – nos artigos 2º e 9º dos Estatutos do R., que constituem anexo II ao Dec. Lei nº 233/2005, de 29 de Dezembro, na redação ao tempo aplicável, do Dec. Lei nº 12/2015, de 26 de Janeiro, dos artigos 32º e 35º do seu Regulamento Interno, Bases III e IV da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde), artigos 1º e 2º do Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro (Estatuto do Serviço Nacional de Saúde)
b) A aplicação das normas que consagram na ordem jurídica os direitos constitucionais à vida e à saúde, que a atividade do R. visa proteger, devendo este organizar-se tendo em vista a protecção desses mesmos direitos reconhecidos nos artigos 24º/1 e 25º/1 da CRP;
c) A aplicação das normas que reconhecem ao empregador o poder de direcção que lhe assiste sobre os trabalhadores ao seu serviço, nomeadamente no contexto da organização do trabalho o direito a distribuir as tarefas a realizar pelos mesmos respeitando o conteúdo funcional das respetivas categorias, visando a otimização da gestão dos seus meios na proteção da saúde e da vida dos cidadãos, nomeadamente de acordo com o estabelecido nos artigos 74º e 82º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – Anexo à lei nº 35/2014, de 20 de Junho.

13ª – A d. Decisão recorrida violou, assim, as normas indicadas nas conclusões 11ª e 12º, não encerrando lesividade e, de todo o modo sendo válido o acto impugnado.
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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. O Autor é Médico e ao tempo dos factos cuja descrição se segue prestava serviço no Hospital de (…), integrado no Réu Centro Hospitalar de L... EPE com a Categoria de Assistente Graduado de Ginecologia/Obstetrícia – cfr. processo administrativo.

2. Por Deliberação do Conselho de Administração do Réu, de 21.05.2014, foi instaurado Processo de Inquérito (com o nº 61/2014), com vista ao apuramento cabal dos procedimentos utilizados e de eventuais responsabilidades individuais, designadamente do Autor, por uma dupla laceração da veia ilíaca esquerda externa com hemorragia importante, causada à utente M. C. H. L., no decurso de uma intervenção cirúrgica por laparoscopia, dirigida pelo aqui Autor, para extracção de um quisto no ovário direito com cerca de 5 cm – cfr. o processo administrativo, além de que nisto não há desacordo das partes.

3. Concomitantemente, em tal decisão foi determinado, a título dito “cautelar”, que o Autor não integrasse equipas cirúrgicas que utilizassem técnica laparoscópica enquanto não houvesse decisão definitiva no procedimento disciplinar – cfr. processo administrativo e documento 4 junto com a petição inicial, além do consenso das partes.

4. O inquérito compôs-se das diligências descritas no ponto 2 do relatório final cujo teor no documento nº 6 da petição inicial aqui se dá como reproduzido, designadamente a audição do Autor.

5. Em 06.02.2015 foi elaborado o relatório final cujo teor no documento 6 da petição inicial aqui se dá como reproduzido, transcrevendo o essencial:

“(…)
Da análise dos factos apurados, resulta provado que:
• No dia 07/05/2014, a doente M. C. H. L. foi submetida, no Bloco Central do HSA-L..., a cirurgia laparoscópica programada, por um Quisto do Ovário direito, com cerca de 5 cm;
• Toda a cirurgia decorreu com toda a normalidade, sem sinais de qualquer hemorragia significativa e só na parte final da intervenção, no momento da extracção da peça operatória, se verificou uma hemorragia abundante através do orifício interno da porta colocada na Fossa Ilíaca Esquerda;
• Devido às suas dimensões (5 cm), a extracção da peça operatória através do orifício da porta, foi muito difícil, mesmo depois de várias tentativas de esvaziar o quisto, através da sua punção com agulha de Veress e do alargamento da respectiva porta;
• Na última tentativa de extrair a peça e após uma tração mais vigorosa, o saco colector acabou por se romper com a consequente queda da peça na cavidade abdominal;
• Estas manobras provocaram a exteriorização parcial do trocarte da Fossa Ilíaca esquerda e foi neste momento que se verificou uma hemorragia abundante através do orifício interno desta porta;
• Todos estes passos podem ser visualizados na gravação-vídeo da respectiva operação;
• Atendendo à gravidade do sangramento, foi pedido apoio e colaboração à Cirurgia II, nomeadamente, à Dra. C. A., que efectuou de imediato uma laparotomia exploradora e verificou a existência de uma lesão vascular na transição da veia ilíaca para a veia femoral esquerdas;
• A hemorragia foi controlada através de venorrafia de ambas as faces da veia, resultando numa estenose significativa do lúmen da mesma, o que motivou, 3 dias depois, a transferência da doente para a Cirurgia Vascular do CHUC, no dia 10/05/2014, onde permaneceu apenas em vigilância até dia 14/05/2014, não tendo havido a necessidade de re-intervenção cirúrgica;
• Reenviada para o HSA-L... nesta data, ficou internada no Serviço de Ginecologia, para continuação de cuidados;
• Veio a ter Alta Hospitalar a 20/05/2014 e a doente passou a ser seguida em Consulta de Cirurgia II, com boa evolução do pós-operatório, sem complicações significativas;
• Saliente-se que o Dr. D. teve a preocupação de acompanhar a doente na sua transferência para a cirurgia vascular do CHUC e de ter apresentado e discutido a situação clínica da doente com o Cirurgião Vascular daquele hospital;
• Na sequência do sucedido, em 16/5/2014, o Dr. G. M. S. comunica a ocorrência indesejada à Dra. M. C. R. e a Dra. C. A. procede de igual modo a 20/5/2014;
• A 21/5/2014, o Conselho de Administração do CHL decide suspender a actividade cirúrgica laparoscópica do Dr. Mário D. sob proposta da Senhora Directora Clínica.
(…)
1- Objectivação do momento e mecanismo da lesão vascular:
Sabendo-se da literatura sobre o assunto, que a maior parte das lesões vasculares em cirurgia laparoscópica, ocorrem durante a introdução da agulha de Veress e na colocação do primeiro trocarte (83% dos casos nalgumas séries), é considerado fundamental averiguar e perceber a causa e o mecanismo da iatrogenia vascular, o que é considerado essencial para a prevenção destas lesões, habitualmente graves.
Neste contexto, foram inquiridos os cirurgiões envolvidos, nomeadamente, o Dr. M. D., a Dra. E. S. e a Dra. C. A., os quais não têm explicação para o sucedido nem perceberam o mecanismo e o momento da lesão.
Através da gravação vídeo da intervenção, pode verificar-se que a lesão ocorreu a nível da porta colocada na Fossa Ilíaca Esquerda e não com a introdução da agulha de Veress ou com a colocação do primeiro trocarte.
Numa visualização mais cuidada, verifica-se que a lesão só poderá ter ocorrido num dos dois momentos seguintes:
a) Na introdução do trocarte na fossa ilíaca esquerda, depois de várias tentativas de perfurar o peritoneu, sob visão directa, a ponta do trocarte deslizou para a região do anel inguinal interno esquerdo e neste local perfurou o peritoneu. Por baixo deste anel e a poucos milímetros deste, passam os vasos íleo-femorais. A lesão vascular poderá ter ocorrido neste momento.
Contudo, não se explica o facto de não ter aparecido qualquer hemorragia durante a cirurgia. O próprio trocarte e a pressão do pneumoperitoneu terá feito o tamponamento da lesão vascular e evitado o sangramento intra-operatório?
b) A lesão poderá também ter ocorrido aquando do alargamento da porta da fossa ilíaca esquerda, com a finalidade de permitir a extracção da peça. Este gesto, neste local e feito em profundidade na parede abdominal, pode provocar lesões vasculares devido à proximidade dos vasos íleo-femorais esquerdos. Inquirido sobre este aspecto, o Dr. Mário D. informou que não fez o alargamento da porta em profundidade, mas somente a nível da pele.
Através do inquérito aos cirurgiões envolvidos e depois de múltiplas visualizações da gravação vídeo da cirurgia, não foi possível determinar com precisão o momento e o mecanismo da lesão vascular.
Contudo, parece mais plausível que a lesão tenha ocorrido no primeiro momento acima descrito, isto é, na introdução do trocarte na Fossa ilíaca esquerda pelas seguintes razões:
• A lesão da veia verificou-se em duas faces opostas da mesma, o que faz pressupor um mecanismo perfurante que só poderá ter sido provocado pela lâmina do mandril do trocarte;
• O sangramento surge quando o trocarte é exteriorizado parcialmente, já no final da cirurgia, na manobra de extracção da peça operatória, o que pressupõe que o mesmo terá feito o tamponamento da lesão vascular durante toda a cirurgia impedindo assim o sangramento.
A região anatómica do Anel Inguinal Interno é considerada uma zona crítica, a evitar, aquando da introdução dos trocartes na cavidade abdominal, devido às estruturas vasculares e não só, ali presentes. A introdução de um trocarte nesta zona crítica constitui má prática cirúrgica, pelo risco elevado de acontecerem vários tipos de lesões, nomeadamente vasculares.
Neste caso o incidente aconteceu, após várias tentativas de introduzir o trocarte, longe do Anel Inguinal Interno, na última tentativa a ponta do trocarte deslizou pelo espaço pré-peritoneal e foi perfurar o peritoneu junto àquela área crítica. Pela visualização da gravação vídeo da cirurgia, percebe-se que não havia a intenção de introduzir o trocarte naquela zona e o que aconteceu foi um incidente imprevisto e inevitável porque os próprios cirurgiões nem sequer se aperceberam de quando e como aconteceu.
A lesão vascular foi pronta e devidamente corrigida no mesmo acto operatório, pela Cirurgia Geral, não resultando da mesma, qualquer dano definitivo e significativo para a doente, excepto ligeira dor no local da ferida operatória relacionada com processo de cicatrização e ligeiro edema do membro inferior esquerdo, referido pela doente, mas pouco evidente no exame objectivo.
As lesões vasculares na Cirurgia Laparoscópica são raras, mas ocorrem. A incidência destas lesões é na literatura internacional de 0,05 a 0,5%, isto é, 1 caso em cada 2 mil a 200 cirurgias laparoscópicas respectivamente e de acordo com as várias séries. Estas cifras estão provavelmente subestimadas, devido à relutância de alguns cirurgiões em registarem estes incidentes operatórios mesmo em centros de referência mundial. O risco de complicações faz parte de qualquer ato cirúrgico e está sempre presente, seja qual for a técnica utilizada. Felizmente que a técnica cirúrgica e os meios auxiliares têm evoluído muito, tornando, actualmente, as complicações graves cada vez mais infrequentes, mas ainda não é possível evitá-las completamente.
2 - O Dr. Mário D. tem habilitações para executar cirurgia ginecológica laparoscópica e respeita todas as normas de segurança recomendadas?
Durante o inquérito, o Dr. Mário D. apresentou extensa documentação (anexa ao Processo) relativa à sua formação teórica e prática em Cirurgia Laparoscópica e à sua casuística operatória nos últimos anos. Em termos de formação teórico-prática constata-se que frequentou cerca de 27 cursos teóricos e estágios práticos, nacionais e internacionais e da casuística operatória verifica-se que realizou nos últimos anos mais de 100 cirurgias por via laparoscópica.
Da documentação apresentada intui-se que o Dr. Mário D. fez, ao longo de vários anos, um grande investimento na sua formação em Cirurgia Laparoscópica na área da Ginecologia.
O Dr. Mário D. foi inquirido relativamente às medidas de segurança na introdução dos trocartes, respondeu que respeita escrupulosamente as técnicas de inserção recomendadas internacionalmente neste tipo de cirurgia, tendo sempre em consideração as referências anatómicas.
3 - O Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia e seus pares reconhecem competência técnica ao Dr. Mário D. para executar cirurgia laparoscópica?
Como não é possível avaliar, num processo deste tipo, da competência técnica do Dr. Mário D., em Cirurgia Ginecológica Laparoscópica, a questão foi colocada ao Dr. G. M. S., Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia e à Dra. E. S., Ajudante habitual do Dr. Mário D., em Cirurgia Laparoscópica, que afirmaram reconhecer competência técnica a este Médico, naquele tipo de cirurgia.
4 - Quais as medidas que o Serviço de Ginecologia/Obstetrícia toma usualmente para evitar ocorrências per-operatórias indesejáveis e quais as formas de prevenção e correcção das mesmas?
Todos os cirurgiões têm complicações operatórias, muito embora, uns mais que outros. Para ter menos complicações é fundamental a experiência e a discussão dos insucessos.
A prevenção é a melhor solução para evitar complicações e para tal, todos os incidentes operatórios devem ser discutidos abertamente interpares em reuniões do Serviço, de modo a corrigir procedimentos e defeitos de técnica cirúrgica que possam coexistir. Só assim é possível evoluir e melhorar a qualidade dos actos operatórios.
Actualmente a cirurgia laparoscópica é uma prática corrente em quase todos os serviços cirúrgicos pelas suas inúmeras vantagens, sendo mesmo considerada a "Gold Standard" em muitas intervenções cirúrgicas, nomeadamente, em cirurgia ginecológica. A cirurgia clássica, nestes casos, é já considerada má prática cirúrgica a nível internacional.
O Serviço de Obstetrícia/Ginecologia do HSA-L... não tem incentivado nem apoiado a cirurgia laparoscópica, resumindo-se esta prática a apenas um cirurgião que a executa com alguma regularidade, o que traz, como consequência, a não discussão interpares dos incidentes operatórios por falta de massa crítica. Não existe por isso, nenhum plano de correcção e de prevenção dos incidentes que vão ocorrendo, para além da suspensão da respectiva actividade.
Do facto, foi dado conhecimento à Dra. M. C. R., Directora Clínica do HSA L..., atendendo a que o actual director do Serviço de Obstetrícia/Ginecologia, mostrou algumas dificuldades em corrigir esta situação.
Conclusão:
Da análise escrupulosa dos factos em apreço e da inquirição da maioria dos profissionais envolvidos neste Processo de Inquérito e da própria doente, conclui-se que:
1 - Não foi possível determinar com precisão o momento e o mecanismo de produção da lesão vascular, mas com grande probabilidade a mesma terá sido provocada pela introdução do trocarte na Fossa Ilíaca Esquerda.
2 - O Dr. Mário D. mostrou conhecer e respeitar todas as medidas de segurança, recomendadas internacionalmente, relativas à introdução dos trocartes em cirurgia laparoscópica e tendo sempre em consideração as respectivas referências anatómicas.
3 - A introdução do trocarte da Fossa Ilíaca Esquerda numa área crítica, como o anel inguinal interno, tratou-se de um incidente imprevisto provocado pelo deslize da ponta do mandril na tentativa de perfurar o peritoneu, o que terá provocado a lesão vascular. Este tipo de lesão, está descrita em todos os manuais de cirurgia laparoscópica como uma complicação rara, mas que ocorre, mesmo, nos melhores centros de referência a nível mundial.
4 - O Dr. Mário D. mostrou ter feito um grande investimento em formação em cirurgia ginecológica laparoscópica, através de cursos teóricos e estágios práticos em vários centros nacionais e internacionais. Da casuística operatória, verifica-se ter efectuado, nos últimos anos, mais de 100 cirurgias laparoscópicas neste Hospital, tendo sido, no Serviço, um grande incentivador, senão único, da prática deste tipo de cirurgia.
5 - O Director do Serviço de Obstetrícia/Ginecologia, Dr. G. M. S. e a Dra. E. S., Assistente Hospitalar desta especialidade, reconhecem competência técnica ao Dr. Mário D. para executar cirurgia ginecológica laparoscópica.
6- A lesão vascular foi devidamente corrigida no mesmo ato operatório e para a doente, para além de um pós-operatório um pouco mais demorado, não resultou qualquer dano físico significativo actual, nem se prevê qualquer complicação no futuro.
Pelas razões expostas, verifica-se que não houve violação de qualquer dos deveres funcionais e disciplinares previstas no artigo 180º da lGTFP, pelo que se propõe o arquivamento do Processo.
Contudo sugere-se que o Serviço de Obstetrícia/Ginecologia, com o apoio da Direcção Clínica, promova e estimule a prática da cirurgia por via laparoscópica, pelas suas vantagens em relação à cirurgia por via clássica e crie as condições para uma maior comunicação interpares, não tendo o receio de expor e discutir os insucessos, porque só assim se consegue evoluir.”

6. Inquérito e relatório final viriam a ser apreciados e objecto de deliberação do Conselho de Administração do Réu em 25.06.2015, data em que este órgão deliberou por unanimidade o que consta do documento 1 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido, transcrevendo o seguinte:

“(…)
Do relatório final dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto assente.
Em sede de qualificação dos factos, e conclusiva quanto a estes, o Relatório Final afirma que a lesão poderá ter ocorrido em dois momentos distintos: aquando da introdução do trocarte na fossa ilíaca esquerda, ou aquando do alargamento da porta da fossa ilíaca esquerda com a finalidade de permitir a extracção da peça operatória.
Por subsistirem, assim, aquelas duas hipóteses, conclui que "...não foi possível determinar com precisão o momento e o mecanismo da lesão vascular.".
Considerando a prova produzida nos autos conclui-se, que a cirurgia em apreço foi dirigida pelo Dr. M. S. D. S., sendo ele que procedeu à introdução do trocarte na fossa ilíaca esquerda, e bem assim ao alargamento da porta da fossa ilíaca esquerda para extracção da peça operatória. Actos, de um dos quais proveio a lesão descrita.
De todo o modo, o Relatório Final ainda conclui:
"A região anatómica do Anel Inguinal Interno é considerada uma zona crítica, a evitar, aquando da introdução dos trocartes na cavidade abdominal, devido às estruturas vasculares e não só, ali presentes. A introdução de um trocarte nesta zona crítica constitui má prática cirúrgica, pelo risco elevado de acontecerem vários tipos de lesões, nomeadamente vasculares."
Contudo, em descaracterização da censurabilidade da conduta do médico, refere ainda o Relatório a este propósito, que "[p]ela visualização da gravação vídeo da cirurgia percebe-se que não havia a intenção de introduzir o trocarte naquela zona e o que aconteceu foi um incidente imprevisto e inevitável, porque os próprios cirurgiões nem sequer se aperceberam de como e quando aconteceu.".
Temos, portanto, que de acordo com a matéria probatória apurada, ao Dr. M. S. D. S. é imputada a autoria dos actos cirúrgicos que determinaram uma lesão vascular na transição da veia ilíaca para a veia femoral esquerdas, com hemorragia importante. Não foi, contudo, apurado, que essa conduta do cirurgião decorra de má prática c1inica ou actuação em desconformidade às regras da arte, pelo que não se demonstrou que tivesse ocorrido lesão dos bens jurídicos tutelados, nomeadamente o direito à integridade física protegido com a criminalização, no artigo 150º nº 2 do Código Penal, de actos médicos que ultrapassem os referidos limites, e bem assim o dever de zelo a que o mesmo cirurgião está sujeito, enquanto trabalhador do CHL.
Face aos considerandos que antecedem, determina-se o arquivamento dos autos.
b) Quanto à determinada suspensão do Dr. Mário D., de integrar equipas cirúrgicas:
Com a mesma Deliberação do Conselho de Administração, foi determinado que o trabalhador Dr. M. S. D. S. não integrasse equipas cirúrgicas no CHL, que utilizem a técnica laparoscópica, quer em Bloco Operatório Central, quer em Ambulatório, até à conclusão do referido processo.
Enquanto determinação deste Conselho de Administração, a título cautelar para a pendência do processo de inquérito, a mesma caduca com o arquivamento daquele, o que aqui se declara. Importa ainda, sob esta matéria, considerar o seguinte:
1) Como se referiu supra, do Inquérito em análise evidencia-se que o Dr. M. S. D. foi quem praticou os actos cirúrgicos que causaram a lesão vascular sofrida pela utente, pese embora esteja afastada a qualificação desses actos como de má prática cirúrgica.
2) Por outro lado, relativamente ao mesmo clínico este CHL vem recebendo múltiplas queixas de utentes, quer relativas à sua postura relacional com estes, quer à sua prática clínica.
3) Neste sentido, nota-se, que desde 2010 e a esta data o CHL regista 23 participações de utentes tratadas pelo seu Gabinete do Cidadão visando o Dr. M. S. D. S..
4) É certo que das averiguações e dos inquéritos que as referidas participações suscitaram não se logrou demonstrar uma qualquer actuação específica e culposa do trabalhador que conduzisse ao seu sancionamento disciplinar.
5) Porém, questão bem diversa é a de saber se o clínico em apreço se encontra actualmente capacitado para, dentro dos parâmetros de risco aceitáveis, realizar cirurgias com recurso à técnica laparoscópica, tendo em conta o número de participações registadas, significativamente superior ao de qualquer dos demais clínicos do CHL, a prossecução da Missão deste Centro Hospitalar e a protecção das condições de assistência na saúde prestada aos seus utentes.
6) O Dr. M. S. D. S. é trabalhador do Centro Hospitalar de L..., E.P.E., com a categoria de Assistente Graduado de Ginecologia/Obstetrícia.
7) No exercício das suas funções compete-lhe, designadamente, prestar as funções assistenciais e praticar actos médicos diferenciados, registá-los nos processos clínicos, participar na formação dos médicos internos, integrar e chefiar as equipas de urgência, interna e externa, integrar programas de melhoria contínua da qualidade, articular a prestação e a continuidade dos cuidados de saúde com os médicos de família, conteúdo funcional que decorre do estabelecido no artigo 7º-A do Decreto-Lei nº 177/2009, de 4 de Agosto, aditado com o Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31 de Dezembro.
8) Do exame do processo, isto é, das declarações ali prestadas, designadamente pelo Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia, e bem assim do que se afirma conclusivamente nessa sede no Relatório Final, verifica- -se o reconhecimento de que o Dr. M. S. D. S. detém habilitações para realizar cirurgias com utilização da técnica laparoscópica; não é legítimo, porém, concluir, que actualmente detenha capacidade e competência para assegurar a realização de intervenções dessa natureza dentro dos parâmetros exigíveis de risco mínimo de intercorrências e complicações derivadas de erro, ainda que justificável ou não censurável no plano da vontade.
9) A capacidade de cada profissional médico para a realização de cirurgias, máxime, daquelas que implicam o recurso a técnicas onde se impõe o emprego de elevados níveis de precisão de manobra de instrumentos, depende do nível dos conhecimentos técnicos e científicos, bem como do nível de apuramento dos seus sentidos, da firmeza dos seus gestos, e ainda de estados psicológicos subjectivos, realidade que só se pode medir num quadro de avaliação e auto-avaliação contínuas.
10) No caso concreto do Dr. M. S. D. S., compete à estrutura hierárquica dos serviços de prestação de cuidados, e concretamente ao Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia e à Directora Clínica, ao abrigo das respectivas competências fixadas no artigo 32º nº 2 do Regulamento Interno e 9º dos Estatutos do CHL publicados em anexo II ao Decreto-Lei nº 233/2005, de 29 de Dezembro, republicado e actualizado com o Decreto-Lei nº 12/2015, de 26 de Janeiro, avaliar casuisticamente da capacidade e competência daquele clínico para a realização de laparoscopias, a fim de, integradamente no quadro dos objectivos do serviço, determinar as tarefas que em concreto lhe são atribuídas.
Pelo que ao Dr. M. S. D. S. só deverá ser cometida a intervenção em cirurgias no CHL com recurso à técnica laparoscópica, depois de atestada a respectiva capacidade no contexto dos requisitos enunciados supra em 9) pelo Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia, se necessário com recurso à avaliação por outros especialistas, com validação pela Directora Clínica deste CHL.

ii) Quanto ao requerimento de 2015.03.25
Pede o requerente a declaração de extinção do processo de inquérito por ultrapassagem dos prazos que decorrem da aplicação conjugada dos artigos 27º, 39º e 66º do Estatuto Disciplinar aprovado com a Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro, e dos artigos 195º, 205º e 229º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, e bem assim se determine seja o mesmo escalado para integrar equipas cirúrgicas que utilizem a técnica laparoscópica.
Contudo, os prazos fixados para a instrução e aplicáveis ao inquérito, constantes das disposições normativas referenciadas, são meramente indicativos, não determinando o respectivo decurso a extinção do processo.
Sem prejuízo de que, com a deliberação de arquivamento do processo, agora tomada, o mesmo extingue-se, dando-se assim por esta via resposta à alínea a) do pedido.
No que respeita ao peticionado em b), tem-se aqui por integralmente reproduzido o deliberado supra em i) b], e assim:
a) Declara-se a caducidade da medida cautelar administrativa de inibição de o Dr. Mário D. integrar equipas cirúrgicas no CHL com utilização da técnica laparoscópica, durante a pendência do Processo de Inquérito 6/2014.
b) Determina-se que ao Dr. M. S. D. S. só deverá ser cometida a intervenção em cirurgias no CHL com recurso à técnica laparoscópica, depois de atestada a respectiva capacidade no contexto dos requisitos enunciados supra em i) b) 9) pelo Director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia, se necessário com recurso à avaliação por outros especialistas, com validação pela Directora Clínica deste CHL.
(…).
*
III - Enquadramento jurídico.

1. Recurso do despacho saneador: a inimpugnabilidade do acto impugnado.

O acto impugnado na acção é a deliberação do Conselho de Administração do Réu na parte em que, apesar de ter determinado o arquivamento do inquérito por não haver indícios de prática médica censurável por parte do Autor, bem como a extinção da medida preventiva de inibição do mesmo para intervir em cirurgias por laparoscopia nos seus estabelecimentos hospitalares, determinou que apenas lhe poderia ser cometida a intervenção em cirurgias, no Centro Hospitalar de L..., depois de atestada pelo director do Serviço de Ginecologia/Obstetrícia, se necessário com recurso à avaliação por outros especialistas, com validação pela directora clínica, a respectiva capacidade actual no contexto dos requisitos enunciados no ponto 9 da alínea b) da deliberação, que infra transcrevemos:

“A capacidade de cada profissional médico para a realização de cirurgias, máxime daquelas que implicam o recurso a técnicas onde se impõe o emprego de elevados níveis de precisão de manobras de instrumentos, depende do nível dos conhecimentos técnicos e científicos, bem como do nível de apuramento dos seus sentidos, da firmeza dos seus gestos, e ainda de estados psicológicos subjectivos, realidade que só se pode medir num quadro de avaliação e auto-avaliação contínuas.”

O despacho saneador decidiu a excepção dilatória da inimpugnabilidade do referido acto nos seguintes termos:

“Lido o dispositivo do acto, qualquer intérprete entende que, além do mais, é seu objecto a determinação de que no hospital do Réu não serão atribuídas laparoscopias ao Autor até as entidades ali referidas reavaliarem em concreto as suas capacidades físicas e psíquicas para proceder a tais intervenções, o que altera o seu status anterior, que era o de poder proceder às mesmas sem mais.

Como assim, o acto é lesivo de interesses do Autor que este entende legalmente protegidos, pelo que improcede a sobredita excepção.”

O Réu recorre invocando a não lesividade do despacho impugnado pelo Autor, alegando que o acto impugnado em nada inibe o Autor, não lhe nega qualquer direito, não inverte a sua presunção de capacidade, pois que a avaliação contínua é a regra e a liberdade de definição das tarefas que, dentro do seu conteúdo funcional, são distribuídas a cada médico pelos seus superiores hierárquicos, também, pelo que tal acto apenas consubstancia um esclarecimento e uma advertência para que a hierarquia clínica exerça as suas competências de avaliação.

Sem razão.

O acto é impugnável porque é lesivo dos interesses do Autor, é lesivo da sua autonomia científica, técnica e ética.

O Autor, por força desse acto, fica limitado no seu poder de realizar intervenções cirúrgicas por laparoscopia, dependendo de um juízo de capacidade para o efeito das suas hierarquias clínicas.

Afigura-se-nos que, tal como considerou a 1ª Instância, qualquer intérprete do teor do acto conclui pela lesividade do interesse do Autor em realizar as cirurgias com técnica laparoscópica com total autonomia científica, técnica e ética.

Conclui-se, pois, pela improcedência do recurso quanto à decisão da excepção dilatória da inimpugnabilidade do acto em apreciação nos autos, que por isso, se mantém nos seus precisos termos.

2. O recurso da sentença; a violação do artigo 7º-A do Decreto-Lei nº 177/2009, de 04.09, na redacção do Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31.12.

A deliberação impugnada, segundo o Recorrente, convoca a hierarquia clínica para o exercício das suas competências, levantando a proibição estabelecida como preventiva no decurso do processo de inquérito que correu termos contra o Autor e reporta-se a avaliação e autoavaliação contínuas para verificar da capacidade e disponibilidade do profissional, em cada momento, não tratando de procedimento de interdição do exercício da medicina, ou parcial exercício da medicina constantes do Estatuto da Ordem dos Médicos ou com ele conexionadas.

Vejamos:

O Decreto-Lei nº 177/2009, de 04.08, com a actualização do Decreto-Lei nº 266-D/2009, em conformidade com o disposto no artigo 1º, “estabelece o regime da carreira especial médica, bem como os respectivos requisitos de habilitação profissional”.

Dispõe o seu artigo 7ª:

“Áreas de exercício profissional

1 - A carreira especial médica organiza-se por áreas de exercício profissional, considerando-se, desde já, criadas as áreas hospitalar, medicina geral e familiar, saúde pública, medicina legal e medicina do trabalho, podendo vir a ser integradas, no futuro, outras áreas.

2 - Cada área prevista no número anterior tem formas de exercício adequadas à natureza da actividade que desenvolve, nos termos dos artigos seguintes, sem prejuízo do disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”.

E o artigo 7.º-A:

“Área hospitalar
1 -Na área hospitalar, ao assistente são atribuídas, nomeadamente, as seguintes funções:
a) Prestar as funções assistenciais e praticar actos médicos diferenciados;
b) Registar no processo clínico os actos, diagnósticos e procedimentos;
c) Participar na formação dos médicos internos;
d) Integrar e chefiar as equipas de urgência, interna e externa;
e) Participar em projectos de investigação científica;
f) Integrar programas de melhoria contínua da qualidade;
g) Desempenhar funções docentes;
h) Responsabilizar-se por unidades médicas funcionais;
i) Articular a prestação e a continuidade dos cuidados de saúde com os médicos de família;
j) Participar em júris de concurso;
k) Assegurar as funções de assistente graduado ou de assistente graduado sénior, quando não existam ou nas suas faltas e impedimentos.
2 -Na área hospitalar, ao assistente graduado são atribuídas as funções de assistente e ainda as de:
a) Coordenar o desenvolvimento curricular dos médicos internos e dos médicos assistentes;
b) Coordenar programas de melhoria contínua da qualidade;
c) Coordenar a dinamização da investigação científica;
d) Coordenar a dinamização de projectos de bioética;
e) Coordenar a dinamização de projectos de informatização clínica e de telemedicina;
f) Coordenar os protocolos de diagnóstico, terapêuticos e de acompanhamento, bem como a gestão dos internamentos e da consulta externa;
g) Coadjuvar os assistentes graduados séniores da sua área de especialidade.
3 -Na área hospitalar, ao assistente graduado sénior são atribuídas as funções de assistente e de assistente graduado, cabendo-lhe ainda:
a) Coordenar actividades assistenciais de investigação científica e de formação médica na área da sua especialidade;
b) Coordenar os processos de acreditação;
c) Exercer cargos de direcção e chefia;
d) Coadjuvar o director de serviço nas actividades de gestão;
e) Substituir o director de serviço da respectiva área nas suas faltas e impedimentos.”

O Autor era assistente graduado da carreira médica hospitalar na especialidade de ginecologia e obstetrícia.

Não estava nem está em causa que fazia parte do conteúdo funcional dessas especialidade e categoria, além do mais, a prática de actos médico diferenciados, conforme nº 1 alínea a) ex vi nº 2 do artigo 7º-A, entre eles cirurgias (da especialidade de ginecologia/obstetrícia) pelo método laparoscópico.

Também não estava nem está em causa, conforme foi reconhecido pelo instrutor do processo disciplinar e pelo Réu, na deliberação em causa, que o Autor adquirira habilitação científica e técnica, pela quantidade e pela qualidade das formações teóricas práticas que frequentara e pela prática entretanto exercida no próprio Centro Hospitalar de L..., para intervir pessoalmente em cirurgias de ginecologia obstetrícia pelo sobredito método. Portanto fazia inequivocamente parte não só do conteúdo funcional das suas categoria profissional e especialidade, como também do conjunto de actos médicos da especialidade de ginecologia obstetrícia para que ele estava tecnicamente habilitado, a intervenção em cirurgias desta especialidade por laparoscopia.

Exercer a medicina hospitalar com estas incidência e amplitude, enquanto actos compreendidos no conteúdo funcional da sua categoria e para os quais estava cientifica e tecnicamente, teórica e praticamente preparado era, portanto, em princípio, um direito do Autor, direito que a deliberação impugnada inegavelmente, coartou.

Para se julgar se com isso foi violado o disposto na alínea a) do artigo 7º-A do Decreto-Lei nº 177/2009 de 04.09, na redacção do Decreto-Lei nº 266-D/2012 de 31.12 – ou, de todo o modo, qualquer seu direito subjectivo enquanto clínico – cumpre apreciar se, em face dos factos provados e do direito aplicável, o Conselho de Administração (ou até a hierarquia médica do Hospital) podia deliberar semelhante contracção dos direitos do Autor a exercer a sua profissão.

O Réu opõe, no sentido da licitude, os artigos 32º, nº 2, do seu Regulamento interno e 9º dos seus estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei nº 233/2005 de 29.12, na redacção do Decreto-Lei nº 12/2015, de 26.01, dizendo que deles decorre que competia à estrutura hierárquica médica em que o Autor estava integrado, designadamente ao serviço de ginecologia/obstetrícia e à direcção clínica, avaliar casuisticamente da sua capacidade para a realização de laparoscopias ou outras funções específicas contidas no sobredito conteúdo funcional a fim de, integradamente, no quadro dos objectivos do serviço, determinar as tarefas que em concreto lhe deveriam ser e não ser atribuídas.

Ora, o artigo 9º dos Estatutos do Réu (anexo II do Decreto-Lei 12/2015 de 26.10) dispõe assim:

“Director clínico
1 - Ao director clínico compete a direcção de produção clínica do hospital, E. P. E., que compreende a coordenação da assistência prestada aos doentes e a qualidade, correcção e prontidão dos cuidados de saúde prestados, designadamente:
a) Coordenar a elaboração dos planos de acção apresentados pelos vários serviços e departamentos de acção médica a integrar no plano de acção global do hospital;
b) Assegurar uma integração adequada da actividade médica dos departamentos e serviços, designadamente através de uma utilização não compartimentada da capacidade instalada;
c) Propor medidas necessárias à melhoria das estruturas organizativas, funcionais e físicas dos serviços de acção médica, dentro de parâmetros de eficiência e eficácia reconhecidos, que produzam os melhores resultados face às tecnologias disponíveis;
d) Aprovar as orientações clínicas relativas à prescrição de medicamentos e meios complementares de diagnóstico e terapêutica, bem como os protocolos clínicos adequados às patologias mais frequentes, respondendo perante o conselho de administração pela sua adequação em termos de qualidade e de custo-benefício;
e) Propor ao conselho de administração a realização, sempre que necessário, da avaliação externa do cumprimento das orientações clínicas e protocolos mencionados, em colaboração com a Ordem dos Médicos e instituições de ensino médico e sociedades científicas;
f) Desenvolver a implementação de instrumentos de garantia de qualidade técnica dos cuidados de saúde;
g) Decidir sobre conflitos de natureza técnica entre serviços de acção médica;
h) Decidir as dúvidas que lhe sejam presentes sobre deontologia médica, desde que não seja possível o recurso, em tempo útil, à comissão de ética;
i) Participar na gestão do pessoal médico, designadamente nos processos de admissão e mobilidade interna, ouvidos os respectivos directores de serviço;
j) Velar pela constante actualização do pessoal médico;
k) Acompanhar e avaliar sistematicamente outros aspectos relacionados com o exercício da medicina e com a formação dos médicos.
2 - O director clínico pode exercer, a título excepcional e não remunerado, actividade médica, apenas no âmbito da entidade pública empresarial em que ocupe cargo de administração e desde que por sua iniciativa e no seu próprio interesse o solicite, especificando os actos a realizar e o tempo a dedicar.
3 - O exercício da actividade prevista no número anterior depende de autorização prévia do conselho de administração, mediante pedido detalhado expresso por escrito do próprio director clínico quanto aos actos a realizar e ao tempo a dedicar, com demonstração do interesse público.

O artigo 32º nº 2 do Regulamento Interno versa sobre as competências de todos e quaisquer órgãos com poderes de direcção:

“(…) Todos os responsáveis seguirão as melhores práticas na gestão dos recursos colocados sob a sua direcção, devendo nessa perspectiva:
a) Orientar a actividade do serviço na satisfação das necessidades e expectativas dos seus clientes;
b) Exercer a sua actividade operacional através da melhoria contínua da estrutura dos processos e dos resultados, identificando e resolvendo problemas e estabelecendo a comparação com outros de melhor nível de processos e desempenho;
c) Promover a valorização dos recursos humanos, através da actualização do conhecimento e das técnicas utilizadas e do envolvimento nas actividades de criação de valor.
d) Estabelecer processos multidisciplinares e intersectoriais de trabalho;
e) Manter um sistema eficaz de controlo, destinado à salvaguarda dos activos e à economia no consumo de recursos;
f) Assegurar um sistema de informação qualificado, íntegro e fiável;
g) Providenciar pela gestão dos recursos do serviço, com base em padrões de qualidade e de eficiência.”

O Regulamento Interno contém um artigo directa e exclusivamente dedicado aos poderes e deveres do director de serviço:

“Artigo 35.º
(Gestão dos serviços de prestação de cuidados)
1. O director de serviço é um médico especialista que manifeste notórias capacidades de organização e qualidades de chefia, nomeado pelo conselho de administração, em comissão de serviço, por um período de três anos, sob proposta do director clínico.
2.Os directores de serviço são responsáveis pela correcção e prontidão dos cuidados de saúde a prestar aos doentes, bem como pela utilização e eficiente aproveitamento dos recursos postos à sua disposição, respondendo perante o conselho de administração, a quem cabe fixar os objectivos, ouvidos os directores de serviço, implementar os meios necessários para os atingir e definir os mecanismos de avaliação periódica.
3. Aos directores de serviço compete-lhes genericamente planear e dirigir toda a actividade do serviço, com autonomia na organização do trabalho e os correspondentes poderes de direcção sobre todo o pessoal que integra o serviço, independentemente da sua carreira ou categoria profissional com a salvaguarda das competências específicas e científicas atribuídas por lei a cada profissão.
4. São competências específicas do director de serviço:
(…)
d) Assegurar a produtividade e eficiência dos cuidados de saúde prestados e proceder à sua avaliação sistemática;
(…)
h) Propor ao director clínico, quando necessário, a realização de auditorias clínicas;
l) Assegurar a gestão adequada dos recursos humanos, incluindo a avaliação interna do desempenho global dos profissionais, dentro dos parâmetros estabelecidos”.

Dir-se-ia que quer o corpo quer a conjugação das alíneas i) e k) do artigo 9º do Estatuto são suficiente substrato jurídico para uma decisão do director clínico, de não distribuir cirurgias laparoscópicas a um médico especialista em princípio científica e tecnicamente habilitado a fazê-las, mas por si considerado com estando, de facto, temporária ou definitivamente incapaz (física, psíquica ou mentalmente) para as executar segundo os padrões de segurança tidos por devidos.

O mesmo se poderia dizer quanto ao Director de Serviço em face do disposto nos nºs 3 e 4 alªs d), h) e l) do Regulamento.

Deste modo, através de uma simples distribuição de serviço, o director de serviço e o director clínico poderiam resolver os receios ou as certezas a que tivessem chegado, no exercício do seu poder/dever de fiscalizar sistematicamente a qualidade dos cuidados médicos no estabelecimento ou no serviço, quanto à incapacidade concreta e actual do especialista seu “subordinado” (hoc sensu) para a prática de determinada espécie de actos médicos compreendidos na sua especialidade.

Contudo, acompanhamos o sustentado em 1ª Instância, de que a deliberação impugnada não consistiu em distribuir ou não determinado serviço, nem mesmo determinada espécie de serviço, nem foi emitido pelo director de serviço, nem mesmo pela directora clínica, antes consistiu numa ordem, dada a estes órgãos da hierarquia clínica pelo Conselho de Administração, um órgão que não integra essa hierarquia (cf. artigo 7º dos Estatutos), relativa à distribuição – melhor – à não distribuição de determinados serviços a um seu assistente graduado do serviço de ginecologia e obstetrícia.

Ora, o exercício da profissão médica tem de respeitar a autonomia científica, técnica e ética em que se estrutura, não pode ser determinado de fora, sem mais, por uma ou em nome de uma qualquer entidade patronal, mesmo quando ocorre na execução de um contrato de trabalho por conta de outrem ou de um contrato de trabalho em funções públicas, como é o caso.

Na verdade, tal como, mas bem mais intensamente do que sucede com outras profissões que carecem de estudos e habilitações científicas e técnicas superiores, a medicina tem de ser exercida em franca autonomia científica e técnica e em respeito por toda uma deontologia que os poderes hierárquicos e ou patronais a que esteja sujeito o médico trabalhador não podem subverter.

Assim, a aplicação dos artigos 74º, 80º e 82º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas está restringida pelas características de autonomia científica, técnica e ética que deve acompanhar o exercício da profissão médica. Ou seja, o Decreto-Lei nº 177/2009, condiciona a aplicação desta Lei relativamente ao poder de direcção que coloque em causa tal autonomia, pelo que se discorda da aplicação daquelas normas deste diploma como fundamento para considerar legal o teor da deliberação impugnada.

O próprio artigo 35º do Regulamento Interno, acima transcrito, ao definir as competências do director de serviço, ressalva “as competências específicas e científicas atribuídas por lei a cada profissão”.

Com toda a razão e de acordo com uma exegese rigorosa das normas legais aplicáveis, a 1ª Instância conclui:

“Assim, distribuir serviço de modo a optimizar a qualidade e quantidade do mesmo, fiscalizar a qualidade dos actos médicos praticados no serviço ou no hospital são competências indiscutíveis das direcções clinica e do serviço. Mas inibir, deliberadamente, por meio da não distribuição de serviço, um médico detentor de habilitação científica e técnica para determinada espécie de acto médico, de o praticar, ainda que seja por se duvidar da sua actual capacidade física ou mental para o fazer, não é meio legal de aqueles hierarcas clínicos almejarem tais objectivos, por bem intencionados que estejam. Na verdade a suficiência de tal juízo pelo superior hierárquico para um tal efeito viola o direito/dever de o médico exercer a medicina em autonomia científica, técnica e ética.
Por outro lado, de um ponto de vista do direito fundamental à escolha e ao exercício da profissão (artigo 47º nº 1 da constituição), à luz do qual deve ser lido o invocado artigo 7º-A, tal conduta da hierarquia clínica contenderia também com o direito dele a exercer, em pé de igualdade com os colegas de idêntica especialidade, categoria e habilitação técnica, todos os actos médicos compreendidos no conteúdo funcional da sua especialidade e da sua categoria, para os quais estivesse tecnicamente habilitado.
tenta a autonomia da profissão médica, uma dúvida sobre a capacidade concreta e actual de determinado profissional para praticar determinados actos médicos não pode ser resolvida sem recurso, se não apenas, ao menos também ao quadro jurídico do exercício da profissão médica em si mesma, isto é, independentemente de o ser ou não em relação de trabalho subordinado, designadamente à lei que, ao tempo do acto impugnado, conformava o Estatuto da Ordem dos Médicos – o Decreto-Lei nº 282/77, de 05 de Julho, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 217/94 de 20/8 – e o Regulamento que, de acordo com o artigos 80º dos Estatutos, aprovou o Código Deontológico da mesma Ordem – o Regulamento nº 14/2009, publicado no DR, 2ª série, de 11/1/2009.
Dispõe o artigo 12º do Estatuto, o seguinte:
1. Por deliberação unânime do Conselho Nacional Executivo, mediante parecer de uma comissão de peritos especialmente nomeada para o efeito, poderão ser impedidos de exercer, total ou parcialmente, a sua profissão os médicos para ela inabilitados física ou mentalmente.
2. A comissão de peritos será constituída por cinco membros, sendo dois nomeados pelo conselho regional da secção a que o médico pertença, dois pelo interessado e um pelo Conselho Nacional Executivo.
3. Se o interessado não estiver em condições de fazer a nomeação a que se refere o número anterior, deverá a mesma ser feita pela pessoa a quem legalmente caberia a tutela ou curatela nos casos de interdição ou inabilitação judicialmente declaradas.
4. Da deliberação do Conselho Nacional Executivo cabe recurso para os tribunais administrativos.
Assim, à Ordem e apenas a ela assiste o poder de, procedendo a declaração de inabilidade total ou parcial, inibir um médico da carreira hospitalar de praticar certos actos médicos compreendidos no âmbito da sua especialidade.
Não se pense que os poderes legalmente conferidos aos directores de serviço e clínico ficam assim reduzidos a nada. Vejamos:
O artigo 134º nº 1 do código deontológico aplicável dispõe:
1 - Se um médico se tornar incapaz de tratar os seus doentes, por doença ou qualquer outra razão, é dever dos colegas tomarem as medidas necessárias para que de tal circunstância não advenha perigo ou dano para os doentes.
2 - Inicialmente devem os colegas discutir a situação com o médico incapaz e oferecer a sua ajuda para a resolver.
3 - Se estas medidas não resultarem, deve ser informada a Ordem, designadamente para efeitos do artigo 12.º do Estatuto da Ordem dos Médicos.
Pois bem, se, na sua competência de fiscalizar o exercício da actividade clinica no seu serviço ou no seu hospital, o director clínico se representar haver incapacidade, temporária ou definitiva, de um seu trabalhador médico, para certa espécie de actos médicos compreendidos no conteúdo funcional da especialidade e para os quais até então se mostrava habilitado e capaz, não lhe assiste o poder de lhe não distribuir, sem mais, serviço que compreenda esse acto, antes terá de, inicialmente, discutir a situação com o colega e, depois, se não houver acordo, comunicar a o facto à Ordem, para que ela proceder conforme a legislação acabada de citar.
E não se pense que entretanto ficam os doentes à mercê dessa verificação de incapacidade, pois, desde logo, no contacto inicial com o colega, pode o superior hierárquico propor-lhe que até haver decisão definitiva da ordem sobre a sua incapacidade parcial, se abstenha de praticar a espécie de actos em causa; e se não houver acordo nesse sentido a própria Ordem poderá determiná-lo quanto mais não seja no uso do seu poder disciplinar, que, então, terá de exercer. (Hoje, dada a remissão para o regime do procedimento disciplinar, o órgão competente da Ordem pode aplicar medidas preventivas, mesmo sem ser caso de instaurar processo disciplinar).
Podemos então dizer que a deliberação impugnada viola o artigo 7º-A nºs 1 a) e 2 do Decreto-Lei nº 177/2009 de 4/9 na redacção do Decreto-Lei nº 266-D/2012 de 31/12), além do mais porque o seu objecto material mediato contende, sem cobro legal algum, com o direito do Autor a exercer a medicina com a autonomia exigida pelo Estatuto da Ordem dos Médicos e pelo respectivo Código Deontológico, designadamente com as normas estatutárias e deontológicas médicas constantes do artigo 12º do Estatuto e do artigo 134º do Código Deontológico aplicáveis”.

É demasiado evidente que a interpretação das normas supra transcritas efectuada pelo Réu não tem qualquer correspondência com a letra das mesmas, com a sua inserção sistemática, e com a sua teleologia, elementos que foram considerados pela interpretação que delas é feita pela 1ª instância, em observância do disposto no artigo 9º nº s 1 e 2 do Código Civil.

Não merece, pois, provimento o presente recurso jurisdicional, impondo-se manter a decisão recorrida.
*
IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pelo Réu, enquanto parte vencida.
*
Porto, 20.12.2019



Rogério Martins
Luís Garcia
Frederico Branco