Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00845/12.9BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
RESPONSÁVEL PELO PAGAMENTO DAS CUSTAS;
Sumário:
1 - O decretamento da extinção da instância, com fundamento na inutilidade superveniente da lide, a que se reporta o artigo 277.º n.º 1 alínea e) do CPC, pressupõe sempre a ocorrência, posterior à propositura da acção, de circunstâncias pelas quais seja retirado às partes, de forma muito clara e objectiva, o interesse em agir ou a possibilidade de obter uma qualquer vantagem juridicamente relevante com o prosseguimento da lide.

2 - Resultando dos autos que existia fundamento para o pedido de concessão de tutela judicial por parte dos Autores, e que a partir do deferimento do projecto de arquitectura deixou de existir necessidade dessa tutela, por terem os mesmos logrado alcançar, entretanto, decisão da entidade administrativa licenciadora, que dava guarida à sua pretensão em torno da não demolição da construção e mais ainda, da legalização das construções por via do seu licenciamento, importa avaliar por que termos e pressupostos é que tal ocorreu, e nesse patamar, porque ocorre a inutilidade superveniente da lide, e assim também, quem é o responsável pelo pagamento das custas.

3 - Em face da regra geral em matéria de custas a que se reporta o disposto no referido artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, porque as circunstâncias supervenientes não podem deixar de ser imputadas a alguém, e porque tem de haver um responsável pelo seu pagamento, e no caso dos autos não podendo sê-lo o Réu, atento o disposto no artigo 536.º, n.º 3 do CPC – parte inicial –, os responsáveis, em exclusivo, por não ter havido vencimento da acção, são os Autores por não estarmos perante uma inutilidade da lide que possa ser imputada ao Réu, e porque foram eles quem do processo tirou proveito.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I – RELATÓRIO



Município ... [devidamente identificado nos autos] Réu na acção administrativa especial que contra si foi intentada por «AA», e «BB», na qual formularam pedido no sentido de que “… deve a presente impugnação ser julgada procedente e provada e, em consequência, deve o acto impugnado ser declarado nulo ou [no] mínimo ser anulado com todas as legais consequências, e em substituição proferido acto de legalização das obras realizadas pelos AA, e emitida a respectiva licença de habitabilidade, suspendendo-se sempre e até decisão da presente acção a ordem de demolição emanada”, inconformado com a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual foi condenado no pagamento das custas, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
C) DAS CONCLUSÕES:
1ª) O recorrente pretende delimitar o objeto do recurso à parte da sentença em que, na mesma, se decidiu que “A responsabilidade pelas custas é da Entidade Demandada, porquanto a inutilidade lhe é imputável (considerando-se que a inutilidade é imputável à Entidade Demandada quando esta decorre da satisfação voluntária, por parte desta, da pretensão dos Autores), nos termos do artigo 536.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA”.
2ª) O deferimento do projeto de arquitetura n.º ONERED-162/07 não implicou uma revogação implícita da ordem de demolição do prédio objeto dos presentes autos e, por isso, a responsabilidade pelas custas não é da Entidade Demandada porquanto a inutilidade não lhe é imputável.
3ª) O artigo 165º nº 1 do CPA refere que “A revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, pelo que a revogação é um ato administrativo secundário ou de segundo grau que se destina a extinguir os efeitos de um ato administrativo anterior, primário ou de primeiro grau (ver, neste sentido, Carlos José Batalhão, “Novo Código de Procedimento Administrativo – Notas Práticas e Jurisprudência”, 2ª edição, pg. 283).
4ª) Na situação em apreço não foi determinada, expressa ou tacitamente, a cessação dos efeitos do acto de 29/02/2012 (demolição e reposição do terreno no seu estado original) por razões de mérito, conveniência ou oportunidade.
5ª) Sucedeu que, uma circunstância superveniente (autorização de reconstrução da [SCom01...], SA) permitiu a prática de novo ato de aprovação do projeto de arquitetura, pelo que o ato primário de 29/02/2012 (demolição e reposição do terreno no seu estado original) não foi revogado implicitamente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165º nº 1 do CPA.
6ª) O ato de aprovação do projeto de arquitetura é um novo ato, substitutivo do acto de 29/02/2012 (demolição e reposição do terreno no seu estado original) – artigo 173º do CPA.
7ª) Mas, ainda que se entendesse que o ato primário de 29/02/2012 foi revogado implicitamente pelo ato de deferimento do projeto de arquitetura n.º ONERED-162/07, o certo é que a situação em apreço não cabe na previsão do artigo 536º nos 3 e 4 do Código de Processo Civil, ao contrário do que refere a sentença recorrida.
8ª) Quando, na pendência da presente acção, a [SCom01...], SA veio autorizar a reconstrução, atentas as demais circunstâncias acima referidas das quais resulta a inexistência de qualquer outro obstáculo ao deferimento da pretensão dos AA., o Réu ficou com um poder vinculado de aprovar o projeto de arquitetura apresentado pelos AA., o que fez.
9ª) Não pode, pois, concluir-se que lhe é imputável (subjetiva ou objetivamente) a inutilidade superveniente da lide e que esta decorre da satisfação voluntária, por parte do Réu, da pretensão dos autores, uma vez que aquele estava vinculado a praticar o ato de deferimento.
10ª) No acórdão do STA de 02/12/1983, proferido no processo nº 16279, refere-se que “Ocorrendo a revogação por substituição na pendencia do recurso, não são devidas custas (artigo 447, n. 1 do Código de Processo Civil)”.
11ª) A decisão recorrida viola, por isso, claramente, as normas dos artigos 165º nº 1 e 173º do CPA e 536º nos 3 e 4 do Código de Processo Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a
sentença recorrida ser revogada na parte em que decidiu que a responsabilidade pelas custas é da Entidade Demandada e substituída por outra que decida que não são devidas custas, para que se faça JUSTIÇA !
[…].”

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Os Recorridos não apresentaram Contra Alegações.

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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.



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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.

Tendo a instância sido julgada extinta com fundamento em inutilidade superveniente da lide, com custas a cargo do Réu Município ora Recorrente, a única questão por si suscitada como assim patenteada nas conclusões apresentadas consiste, em suma e a final, em apreciar e decidir, sobre se a Sentença recorrida padece erro de julgamento em matéria de direito, por ter o Tribunal a quo decido pela sua condenação em custas.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

Tendo subjacente o disposto no artigo 636.º, n.º 6 do CPC, para aqui se extrai parte do relatório da Sentença recorrida, como segue:

“[…]
Alegam, em suma [os Autores], que, por ato administrativo praticado no uso de competências subdelegadas pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal ... foi determinada a demolição da habitação unifamiliar existente no Caminho ..., ..., ..., e a reposição do terreno no seu estado original.
Ato com o qual não se conformam por considerarem que o indicado prédio não se encontra abrangido pelas limitações decorrentes da servidão administrativa non aedificandi constante do artigo 4.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 248-A/99, de 6 de julho, encontrando-se os pareceres da AENOR/ASCENDI e do INIR feridos de erro sobre os pressupostos de facto. Mais sustentam que a demolição põe em causa a sua subsistência e o seu direito à habitação e que as obras que levaram a cabo são legalizáveis.
Mais sustentam que a demolição põe em causa a sua subsistência e o seu direito à habitação e que as obras que levaram a cabo são legalizáveis.
Por fim, afirmam que o ato viola os artigos 13.º, 106.º, n.º 2 e n.º 3 do RJUE, os princípios da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, os artigos 62.º e 65.º da CRP e o artigo 334.º do CC.
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Regularmente citada, a Entidade Demandada apresentou a contestação constante a fls. 47 e seguintes do suporte digital.
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Os Autores pronunciaram-se quanto à matéria de exceção nos termos constantes a fls. 109 e seguintes do suporte digital.
*
Foi proferido o despacho saneador constante a fls. 143 e seguintes do suporte digital.
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Realizou-se a audiência final com observância de todas as formalidades legais (cfr. fls. 355 e seguintes do suporte digital).
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Por requerimento apresentado em 24 de outubro de 2022 veio a Entidade Demandada pugnar pela verificação da inutilidade superveniente da lide, com fundamento no facto de, por despacho de 21 de outubro de 2022, ter o projeto de arquitetura n.º ONERED-162/07 sido deferido (cfr. fls. 589 e seguintes do suporte digital).
*
Notificados para exercerem o direito de contraditório quanto à referida questão, vieram os Autores anuir na verificação da inutilidade superveniente da lide, pois, tendo o projeto de arquitetura sido aprovado, há, no seu entendimento, uma revogação implícita do ato impugnado nos autos (cfr. fls. 598 e seguintes do suporte digital).
[…]”
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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 02 de dezembro de 2022, na parte em que no seu segmento decisório, julgou pela condenação do Réu ora Recorrente nas custas do processo, por a instância ter findado por inutilidade superveniente da lide, dada a pressuposta satisfação voluntária da pretensão dos Autores.

Como assim dispõe o artigo 627.º, n.º 1 do CPC, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, para efeitos de poderem ser evidenciadas perante o Tribunal Superior as irregularidades de que a Sentença pode enfermar [que se reportam a nulidades que afectam a Sentença do ponto de vista formal e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade], assim como os erros de julgamento de facto e/ou de direito, que por si são resultantes de desacerto tomado pelo Tribunal na formação da sua convicção em torno da realidade factual, ou da interpretação e aplicação do direito, em termos tais que o decidido não está em correspondência com a realidade fáctica ou normativa.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Tendo subjacente o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC, o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Aqui chegados.

Cotejadas as conclusões das Alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, delas se extrai que a sua pretensão está ancorada, no essencial, no entendimento que prossegue de que errou o Tribunal a quo em matéria de interpretação e aplicação do direito, ao ter apreciado e decidido que a inutilidade da lide lhe é imputável, ao abrigo do disposto no artigo 536.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, por ter sido satisfeita a pretensão dos Autores na pendência dos autos, e dessa feita, que as custas são a seu cargo.

Sustentou para o efeito o Recorrente que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 165.º, n.º 1 e 173.º, ambos do CPTA, assim como o referido artigo 536.º do CPC, porque a inutilidade superveniente da lide não lhe pode ser imputada.

Atenta a profusa instrução dos autos, como assim neles está constante, julgamos que assiste razão ao Recorrente, ou seja, que tendo a instância sido extinta por não se mostrar objectivamente necessária a sua continuidade, por não subsistir qualquer interesse digno de tutela judicial, que as custas do processo não podem ser a seu cargo.


Vejamos.

O decretamento da extinção da instância, com fundamento na inutilidade superveniente da lide, a que se reporta o artigo 277.º n.º 1 alínea e) do CPC, pressupõe sempre a ocorrência, posterior à propositura da acção, de circunstâncias pelas quais seja retirado às partes, de forma muito clara e objectiva, o interesse em agir ou a possibilidade de obter uma qualquer vantagem juridicamente relevante com o prosseguimento da lide.

Na situação que veio a obter respaldo nos autos, os Autores vieram a obter o deferimento da sua pretensão, que consistiu, a final, no deferimento do seu pedido de legalização das obras por si levadas a cabo no seu terreno, o que ocorreu em 21 de outubro de 2022.

É certo que quando os Autores vieram em busca de tutela jurisdicional efectiva junto dos Tribunais Administrativos, para o que no dia 07 de maio de 2012 intentaram no TAF de Braga acção administrativa especial tendente a ser declarado nulo ou anulado o acto administrativo da autoria do Vice-Presidente da Câmara Municipal ..., datado de 29 de fevereiro de 2012, pelo qual foi indeferido o requerimento por si apresentado visando a legalização das obras, e determinada ainda a demolição e reposição do terreno no seu estado original, e que a acção findou porque foi documentado nos autos que na sua pendência [dos autos] o Réu proferiu decisão visando o deferimento do projecto de arquitectura atinente ao pedido de licenciamento, o que ocorreu por decisão do Réu datada de 21 de outubro de 2022 [Cfr. ofício do Réu ora Recorrente constante dos autos, datado de 24 de outubro de 2022].

Resulta assim claro, que à data de 07 de maio de 2012 existia fundamento para o pedido de concessão de tutela judicial por parte dos Autores, e que a partir do deferimento do projecto de arquitectura deixou de existir necessidade dessa tutela, por terem os Autores logrado alcançar, entretanto, decisão da entidade administrativa licenciadora, que dava guarida à sua pretensão, em torno da não demolição da construção e mais ainda, da legalização das construções por via do seu licenciamento.

Importa porém avaliar por que termos e pressupostos é que tal ocorreu, e nesse patamar, porque ocorreu a inutilidade superveniente da lide, e assim, quem é o responsável pelo pagamento das custas, sendo que é esta a questão que vem trazida a este Tribunal de recurso para apreciação e decisão.

Como assim julgamos, os Autores só viram a sua pretensão impugnatória ser firmada com o julgamento da desnecessidade da ulterior prossecução de termos nos autos, porque foram os próprios Autores que iniciaram um novo pedido de licenciamento junto do Réu, que nessa constância veio a possibilitar o desnovelo junto da [SCom01...], IP, da situação de facto e de direito em que se encontrava o seu prédio, o que passou pelo registo predial de um ónus de renúncia a indemnização em caso de eventual expropriação que passou a onerar o seu prédio, e com base no qual aquela instituição veio a emitir autorização de reconstrução/ampliação da construção edificada no seu prédio [dos Autores], tendo subjacente o disposto nos artigos 42.º, n.º 2, alínea a) e 58.º, n.º 2, alínea a), ambos do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, publicado pela Lei n.º 34/2015, de 27 de abril.

Ou seja, sem essa autorização, não poderia o Réu Município, ainda que em sede de [re]apreciação do pedido de licenciamento, vir a decidir pelo seu deferimento, porquanto, como assim já estava justaposto à decisão impugnada, datada de 29 de fevereiro de 2012, a construção quanto à qual os Autores requereram a sua legalização por via do seu licenciamento, violava a servidão administrativa non aedificandi da autoestrada A...1, a que se reportava o artigo 4.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 248-A/89, de 06 de julho.

De uma outra perspectiva. Sem a emissão dessa autorização por parte da [SCom01...], IP, nunca o Réu poderia emitir o acto administrativo tendente ao licenciamento da construção, pois que em face da existente servidão administrativa, que os Autores não poderiam deixar de saber e conhecer que existia, tanto mais que foram expropriados no seu direito de propriedade, na parte do seu terreno que se situava no espaço canal da via rodoviária em causa, e vinculadamente, o Réu não poderia emitir o acto licenciatório como assim pretendido pelos Autores.

O que é de dizer que, como assim referiram os Autores no requerimento que juntaram aos autos, que foi remetido ao Presidente da Câmara Municipal ..., em resposta ao ofício n.º ...02, de 05 de abril de 2022, tendo a ordem de demolição da construção emitida pelo Réu como único fundamento a violação da servidão administrativa, o acto impugnado não poderia ser removido da ordem jurídica administrativa, com fundamento na sua nulidade ou anulabilidade. De resto, atenta a situação de facto e de direito em que se encontrava o prédio dos Autores, em particular o seu distanciamento face à via rodoviária, o que assim resulta evidente por uma mera medição expedita, sendo patente a existência de servidão administrativa, é que a emissão de um acto administrativo por parte do Réu nessa valência em desrespeito pela entidade consultada, sempre seria, ele sim, padecente de nulidade [Cfr. artigo 68.º do RJUE].

Aqui chegados.

Resulta dos autos, de forma manifesta, que a obrigatoriedade da decisão do Réu, e no sentido do deferimento do pedido apresentado pelos Autores, em 2022, apenas adveio na decorrência da interposição de uma terceira entidade, a [SCom01...], IP, que não era parte nos autos, embora em face dos termos por que os Autores deixaram patenteado na Petição inicial, era consigo interveniente numa relação jurídica administrativa controvertida [Cfr. entre outros, os pontos 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 15.º, 16.º, 18.º e seguintes da Petição inicial, e em especial os pontos 38.º a 40.º e 59.º].

Como assim julgamos, para além de o acto administrativo que deferiu o projecto de arquitectura ter sido proferido num aditamento [apenso] ao processo de obras n.º ...7, e que está assente em diferentes pressupostos de facto e direito que a ele foram trazidos pelos Autores, e no seu próprio interesse licenciatório, daí resulta que não pode ser convocada a regra de condenação em custas a que se reporta o artigo 536.º, n.ºs 3 [2.ª parte] e 4 do CPC, e nesse conspecto erigir o Réu como responsável pelo seu pagamento, e que assim tendo prosseguido o Tribunal a quo, que errou no julgamento empreendido.

Quando muito, porque o mérito dos autos visando as invalidades apontadas ao acto impugnado não chegou a ser apreciado, por para tanto ter contribuído a actuação dos Autores [como assim resulta do vertido sob o ponto 59.º da Petição inicial] já que vieram a solicitar e a obter da [SCom01...], IP, autorização em conformidade com o artigo 58.º do Estatuto da Rede Rodoviária Nacional, que eles próprios submeteram a registo, o que só assim veio a possibilitar o deferimento da sua pretensão licenciatória, seria de convocar a regra geral a que se reporta o artigo 527.º, do CPC.

Conforme dimana da Sentença recorrida, em sede da fundamentação por si aportada para efeitos de julgar pela ocorrência da inutilidade do prosseguimento dos autos, para tanto confluiu “… a documentação junta pela Entidade Demandada a fls. 591 do suporte digital e a posição das partes vertida nos requerimentos de 24 de outubro de 2022 e de 29 de novembro de 2022 …”, e bem assim que “… a pretensão formulada pelos Autores foi satisfeita pela Entidade Demandada, por recurso a outro meio, na pendência da presente ação …”.

Porém, a partir desse substracto não pode julgar-se que tendo o Réu vindo a deferir a pretensão dos Autores, que a inutilidade superveniente da lide lhe possa ser imputada, pois que não é pelo facto de os Autores terem alcançado a sua pretensão, que era a de não terem de efectuar a demolição da construção, e ao invés, que a mesma fosse licenciada e dessa foram poderem continuar a habitar na edificação, que essa sua actuação [do Réu] possa ser tida e havida como sendo resultante da satisfação voluntária daquela que era a pretensão dos Autores, justaposta a uma ilicitude da actuação do Réu, à data da prolação do acto impugnado, atentos os termos e os pressupostos de facto e de direito que então eram passíveis de ser convocados.

Abstractamente considerada, a demanda do Réu por parte dos Autores era fundada à data da apresentação da Petição inicial em juízo, em 2012, mas deixou de o ser em 2022, por circunstâncias que não podem ser imputadas ao Réu.

Atento o processado gerado nos autos, e em face da regra geral em matéria de custas a que se reporta o disposto no referido artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, porque as circunstâncias supervenientes não podem deixar de ser imputadas a alguém, e porque tem de haver um responsável pelo seu pagamento, e no caso dos autos não podendo sê-lo o Réu, atento o disposto no artigo 536.º, n.º 3 do CPC – parte inicial –, os responsáveis, em exclusivo, por não ter havido vencimento da acção, são os Autores por não estarmos perante uma inutilidade da lide que possa ser imputada ao Réu, e porque foram eles quem do processo tirou proveito.

Termos em que, forçosamente, tem assim de proceder a pretensão recursiva do Recorrente.

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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Inutilidade superveniente da lide; Responsável pelo pagamento das custas.

1 - O decretamento da extinção da instância, com fundamento na inutilidade superveniente da lide, a que se reporta o artigo 277.º n.º 1 alínea e) do CPC, pressupõe sempre a ocorrência, posterior à propositura da acção, de circunstâncias pelas quais seja retirado às partes, de forma muito clara e objectiva, o interesse em agir ou a possibilidade de obter uma qualquer vantagem juridicamente relevante com o prosseguimento da lide.

2 - Resultando dos autos que existia fundamento para o pedido de concessão de tutela judicial por parte dos Autores, e que a partir do deferimento do projecto de arquitectura deixou de existir necessidade dessa tutela, por terem os mesmos logrado alcançar, entretanto, decisão da entidade administrativa licenciadora, que dava guarida à sua pretensão em torno da não demolição da construção e mais ainda, da legalização das construções por via do seu licenciamento, importa avaliar por que termos e pressupostos é que tal ocorreu, e nesse patamar, porque ocorre a inutilidade superveniente da lide, e assim também, quem é o responsável pelo pagamento das custas.

3 - Em face da regra geral em matéria de custas a que se reporta o disposto no referido artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, porque as circunstâncias supervenientes não podem deixar de ser imputadas a alguém, e porque tem de haver um responsável pelo seu pagamento, e no caso dos autos não podendo sê-lo o Réu, atento o disposto no artigo 536.º, n.º 3 do CPC – parte inicial –, os responsáveis, em exclusivo, por não ter havido vencimento da acção, são os Autores por não estarmos perante uma inutilidade da lide que possa ser imputada ao Réu, e porque foram eles quem do processo tirou proveito.

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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência:
A) em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Recorrente Município ...;
B) em revogar a Sentença recorrida na parte em que condenou o Réu no pagamento das custas;
E consequentemente,
C) em condenar os Autores nas custas, tendo por fundamento o disposto no artigo 536.º, n.º 3, parte inicial, do CPC.


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Custas a cargo dos Recorridos – Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique
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Porto, 30 de novembro de 2023.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Celestina Caeiro Castanheira
Luís Migueis Garcia - Voto vencido:
"Confirmaria a decisão, nos termos do artigo 536.º, n.sº 3 e 4 do CPC.".