Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02867/11.8BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/02/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA; BENS MÓVEIS;
INCIDÊNCIA DE IVA; ERRO NOS PRESSUPOSTOS;
CONTENCIOSO DE MERA LEGALIDADE; ADMINISTRAÇÃO ACTIVA;
Sumário:I – No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o Tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual que o integra, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.

II - O Tribunal não pode decidir sobre a manutenção de actos que devem ser anulados com base em fundamentação diferente da utilizada pela Administração Tributária, actuação que redundaria numa verdadeira fundamentação a posteriori e na prática de administração activa, não admitidas pela lei.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

«Massa Insolvente da X, Lda.», sendo a sede desta sociedade no Lugar ..., S..., ..., pessoa colectiva n.º ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 17/05/2016, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios, relativas a 2007 e 2008, no valor global de €109.983,99.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
“1) Merece destaque decisivo para a fundamentação de facto o documento subscrito pelos representantes da impugnante designado contrato promessa de compra e venda”, celebrado em 5-10-2007;
2) Consta, também da mesma fundamentação que a impugnante adquiriu os móveis que compõem a unidade industrial, a que se refere aquele contrato, de forma parcelada, em 06-11-2007, 21-11-2007 e 12-12-2007;
3) É pois facto assente que, à data da celebração do aludido documento - contrato-promessa -, a impugnante não era proprietária dos móveis dele objecto;
4) Como também consta da fundamentação de facto, o relatório de inspecção em que se fundamenta a liquidação impugnada, faz uma abordagem jurídica relativamente à qualificação jurídica do contrato contido no clausulado de tal documento, para se concluir que “… o contrato celebrado em 05/10/2007 entre a «X» e a DANIELSPACK, como um contrato de compra e venda com pagamento a prestações, com cláusula de reserva de propriedade sobre os bens vendidos até o integral pagamento do preço”;
5) A sentença recorrida não faz qualquer abordagem crítica àquele contrato, não o qualificando, pelo que não se sabe se para a Mma. Juiz a quo, estaria, ou não, em causa, um efectivo contrato de compra e venda;
6) Se tal necessária abordagem tivesse sido feita, obviamente que se teria de concluir que a impugnante nunca poderia ter celebrado em 05-10-2007 um contrato de compra e venda de bens de que não era proprietária;
7) Como a sentença bem indica, ao transcrever parte do art. 3.º do CIVA, para este imposto, a regra geral de incidência consiste na transmissão de bens, traduzida na “transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade”;
8) É certo, contudo, que nem só a transmissão da efectiva propriedade de bens se inclua no âmbito da sujeição objectiva do IVA, mas quando tal não se verifique, é necessário que, pelo menos, ocorra a entrega material dos bens, por forma a que o destinatário passe a “dispor de um bem corpóreo como proprietário”;
9) A fundamentação alicerçada pela administração tributária para proceder à liquidação de IVA impugnada, é a existência de contrato de compra e venda com reserva de propriedade, o que é efectivamente incluído na incidência de IVA por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 3° do CVA;
10) A sentença nada diz a esse respeito e, pelo contrário, contradiz-se nos termos e factualidade por assumir “… que se insurge a impugnante por considerar que só adquiriu os móveis em causa de forma parcelada em 06.11.2007, 21.11.2007 e 12.12.2007”, para logo de seguida concluir, de forma surpreendente, que “… a impugnante não põe em causa a transmissão dos bens móveis do contrato celebrados”;
11) Decorre da aplicação conjugada do disposto nos art. 77°, n.º 2 da LGT e 153.º do CPA, que a fundamentação e eficácia dos actos tributários impõe que estes sejam fundamentados, ainda que de forma sumária, de modo expresso, devendo conter sempre as normas legais aplicáveis;
12) Sendo inquestionável que o acto tributário se consolida com a fundamentação, de facto e de direito que lhe deu origem, não podendo o tribunal substituir-se à administração tributária;
13) A liquidação de IVA que se impugnou, apenas se poderia ter por válida e sufragada pelo tribunal a quo se referente a um pretenso contrato de compra e venda com reserva de propriedade celebrado em 05-10-2007, sob pena de aplicação inconstitucional do art. 77°, n.° 1 e 2 da LGT, por violação do disposto 268°, n.° 3 da CRP;
14) Sendo certo que a impugnante nunca celebrou tal contrato, como resulta da factualidade assente na sentença;
15) Foi efectuada uma incorrecta aplicação do disposto no art. 3°; n.° 1, b) do CIVA, art. 77.º da LGT e 153° do CPA e 125°, n.º 1 do CPPT.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
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Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa analisar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, ao considerar que a AT actuou legalmente, quando decidiu que a operação em causa estava sujeita a IVA, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA (CIVA).

III. Fundamentação

1. Matéria de facto
Da sentença prolatada em primeira instância consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“É a seguinte a matéria de facto assente com relevância para a decisão da causa, para além da que antecede, por ordem lógica e cronológica:
A. Em 05.10.2007, representantes da impugnante subscreveram documento designado “Contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual a impugnante se declara dona e legítima proprietária da unidade industrial sita no Lugar ... e de todos os bens móveis que a compõem, prometendo vender à sociedade «Y, Lda.», essa mesma unidade industrial, pelo preço de € 1.539.000,00 – cfr. fls. 55 a 57 do PA apenso:
B. Em 06.11.2007, a sociedade «Z, S.A.»., emitiu, em nome da impugnante, a factura n.º ...42, relativa a 1/5 dos bens móveis provenientes da massa insolvente da «K, LDA.», pelo valor de € 59.495,70, incluindo IVA – facto constante de fls. 7 do relatório de inspecção e não impugnado.
C. O pagamento da quantia que antecede foi efectuado através de letras sacadas pela impugnante e aceites pela «Y, Lda.» – facto constante de fls. 7 do relatório de inspecção e não impugnado.
D. Em 22.11.2007, a sociedade «T, LDA.», emitiu, em nome da impugnante, a factura n.º ......, relativa a 1/5 dos bens móveis provenientes da massa insolvente da «K, LDA.», pelo valor de € 59.495,70, incluindo IVA – facto constante de fls. 7 do relatório de inspecção e não impugnado.
E. O pagamento da quantia que antecede foi efectuado através de letras sacadas pela impugnante e aceites pela «Y, Lda.» – facto constante de fls. 7 do relatório de inspecção e não impugnado.
F. Em 12.12.2007, a sociedade «W, LDA.», emitiu, em nome da impugnante, a factura n.º ...28, relativa a 3/5 dos bens móveis provenientes da massa insolvente da «K, LDA.», pelo valor de € 178.487,10, incluindo IVA – facto constante de fls. 7 do relatório de inspecção e não impugnado.
G. O pagamento da quantia que antecede foi efectuado através de letras sacadas pela impugnante e aceites pela «Y, Lda.» – facto constante de fls. 7 (verso) do relatório de inspecção e não impugnado.
H. A impugnante adquiriu os móveis que compõem a unidade industrial em 06.11.2007, 21.11.2007 e 12.12.2007, pelo valor global de € 297.478,50 – facto confessado em 23.º da p.i.
I. Em 14.05.2008, a sócia da impugnante «O, SGPS, S.A.», entregou-lhe, a título de suprimentos, letras no valor de € 93.131,40 – facto constante de fls. 7 (verso) do relatório de inspecção e não impugnado.
J. Em 20.05.2008, a sócia da impugnante «L, SGPS, LDA», entregou-lhe, a título de suprimentos, letras no valor de € 46.565,70 – facto constante de fls. 7 (verso) do relatório de inspecção e não impugnado.
K. Em 20.05.2008, o sócio da impugnante «CC», entregou-lhe, a título de suprimentos, letras no valor de € 46.565,70 – facto constante de fls. 8 do relatório de inspecção e não impugnado.
L. Em 20.05.2008, o sócio da impugnante «BB», entregou-lhe, a título de suprimentos, letras no valor de € 51.720,00 – facto constante de fls. 8 do relatório de inspecção e não impugnado.
M. Em 02.06.2008, a impugnante entregou ao Banco 1..., para cobrança, letras que incluem as anteriormente recebidas pela impugnante a título de suprimentos dos sócios - facto constante de fls. 8 do relatório de inspecção e não impugnado.
N. A impugnante apenas registou na sua contabilidade os pagamentos da Danielspack em contas de terceiros – clientes como sendo adiantamentos de clientes - facto constante de fls. 8 do relatório de inspecção e não impugnado.
O. A impugnante deduziu a totalidade do IVA suportado na compra dos bens móveis – facto constante de fls. 12 do relatório de inspecção e não impugnado.
P. Em 06.04.2011, pela Divisão de Inspecção Tributária IV da Direcção de Finanças ... foi emitido “Relatório de inspecção tributária” relativamente à impugnante com o seguinte teor – cfr. fls. 12 e ss. do PA apenso:
“(…)
“(…) Ordem de Serviço n.º ...22
(…)
Conclusões da acção de inspecção
Mapa resumo das correcções resultantes da acção de inspecção
Método de determinação da matéria tributável - De natureza meramente aritmética
Natureza do imposto - IVA
Imposto em falta
Ano/Exercício 2007 - 97.216,12
Ano/Exercício ...,05
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)”
Q. Em 01.05.2011, em nome da impugnante foram emitidas as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios n.ºs ...21, ...22, ...23, ...24, ...25, ...26, relativas a 2007 e 2008, no montante global de € 109.983,99 – facto invocado em 1. da contestação e não impugnado.
R. Em 28.09.2011, foi remetida a este Tribunal via email a p.i. que deu origem aos presentes autos – cfr. fls. 3 do processo físico.
Motivação
O Tribunal formou a sua convicção relativamente a cada um dos factos dados como assentes tendo por base os documentos juntos aos autos, os quais não foram objecto de impugnação, bem como o posicionamento das partes, assumido nos respectivos articulados.”

2. O Direito

Com a presente impugnação judicial a aqui Recorrente pretendeu impugnar liquidações adicionais de IVA e respectivos juros compensatórios, cuja fundamentação consta do relatório inspectivo aprovado pelo Director dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção-Geral dos Impostos, por decisão de 14/04/2011, onde se apurou, com referência aos exercícios de 2007 e 2008, que a impugnante não liquidou, nem entregou, IVA no valor de €109.983,99.
De acordo com o referido relatório inspectivo, na base das correcções efectuadas está a interpretação e a qualificação jurídico-fiscal de contrato denominado de “promessa de compra e venda”, formalizado em 05/10/2007, entre a Recorrente e a «Y, Lda.» e, ainda, um fiador («AA»), com referência a uma unidade industrial composta por um imóvel e bens móveis (equipamento para a indústria de cartonagem e tipografia).
A Administração Tributária (AT) apurou que, em sede de IVA, a Recorrente não relevou qualquer efeito fiscal relativamente a esse contrato, pese embora tenha deduzido a totalidade do IVA suportado na compra dos bens móveis, resultando daí uma situação de crédito de imposto. Pelo que, da fundamentação constante do relatório de inspecção tributária, se observa estar em falta a liquidação de IVA, no valor de €96.957,00, com referência ao ano de 2007 (período 07-12T), incidindo sobre a verba de €461.700,00, que corresponde aos bens móveis indicados no contrato promessa de compra e venda; bem como ter sido deduzido indevidamente IVA nos períodos de 07-12T, de 08-06T, de 08-09T e de 08-12T, no montante global de €790,17, que corresponde a 70% do imposto deduzido relativamente à aquisição dos mesmos bens.
No concernente ao imposto deduzido indevidamente, correspondente a 70% do IVA suportado na aquisição dos bens móveis, a impugnante nada refere na sua petição de impugnação, não tendo, por isso, sido objecto de pronúncia pelo tribunal recorrido, como emerge da sentença em análise.
Portanto, não obstante a impugnação global de todas as liquidações de IVA mencionadas no relatório inspectivo, o objecto do presente recurso circunscreve-se à única questão tratada na sentença recorrida, contendente com a argumentação respeitante à liquidação adicional de IVA, relativa ao 4.º trimestre de 2007, no montante de €96.957,00 [IVA que deveria ter sido liquidado pela alegada transmissão dos bens móveis] e respectivos juros compensatórios.
Em suma, está em causa aquilatar se as liquidações em causa padecem de erro nos pressupostos, por assentarem na transmissão de bens móveis por parte da Recorrente à data da celebração do contrato promessa de compra e venda.
A AT, essencialmente com base numa qualificação jurídico-fiscal e económica deste contrato formalizado em 05/10/2007, concluiu tratar-se verdadeiramente de um contrato de compra e venda com pagamento em prestações e com cláusula de reserva de propriedade sobre os bens vendidos até integral pagamento do preço, que, como entendeu verificar-se a entrega material dos bens móveis, considerou enquadrar-se a situação no conceito de transmissão de bens previsto no artigo 3.º, n.º 3, alínea b) do CIVA, pelo que o imposto seria exigível no momento em que os mesmos são postos à disposição do adquirente, havendo lugar a tributação em sede de IVA sobre o valor da contraprestação.
A AT destaca ter sido declarado na cláusula primeira que a impugnante é dona e legítima proprietária dos bens objecto do contrato, na cláusula terceira ter ficado determinado que o pagamento do preço seria efectuado em 118 prestações, na cláusula sexta a reserva de propriedade sobre os bens vendidos até ao integral pagamento do preço e na cláusula sexta as obrigações do fiador e principal pagador. No que tange ao pagamento do preço, a Danielspack comprometeu-se a pagar a primeira prestação de €12.500,00 em 02/10/2007, a segunda prestação de €26.620,00 na data da celebração do contrato e as restantes 116 prestações mensais de €12.930,00 seriam pagas mensalmente e tituladas por letras de igual valor, com início em 25/11/2007 e a última em 25/06/2017.
Não obstante o enquadramento jurídico subjacente ao acto impugnado, realizado pela AT, a Recorrente insurge-se contra a sentença recorrida, por esta se ter alheado da fundamentação do acto praticado e ter adoptado um outro enquadramento de direito da situação, por forma a concluir, de igual forma, pela sujeição a IVA da operação em causa.
A Recorrente insiste neste recurso que, embora o contrato em causa celebrado com a sociedade Danielspack seja designado como “promessa de compra e venda”, à data da celebração do mesmo a impugnante não era proprietária dos móveis a que o mesmo respeita tendo os bens sido por si adquiridos de forma parcelada em 06.11.2007, em 21.11.2007 e em 12.12.2007, pelo valor global de €297.478,50, acrescido de IVA, razão pela qual os pagamentos que vieram a ser efectuados pela Danielspack à impugnante foram registados na sua contabilidade como “adiantamentos de clientes”.
Não se questiona o correcto enquadramento jurídico realizado na sentença recorrida, mas somente a circunstância de, na subsunção dos factos ao direito, o tribunal recorrido ter perdido de vista ou se ter afastado da necessária análise dos fundamentos utilizados pela AT para a correcção em crise.
Com efeito, nos presentes autos estamos perante um contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, onde o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto.
Vejamos, contudo, o contexto legal expresso na sentença recorrida:
Conforme escreve SÉRGIO VASQUES SÉRGIO VASQUES, O imposto sobre o valor acrescentado, Coimbra, Almedina, 2015, p. 195., “Enquanto imposto geral sobre o consumo, o IVA onera por princípio todas as operações com conteúdo económico, quaisquer que sejam os respectivos contornos.” Por conseguinte, o IVA abrange não só as transmissões de bens mas também as prestações de serviços, conceitos estes que surgem fixados na Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (Directiva IVA). Nos termos do n.º 1 do seu artigo 14.º, “Entende-se por «entrega de bens» a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.” Por sua vez, dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IVA, na redacção aplicável ao caso, que “Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.” Acrescenta o n.º 3 do artigo 3.º o seguinte: “Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo: a) A entrega material de bens em execução de um contrato de locação com cláusula, vinculante para ambas as partes, de transferência de propriedade; b) A entrega material de bens móveis decorrente da execução de um contrato de compra e venda em que se preveja a reserva de propriedade até ao momento do pagamento total ou parcial do preço; (…)”
Apesar de a AT também ensaiar que a qualificação económica do contrato em apreço poderia ser compatível com um contrato de locação, com cláusula de transferência de propriedade, conforme previsto no artigo 3.º, n.º 3, alínea a) do CIVA, pelo que estaria, de igual forma, a operação sujeita a liquidação de IVA, parece estabilizar a sua fundamentação de direito no artigo 3.º, n.º 3, alínea b) do CIVA, na medida em que assenta a sua análise na conclusão de que a qualificação jurídico-fiscal do contrato se reconduziria a um contrato de compra e venda com pagamento em prestações com cláusula de reserva de propriedade sobre os bens vendidos até ao integral pagamento do preço.
Compulsando a decisão da matéria de facto, que não se mostra impugnada, verificamos que, efectivamente, o acto em crise enferma de erro nos pressupostos.
Vejamos.
Em 05.10.2007, representantes da impugnante subscreveram documento designado “Contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual a impugnante se declara dona e legítima proprietária da unidade industrial sita no Lugar ... e de todos os bens móveis que a compõem, prometendo vender à sociedade «Y, Lda.»., essa mesma unidade industrial, pelo preço de €1.539.000,00 – cfr. alínea A) do probatório.
Por outro lado, resulta da matéria vertida na alínea H) do probatório que a impugnante adquiriu os móveis que compõem a unidade industrial em 06.11.2007, em 21.11.2007 e em 12.12.2007, pelo valor global de €297.478,50. Ou seja, a Recorrente só adquiriu o direito de propriedade sobre esses bens móveis, que prometeu vender, posteriormente à formalização do contrato.
No acordo formalizado, em 05/10/2007, como vimos, na sua cláusula primeira, a ora Recorrente, enquanto primeiro contraente, afirmava ser “dono e legítimo proprietário de uma Unidade Industrial composta por (…) todos os bens móveis que a compõem (…)”. No entanto, ficou provado [alínea H)] que, nessa data, tal não correspondia à verdade dos factos.
Esta constatação descredibiliza os termos do contrato-promessa, pondo em causa a análise e qualificação jurídico-fiscal e económica realizada pela AT, em que se funda a liquidação adicional em crise.
Na verdade, não se poderá afirmar a existência de uma cláusula de reserva de propriedade sobre os bens móveis vendidos se à data da celebração do contrato o primeiro contraente, a aqui Recorrente, não era proprietário desses bens.
Salientamos que tal circunstância se afigura pressuposto da norma ínsita no artigo 3.º, n.º 3, alínea b) do CIVA - A entrega material de bens móveis decorrente da execução de um contrato de compra e venda em que se preveja a reserva de propriedade até ao momento do pagamento total ou parcial do preço.
Nesta conformidade, tal é bastante para que o acto de liquidação não se possa manter com a fundamentação assente no artigo 3.º, n.º 3, alínea b) do CIVA, por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos.
É irrelevante que a sentença recorrida tenha concluído estarmos perante uma transmissão onerosa de bens sujeita a IVA.
No contencioso tributário, que é de mera anulação, insistimos, o tribunal não pode conhecer da legalidade do acto impugnado a coberto de pressupostos que não estiveram na base da sua prática, sendo que apenas se poderão considerar como pressupostos do acto tributário aqueles que a AT fez constar da declaração fundamentadora (parte integrante do próprio acto e dele coeva) que externou aquando da prática do mesmo.
É nossa convicção que o conceito de transmissão previsto no artigo 3.º do CIVA corresponde à ficção da transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao direito de propriedade, embora não corresponda ao conceito jurídico deste direito; são consideradas genuínas transmissões as de facto, por quem seja mero detentor das mercadorias ou por quem delas seja possuidor por tradição, sem que seja seu proprietário.
Porém, esta abordagem constitui uma nova configuração, que não presidiu à correcção efectuada, não podendo o Tribunal sustentar a sua decisão com base nesta fundamentação, sob pena de, ao abrigo de uma pretensa alteração da qualificação (fáctico-jurídica), o Tribunal, na verdade, conferir aos actos tributários impugnados uma nova fundamentação legal, completamente diversa daquela que havia sido dada pela Administração Tributária no procedimento inspectivo.
Ora, o Tribunal não pode substituir-se à Administração Tributária, sustentando a legalidade de uma liquidação adicional de imposto com fundamentação nova e diferente. A fundamentação alicerçada pela Administração Tributária para proceder à liquidação de IVA impugnada é a existência de contrato de compra e venda com reserva de propriedade, o que é efectivamente incluído na incidência de IVA, por força do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA.
Com efeito, como se sabe, não compete ao Tribunal substituir-se à Administração Tributária na prática de um novo acto tributário, estando-lhe vedado, “Sob pena de violação do princípio da separação de poderes e assumir-se como órgão de administração activa dos impostos, (…) decidir sobre a manutenção de actos que deveriam ser anulados com base em fundamentação diferente da utilizada pela administração tributária.” (vd. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de Junho de 2011, proferido no Processo n.º 058/11, sublinhado nosso) – cfr. conclusões 12) e 13) das alegações do recurso, que se acolhem.
No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o Tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual que o integra, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.
Assim é, porquanto o contribuinte tem de defender-se apenas dos pressupostos enunciados na fundamentação contextual do acto tributário e dos quais se extraíram os seus efeitos lesivos, pelo que o Tribunal está impedido de valorar razões de facto e de direito que não foram invocadas para conduzir ao acto tributário impugnado. Se assim não fosse, o particular ver-se-ia surpreendido em juízo com a invocação de uma outra realidade e isso representaria uma contracção do seu direito de recurso contencioso face à impossibilidade de utilizar os meios conferidos por lei para sindicar os actos tributários, e que são mais favoráveis que os meios conferidos por lei para impugnar as decisões judiciais. - cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de Novembro de 1998 (Pleno), de 14 de Junho de 2000, de 19 de Dezembro de 2001 e de 17 de Março de 2005, proferidos, respectivamente, nos Rec. nºs 32702, 45029, 48126 e 0103/05, e citados no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19 de Janeiro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 1528/07.7BEVIS.
No caso vertente, reitere-se, a actividade inspectiva da Administração Tributária, expressa no respectivo relatório parcialmente transcrito no probatório supra, apenas sustentou as correcções no pressuposto de que, em 05/10/2007, foi celebrado um contrato de compra e venda com pagamento em prestações com cláusula de reserva de propriedade sobre os bens vendidos até ao integral pagamento do preço, pelo que sobre tal operação incidiria IVA por força do disposto no artigo 3.º, n.º 3, alínea b) do CIVA.
Como resulta da factualidade assente, designadamente alíneas A) e H), não vislumbramos que tivesse sido um contrato dessa natureza o celebrado em 05/10/2007, pelo que as liquidações sindicadas enfermam do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.
A fundamentação do acto correctivo não tem outro alcance ou fundamento e, assim sendo, como constitui jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, evidenciada, entre outros, nos Acórdãos de 2 de Março de 2011 e 1 de Junho de 2011, proferidos, respectivamente, nos Processos nºs 049/10 e 058/11, o Tribunal não pode decidir sobre a manutenção de actos que devem ser anulados com base em fundamentação diferente da utilizada pela Administração Tributária, actuação que redundaria numa verdadeira fundamentação a posteriori e na prática de administração activa, não admitidas pela lei - neste sentido, vide, ainda, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 11 de Março de 2021, proferido no processo n.º 18/11.8BELRA.
Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se decide conceder provimento ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida e julgar a impugnação judicial parcialmente procedente, anulando as liquidações de IVA (n.º ...21), referente ao 4.º trimestre de 2007, e respectivos juros compensatórios (n.º ...22).

Conclusões/Sumário

I – No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o Tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual que o integra, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.
II - O Tribunal não pode decidir sobre a manutenção de actos que devem ser anulados com base em fundamentação diferente da utilizada pela Administração Tributária, actuação que redundaria numa verdadeira fundamentação a posteriori e na prática de administração activa, não admitidas pela lei.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença na parte recorrida e julgar a impugnação judicial parcialmente procedente, anulando as liquidações de IVA (n.º ...21), referente ao 4.º trimestre de 2007, e respectivos juros compensatórios (n.º ...22).

Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do decaimento, que se fixa da seguinte forma:
Nesta instância, a Recorrida suportará a totalidade das custas, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que a Fazenda Pública não contra-alegou.
Na primeira instância, em face da parte do julgamento que não se manteve, a proporção do decaimento fixa-se em 1% a cargo da Impugnante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, e em 99% a cargo da Fazenda Pública.

Porto, 02 de Março de 2023

Ana Patrocínio
Paula Moura Teixeira
Conceição Soares