Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00546/08.2BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/12/2015
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Fernanda Esteves
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO PROMESSA
POSSE
Sumário:I. A posse conferida pela traditio da coisa para o promitente-comprador será, em regra, meramente precária, sem excluir, todavia, que face à factualidade provada nos autos, se possa concluir ter actuado de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade e, dessa forma, configurada uma verdadeira situação possessória.
II. Não tendo ficado provado nos autos que o promitente comprador pagou o preço acordado, nem factualidade que permita concluir que houve tradição da coisa prometida vender e os Embargantes passaram a utilizar o prédio, praticando actos materiais de posse, inerentes à sua utilização, real e em nome próprio, como se fossem seus verdadeiros proprietários, os embargos de terceiro não podem proceder.
III. Não havendo posse, também não pode ter havido aquisição por usucapião.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:M...
Recorrido 1:Fazenda Pública e S...
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

M... e sua mulher Maria ... (Recorrentes), residentes na Rua…, Braga, interpuseram o presente recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou improcedentes os embargos de terceiro que deduziram em reacção à penhora efectuada no âmbito da execução fiscal nº 0353200501037617 que foi instaurada contra S... e que corre termos no Serviço de Finanças de Barcelos.

Os Recorrentes terminaram as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

I - O recorrente não concorda com a douta sentença que julgou improcedentes os pedidos por ele formulados, por entender que nela se faz uma errada apreciação da matéria de facto e uma incorrecta aplicação da lei.

II - Os Recorrentes não concordam com a sentença recorrida, uma vez que o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da prova, bem como uma incorrecta apreciação do Direito por não se considerar a existência da posse pública, pacífica, titulada e de boa - fé pelos Recorrentes e ainda uma incorrecta apreciação do Direito por não se considerar a aquisição da propriedade do imóvel em causa, por parte dos Recorrentes, pela via da usucapião.

III - Os recorrentes solicitam a reapreciação do prova testemunhal e documental.

IV - Quanto à primeira, os Recorrentes entendem que em sede de Audiência de Discussão e Julgamento ficou provada a existência da posse pública, pacífica, contínua, titulada e de boa fé pelos Recorrentes relativa ao bem penhorado nos presentes autos.

V - Sobre tais factos depuseram as testemunhas A…, G… e A….

VI - A testemunha A... esclareceu que era proprietário de um armazém sito nas proximidades do imóvel em apreço nos presentes autos, e como tal deslocava - se frequentemente ao referido local. Esta testemunha foi peremptória a referir que sempre que se deslocava ao referido local era sempre o Recorrente marido quem se encontrava no imóvel em causa, desde o ano de 1993, 1994, ou seja, ano em que fora celebrado o contrato - promessa de compra e venda entre Executado e Recorrente marido referente ao terreno em questão.

VII - A referida testemunha apenas via no local, o Recorrente marido, sempre a limpar e a fazer obras.

VIII - Por tudo isto, a indicada testemunha acabou por referir que sempre pensou que o terreno e construção eram propriedade do Recorrente marido, tendo chegado a pedir - lhe luz emprestada para o mesmo, pedido ao qual ele acedeu durante dois anos e ter assistido pessoalmente à realização de obras de conservação e de beneficiação do imóvel em causa nos presentes autos, obras essas levadas a cabo pelo Recorrente marido.

IX - A Testemunha G… esclareceu que por diversas vezes, auxiliou o Recorrente marido na realização de obras no imóvel em causa bem como no tratamento e limpeza do terreno que integra a referida construção.

X - A testemunha mencionou ainda que era o Recorrente marido quem se deslocava assiduamente ao referido loteamento a fim de proceder à limpeza do terreno e que em momento algum viu lá o Executado, pelo que para ele a propriedade do lote em causa pertencia ao Recorrente marido.

XI - A referida testemunha mencionou ainda o conhecimento da existência de um contrato promessa celebrado entre o anterior proprietário do terreno em causa e o Recorrente marido, bem como sabia que este último já havia pago o preço pelo mesmo.

XII - A identificada testemunha salientou ainda saber da existência de um contrato celebrado entre o Recorrente marido e a EDP relativa a uma cabine que se encontra implantada no referido local, pelo que na qualidade de proprietário em causa, possui uma declaração escrita da EDP, em que a mesma se compromete a retirar do local a mencionada cabine, caso aquele decida vender ou construir no local.

XIII - A testemunha A… esclareceu que conhecia bem o lote de terreno em apreço nos autos, chegando mesmo a ter uma sociedade com o Recorrente marido, que utilizava o referido imóvel como instalação da empresa, acabando por referir que tinha conhecimento que o Recorrente marido já se encontrava no local desde aproximadamente o ano de 1994 (ano da celebração do contrato - promessa).

XIV - A testemunha ressalvou que todos os trabalhos respeitantes a terraplanagem, construção de muros, colocação de janelas foi realizado pelo Recorrente marido e que apesar da sociedade que tinha com o Recorrente marido ter falido, este último continua a ir frequentemente ao local, procedendo á realização de todos trabalhos de limpeza, manutenção e beneficiação que se vão afigurando necessários.

XV - A supra indicada testemunha referiu ainda que sempre considerou o Recorrente marido como o proprietário do referido terreno, até porque a sociedade que criou conjuntamente com aquele, nunca pagou renda a ninguém nem nunca lá viu alguém a arrogar - se da propriedade do identificado imóvel.

XVI - Por fim, a referida testemunha acrescentou que o Recorrente marido sempre pensou e actuou por forma a agir como o verdadeiro e único proprietário do local, frisando ter conhecimento de que, por todo o período em que por motivos profissionais frequentava o espaço em causa, nunca ninguém, muito menos o Executado, apareceu no local a peticionar o pagamento de qualquer quantia a título de rendas ou outras despesas com o imóvel em causa.

XVII - A testemunha, mencionou ainda ter conhecimento de que o Recorrente marido pagou a totalidade do preço pela aquisição do referido terreno ao seu anterior proprietário.

XVIII - Desta forma, da conjugação dos vários depoimentos das testemunhas supra identificadas, podemos concluir que todos eles foram peremptórios em evidenciar que desde 1994, foi o Recorrente marido quem passou em nome próprio a praticar todos os actos possessórios respeitantes ao imóvel em questão sempre na convicção de ser o beneficiário de tal direito.

XIX - Todas as testemunhas supra indicadas referiram ainda que, em momento algum, avistaram no referido imóvel, qualquer outra pessoa a arrogar - se proprietária do mesmo, sendo sempre o Recorrente marido quem lá se encontrava e quem realizava todo o tipo de trabalhos de beneficiação e conservação, a expensas suas, naquele local.

XX - Ficou então provado, através dos testemunhos de G… e A… que os Recorrentes celebraram um contrato - promessa com o Executado, tendo já pago o respectivo preço pelo terreno em apreço e que a partir da data da sua celebração (mais ou menos 1994) foram eles quem, a expensas próprias, realizaram todas as obras que lá se encontram, nomeadamente, no que concerne à construção de muros de suporte, colocação de janelas, vidros e portas, terraplanagens e criação de divisórias.

XXI - Resultou ainda provado que foram sempre aqueles, pelo menos desde 1994, quem procedeu à limpeza do terreno, roçando o mato, plantando árvores e colocando sebes no mesmo.

XXII - Por fim, resultou ainda do teor das diversas testemunhas que tais trabalhos e obras de construção e beneficiação no referido local foram sempre realizados pelos Recorrentes, ininterruptamente, sem violência e sem a oposição de quem quer que fosse, agindo sempre os mesmos na convicção e com a ciência de que exerciam um direito próprio e legítimo.

XXIII - Assim sendo, tendo em conta o supra exposto bem como relevando o depoimento das testemunhas arroladas, deveria o Tribunal a quo, considerar provada a existência da posse pública, pacifica, continua, titulada e de boa - fé pelos Recorrentes relativamente ao imóvel penhorado no presentes autos e em consequência ter ordenado o levantamento da respectiva penhora.

XXIV - Ao não decidir neste sentido, fez o Tribunal a quo uma incorrecta apreciação da matéria de facto.

XXV - Por outro lado, o Tribunal a quo, na sentença por si proferida, entendeu limitar a força probatória do contrato - promessa de compra e venda junto pelos Recorrentes aos autos, indicando para o efeito que “o contrato - promessa não cumpre os requisitas formais, pelo que a apreciação do mesmo como prova ter-se-á que ser apreciada de acordo com as demais provas.”

XXVI - Tal limitação probatória é sustentada pelo facto de o referido contrato - promessa de compra venda ter sido celebrado sem o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes bem como não obedecer ao formalismo legal da confirmação pelo notário, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção.

XXVII - Todavia, apesar do teor vertido no nº3 do artigo supra identificado, no caso em apreço, a limitação probatória, fundada na falta dos requisitos formais (a falta da certificação pelo notário da existência de licença de utilização ou construção), bem como a falta do reconhecimento presencial das assinaturas, não deveria ter ocorrido.

XVIII - A letra da lei, vertida no artigo supra transcrito, remete-nos para a necessidade do reconhecimento presencial da assinatura dos promitentes e a certificação pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção no caso de celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, fracção autónoma deste, já construído, em construção ou a construir.

XXIX - Contudo tais omissões não podem “afectar” ou limitar a força probatória do referido documento carreado nos autos.

XXX - A questão da inobservância dos dois requisitos formais prescritos no nº 3 do artigo 410º do Código Civil, os quais supra se indicaram, ficou definitivamente encerrada com a publicação de dois Assentos que o Supremo proferiu sobre a matéria.

XXXI - O Assento de 28 de Junho de 1994, publicado no Bol. Min. Justiça, n.º438, pág.64, que prescreve que “no domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil, a omissão das formalidades previstas neste número, não pode ser invocada por terceiros”, vide “Das Obrigações em Geral” - Antunes Varela, Vol. I, Página 321.

XXXII - O Assento de 01 de Fevereiro de 1995, publicado no Bol. Min. Justiça, n.º 444, pág.104, que prescreve que “a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal”:

XXXIII - Partindo dos Assentos supra referidos, proferidos pelo Supremo, parece ser de ressalvar que a omissão de tais requisitos formais, indicados no nº 3 do artigo 410º do Código Civil apenas poderão ser invocados pelo promitente comprador; o que não sucedeu in casu.

XXXIV - A omissão dos requisitos legais supra identificados, de acordo com o teor dos referidos Assentos não pode ser invocada nem por Terceiros nem conhecida oficiosamente pelo Tribunal, pelo que o Tribunal a quo ao pronunciar-se oficiosamente sobre a omissão de tais requisitos no caso em apreço, e consequentemente, fundamentando a limitação da força probatória do documento em causa na mesma, fez uma incorrecta apreciação da prova.

XXXV - Desta forma, o contrato promessa de compra e venda deverá ser valorada como prova documental, e bem assim fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do consagrado nos artigos 362º e 376º do Código Civil.

XXXVI - Por outro lado, no que concerne à Declaração emitida pela EDP, na qual o Recorrente marido é referido como sendo o proprietário do terreno em causa, a mesma foi junta aos autos em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

XXXVII - A junção do referido documento bem como o teor do mesmo, após exibição ás partes, não foi objecto de qualquer impugnação.

XXXVIII - Assim sendo, o Tribunal a quo deveria ter valorado o mesmo como prova documental, dando como assente toda a factualidade nele vertida, o que efectivamente, não sucedeu.

XXXIX - Neste sentido, e atento o supra exposto, deverá tal declaração conjuntamente com o seu teor ser considerada prova documental, e bem assim fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do consagrado nos artigos 362º e 376º do Código Civil.

XL - Assim sendo, o pedido formulado pelos Recorrentes deveria ter sido julgado totalmente procedente.

XLI - No que concerne á incorrecta aplicação da lei, temos de referir que os Recorrentes deduziram embargos de terceiro, nos termos dos artigos 237º e seguintes do Código do Procedimento e de Processo Tributário, contra a Fazenda Pública, indicando para o efeito os meios de prova e a inquirição das testemunhas supra identificadas.

XLII - As testemunhas inquiridas nos autos em apreço confirmaram que os Recorrentes adquiriram o prédio penhorado na execução fiscal n.º 0353200501037617, a correr termos no Serviço de Finanças de Barcelos.

XLIII - Confirmaram ainda que os Recorrentes estão na posse e fruição do imóvel a partir do momento que celebraram o contrato promessa de compra e venda com o Executado e que lhe pagaram a totalidade do preço acordado pelo mesmo.

XLIV - Ficou provado que os Recorrentes após a referida celebração do contrato em causa com o Executado, bem como após o pagamento da totalidade do valor acordado para o referido negócio, passaram a, ininterruptamente, praticar no prédio os mais variados actos possessórios, designadamente a construção de muros de suporte, colocação de janelas, vidros e portas, divisórias interiores, roçando mato e procedendo à limpeza do terreno, suportando despesas de conservação e beneficiação.

XLV - Ficou ainda provado que tais actos forma praticados, diante de toda a gente, de forma contínua, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa-fé e sem ofensa de qualquer direito de outrem, no convencimento de exercerem um direito legítimo.

XLVI - O artigo 1251º do Código Civil, determina que: “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”

XLVII - Para se determinar a existência de posse teremos que obrigatoriamente proceder á distinção de dois elementos dentro desta, um elemento material - o corpus” e o elemento psicológico - “o animus”

XLVIII - O Prof. Doutor Mota Pinto afirma que o Corpus identifica-se com os actos materiais praticados sobre coisa, nomeadamente, através do exercício de poderes de detenção e de fruição. O Animus traduz-se na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.

XLIX - Ficou claramente provada a coexistência destes dois elementos constitutivos da Posse.

L - Os Recorrentes, a partir da data da celebração do contrato-promessa de compra e venda entre o Recorrente marido e o executado, passaram a actuar materialmente sobre o imóvel de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (corpus) com intenção de agir como titulares desse direito (animus), designadamente por terem invertido o título de posse, passando a possuir em nome próprio com a convicção de serem os beneficiários do correspondente direito.

LI - Os Recorrentes ao ocuparem e fruírem do respectivo imóvel, procedendo á construção de muros de suporte, colocação de janelas, vidros e portas, divisórias interiores, roçando mato, limpando o terreno, suportando despesas de conservação e beneficiação, agiram sempre na convicção de que eram os proprietários do mesmo.

LII - Estão cumulados os elementos material e psicológico (corpus e animus) evidenciadores da posse, por parte dos aqui Recorrentes no que concerne ao imóvel em apreço.

LIII - A posse exercida pelos Recorrentes quanto ao bem penhorado é ainda, titulada, pacífica, pública e de boa-fé, nos termos do disposto nos artigos nºs 1259º,1260º, 1261º e 1262º do Código Civil.

LIV - O artigo 1259º do C.C. refere que: “Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico.”

LV - A celebração do contrato promessa de compra e venda entre o Recorrente marido e o executado, traduz-se “num modo legítimo de adquirir”, pelo que a posse exercida pelos Recorrentes é titulada.

LVI - Resulta ainda do consagrado no artigo 1260º do C.C. que: “A posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la que lesava o direito de outrem (...), sendo que o nº 2 do mesmo artigo refere ainda que: “a posse titulada presume-se de boa-fé”, pelo que também neste âmbito parecem estar reunidos os requisitos para a posse de boa-fé por parte dos Recorrentes.

LVII - Os artigos 1261º e 1262º do C. C. determinam que “A posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (...) e a posse é pública quando é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados.”

LVIII - Estas duas características estão bem patentes nos actos de posse levados a cabo pelos Recorrentes ao longo dos anos, pois as testemunhas inquiridas nos autos em apreço, foram unânimes em referir, que por conhecimento próprio e directo, sabiam que os Recorrentes, a partir da data da celebração do contrato promessa de compra e venda, celebrado em 28.01.1994, passaram a usar o referido imóvel que os mesmos entenderam.

LIX - Com a celebração de tal contrato-promessa e mediante o pagamento da totalidade do preço pelo bem em causa, os Recorrentes passaram a exercer a posse relativamente àquele imóvel, nele construindo, fazendo obras a suas expensas, suportando e custeando todas as despesas relacionadas com o mesmo, roçando o mato e a proceder à limpeza de todo o terreno envolvente, suportando as despesas de conservação e beneficiação e que todos estes trabalhos foram feitos, diante de toda a gente, ininterruptamente, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa-fé e sem ofensa a qualquer direito de outrem, com consciência e ciência de exercerem um direito próprio e legitimo, correspondente ao direito de propriedade.

LX - O contrato-promessa celebrado entre Recorrente marido e Executado, permitiu a possibilidade de transmitir a posse ao promitente-comprador, uma vez que este, além da entrega do imóvel em causa e pagamento do respectivo preço, se passou a comportar, conjuntamente com a Recorrente esposa, como se o mesmo fosse deles, praticando os actos possessórios com o “animus” de exercer o direito de propriedade em nome próprio e não em nome do promitente - vendedor.

LXI - Os Recorrentes após a celebração do contrato-promessa e o respectivo pagamento a totalidade do valor acordado pela aquisição, passaram a deter na sua esfera jurídica a tradição da coisa no que respeita ao imóvel em causa.

LXII - O promitente-comprador pode, como qualquer outra pessoa, passar a actuar materialmente sobre o imóvel de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (corpus) com intenção de agir como titular desse direito (animus), designadamente por ter invertido o título de posse, passando a possuir em nome próprio com a convicção de ser o beneficiário do correspondente direito, o que efectivamente sucedeu no caso dos Recorrentes.

LXIII - Podem ocorrer situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preencha excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse, como por exemplo: havendo sido paga a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (afim de v.g., evitar o pagamento da Sisa ou precludir um direito de preferência) a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse e, já nesse estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

LXIV - Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real, actuando o promitente-comprador, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.

LXV - Desta forma, o promitente-comprador pode adquirir a posse em nome próprio, nomeadamente, quando ocorre a inversão do título de posse, nos termos dos artigos 1263°, alínea d) e 1265º do C.C., e o mesmo passar a praticar actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade com intenção de agir em nome próprio, sem a tolerância ou até contra a vontade do promitente-vendedor.

LXVI - Os Recorrentes obtiveram a entrega do imóvel com a celebração do contrato-promessa e que, a partir desse momento, passaram a usufruir do mesmo, pagando as suas despesas, desfrutando do prédio como se coisa própria se tratasse, exercendo esses poderes de facto em nome próprio e com a intenção de agir como beneficiários do respectivo direito de propriedade.

LXVII - Os Recorrentes a partir da celebração do contrato-promessa e com o pagamento do respectivo preço, usaram o dito imóvel, dando-lhe o destino que bem entendem e dele retirando todos os benefícios, fazendo obras a suas expensas, designadamente com a construção de muros de suporte, colocação de janelas, vidros e portas, construção de divisórias interiores, roçando o mato e procedendo á limpeza do terreno, suportando todas as despesas de conservação e beneficiação, diante de toda a gente, ininterruptamente, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa-fé e sem ofensa de qualquer direito de outrem, com consciência e ciência de exercerem um direito próprio e legitimo.

LXVIII - O Tribunal a quo, ter dado como provada a existência da posse pública, pacífica, continua, titulada e de boa fé pelos Recorrentes relativa ao bem penhorado nos presentes autos, restituindo o possuidor á sua posse, ou seja, ao poder de uti, frui e consumere de que os bens são passíveis e bem assim considerar que a penhora ofendeu o direito legitimo dos Recorrentes.

LXIX - Não tendo decidido desta forma, fez o Tribunal a quo, uma incorrecta apreciação do direito, violando assim o disposto nos artigos 1251º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º e ainda o consagrado no 1263º, alínea d) e 1265º, todos do Código Civil.

LXX - Apesar da douta sentença proferida não se ter pronunciado quanto á aquisição da propriedade do imóvel em apreço nos presentes autos, por via da usucapião, a mesma sempre se deverá considerar provada, conforme o alegado na petição inicial de embargos de terceiro deduzida pelos Recorrentes.

LXXI - O artigo 1317º, alínea c) do Código Civil determina que: “O momento de aquisição do direito de propriedade é no caso de usucapião, o do início da posse.”

LXXII - Os Recorrentes iniciaram a posse sobre o imóvel em causa, a partir de 28.01.1994, data da celebração do contrato promessa de compra e venda e pagamento da totalidade do valor acordado.

LXXIII - A aquisição da propriedade do prédio por usucapião a favor dos Recorrentes, prevalece sobre a presunção derivada do registo.

LXXIV - A presunção de propriedade derivada do artigo 7º do Código do Registo Predial é meramente iuris tantum, cedendo necessariamente perante a prova da usucapião do direito.

LXXV - O artigo 5º, n.º 2, alínea a), do Código de Registo Predial afirma que a usucapião produz efeitos contra terceiros independentemente de registo.

LXXVI - O artigo 1288º do Código Civil determina que os efeitos da usucapião se deverão, no caso em apreço, se retroagir à data do início da posse, isto é, no caso dos Recorrentes, a 28 de Janeiro de 1994.

LXXVII - Assim sendo, deveria a douta sentença recorrida ter dado como provada a aquisição da propriedade do imóvel em causa, por parte dos Recorrentes pela via da usucapião, pelo que não tendo decidido desta forma, fez o Tribunal a quo, uma incorrecta apreciação do direito, violando o disposto nos artigos 1238º e 1317º, alínea c) do Código Civil.

O APOIO JUDICIÁRIO

O Recorrente litiga com benefício de protecção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, tudo conforme documento já junto aos autos.

NESTES TERMOS deve o presente recurso merecer provimento de acordo com as precedentes conclusões revogando-se a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, como é de elementar justiça.

Não houve contra - alegações.

Neste Tribunal Central Administrativo Norte, o Exmo. Procurador - Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir já que a tal nada obsta.

Objecto do recurso - Questões a apreciar e decidir:

As questões sob recurso, suscitadas e delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, são as de saber: (i) se a sentença recorrida enferma de erro no julgamento sobre a matéria de facto; (ii) se a sentença recorrida incorreu em erro no julgamento de direito por ter considerado que os Embargantes não têm a posse do prédio penhorado na execução fiscal.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de Facto

2.1.1. O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, ipsis verbis:

“Pelos documentos juntos aos autos com relevância para o caso, considero provados os seguintes factos:

1. Foi instaurado processo de execução fiscal, n° 0353200501037617, intentada contra S..., por dívidas de impostos, no valor de 4269.07 €;

2. Em 28.01.1994. por escrito particular foi celebrado o contrato promessa de compra e venda, entre os Embargantes e S..., de lote de terreno, designado por lote F, sito no lugar…, freguesia de Palmeira, concelho de Braga, com as cláusulas constante, documento de fls. 15 e 16, dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;

3. Do referido contrato consta o pagamento do preço integral de 2 000 000$00 (9 976 €);

4. Em 18.06.2007, foi penhorado prédio urbano, inscrito na matriz predial com o n° 1…°, da freguesia de palmeira, Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 0… (fls. 9 a 12 dos PEF apenso aos autos);

5. Em 02.07.2007, foi registada a penhora com o averbamento Ap. 48 de 2007/08/28, para garantia da quantia exequenda de 4 269.07 € (fls. 9 a 12 dos PEF apenso aos autos)

6. O Embargante teve conhecimento da penhora em finais de Fevereiro de 2008;

7. Os presentes autos foram instaurados em 19.03.2008:

Resultou a convicção do tribunal essencialmente na análise dos documentos constantes nos autos.

Não resultam provados e não provados outros factos com interesse para a decisão.”

2.1.2. Do erro de julgamento sobre a matéria de facto

Da leitura das alegações do recurso e respectivas conclusões resulta inequívoco que os Recorrentes impugnam o julgamento da matéria de facto feito pela Meritíssima Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

A alteração da decisão da matéria de facto por este Tribunal pressupõe que, para além da indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, sejam indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada capazes de impor decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [artigos 685º-B, nº 1 e 2 e 712º, nº1 alíneas a) e b), ambos do CPC, na redacção aplicável].

Os Recorrentes tinham, por isso, de indicar os meios de prova que permitiriam dar os referidos factos como provados e tendo sido produzida prova testemunhal, estavam ainda obrigados a indicar os depoimentos, com referência ao assinalado na acta, que implicava que a decisão tivesse sido outra que não a que consta da sentença, sob pena de rejeição do recurso nessa parte, face ao estatuído no artigo 685º-B, nº 1 e 2 do CPC.

Tal ónus foi cumprido pelos Recorrentes, tendo indicado, além dos factos que deveriam ser considerados provados, as concretas passagens da gravação do depoimento das testemunhas em que, no seu entendimento, se funda o erro do tribunal a quo na apreciação e valoração da prova.

No caso, entendeu o Tribunal recorrido que os depoimentos das testemunhas arroladas pelos Recorrentes conjugado com os documentos juntos aos autos não eram suficientes para dar como provado que os Embargantes exerciam a posse sobre o prédio penhorado. E fundamentou tal conclusão referindo, no essencial, que o contrato celebrado por escrito particular não cumpre os requisitos formais e, por isso, seria valorado de acordo com as demais provas e quanto às testemunhas ouvidas referiu que a prova produzida é vaga e contraditória e insuficiente para provar que os Embargantes exerciam a posse, na convicção do direito de propriedade.

Questionam os Recorrentes o julgamento na parte em que na sentença recorrida ficou decidido não ter ficado provado que aqueles exerciam a posse real e efectiva sobre o imóvel penhorado nos autos, invocando, no essencial, que o depoimento das testemunhas inquiridas pelo Tribunal e os documentos juntos aos autos imporiam uma decisão em sentido contrário àquela que por este foi proferida. Mais concretamente, pretendem os Recorrentes ter resultado provado nos autos, com base nos depoimentos das testemunhas A..., G… e A…, a seguinte factualidade: que os Recorrentes celebraram um contrato promessa com o executado tendo pago o respectivo preço pelo terreno em apreço e que a partir da data da sua celebração (mais ou menos em 1994) foram eles quem, a expensas próprias, realizaram todas as obras que lá se encontram, nomeadamente, no que concerne à construção de muros de suporte, colocação de janelas, vidros e portas, terraplanagens e criação de divisórias (conclusão XX); que foram sempre os Embargantes, pelo menos desde 1994, quem procedeu à limpeza do terreno, roçando o mato, plantando árvores e colocando sebes no mesmo (conclusão XXI); que tais trabalhos de construção e de beneficiação no referido local foram sempre realizados pelos Recorrentes, ininterruptamente, sem violência e sem a oposição de quem quer que fosse, agindo sempre os mesmos na convicção e com a ciência de que exerciam um direito próprio e legítimo (conclusão XXII).

Por outro lado, no entender dos Recorrentes, o Tribunal recorrido não valorou a prova documental junta aos autos, mais concretamente, o contrato promessa celebrado entre o Executado e os Embargantes e a declaração emitida pela EDP, cuja factualidade neles vertida deveria ser dada como assente.

Importa, portanto, apurar se o tribunal incorreu em erro na apreciação e valoração da prova produzida nos autos ao não ter dado como provada a factualidade alegada na petição inicial pelos Embargantes/Recorrentes.

Procedemos, nos termos previstos no artigo 712º do CPC, à reapreciação da prova testemunhal produzida no processo, nos termos pretendidos pelos Recorrentes, através da audição do registo magnético da inquirição das mesmas, tendo, aliás, os Recorrentes procedido à transcrição da parte mais relevante nas suas alegações de recurso.

A primeira testemunha, A..., proprietário do lote contíguo, afirmou que via o Embargante, desde meados da década de 1990, andar de enxada a limpar o terreno em causa e a fazer algumas obras, e que chegou a pedir-lhe electricidade emprestada para o pavilhão que estava lá; afirmou que foram colocadas portas e janelas no referido pavilhão, mas não sabe, contudo, quem procedeu a essa montagem e quem foi o responsável, porque não assistiu à mesma e quando indagado sobre se o Embargante era o proprietário do terreno ou agia como tal, referiu que não sabia quem era o proprietário e que o Embargante nunca lhe disse ou se referiu como sendo o proprietário do mesmo.

A segunda testemunha, G…, amigo de infância do Embargante, referiu, de relevante, acompanhar muitas vezes o Embargante e ajudá-lo na limpeza do terreno e reparações e que o Embargante era o dono do terreno; afirmou ainda que o armazém tinha electricidade e que supunha ser o Embargante a pagar as facturas da electricidade, até por se lembrar de ter visto recibos a esse respeito na casa daquele. Demonstrou nada saber sobre o alegado negócio e os termos do mesmo, bem como sobre os eventuais motivos da não formalização da escritura de compra e venda.

A terceira testemunha, A…, electricista, referiu ter sido trabalhador do Embargante e, posteriormente seu sócio, e afirmou que o Embargante teve uma empresa (de electricidade) instalada no pavilhão durante anos, com vários trabalhadores ao serviço da mesma, incluindo uma empregada de escritório; que só existia uma estrutura no terreno e que foi o Embargante quem pagou a construção de muro e as obras de terraplanagem e ainda que o armazém não tinha electricidade; referiu que sempre achou que o Embargante era o proprietário do terreno e que tinha ouvido dizer tratar-se de uma permuta; indagado sobre qual o objecto da permuta, disse que talvez fosse em troca de serviços.

Perante estes depoimentos, que a nós também se nos afiguram vagos, imprecisos e até mesmo contraditórios entre si [enquanto as duas primeiras testemunhas apenas referem a limpeza do terreno e obras e reparações na estrutura existente - sendo que a primeira testemunha, apesar de referir que o Embargante fazia obras também referiu que não sabe, porque não viu, quem fez as obras no referido edifico - a terceira testemunha afirma o exercício continuado de actividade empresarial durante anos no local; por outro lado, enquanto a segunda testemunha refere a existência de electricidade no local e o pagamento de facturas a esse título pelo Embargante, a terceira testemunha refere que o local não tinha fornecimento de electricidade e refere o empréstimo durante cerca de dois anos pelo proprietário do lote contíguo (sem se perceber como foi desenvolvida a actividade no restante período que ali supostamente esteve instalada); finalmente, a primeira testemunha refere não haver propriamente um muro à volta do terreno (antes a colocação de umas pedras), a segunda afirma que o muro já existia antes e a terceira refere a construção de muros e terraplanagem no terreno] e não olvidando que a posição dominantemente aceite na jurisprudência aponta no sentido de a reapreciação não poder subverter o princípio da livre apreciação das provas consagrado no artigo 655º do CPC e no artigo 396º do CC (quanto à força probatória dos depoimentos das testemunhas), nenhuma censura nos merece o julgamento de facto efectuado pelo tribunal recorrido, nomeadamente ao não considerar provados os factos alegados na petição inicial.

Com efeito, a modificação quanto à valoração da prova, tal como foi captada e aprendida pela 1ª instância, só se justificaria se, feita a reapreciação, fosse evidente a grosseira análise e valoração que foi efectuada na instância recorrida, importando, porém, não desprezar que o julgamento pelo tribunal a quo dispõe de um universo de elementos não apreensíveis em sede de recurso e que, naturalmente, são decisivos para o processo íntimo de formulação da convicção do julgador.

No caso, sobretudo o depoimento da terceira testemunha não se nos afigura minimamente credível, até por contraposição com os depoimentos das outras duas testemunhas. Não se nos afigura razoável, face às regras da experiência comum e da lógica, que uma empresa estivesse ali instalada durante anos (sem fornecimento próprio de energia), com vários trabalhadores e uma empregada de escritório, sem que o proprietário do lote contíguo disso se apercebesse (até pelo movimento inerente à actividade de uma empresa), bem como o amigo do Embargante (segunda testemunha), que ali iria, segundo ele, com regularidade e não fez qualquer referência à instalação de uma empresa (quer individual quer em sociedade) ou ao desenvolvimento de qualquer actividade profissional nesse local.

A corresponder à realidade a versão desta testemunha (e que não consta da materialidade alegada na petição inicial), afigura-se-nos que seria relativamente fácil apresentar documentos comprovativos do desenvolvimento de uma actividade naquele local pelo Embargante, através de eventuais documentos de licenciamento de obras e de utilização ou de construção, licenciamento da actividade, troca de correspondência, inscrição da empresa em organismos oficiais (Administração Fiscal, Segurança Social, etc.).

Por outro lado, o depoimento desta testemunha sobre uma eventual permuta do terreno por serviços prestados pelo Embargante também não tem qualquer consistência, nem está minimamente suportada, e é, inclusive, totalmente divergente da versão apresentada pelos Embargantes.

Ademais, se o Embargante suportou despesas de conservação e beneficiação, como vem alegado, também se nos afigura que não seria difícil apresentar documentos comprovativos do pagamento de algumas dessas despesas. Mal se compreende, aliás, que vindo alegado pelos Embargantes que possuem o referido imóvel há mais de 14 anos, exercendo direito próprio e legítimo, como se proprietários fossem, e invocando a prática de vários actos e o suporte de várias despesas de manutenção e beneficiação, bem como a realização de obras, não apresentem qualquer documento comprovativo da realização de algum desses actos ou do pagamento de algumas despesas, bem como do eventual pagamento de impostos relativos ao imóvel.

Deste modo, é de concluir que a prova testemunhal apresentada não tem a consistência probatória mínima exigível e é, aliás, manifestamente insuficiente para dar como provada a matéria alegada na petição inicial, e que os Recorrentes pretendiam ver aditada ao probatório.

E ainda que se pudesse considerar provado, com base no depoimento das duas primeiras testemunhas, que o Embargante procedia à limpeza do terreno, roçava o mato e efectuava pequenas obras, nunca se poderia retirar desse depoimento que o fez na qualidade de proprietário e agindo como tal. Como a primeira testemunha também referiu expressamente, nunca o Embargante se lhe apresentou como sendo proprietário do terreno e desconhecia totalmente se o era ou não.

Quanto ao pagamento do preço do imóvel, o depoimento das testemunhas foi absolutamente imprestável a esse respeito, sendo que o da terceira testemunha foi, como referimos, até contrário à alegação dos Embargantes, ao referir-se a um suposto negócio de permuta. A primeira testemunha desconhecia em absoluto qualquer negócio envolvendo o terreno e a segunda limitou-se a referir, de forma totalmente vaga e imprecisa que pensava que o Embargante já tinha pago o preço, mas sem qualquer tipo de concretização a esse propósito.

Invocam ainda os Embargantes/Recorrentes que o contrato promessa de compra e venda, contrariamente ao entendido pelo Tribunal, deve ser valorado como prova documental, e bem assim fazer prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artigo 362º e 376º do CC).

Embora o Tribunal recorrido tenha feito alusão na decisão à falta do cumprimento dos requisitos formais do contrato promessa celebrado (falta do reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes, bem como a confirmação pelo notário, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção), também referiu que a apreciação do seu valor probatório seria efectuada de acordo com as demais provas. E o certo é que não deixou de consignar na factualidade dada como provada a celebração do referido contrato, dando por reproduzidas as cláusulas do mesmo e ainda que do mesmo consta o pagamento integral do preço, no valor de 2.000.000$00 (€ 9.976,00), conforme pontos 2) e 3) do probatório.

Ora, sendo certo que as declarações contidas em documento particular fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (cf. artigo 376º do CC), essa força probatória plena restringe-se à relação entre os respectivos outorgantes, porquanto em relação a terceiros (como é o caso da Exequente), a declaração confessória não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.

Ainda que não tenha sido posta em causa a genuinidade de tal documento ou a sua autoria, tal não significa, necessariamente, que os factos contidos nas declarações aí feitas se tenham de ter como provados.

Como, a este propósito, se deixou dito no acórdão do STJ de 9/12/2008, processo 08A3665: “A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos”.

Também no acórdão do STJ, de 23/11/2005, processo 05B3318, se escreveu que, “a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº1 do artº 376º do CC às declarações documentadas, limita-se à sua materialidade, isto é á existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas”.

Deste modo, ao deixar consignada na factualidade assente a existência desse escrito particular, intitulado de “contrato promessa de compra e venda”, e as respectivas cláusulas, incluindo a atinente ao preço [pontos 2) e 3) do probatório], o mesmo foi devidamente valorado pela Meritíssima Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

É que, também nos parece, não bastar a junção aos autos de um mero documento particular, assinado pelo Embargante e pelo Executado e uma prova testemunhal escassa, vaga e imprecisa, para que se dê como provado que foi efectuado o pagamento integral do preço, no valor de 2.000.000$00, na data aposta naquele.

Como bem diz o EPGA junto deste Tribunal, “a apreciação do contrato promessa constante de mero escrito particular tem de ser apreciada de acordo com as demais provas, competindo ao titular do contrato comprovar a veracidade do que consta no mesmo, designadamente quanto ao preço, quando e de que forma foi efectuado o respectivo pagamento; (…) Ora, salvo melhor opinião, não foi produzida prova do pagamento do preço, total ou parcial, o que seria fácil através da apresentação de fotocópia de cheque eventualmente utilizado como meio de pagamento.”

Em suma, pelo que vimos de dizer, não há razão para se modificar a decisão de facto nesta parte.

Por último, invocam ainda os Recorrentes que o tribunal recorrido deveria ter valorado (e não o fez) a declaração emitida pela EDP, junta aos autos, na qual o Embargante marido é referido como sendo o proprietário do terreno em causa.

Foi junto efectivamente aos autos, em sede de inquirição de testemunhas, um documento, com timbre da EN - Electricidade do Norte, Centro de Distribuição de Braga, intitulado “Declaração”, datado de 31 de Agosto de 1995 e assinado por J..., pelo que se adita ao probatório o seguinte facto:

8. Com data de 31 de Agosto de 1995, subscrito por J…, foi lavrado um escrito intitulado “Declaração”, em papel timbrado da EN - Electricidade do Norte, com o seguinte teor: “ A EN - ELECTRICIDADE DO NORTE, SA., representada pelo Centro de Distribuição de Braga, declara que, em caso de necessidade, por motivo de construção, procederá à mudança da linha subterrânea a 15 KV para o Posto de Transformação de Domingos da Silva Teixeira, implantada no terreno localizado no Lote I do Parque Industrial de Pintancinhos, freguesia de Palmeira, concelho de Braga, propriedade de ..., residente na Rua…, em Braga, desde que devidamente licenciada e nos termos do Dec- Lei nº 43335, de 19/11/1960.(…)” - cf. fls. 81 dos autos.

2.2.O direito

A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga incorreu em erro de julgamento ao considerar que “não tendo os Embargantes demonstrado ter sobre o bem penhorado uma posse própria, real e efectiva, deve ser a sua posse decorrente da celebração do contrato promessa de compra e venda qualificada como uma mera detenção em nome alheio”, e, nessa medida, ter julgado improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos ora Recorrentes em reacção à penhora realizada no âmbito do processo de execução fiscal a que se reportam os autos.

Vejamos.

Os embargos de terceiro são um dos incidentes da execução fiscal previstos na norma do artigo 166º, nº 1, alínea a) do CPPT, constituindo um meio específico de reacção contra a penhora por parte de quem não é parte na execução, baseando-se na impenhorabilidade subjectiva dos bens - assim, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 237.

Nos termos do artigo 237º, nº 1, do CPPT “quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro”.

Desta norma decorre, portanto, serem pressupostos da procedência dos embargos de terceiro: (i) o embargante ter a qualidade de terceiro; (ii) haver um acto de apreensão ou entrega de bens (v.g. arresto, penhora, arrolamento); (iii) aquele acto ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.

No caso, os Recorrentes fundamentaram os embargos deduzidos numa dupla vertente: (i) numa alegada ofensa da sua posse sobre esse bem (que lhe adveio da celebração do contrato promessa de compra venda), exercida como se fossem proprietários do mesmo; (ii) e no facto de serem efectivamente proprietários do bem em questão, por o terem adquirido por usucapião.

2.2.1. A primeira questão que importa então apreciar é a de saber se, perante a factualidade provada nos autos, ocorreu ou não a alegada ofensa da posse sobre o bem que adveio do contrato promessa celebrado entre o Embargante e o Executado.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º CC), integrada por um elemento material (corpus) e por um elemento de índole psicológica (animus), traduzindo-se, o primeiro, na submissão da coisa à vontade do sujeito com continuada possibilidade de actuação material sobre ela” e o segundo na “intenção de agir como titular do direito” real a que corresponde “(…) o exercício do poder de facto sobre a coisa (…)” - cf. Oliveira Ascenção, Direitos Reais, 1971, p. 244/246 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 5.

O direito português aderiu, assim, a uma concepção subjectivista da posse, na medida em que não basta o elemento empírico (a actuação de facto do possuidor), sendo também exigível o elemento psicológico (a intenção de exercer esse direito).

Neste âmbito, os Recorrentes fundamentam a sua posição nos actos materiais de posse que têm vindo a praticar ao longo do tempo relativamente ao bem penhorado decorrentes da tradição desse mesmo bem a seu favor e que teve lugar na sequência da celebração de um contrato-promessa de compra e venda com os Executado.

Invocam os Recorrentes, no essencial, que na sequência do contrato promessa do prédio em causa, celebrado em 1994 (entre o Embargante e o Executado), passaram a deter a posse do bem, de forma pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, praticando um conjunto de actos materiais, e dando o destino ao prédio que bem entenderam e dele retirando todos os benefícios e que, desta forma, ocorreu uma inversão do título de posse (artigo 1263º, alínea d) e 1265º do CC) e o promitente comprador passou a praticar actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade com intenção de agir em nome próprio.

Está, pois, aqui em causa a questão de saber se o promitente-comprador que obteve a tradição da coisa prometida vender e que, entretanto, foi objecto de penhora, pode, com êxito, deduzir embargos de terceiro em reacção a tal penhora.

Em regra, o promitente-comprador, uma vez obtida a traditio do bem, apenas frui um direito de gozo, autorizado pelo promitente-vendedor e mediante tolerância deste, daí resultando que, nessa perspectiva, seja um mero detentor precário (artigo 1253º do Código Civil), posto que não age com animus possidendi, praticando apenas meros actos materiais dessa posse (corpus).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2.ª edição p. 6 e Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, p. 124: O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.

São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.

A nossa jurisprudência, na esteira desta doutrina, tem também vindo a entender que “são concebíveis (…) situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse”, dando-se como exemplo as situações em que “havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” - cf., entre outros, acórdão STA de 10/2/2010, processo 1117/09.

Por outro lado, o STA tem decidido que, nestas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos - neste mesmo sentido, entre outros, acórdãos do STA de 10/4/2002 e de 27/10/2010, processo 26295 e 0453/10, respectivamente.

Em resumo, significa isto que a posse conferida pela traditio da coisa para o promitente-comprador será, em regra, meramente precária, sem excluir, todavia, que face à factualidade provada nos autos, se possa concluir ter actuado de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade e, dessa forma, configurada uma verdadeira situação possessória.

Na situação dos autos, não ficou provado que os promitentes-compradores pagaram o preço convencionado no contrato promessa. Como supra referimos, a propósito do erro de julgamento de facto, não se nos afigura suficiente a junção aos autos de um escrito particular assinado pelo Embargante e pelo Executado, nem uma prova testemunhal absolutamente incipiente nesta matéria, para se dar como provado que foi efectuado o pagamento do preço convencionado (2.000.000$00).

Por outro lado, também não se provou nos autos factualidade que permita concluir que, a partir daquela data, houve tradição da coisa prometida vender e os Embargantes passaram a utilizar o prédio penhorado, praticando actos materiais de posse, inerentes à sua utilização, real e em nome próprio, como se fossem seus verdadeiros proprietário. Não ficou demonstrada nos autos qualquer factualidade que permita afirmar que o Embargante contratou, em seu nome, quaisquer serviços, assumiu quaisquer encargos ou se tenha comportado perante terceiros como sendo o verdadeiro dono do imóvel.

Com efeito, a declaração emitida em papel timbrado da EN (não sendo sequer legível a qualidade em que intervém a pessoa que a subscreve) e onde vem referida a eventual necessidade de mudança de uma linha subterrânea implantada num terreno propriedade do Embargante, além de, só por si, ser manifestamente insuficiente para se poder concluir em sentido contrário ao que vimos de referir, também não tem a aptidão probatória pretendida pelos Recorrentes. Além de não terem sido minimamente esclarecidas as condições em que esta declaração foi emitida, a qualidade em que intervém a pessoa que a subscreve, a referência aí feita a um terreno localizado no Lote I, não implica, necessariamente, que seja o prédio penhorado, até porque este é designado por lote F e não por Lote I.

Nestas circunstâncias, perante a factualidade assente, e sem embargo do contrato promessa celebrado com o Embargante marido, não existem elementos que permitam extrair (ou mesmo presumir) que os Embargantes praticaram actos materiais correspondentes à utilização do prédio penhorado, actuando com animus de verdadeiros proprietários.

Em suma, não se tendo provado, como entendemos, que o Embargante pagou o preço convencionado (referido no intitulado contrato promessa junto aos autos), nem factualidade que permita concluir que os Embargantes tinham uma posse real e efectiva sobre o prédio penhorado nos autos, não se justifica a procedência dos embargos com este fundamento, nos termos decorrentes do disposto no artigo 237º, nº 1 do CPPT.

Deste modo, ao entender que a posse dos Embargantes decorrente da celebração do contrato promessa não é uma posse própria e efectiva, devendo ser qualificada como mera detenção em nome alheio, nenhuma censura merece a sentença recorrida.

Assim, não se podendo concluir que a penhora ofendeu a posse dos Embargantes (com a amplitude prevista na lei, integrando o corpus e o animus), improcede este fundamento do recurso.

2.2.2. Nas conclusões LXX) a LXXVII, sustentam os Recorrentes que o tribunal recorrido errou ao não se ter pronunciado e, consequentemente, ao não ter dado como provada a aquisição da propriedade do imóvel em causa pelos Recorrentes, pela via de usucapião.

De acordo com a norma do artigo 1287º do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, e a isto se chamando usucapião.

Independentemente dos demais requisitos previstos para aquisição por usucapião (cf. artigos 1251º, 1258º a 1262º, 1263º do CC), decorre desta norma, desde logo, que só o possuidor pode invocar a usucapião.

De acordo com o disposto no artigo 1290º do CC, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse.

Ora, como supra referimos, para que se pudesse afirmar que na esfera dos Embargantes radicava uma posse em nome próprio teria a mesma que estar suportada em factos que pudessem traduzir uma inversão do título de posse, nos termos dos artigos 1263º, alínea d) e 1265º, ambos do CC, o que manifestamente não se verificou.

Não pode, por conseguinte, afirmar-se que os Embargantes possuem, há mais de 14 anos, o referido prédio em nome próprio e na convicção de serem os seus legítimos donos e proprietários (como vem alegado na petição inicial), uma vez que tal materialidade não resultou demonstrada nos autos.

Em suma: não havendo posse, também não pode ter havido aquisição por usucapião.

Improcede, pois, também este fundamento e, com ele, todas as conclusões de recurso.

3. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso.

Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam.

Porto, 12 de Fevereiro de 2015

Ass. Fernanda Esteves

Ass. Ana Patrocínio

Ass. Ana Paula Santos