Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01401/22.9BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/27/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL EM MATÉRIA DESPORTIVA;
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA JURISDIÇÃO;
Sumário:I- A Recorrente, por intermédio da presente ação, visa discutir a legalidade da notificação operada da decisão de instauração do processo contraordenacional nº. 2-896-2022 como decorrência do incumprimento por parte do Recorrente do dever de impedir o acesso ao recinto desportivo, relativamente a quaisquer indivíduos aos quais tenha sido aplicada medida de interdição de acesso a recintos desportivos, pena de privação do direito de entrar em recintos desportivos ou sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos.

II- Aferindo-se a competência do tribunal pelos termos em que a ação é proposta, considerando a matéria de facto apurada nos autos e face à pretensão deduzida em juízo pelo recorrente, não restam dúvidas de que estamos perante um pedido deduzido no âmbito de um litígio emergente de uma decisão de autoridade administrativa em processo de contra ordenação.

III- A partir de 01 de setembro de 2016, a Jurisdição administrativa passou a ser competente para julgar os ilícitos contraordenacionais em matéria de urbanismo e por violação de normas tributárias.

IV- Já quanto aos demais ilícitos contraordenacionais [ambientais, desportivas, etc..], continuam a ser competentes os Tribunais Judiciais [cfr. artigo 130.º, n.º 2, alínea d), e n.º 4, alínea b), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na redação introduzida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de dezembro], o que transporta obrigatoriamente para o âmbito da competência exclusiva destes tribunais o conhecimento dos presentes autos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

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I – RELATÓRIO
V... SAD, devidamente identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a presente Ação Administrativa contra o ESTADO PORTUGUÊS, tendo formulado o seguinte petitório: “(…) Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente e, consequentemente deve:
a) A comunicação enviada à Autora pela APCVD no dia 12 de maio de 2022, através de correio eletrónico, bem como os deveres e encargos dela constantes, serem declarados ineficazes e inoponíveis para a Autora;
Ou, se assim se não entender
b) A comunicação enviada à Autora pela APCVD no dia 12 de maio de 2022, através de correio eletrónico, ser anulada;
E em qualquer dos casos deve
c) O Réu ser condenado a determinar à APCVD a não emissão de ato administrativo que condene a Autora no âmbito do procedimento contraordenacional contra si instaurado (…)”.
O T.A.F. de Braga, por sentença editada em 05.09.2022, declarou-se incompetente em razão da jurisdição para conhecer da presente ação.
É desta sentença que a V... SAD vem interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL, para o que alegou, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso: ”(…)
1ª) A recorrente propôs, no dia 1 de setembro de 2022, a presente ação administrativa contra o Estado Português pelos atos praticados pela APCVD, atos estes relativos à comunicação de 12 de maio de 2022 supra referida, feita pela APCVD à Recorrente, peticionando que:
a) A comunicação enviada à Recorrente no dia 12 de maio de 2022, bem como os deveres e encargos dela constantes fossem declarados ineficazes e inoponíveis ou, caso assim não se entendesse;
b) Que a comunicação enviada à Recorrente pela APCVD no dia 12 de maio de 2022 fosse anulada e que, em qualquer dos casos;
c) Fosse a Recorrida condenada a determinar à APCVD que esta não emitisse ato administrativo que condenasse a Recorrente no processo contraordenacional contra si instaurado.
2ª) A petição inicial foca a sua fundamentação na (i)legalidade da comunicação feita pela APCVD à Recorrente a 12 de maio de 2022, isto é, no não cumprimento das disposições legais que regem as comunicações eletrónicas entre a Administração Pública e os particulares (comunicação esta feita fora de qualquer processo, muito menos dentro de um processo de natureza contraordenacional), pelo que a pronúncia sobre o pedido de declaração de ineficácia e inoponibilidade dos deveres e encargos da comunicação, bem como o pedido de anulação da comunicação, exigem a interpretação de normas de direito administrativo, nomeadamente a conjugação dos artigos 14° n°1, 61° n°1, 63° n°3, 112° e 163°, todos do Código do Procedimento Administrativo.
3ª) O pedido de condenação do Recorrido a determinar à APCVD que esta não emita o ato administrativo que, como se disse, é consequência da procedência dos dois anteriores pedidos, que entre si estão numa relação de subsidiariedade, encontra a sua admissibilidade legal consagrada nos artigos 2° n° 2 alínea c), 37° n° 1 alínea c) e 39° n° 2, todos do CPTA.
4ª) Quanto ao âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, a matéria da presente ação enquadra-se na alínea b) do n.° 1 do artigo 4° do ETAF.
5ª) Ainda que se entendesse que o pedido referido em c) supra se encontra conexionado com a decisão do procedimento contraordenacional, o tribunal a quo inibiu-se, indevidamente, de se pronunciar sobre os restantes pedidos da Recorrente, não se observando, desta forma, o cumprimento do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 2° n° 1 do CPTA.
6ª) A sentença recorrida viola os artigos 14° n° 1, 61° n° 1, 63° n° 3, 112° e 163°, todos do Código do Procedimento Administrativo, os artigos 2° nos 1 e 2 alínea c), 37° n° 1 alínea c) e 39° n° 2, todos do CPTA e o artigo 4° n° 1 alínea b) do ETAF (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido ESTADO PORTUGUÊS produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)
A. Por sentença de 5 de setembro de 2022, veio o TAF de Braga declarar-se incompetente, em razão da jurisdição;
B. Dessa decisão interpôs o Recorrente o presente recurso, por entender que a jurisdição administrativa é competente em razão da matéria;
C. Sucede que o que o Recorrente peticiona nos autos é a declaração de ineficácia de um ato praticado pela APCDV, no âmbito de processo contraordenacional, que corre termos ao abrigo do Regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos (Lei n.° 39/2009, de 30 de julho);
D. Concretamente, trata-se de um processo contraordenacional instaurado pela APCVD, contra o Recorrente, por violação do dever de impedir um indivíduo sujeito a medida de interdição de acesso a recinto desportivo, i.e. a violação do ponto i) da alínea h) do n.° 1 do art.° 8.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de julho,
E. Que configura uma contraordenação, punida com coima (cfr. n.° 6 do art.° 40.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de julho), que pode determinar a aplicação da sanção acessória de realização de espetáculos desportivos à porta fechada, ou a aplicação da sanção acessória de interdição de zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos do respetivo recinto desportivo, por um período de até 12 espetáculos (cfr. n.° 3 do art.° 42.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de julho).
F. Estamos perante um típico processo contraordenacional, ou seja, um litígio que se reporta à prática de ilícitos de mera ordenação social pelo Recorrente;
G. Nos termos do ETAF, a jurisdição administrativa e fiscal não é competente para julgar os litígios sobre ilícitos de mera ordenação social, salvo no caso da alínea l) do n.° 1 do art.° 4.° do ETAF, que atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
H. Essa mesmo tem sido a linha jurisprudencial do Tribunal de Conflitos: apenas compete à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
I. Nos autos está em causa matéria contraordenacional relativa à segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, logo sem qualquer conexão ratione materiae com questões próprias do direito do urbanismo.
J. Pelo que resulta evidente incompetência do TAF de Braga para conhecer do litígio, bem decidida na sentença recorrida (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A..
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a única questão essencial a dirimir resume-se a saber se o T.A.F. de Braga, ao declarar-se incompetente em razão da jurisdição, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do disposto “(…) nos artigos 14° n° 1, 61° n° 1, 63° n° 3, 112° e 163°, todos do Código do Procedimento Administrativo, os artigos 2° nos 1 e 2 alínea c), 37° n° 1 alínea c) e 39° n° 2, todos do CPTA e o artigo 4° n° 1 alínea b) do ETAF (…)”.
E na resolução de tal questão que consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico apurado na decisão judicial recorrida foi o seguinte:”(…)
§) Em 01 de setembro de 2022, deu entrada, neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, o presente processo cuja petição inicial se reproduz, na parte que importa, a saber: ”(…)
V... SAD, NIPC ..., com sede na Rua ..., ... ..., vem propor contra
ESTADO PORTUGUÊS, por atos praticados pela AUTORIDADE PARA A PREVENÇÃO E O COMBATE À VIOLÊNCIA NO DESPORTO, com sede no Edifício ..., ... Estrada ..., ... ...,
Ação de administrativa, nos termos dos artigos 2° n°2
(…)

A Autora é uma sociedade anónima desportiva, formalmente constituída a 10 de abril de 2013, cuja atividade consiste na participação nas competições desportivas profissionais de futebol, promoção e organização de espetáculos desportivos e o fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada da modalidade de futebol (Cfr. Documento n° ...).
(…)

A APCVD tem por missão a prevenção e fiscalização do cumprimento do regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos em segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática.
(…)
2. DOS FACTOS

A Autora foi notificada pela APCVD para o Direito de Audição e Defesa no âmbito do Processo de Contraordenação n.° 2-896-2022, datado de 12 de agosto de 2022, contra si instaurado, consequência do Auto de Notícia lavrado a 22/07/2022, NPP: 327800/2022 onde, resumidamente, é referido que a Autora incumpriu o “dever de impedir o acesso ao recinto desportivo, relativamente a quaisquer indivíduos aos quais tenha sido aplicada medida de interdição de acesso a recintos desportivos, pena de privação do direito de entrar em recintos desportivos ou sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos'”. (Cfr. Documento n°... e ... )
10°
No referido auto, mais se refere:
“Norma infringida: L39/09 de 30/07 rep p/L 113/19 de 11/09 art° 8°n°1 h)-i)
N. que prevê a CO: L39/09 de 30/07 rep p/L 113/19 de 11/09 art° 39° - A n°1 g)
N. que prevê a sanção: L39/09 de 30/07 rep p/L 113/19 de 11/09 art° 40° n°6
Sanções acessórias: L39/09 de 30/07 rep p/L 113/19 de 11/09 art° 42° n°3
Montante da Coima: 5000.00 Euros (mínimo) 200000.00 Euros (máximo)”
a) Sanções Acessórias: Pelos factos ora descritos e nos termos do n.° 3 do art. 42 da Lei 39/2009 de 30 de julho na sua actual redação, pode ainda ser determinada a aplicação da sanção acessória de:
b) Realização de espetáculos desportivos à porta fechada, por um período de até 12 espetáculos;
c) Interdição de zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos no recinto desportivo, por um período de até 12 espetáculos” (Cfr. Documento n° ... já junto).
11°
A notificação do processo contraordenacional instaurado contra a Autora vem acompanhada de uma comunicação via e-mail enviada no dia 12 de maio de 2022, à Autora, com o assunto “Comunicação da Decisão Final - Processo 1-814-2021” remetida pela APCVD, cujo teor se transcreve ( email que apesar de vir junto com a notificação a que se refere o doc. n.° ... aqui se autonomiza como doc n.° 4):
(…)
12°
É entendimento da Autora que esta não foi devidamente notificada, da decisão final do Processo 1-814-2021 (referida no artigo anterior), pela APCVD pois não se encontram verificadas as condições determinadas pelas disposições legais que regem as comunicações eletrónicas entre a Administração Pública e os particulares.
(…)
20°
Concluindo-se pelo não cumprimento das formalidades legais da comunicação enviada pela APCVD, é entendimento da Autora que os deveres e encargos que a compunham são ineficazes e não lhe podem ser oponíveis.
(…)
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente e, consequentemente deve:
a) A comunicação enviada à Autora pela APCVD no dia 12 de maio de 2022, através de correio eletrónico, bem como os deveres e encargos dela constantes, serem declarados ineficazes e inoponíveis para a Autora;
Ou, se assim se não entender
b) A comunicação enviada à Autora pela APCVD no dia 12 de maio de 2022, através de correio eletrónico, ser anulada;
E em qualquer dos casos deve
c) O Réu ser condenado a determinar à APCVD a não emissão de ato administrativo que condene a Autora no âmbito do procedimento contraordenacional contra si instaurado (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
1. Cumpre decidir, sendo que a única questão que se mostra controversa e objeto do presente recurso jurisdicional consiste em saber se o se o T.A.F. de Braga, ao declarar-se incompetente em razão da jurisdição, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do disposto “(…) nos artigos 14° n° 1, 61° n° 1, 63° n° 3, 112° e 163°, todos do Código do Procedimento Administrativo, os artigos 2° nos 1 e 2 alínea c), 37° n° 1 alínea c) e 39° n° 2, todos do CPTA e o artigo 4° n° 1 alínea b) do ETAF (…)”.
2. A este propósito, e no que concerne ao direito, discorreu-se em 1ª instância o seguinte: “(…)
Como supra se referiu, importa apurar se é este o Tribunal competente, em razão da jurisdição, para conhecer do presente processo.
Desde logo, preceitua o n.° 3, do art. 212.° da Constituição da República Portuguesa (CRP) que, aos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas e fiscais. E, o art. 1.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) determina que o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é delimitado em função dos litígios compreendidos pelo âmbito da jurisdição previsto no seu art. 4.°. Com efeito, o n.° 1, do art. 4.° do ETAF consigna que: “... compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré- contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.° 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público; i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime; j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas; l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias; m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal; n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração; o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores... ”.
Certo é, que, resulta da factualidade julgada provada em §) (mormente da leitura da petição inicial), que o que a Arguida (e Autora) visa, verdadeiramente, com o presente processo, é a “paralisação”, “suspensão” [ou “anulação”] do Processo de Contraordenação n.° 2-896-2022 - que teve por base o Auto de Notícia NPP: 327800/2022 lavrado a 22/07/2022 -, nos termos do qual pode ser aplicada à Arguida uma sanção respeitante à realização de espetáculos desportivos à porta fechada, ou na aplicação de sanção acessória de interdição de zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos do respetivo recinto desportivo, por um período de até 12 espetáculos, bem como a aplicação de uma coima compreendida entre € 5.000,00€ e € 200.000,00. Isto porque, no presente processo, a Arguida (e Autora) peticiona que a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), na qualidade de Autoridade Administrativa, seja impedida de proceder “à emissão de acto administrativo que condene a Autora no âmbito do procedimento contraordenacional contra si instaurado”.
Ora, verifica-se que, in casu, está-se no âmbito de um litígio respeitante ao ilícito de mera ordenação social - Processo de Contraordenação n.° 2-896-2022 -, no âmbito do qual, a Arguida e Autora vê-se confrontada com a eventual aplicação a si de uma sanção respeitante à realização de espetáculos desportivos à porta fechada, ou na aplicação de sanção acessória de interdição de zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos do respetivo recinto desportivo, por um período de até 12 espetáculos, bem como a aplicação de uma coima compreendida entre € 5.000,00€ e € 200.000,00 - sanções, essas, que a Arguida e Autora pretende evitar que lhe sejam aplicadas pela respectiva Autoridade Administrativa, APCVD.
Como é sabido, os litígios respeitantes aos processos de contraordenação em que está em causa a eventual aplicação de uma sanção deste tipo não integram a competência, em razão da jurisdição, deste Tribunal. Com efeito, a jurisdição administrativa apenas tem competência para paralisar, suspender ou anular processos de contraordenação em matéria de urbanismo - o que não é, manifestamente, o caso dos autos. Outro entendimento conduziria à verificação de um uso anormal do processo judicial ou até mesmo à verificação de uma situação que poderia integrar o instituto de fraude à lei transversal a todo o ordenamento jurídico.
Aliás, o VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES já se pronunciou pela competência da jurisdição comum para conhecer de litígios respeitantes a tais processos contraordenacionais, no seu douto Acórdão de 25 de janeiro de 2021, tendo consignado que: ‘Ã.A Lei n.°39/2009, de 30/07, estabelece o regime jurídico do combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmo com segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática. É o que resulta do seu artigo 1.°. [...] Efetivamente se há atividade inclusiva e capaz, de irmanar os seres humanos, é sem dúvida o desporto e, muito especialmente, o futebol. É um desporto de massas que fica valorizado pela junção, à volta de um emblema, de um grande número de pessoas, unidas por uma emoção comum quaisquer que sejam as suas idades, proveniências, níveis culturais, sociais ou económicos. É esta grandeza inegavelmente associada ao desporto de massas que a lei pretende salvaguardar ao punir atitudes racistas, xenófobas ou intolerantes no âmbito de um espetáculo desportivo. A decisão recorrida entende que a recorrente incorreu na prática da contraordenação ao disposto no artigo 14.° n° 2, 39.°-B n° 2 al. a) e 40.° n° 6 da lei 39/2009 na redação da lei 52/2013 de 25/07. [...] Pelo exposto não poderá ser mantida a decisão recorrida, impondo-se ainda a alteração da redação do ponto 81 da matéria de facto provada dele se eliminando o segmento “ciente da censurabilidade inerente à sua conduta e das consequências dela decorrentes” o que, ao abrigo do disposto no art. 75 n° 2 a) do RGCC, se determina. Assim sendo, forçoso é concluir, sem necessidade de outras considerações, pela procedência do recurso. [...] Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do tribunal da relação de Guimarães conceder provimento ao recurso interposto por Clube X- Futebol, SAD e, em consequência, revogam a sentença recorrida e absolvem a recorrente da contraordenação” [disponível para consulta online em www.dgsi.pt].
Com efeito, não se enquadrando a matéria dos autos em nenhuma das alíneas do n.° 1, do art. 4.° do ETAF, será de aplicar o consignado no art. 40.°, n.° 1, do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual, “...os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Assim, não se estando perante matéria de competência especializada deste Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Braga, aplicar-se-á o disposto no art. 40.° do CPC, em articulação com o exarado no art. 130.° da LOSJ.
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Aplicando tais ensinamentos jurisprudenciais ao caso em apreço, facilmente, se constata que, encontrando-se integrado na jurisdição comum, o tribunal materialmente competente para conhecer do presente processo intentado pela Arguida (e Autora), não é este o tribunal o competente, em razão da jurisdição, para conhecer do mesmo. Aliás, dúvidas não subsistem que se trata de um litígio que não se encontra compreendido em nenhuma das alíneas do n.° 1, do art. 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) [na redação que lhe foi dada pela Lei n.° 114/2019, de 12 de setembro]. Não se olvidando que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente [cf. art. 5.°, n.° 1, do ETAF].
Como é sabido, a incompetência do tribunal constitui uma exceção dilatória, típica e nominada, como tal prevista na alínea a), do n.° 4, do art. 89.° do CPTA.
Em suma, resulta da factualidade julgada provada em §) - e para a qual, aqui, se remete por uma questão de economia processual -, que o Tribunal competente, em razão da jurisdição, para a apreciação da presente ação administrativa é o competente Tribunal da jurisdição comum e não este Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga [cf. arts. 13.° e 14.° do CPTA, em articulação com o preceituado no arts. 1.° e 4.° do ETAF] (…)”.
3. A Recorrente insurge-se contra assim decidido, impetrando-lhe erro de julgamento de direito nos termos e com o alcance explicitados no paragrafo 1) do presente aresto.
4. Realmente, a Recorrente sustenta que a notificação operada da decisão de instauração do processo contraordenacional nº. 2-896-2022 padece de diversas patologias procedimentais, que tornam ineficaz e inoponível a referida decisão de decisão de instauração do processo contraordenacional.
5. Sustenta ainda que apreciação judicial do presente litígio envolve a análise de diversos normativos de direito administrativo – devidamente elencados nas conclusões de recurso - razão pela qual entende que o conhecimento de tal matéria cai na reserva estabelecida na alínea b) do nº.1 do artigo 4º do ETAF, realçando ainda a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 2º nº 1 do CPTA.
6. Sintetizado o pensamento da Recorrente vazado nas conclusões de recurso, adiante-se, desde já, que o mesmo não é minimamente persuasivo.
7. Na verdade, a Recorrente, por intermédio da presente ação, visa discutir a legalidade da notificação operada da decisão de instauração do processo contraordenacional nº. 2-896-2022 como decorrência do incumprimento por parte do Recorrente do dever de impedir o acesso ao recinto desportivo, relativamente a quaisquer indivíduos aos quais tenha sido aplicada medida de interdição de acesso a recintos desportivos, pena de privação do direito de entrar em recintos desportivos ou sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos.
8. Aferindo-se a competência do tribunal pelos termos em que a ação é proposta, considerando a matéria de facto apurada nos autos e face à pretensão deduzida em juízo pelo recorrente, não restam dúvidas de que estamos perante um pedido deduzido no âmbito de um litígio emergente de uma decisão de autoridade administrativa em processo de contra ordenação.
9. Ou seja, estamos no domínio de um ilícito de mera ordenação social, sendo este o critério relevante para efeito de determinação da competência jurisdicional, por oposição ao critério de conexão com a lei processual administrativa convocado pela Recorrente, que irreleva totalmente na nossa apreciação.
10. E é por esta via, por este alinhamento, que devemos procurar no E.T.A.F. a solução para o nosso conflito.
11. Assim, e ante o quadro exposto, convoca-se a norma do artigo 4°, n°. 1, do citado ETAF, que prevê que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto [cfr. al. l)] impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias.
12. Esta normação, na redação que se vem agora de evidenciar, entrou em vigor no dia 01 de setembro de 2016, data a partir da qual a Jurisdição Administrativa passou a ser competente para julgar os ilícitos contraordenacionais em matéria de urbanismo e por violação de normas tributárias.
13. Já quanto aos demais ilícitos contraordenacionais [ambientais, desportivas, etc..], continuam a ser competentes os Tribunais Judiciais [cfr. artigo 130.º, n.º 2, alínea d), e n.º 4, alínea b), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na redação introduzida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de dezembro], o que transporta obrigatoriamente para o âmbito da competência exclusiva destes tribunais o conhecimento dos presente autos.
14. Deste modo, tendo também sido este o caminho trilhado na sentença recorrida, com maior ou menor variação de fundamentação, é mandatório concluir que esta fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal e jurisprudencial aplicável, não sendo, por isso, merecedora da censura que a Recorrente lhe dirige.
15. E assim improcedem todas as conclusões deste recurso, ademais e especialmente a vertida no ponto 5), que se mostra desprovida de qualquer sustentáculo ante a evidência prévia da incompetência do T.A.F. de Braga em razão da jurisdição para conhecer dos presentes autos.
16. Consequentemente, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e mantido a sentença recorrido.
17. Ao que se provirá no dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, confirmando-se decisão judicial recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 27 de janeiro de 2023,


Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia