Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00531/20.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:08/13/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO – NULIDADE DE SENTENÇA – JULGAMENTO DE FACTO - FRAUDE OU ABUSO DO DIREITO NO ACCIONAMENTO DE GARANTIA BANCÁRIA
Sumário:I- O artigo 651º do CPC limita a junção de documentos com as alegações de recurso às situações excecionais previstas no art. 425º do mesmo Código e aos casos em que a junção se tenha “tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância.

II- O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 95º, nº. 1 do C.P.T.A..

III- Perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.

IV- Não sendo o tecido fáctico apurado nos autos valorizável em sede da violação do princípio da boa-fé e do abuso do direito e não se prefigurando a densidade factual conducente à prova do incumprimento, por parte do Recorrido, dos deveres de conduta exigíveis no plano ético em que se move uma pessoa normal, reta e honesta colocada na situação jurídica concreta da Administração, não resulta evidenciada nos autos a tese da R. no plano da existência de um comportamento abusivo e fraudulento na atuação traduzida no acionamento das garantias bancárias visada nos autos.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:N., LDA
Recorrido 1:MUNICIPIO (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Abstenção duma Conduta (CPTA) - Recurso jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte:
* *

I – RELATÓRIO

N., S.A, com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto promanada em 26.05.2021, que indeferiu a requerida providência cautelar de intimação à abstenção de conduta.

Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

1. O Tribunal recorrido não deu como provado o seguinte facto: “A existência de um acordo verbal entre Requerente e Requerido quanto à anulação, por este último, das 18 multas contratuais aplicadas”;
2. O referido facto deveria ter sido dado como provado, com a seguinte redação: “Em reunião realizada no dia 24-04-2019, foi celebrado um acordo verbal entre a Requerente e o Requerido, nos termos do qual o Requerido iria anular as multas contratuais aplicadas à Requerente.”;
O tribunal recorrido não incluiu no leque de factos provados os seguintes factos:
- “Foi celebrado um acordo verbal entre Requerente e Requerido para o pagamento, por parte deste, de uma indemnização a título de reposição do equilíbrio financeiro do contrato à Requerente de, pelo menos, cerca de 10/11 % do valor inicial da empreitada, ou seja, cerca de € 300.000,00”;
-O tribunal recorrido não incluiu no leque de factos provados o seguinte facto: “A Requerente requereu ao Requerido, por carta datada de 05-04-2019 (cf. doc. 24 do Requerimento Inicial) e recebida pelo Requerido pelo menos no dia 09-04-2019 (cf. doc. 25 do Requerimento Inicial), prorrogação legal do prazo de execução da empreitada até ao dia 12-10-2019, com os respetivos plano de trabalhos, plano de mão-de-obra, plano de equipamentos e cronograma financeiro, tendo procedido à atualização do valor da reposição do equilíbrio financeiro apresentado, para a quantia de € 1.012.729,30”;
- “No dia 11-06-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução da cobertura ajardinada na empreitada, com prazo de execução de 30 dias”;
- “No dia 23-05-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução de trabalhos de instalação de equipamentos e mobiliário, com prazo de execução de 30 dias”;
- “No dia 24-09-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução do contrato de anodização da fachada, no âmbito do qual não foi estipulado prazo para a execução do trabalho”;
- “Os trabalhos relacionados com as carpintarias (equipamentos e mobiliário) interferiam com os trabalhos relacionados com a instalação dos ar condicionados, uma vez que não se conseguia concluir os trabalhos dos armários sem colocar o ar condicionado atrás e criar as entradas e saídas de ar, e dos trabalhos da especialidade de eletricidade, uma vez que havia fios que passavam por dentro dos armários, impactando todas as outras especialidades”;
- “As forras das paredes, que também eram em carpintaria condicionavam todas as estruturas e que foi um processo que impactou nas outras especialidades. Sem a definição das carpintarias (equipamentos e mobiliário) não se conseguiam colocar os aparelhos cuja instalação estava prevista na empreitada”;
- “Os trabalhos da cobertura ajardinada impactavam com as outras especialidades porque era uma zona técnica e onde estão alojados equipamentos de ar condicionado”;
- “Os trabalhos a mais relacionados com a anodização da fachada, tinham impacto nos trabalhos relacionados com as caixilharias e com o revestimento de zinco na parte da frente”;
- “Nenhuma das prorrogações de prazo concedidas pelo Requerido à Requerente contemplou as ordens de execução desses (cobertura ajardinada, equipamentos e mobiliário e anodização da fachada) trabalhos a mais”;
- “Na sequência de peritagem realizada no âmbito do processo referido no número 21 dos factos dados como provados, foi referido pelo colégio de peritos o seguinte:
a. O valor dos trabalhos reconhecidos pela fiscalização (até ao auto 31, de julho de 2019) representa cerca de 99% do valor do contrato inicial;
b. A visita feita em 29.07.2020 mostrou uma obra aparentemente concluída embora com alguns defeitos, conforme melhor se explica na resposta ao quesito d) adiante.
c. O custo total estimado para a correção de defeitos é de € 21.600,00.”
3. Estes factos são relevantes para a boa decisão da causa e deveriam ter sido incluídos no leque de factos provados com estas redações;
4. Afirma o tribunal a quo que “A convicção do Tribunal quanto a todos os factos vertidos formou-se se com base na posição expressa pelas partes nos respetivos articulados e na análise do teor dos documentos pontualmente invocados, seja os juntos com os articulados, seja os constantes do processo administrativo armazenado em plataforma One Drive, ao qual o Requerido concedeu acesso através do fornecimento de password (cfr. fls. 1068-1070 dos autos), que não foram impugnados e, por isso, se mostram mais que suficientes para a análise perfunctória que se exige nestes autos.”
5. Contudo, a verdade é que a Recorrente impugnou, no requerimento junto aos autos com a ref. 007551680, no dia 30-10-2020, “todos os documentos apresentados com a oposição e com o Processo Instrutor impugnados, quanto à sua autenticidade ou veracidade, conteúdo, letra e assinatura e, ainda, quanto aos efeitos, alcance e consequente prova que com os mesmos se pretenda fazer, nos termos dos artigos 415, n° 2 e 444°, n° 1 do CPC, com exceção dos que são da autoria da Requerente ou contêm a sua assinatura (e mesmo quanto a estes, deixam-se impugnados os efeitos, alcance e consequente prova que com os mesmos o Requerido pretenda fazer)”.
6. Pelo que, nos termos do disposto no artigo 374.°, n.° 2, do Código Civil, a prova da veracidade dos documentos cabia ao Município Recorrido, não podendo o tribunal formar a sua convicção em documentos impugnados e cuja veracidade não foi provada 20 pela parte que os apresentou.
7. Ao ter decidido como decidiu, o tribunal a quo decidiu em violação do disposto no artigo 374.°, n.° 2, do Código Civil, e no artigo 615.°, n.° 1, al. d), do CPC, uma vez que fundamentou a sua convicção em documentos cuja veracidade não se encontrava provada pela parte que os apresentou, nulidade que se argui para os devidos efeitos legais.
8. A jurisprudência citada pelo tribunal a quo aceita que há situações em que através de decisão do tribunal, o acionamento e o pagamento de garantia bancária deve ser impedido, quando estejamos perante a existência “de fraude ou de violação flagrante das regras da boa-fé.”
9. Não há diferença entre o banco garante e a outra parte no contrato base.
10. A má fé ou abuso do direito do beneficiário da garantia bancária deve ser aferida, face ao Requerente da providência cautelar, em função dos atos praticados e dos pressupostos subjacentes ao pedido de pagamento no âmbito do contrato base de empreitada e não em função “de manifesto erro de vontade na formação do contrato da garantia bancária, devido ou não a fraude”.
11. O contrato de garantia bancária é uma relação beneficiário - banco; o que se discute nos autos é a relação base, de empreitada, entre dono da obra e empreiteiro, com uma cláusula acessória de garantia que o dono da obra está a usar contra o empreiteiro. O recurso a terceiro (banco garante) não altera o ângulo de análise: empreiteiro - dono da obra.
12. O empreiteiro não tem, nem teria como ter, que alegar ou provar factos inerentes a condutas ocorridas na relação entre o beneficiário e o banco, até porque as desconhece.
13. Pelo que, as situações de abuso de direito, em violação da boa-fé, ocorridas na relação entre o empreiteiro e o dono de obra devem relevar para efeitos de impedirem o acionamento abusivo de garantias bancárias.
14. No âmbito da empreitada, a Recorrente sempre se insurgiu contra a efetiva aplicação de qualquer multa ou dívida ao Município Recorrido ou compensação de créditos, bem como às comunicações enviadas por este. As respostas da Recorrente estão juntas aos autos e as condutas e comunicações do Município Recorrido não correspondem ao que foi acordado entre as partes. É exatamente a relevância desta questão que a Recorrente alega no Requerimento Inicial, bem como a consequente má-fé do Município Recorrido ao acionar as garantias bancárias e atuar contra o que acordava com aquela.
15. Assim, a “existência de fraude manifesta ou abuso evidente do beneficiário” não deve ser avaliada em função apenas do contrato de garantia, mas sim em função de todos os pedidos formulados na ação principal intentada pela aqui Requerente, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, sob o processo n.° 956/20.7BEPRT (cf. doc. 5), e da conduta do Município Recorrido no contrato de empreitada, no âmbito do qual, essencialmente, acordou com a Recorrente anular as multas aplicadas. (como alegado no artigo 57.° do Requerimento Inicial), mas fez o contrário.
Com efeito, a provar-se, como, a nosso ver, resulta provado (cf. II.1.1 - Facto não provado 1), nos presentes autos, que o Recorrido Município acordou com Recorrente anular as multas contratuais aplicadas, fazendo-a crer que, por essa razão, não seria necessário impugnar judicialmente o ato de aplicação de multas, para vir, posteriormente, a acionar as garantias bancárias para se fazer pagar pelas referidas multas contratuais, e invocar a caducidade do direito de ação de anulação do mesmo ato de aplicação de multas, não constitui uma situação de abuso de direito?
16. A resposta a esta questão não pode deixar de ser positiva e este abuso de direito deverá ser tido em conta para efeitos de impedir o acionamento e o pagamento de garantia bancária, não sendo relevante o facto de o referido acordo não ter sido reduzido a escrito, porquanto a celebração do mesmo pela via verbal era o suficiente para, em circunstâncias normais, criar na Recorrente uma situação de convencimento de qual o acordo seria cumprido.
17. Acresce que, conforme o alegado pela Requerente, nos artigos 151.° a 153.° do requerimento inicial, verifica-se uma situação de abuso de direito por parte do Recorrido Município na modalidade de desequilíbrio, que também deverá obstar ao pagamento das garantias.
18. Com efeito, resulta, da providência cautelar e da ação principal, um saldo creditório final a favor da Recorrente, cujo pagamento esta sempre pediu.
19. Ainda nesta modalidade de abuso de direito, resulta precisamente dos factos não provados 2 a 12 (cf. pontos II.1.1 a II.1.12), que, o Município recorrido, quando aplicou a multa contratual, tinha conhecimento dos seguintes factos:
- Era devedor à Recorrente de uma quantia de, pelo menos, € 300.000,00 a título de indemnização pela reposição do equilíbrio financeiro do contrato;
- Na data da aplicação das multas contratuais, a Recorrente já tinha apresentado um pedido de prorrogação legal de prazo de execução da empreitada computado até 14-10¬2019, e, portanto, o atraso (desde 09-03-2019 a 03-04-2019) referido no despacho datado de 18-04-2019, constante do facto 11 da matéria dada como provada na sentença, não se verificava;
- Na data da aplicação de multas, por parte do Recorrido, ainda nem se encontravam celebrados os contratos para a execução de trabalhos a mais -não importando, ao contrário do que parece defender o Recorrido, que tenham sido contratados através de outros contratos, de acordo com o disposto no artigo 370.°, n.° 5, e 375.°- relativos à cobertura ajardinada da empreitada, à anodização da fachada e equipamento e mobiliário;
Sendo que:
20. Os trabalhos relacionados com as carpintarias (equipamentos e mobiliário) interferiam com os trabalhos relacionados com a instalação dos ar condicionados, uma vez que não se conseguia concluir os trabalhos dos armários sem colocar o ar condicionado atrás e criar as entradas e saídas de ar, e dos trabalhos da especialidade de eletricidade, uma vez que havia fios que passavam por dentro dos armários, impactando todas as outras especialidades;
21. As forras das paredes, que também eram em carpintaria condicionavam todas as estruturas e que foi um processo que impactou nas outras especialidades. Sem a definição das carpintarias (equipamentos e mobiliário) não se conseguiam colocar os aparelhos cuja instalação estava prevista na empreitada;
22. Os trabalhos da cobertura ajardinada impactavam com as outras especialidades porque era uma zona técnica e onde estão alojados equipamentos de ar condicionado;
23. Os trabalhos a mais relacionados com a anodização da fachada, tinham impacto nos trabalhos relacionados com as caixilharias e com o revestimento de zinco na parte da frente;
24. Nenhuma das prorrogações de prazo concedidas pelo Requerido à Requerente contemplou as ordens de execução desses (cobertura ajardinada, equipamentos e mobiliário e anodização da fachada) trabalhos a mais.
25. Ou seja, aquando da aplicação das multas contratuais por parte do Recorrido à Recorrente, aquele, de má-fé, ignorou, ainda que tal facto lhe tivesse sido comunicado pela Recorrente, o facto de que, nos termos do disposto no artigo 374.°, n.° 1, do CCP, a Recorrente tinha direito a uma prorrogação de prazo para além do dia 08-03-2019, uma vez que os trabalhos a mais de cobertura ajardinada, equipamento e mobiliário e anodização da fachada tinham impacto no plano de trabalhos.
26. Assim sendo, as multas aplicadas careciam de base legal, o que era do conhecimento do Recorrido.
27. Ora, a referida má-fé do Recorrente no ato de aplicação de multas, forçosamente transmitir-se-á ao ato de acionamento de garantias bancárias para o pagamento de uma quantia que o Recorrido sabia não lhe ser devida.
28. Mas, além disso, aquando do ato de acionamento das garantias bancárias, no dia 30-01-2020 (cf. facto dado como provado 18), o Recorrido já tinha procedido à compensação do valor da referida multa com a quantia de € 204.556,93, em valores a pagar à Recorrente (cf. facto dado como provado n.° 14).
29. Sendo que, conforme se provou (cf. II.1.12) em julho de 2019, a obra se encontrava 99% concluída e, conforme também resultou da perícia realizada, a obra encontra-se concluída, embora, segundo foi apontado na perícia, com alguns defeitos cujo valor de reparação ascende a € 21.600,00, cuja responsabilidade ainda será apurada no âmbito do processo ao qual este corre por apenso.
30. Pelo que, a A. concluiu a obra, ainda que com defeitos avaliados em € 21.600,00, e cuja responsabilidade ainda não foi apurada no processo principal e:
- não recebeu o pagamento da quantia de € 204.556,93;
- tem direito ao pagamento, por parte do Recorrido, de uma indemnização a título de reposição do equilíbrio financeiro do contrato que, na altura da aplicação da multa e do acionamento da garantia bancária, já ascendia, pelo menos, à quantia de € 1.012.729,30;
- tem direito a uma prorrogação de prazo de execução dos trabalhos da empreitada que, na data de aplicação das multas, já se estendia até ao dia 14-10-2021;
- vê-se na iminência de ser desembolsada da quantia de € 289.400,00, respeitante ao valor das garantias bancárias prestadas.
31. O que, claramente, traduz uma situação de má-fé, na modalidade de desequilíbrio (cf. artigos 109.° e 151.°, do Requerimento Inicial), uma vez que estamos perante "(...)o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).”
32. Sem prejuízo da clara falta de proporcionalidade da atuação do Recorrido, que tem uma obra concluída e ainda pretende compensar quantias a pagar à Recorrente e acionar garantias bancárias, no total de € 493.956,93, para se fazer pagar por uma multa contratual aplicada com má-fé e cuja legalidade se encontra impugnada nos autos a que estes correm por apenso, não advindo, de todo, para o Recorrido, nenhum perigo de sofrer qualquer consequência negativa em aguardar pelo desfecho do processo principal, uma vez que já tem, como garantia, a quantia objeto de compensação (€ 204.556,93) e as garantias bancárias prestadas pela Recorrente.
33. Com efeito, a matéria constante dos artigos 83.° a 100.° do Requerimento Inicial, enuncia factos que, por si só e sem necessidade de qualquer alegação concreta factual, são suficientes para preencher o requisito do periculum in mora, tais como:
- impossibilidade, no caso de pagamento do Recorrido Banco do valor das garantias bancárias ao Recorrido Município, de honrar os seus compromissos perante os seus empregados, colaboradores, fornecedores e financiadores (artigos 86.° e 87.°);
- congelamento dos plafonds de crédito da Recorrente, aumentando o grau de risco que lhes é atribuído pelo mercado, tornando-os concretamente impossíveis e, consequentemente, impedindo realmente a concessão de novas garantias para outras 24 obras que a Recorrente esteja a executar ou pretenda executar no futuro, bem como o acesso ao crédito financeiro (cf. artigos 92.° a 100.°).
34. O Recorrido Município não impugnou os factos alegados nos artigos 83.° a 100.° do Requerimento Inicial.
35. Pelo que, os referidos factos devem considerar-se admitidos por acordo.
36. Em suma, deveria o tribunal a quo, ter proferido sentença a deferir as providências requeridas pela Recorrente, por estarem reunidos os referidos pressupostos para o efeito.
37. Contudo, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 334.° e 762.°, ambos do Código Civil (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município (...) produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)

1.ª - A DOUTA DECISÃO RECORRIDA NÃO É PASSÍVEL DAS OBJEÇÕES QUE LHE MOVE A RECORRENTE, NÃO TENDO VIOLADO OS NORMATIVOS IDENTIFICADOS NAS CONCLUSÕES COM QUE A RECORRENTE PÕE TERMO ÀS SUAS ALEGAÇÕES, ANTES APLICOU CORRETAMENTE O DIREITO (ADJETIVO E SUBSTANTIVO);
2.ª - DESIGNADAMENTE, NÃO MERECE QUALQUER CENSURA, A DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, IMPUGNADA PELA RECORRENTE;
3.ª - O ÚNICO FACTO RELEVANTE DADO COMO NÃO PROVADO PELA OUTA DECISÃO RECORRIDA É O SEGUINTE:
“A) A existência de um acordo verbal entre Requerente e Requerido quanto à anulação, por este último, das multas contratuais aplicadas.”
4.ª - A RECORRENTE SUPORTA A DEFESA DA MODIFICAÇÃO DA DECISÃO DE NÃO PROVADO PARA A DE “PROVADO”, COM O DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA M.;
5.ª - O QUE A TESTEMUNHA, CONCRETAMENTE, DISSE FOI:
a) “Eu tenho conhecimento de que havia uma intenção e depois houve uma concretização de uma multa.”
b) “Sim. Falava tanto com a fiscalização, com o Engenheiro M., como com o Eng.° C., da Câmara, eles sempre disseram que aquilo não era.., pronto.., era uma questão só de uma formalização, não era., não. atendendo ao histórico e atendendo a todas as coisas que faltavam formalizar, que a multa, em princípio, não iria ser concretizada.”
6.ª - É PATENTE A INSEGURANÇA E ATRAPALHAÇÃO DA TESTEMUNHA AO DAR A ÚLTIMA RESPOSTA, A BUSCA DAS PALAVRAS, O GAGUEJAR EVIDENTE, DEMONSTRAM QUE A TESTEMUNHA NÃO ESTAVA À VONTADE E NÃO SE QUIS COMPROMETER DEFINITIVAMENTE COM A TESE DO PRETENSO ACORDO. NÃO MERECENDO, POR ISSO, QUALQUER CREDIBILIDADE NO SENTIDO PRETENDIDO PELA RECORRENTE DE QUE EXISTIU O ACORDO QUE A RECORRENTE AFIRMA TER EXISTIDO.
7.ª - MESMO QUE AS PALAVRAS PROFERIDAS PELA TESTEMUNHA CORRESPONDESSEM À VERDADE E SE PUDESSEM “INTERPRETAR” COMO AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA DO TAL ACORDO ELAS NÃO TERIAM A VIRTUALIDADE, POR MANIFESTAMENTE INSUFICIENTE, DE MOTIVAR O JULGADOR A JULGAR PROVADO QUE “EM REUNIÃO REALIZADA NO DIA 24-04-2019, FOI CELEBRADO UM ACORDO VERBAL ENTRE A REQUERENTE E O REQUERIDO, NOS TERMOS DO QUAL O REQUERIDO IRIA ANULAR AS MULTAS CONTRATUAIS APLICADAS À REQUERENTE”.
8.ª - A TESTEMUNHA M. NEM ESTEVE NA IDENTIFICADA REUNIÃO DE 24-04-2019. O QUE REFERIU CONFESSA QUE FOI POR OUVIR DIZER. DEPOIS, A FÓRMULA VERBAL E AS EXPRESSÕES USADAS NUNCA DENUNCIARIAM A EXISTÊNCIA DE UM TAL ACORDO. EXPRIMEM, NO MÁXIMO, DE FORMA CONDICIONAL, A POSSIBILIDADE DE “QUE A MULTA, EM PRINCÍPIO, NÃO IRIA SER CONCRETIZADA.” (FOSSE LÁ ISSO O QUE FOSSE...)
9.ª - NA VERDADE TAIS PALAVRAS NUNCA PODIAM SER ENTENDIDAS NO SENTIDO DE QUE O RECORRIDO VIRIA A ANULAR AS SANÇÕES CONTRATUAIS APLICADAS. E ISSO POR FORÇA DE QUALQUER ACORDO A CONCLUIR PELAS PARTES NA TAL REUNIÃO DE 24-04-2019.
10.ª - POR OUTRO LADO, A EXISTÊNCIA DE TAL PRETENSO ACORDO FOI NEGADA POR TODAS AS TESTEMUNHAS INDICADAS E PELO DECLARANTE, PRESIDENTE DO EXECUTIVO DO RE¬CORRIDO QUE ESTIVERAM NA DITA REUNIÃO DE 24-02-2019.
11.ª - ASSIM, TENDO EM CONSIDERAÇÃO A PROVA TESTEMUNHAL PRODUZIDA, CONJUGADA COM A PROVA DOCUMENTAL E COM AS POSIÇÕES DAS PARTES NOS SEUS ARTICULADOS, É EVIDENTE QUE NÃO SE FEZ PROVA DA EXISTÊNCIA DO PRETENSO ACORDO VERBAL INVOCADO PELA RECORRENTE QUANTO AO PERDÃO DAS SANÇÕES CONTRATUAIS.
12.ª - DEFENDE A RECORRENTE QUE IMPUGNOU NO SEU REQUERIMENTO DE 30-10-2020, TODOS OS DOCUMENTOS OFERECIDOS PELO RECORRIDO, QUER COM A SUA OPOSIÇÃO, QUER COM O PROCESSO INSTRUTOR, QUANTO À SUA AUTENTICIDADE OU VERACIDADE, CONTEÚDO, LETRA E ASSINATURA E, AINDA, QUANTO AOS EFEITOS, ALCANCE E CONSEQUENTE PROVA QUE COM OS MESMOS SE PRETENDE FAZER, COM EXCEÇÃO DOS QUE SÃO DA SUA AUTORIA. TRATA-SE, COMO SE VÊ, DE UM EXEMPLO ACABADO DE COMO NÃO SE DEVE IMPUGNAR, VALIDAMENTE, OS DOCUMENTOS.
ORA,
13.ª - OS DOCUMENTOS JUNTOS COM A OPOSIÇÃO DO RECORRIDO AO PROCEDIMENTO CAUTELAR FORAM NOTIFICADOS À RECORRENTE EM 28.02.2020, QUE DELES TOMOU CONHECIMENTO;
14.ª - O PROCESSO ADMINISTRATIVO OU INSTRUTOR FOI NOTIFICADO À RECORRENTE EM 13.05.2020;
15.ª - QUER NUM CASO QUER NOUTRO A RECORRENTE NÃO IMPUGNOU, TEMPESTIVA E VALIDAMENTE, TAIS DOCUMENTOS,
16.ª - PELO QUE NÃO PODE CONSIDERAR-SE QUE A TENTATIVA DE IMPUGNAÇÃO, POR JUNTO, “DE TODOS OS DOCUMENTOS” QUE PROMOVEU NO PONTO 14 DO SEU REQUERIMENTO DE 30.10.2010 SEJA VÁLIDA;
17.ª - NÃO SÓ PORQUE SEMPRE SERIA EXTEMPORÂNEA, MAS PORQUE CONSTITUI, MA-NIFESTAMENTE, UM EXPEDIENTE CENSURÁVEL QUANTO À FORMA DE LITIGAR;
18.ª - A RECORRENTE TENTA IMPUGNAR TODOS OS DOCUMENTOS, MESMO OS QUE ACEITOU COMO BONS E JUNTOU NO SEU REQUERIMENTO INICIAL, INCLUINDO OS DOCUMEN¬TOS NORMATIVOS DO CONCURSO, A PUBLICAÇÃO DO ANÚNCIO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, O “VISTO” AO CONTRATO DO TRIBUNAL DE CONTAS, ETC.;
19.ª - ASSIM, A DOUTA DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO NÃO MERECE, PORTANTO, QUALQUER CENSURA,
20ª - JÁ QUE SE FUNDOU, PARA CONSIDERAR PROVADOS 17 DOS 26 FACTOS, EM DOCUMENTOS JUNTOS PELA PRÓPRIA RECORRENTE,
21ª - DOIS (2) OUTROS FACTOS, EM DOCUMENTOS NÃO IMPUGNADOS, OFERECIDOS PELO RECORRIDO NA SUA OPOSIÇÃO,
22ª - E OS ELENCADOS SOB OS N.° S 20 E 21 PELOS REGISTOS DO TRIBUNAL - COM-PROVATIVOS DAS DATAS DE ENTREGA DAS PETIÇÕES INICIAIS DO PROCEDIMENTO CAUTELAR E DA AÇÃO PRINCIPAL - E OS RESTANTES NÃO SE FUNDARAM EM DOCUMENTOS ;
23.ª - POR OUTRO LADO, E QUANTO ÀS GARANTIAS BANCÁRIAS, DOS RESPETIVOS TEXTOS DAS GARANTIAS CONSTA QUE O BANCO, UMA VEZ INTIMADO PELO BENEFICIÁRIO NÃO PODE DEIXAR DE PAGAR AS IMPORTÂNCIAS PEDIDAS, ATÉ À CONCORRÊNCIA DA IMPORTÂNCIA TOTAL GARANTIDA,
24. ª - ESTANDO-LHE VEDADO TOMAR EM CONSIDERAÇÃO QUAISQUER OBJEÇÕES, POR VERDADEIRAS QUE FOSSEM, DO GARANTIDO, E OPOR AO BENEFICIÁRIO QUAISQUER RESERVAS OU MEIOS DE DEFESA DE QUE O GARANTIDO SE POSSA FAZER VALER;
25.ª - O QUE INVOCA A RECORRENTE, AINDA QUE FALSAMENTE, É UM MEIO DE DE¬FESA CONTRA O RECORRIDO, DE QUE O BANCO NÃO SE PODERIA SOCORRER, MESMO QUE O CONHECESSE;
26.º - MESMO QUE TIVESSE OCORRIDO - O QUE NÃO SUCEDEU - O PRETENSO ACORDO QUE A RECORRENTE REFERE NO SEU REQUERIMENTO DE 30.10.2020 E RETOMA NAS SUAS ALEGAÇÕES, A RECORRENTE FALTA GROSSEIRAMENTE À VERDADE QUANDO AFIRMA QUE SÓ 26 APÓS A NOTIFICAÇÃO DA OPOSIÇÃO À PROVIDÊNCIA, DATADA DE 28.02.2020, É QUE TEVE CONHECIMENTO DE QUE O RECORRIDO “NÃO PRETENDIA HONRAR O ACORDO”;
27.ª - DE FACTO, POR OFÍCIOS DO RECORRIDO DE 01.08.2019 E DE 17.09.2019, COMO DOS RESPETIVOS TEXTOS RESULTA, NÃO SÓ NÃO SE RECONHECEU A EXISTÊNCIA DE TAL PRETENSO “ACORDO” COMO EXPLICITAMENTE SE INFORMOU A RECORRENTE DE QUE SE PRETENDIA EXECUTAR AS CAUÇÕES, CASO ELA NÃO PAGASSE AS RESPETIVAS IMPORTÂNCIAS, NO PRAZO DE 10 DIAS,
28.ª - COMO, ESQUECENDO-SE DO QUE ESCREVEU NA SUA NARRATIVA, A RECOR¬RENTE TAMBÉM NÃO CONCLUIU A OBRA NO DIA 12.10.2020, NEM NUNCA O FEZ, PELO QUE O RECORRIDO TEVE DE RESOLVER O CONTRATO POR DECISÃO DE 7 DE ABRIL DE 2020;
29.ª - IMPROCEDEM, ASSIM, AS CONCLUSÕES DA RECORRENTE (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - QUESTÃO PRÉVIA

Existe uma questão prévia ao julgamento recursivo que tem que ver a admissibilidade dos documentos juntos pela Recorrente com a interposição do recurso jurisdicional.

Como se decidiu no recente aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 15.09.2020, tirado no processo 00708/11.5BECBR: “(…)
O princípio regra que vigora em sede de apresentação da prova documental encontra-se enunciado no n. º1 do art. 423º do CPC aplicável ex vi art. º 1.º do CPTA, nos termos do qual os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, com exceção do regime especifico que disciplina a obrigação da administração juntar aos autos o processo administrativo.
Abstraindo dos casos em que a junção de documentos é permitida em momento processual posterior e até ao encerramento da discussão em 1ª Instância e dos requisitos legais de que depende a admissibilidade legal dessa posterior junção, cumpre referir que, em sede de recurso, o art. 651º do CPC limita a junção de documentos com as alegações de recurso às situações excecionais previstas no art. 425º do mesmo Código e aos casos em que a junção se tenha “tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância”.
As situações excecionais previstas no art. 425º reportam-se a documentos cuja junção aos autos não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, estando aqui abrangidos dois casos distintos, a saber:
a) casos de impossibilidade objetiva, isto é, situações em que o documento cuja junção aos autos se requer, se reporta a factos ocorridos historicamente após o encerramento da discussão em 1ª Instância e em que, por isso, o documento não podia naturalmente ser junto ao processo até esse encerramento, e
b) casos de impossibilidade subjetiva, que se referem a situações em que apesar do documento se reportar a factos ocorridos historicamente antes do encerramento da discussão em 1ª Instância, aquele não pôde ser junto ao processo até esse encerramento, tendo-o de ser na fase de recurso devido a razões alheias ao próprio requerente, apresentante do documento, quer porque este desconhecia, sem culpa, a existência do documento em causa, quer porque o documento apenas lhe foi emitido/disponibilizado já após esse encerramento por razões que lhe são estranhas.
Nos casos de impossibilidade objetiva a impossibilidade da junção do documento até ao encerramento da discussão em 1ª Instância decorre do próprio teor do documento, dado que este reporta-se a factos ocorridos historicamente após esse encerramento, pelo que a impossibilidade da junção até esse encerramento resulta justificada de per se, pelo próprio teor do documento.
Já nos casos de impossibilidade subjetiva, estando a admissibilidade legal da junção do documento em causa dependente da circunstância dessa junção não ter sido possível até ao encerramento da discussão em 1ª Instância por razões alheias ao próprio requerente, este terá de alegar e provar factos dos quais decorra que a junção do documento, após o encerramento da discussão em 1ª Instância, não lhe é imputável Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 229; Acs. STJ. de 13/02/2007, Proc. 06A4496 e RC. de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG-G1, in base de dados da DGSI (…)”

No caso concreto, a Recorrente, conjuntamente com o seu recurso jurisdicional, procedeu à junção de cinco [5] documentos.
Porém, não invocou qualquer razão justificativa da admissibilidade dos mencionados documentos, o que se impunha em face das assinaladas hipóteses.

De facto, esta atuação processual carecia de mais e melhor densificação e justificação, tanto mais ser verificável que a junção dos documentos em análise não tem respaldo de qualquer das assinaladas hipóteses em que, mesmo que mais tardia, a junção de documentos poderia ser admissível, o que só por si determina a sua inadmissibilidade legal no processo em curso.

Assim, não podem ser admitidos os documentos juntos e antes se determina o seu desentranhamento.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 2 [duas] UC´s.
* *

III - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Neste pressuposto, e considerando a respetiva ordem de invocação, as questões essenciais a dirimir são as seguintes: (i) nulidade de sentença, por violação do disposto na alínea d) do nº.1 do artigo 615º do CPC; (ii) erro de julgamento de facto; e (iii) erro de julgamento de direito da sentença recorrida, por ofensa da normação vertida nos artigos “(…) 334.° e 762.°, ambos do Código Civil (…)”.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
* *

IV – FUNDAMENTAÇÃO
IV.1 – DE FACTO

O quadro fáctico [e respetiva motivação] apurado na decisão recorrida foi o seguinte: “(…)

1. O Requerido procedeu à abertura do concurso público para a celebração do contrato de empreitada de obras públicas designado “Antiga Garagem Linhares - Obra – Ref.ª CP006/16”, publicado na II série do Diário da República, parte L, n.° 143, de 27/07/2016, sob o anúncio de procedimento n.° 4647/2016. - cfr. documento 1 junto à petição inicial (p.i.) a fls. 103-105 dos autos; processo administrativo (PA) consultável na própria plataforma “One Drive” à qual o requerido concedeu acesso através de fls. 1069-1069 [ao qual, de ora em diante, apenas se referindo PA];
2. O supra aludido concurso público para a celebração do contrato de empreitada de obras públicas designado '“Antiga Garagem Linhares - Obra – Ref.ª CP006/16” é composto pelos seguintes documentos: Programa do Procedimento; Caderno de Encargos; Projeto de execução; Mapa de quantidades/lista de preços unitários. - cfr. documentos 2 e 3 juntos à p.i. a fls. 106-171 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos; PA constante dos autos;
3. Em 24/10/2016, a Requerente constituiu a favor do Requerido caução, através da garantia bancária autónoma com o n.° 962300488020834, prestada pelo Banco Santander Totta, S.A., “destinada a caucionar o integral cumprimento das obrigações assumidas pelo garantido no âmbito do processo relativo à adjudicação da empreitada de “REABILITAÇÃO DO EDIFÍCIO DA ANTIGA GARAGEM LINHARES”, no valor de € 144.700,00 (cento e quarenta e quatro mil e setecentos euros), correspondente a 5% do preço contratual. - cfr. documento 5 junto à p.i. a fls. 175-180 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido; PA constante dos autos;
4. Em 02/11/2016, foi celebrado entre a Requerente e o Requerido, o contrato de empreitada de obras públicas para a execução da empreitada designada “Antiga Garagem Linhares - Obra – Ref.ª CP006/16”, com o valor de € 2.894.000,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor, tendo sido clausulado um prazo de execução de 15 meses, após a consignação da obra. - cfr. contrato junto como documento 4 à p.i. a fls. 172-174 dos autos, que aqui se da por integralmente reproduzido; PA constante dos autos;
5. Em 13/12/2016, foi elaborado Auto de Consignação de Trabalhos, nos termos e com os seguintes fundamentos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 6 junto à p.i. a fls. 181 dos autos; PA constante dos autos;
6. Em 27/11/2017, a Requerente constituiu a favor do Requerido caução, através de garantia bancária autónoma com o n.° 962300488023876, prestada pelo Banco Santander Totta, S.A., “destinada a caucionar o integral cumprimento das obrigações assumidas pelo garantido no âmbito do processo relativo à adjudicação da empreitada de “REABILITAÇÃO DO EDIFÍCIO DA ANTIGA GARAGEM LINHARES”, no valor de € 144.700,00 (cento e quarenta e quatro mil e setecentos euros), correspondente a 5% do preço contratual. - cfr. documento 5 junto à p.i. a fls. 175-180 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido; PA constante dos autos;
7. Através de ofício, datado de 09/01/2019, com a referência n.° 21128/18 e 59/19, sob o assunto “EMPREITADA “ANTIGA GARAGEM LINHARES: OBRA” PEDIDO DE PRORROGAÇÃO DE PRAZO”, foi levado ao conhecimento da Requerente, entre o mais, o seguinte:
(...)
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 22 junto à p.i. a fls. 529-532 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
8. Em 10/01/2019, a Requerente tomou conhecimento do despacho aludido em 7) supra. - cfr. carimbo aposto frontispício do documento 10 junto à p.i. a fls. 386-393 dos autos;
9. Por missiva, datada de 03/04/2019, com a referência 1130/19, remetida através de carta registada - registo dos CTT n.° RF444325854PT - sob o assunto “EMPREITADA ANTIGA GARAGEM LINHARES: OBRA”, o Requerido enviou à Requerente comunicação na qual lhe transmitiu a sua intenção de proceder à aplicação de sanção contratual, concedendo-lhe 10 dias para se pronunciar, nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 8 junto à p.i. a fls. 376-379 dos autos; PA constante dos autos;
10. Através de carta datada de 05/04/2019, com a referência DAFP132C19, sob o assunto '“Empreitada da Antiga Garagem Linhares - Audiência prévia auto de aplicação de multas”, a Requerente exerceu o direito de audiência prévia nos termos e com os seguintes fundamentos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 9 junto à p.i. de fls. 380-382 dos autos; PA constante dos autos;
11. Em 18/04/2019, o Requerido, através do Vice-Presidente da Câmara Municipal, proferiu o Despacho n.° 28/GR/2019, nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 10 junto à p.i. a fls. 386-393 dos autos; PA constante dos autos;
12. Através de ofício, datado de 18/04/2019, com a referência n.° 1353/19, remetido por carta registada - registo dos CTT n.° RF444329480PT - foi levado ao conhecimento da Requerente o despacho a que se alude em 11) supra. - cfr. documento 10 junto à p.i. a fls. 386-393 dos autos; PA constante dos autos;
13. Em 23/04/2019, a Requerente tomou conhecimento do despacho aludido em 11) supra. - cfr. carimbo aposto frontispício do documento 10 junto à p.i. a fls. 386-393 dos autos;
14. Por ofício, datado de 17/09/2019, com a referência n.° 3154/19, sob o assunto “Empreitada “Antiga garagem Linhares: Obra” Compensação de Créditos”, remetido por carta registada - registo dos CTT n.° RF487392391PT - o Requerido deu a conhecer à Requerente a retenção de importâncias, nos termos e com os seguintes fundamentos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 11 junto à p.i. a fls. 394-396 dos autos; documento 2 junto à oposição a fls. 987-988 dos autos;
15. Em 19/09/2019, a Requerente tomou conhecimento do ofício aludido em 14) supra. - cfr. carimbo aposto no frontispício do documento 11 junto à p.i. a fls. 394-396 dos autos;
16. Por ofício, datado de 22/10/2019, com a referência n.° 3677/19, sob o assunto “Empreitada “Antiga garagem Linhares: Obra”, remetido por carta registada - registo dos CTT n.° RF503570107PT - o Requerido reiterou o teor da comunicação a que se alude em 11) supra. - cfr. documento 12 junto à p.i., a fls. 397-399 dos autos; documento 3 junto à oposição a fls. 989-900 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
17. Em 24/10/2019, a Requerente tomou conhecimento do ofício aludido em 16) supra. - cfr. carimbo aposto no frontispício do documento 12 junto à p.i. a fls. 397-399 dos autos dos autos;
18. Por ofício, datado de 30/01/2020, com a referência n.° 390/20, sob o assunto “CONTRATO DE EMPREITADA, GARANTIAS BANCÁRIAS 962300488020834 E 962300488023876, GARANTIDA: N., S.A.”, remetido por carta registada - registo dos CTT n.° RF503546615PT - o Requerido endereçou ao Banco Santander Totta, comunicação com os seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento 4 junto à oposição a fls. 991-996 dos autos, que aqui se dá por reproduzido para os devidos efeitos;
19. Em 03/02/2020, o Banco Santander Totta tomou conhecimento do ofício aludido em 18) supra. - cfr. comprovativo dos CTT incluso no documento 4 junto à oposição a fls. 991-996 dos autos;
20. Em 14/02/20120, a Requerente intentou a presente providência cautelar. - cfr. comprovativo de entrega de p.i. a fls. 1-4 dos autos;
21. Em 05/05/2020, a Requerente intentou contra o Requerido ação administrativa de “ impugnação de ato administrativo e de reconhecimento de situação jurídica subjetiva decorrente de execução de contrato de empreitada de obras públicas” que corre termos sob o n.° 956/20.7BEPRT neste Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. - cfr. comprovativo de entrega da respetiva petição inicial (SITAF);
22. O Presidente da Câmara do Município R. participou em reuniões com os responsáveis do Município e da Requerente. - cfr. depoimento de parte do Requerido, declarações de parte de ambos os representantes legais da Requerente e depoimento da testemunha, Eng. E.;
23. Numa das reuniões, o Eng. E., na qualidade de representante da Requerente, informou que iria pedir o reequilíbrio financeiro do contrato em execução. - cfr. depoimento de parte do Requerido e depoimento da testemunha, Eng. E.;
24. A Requerente computava o valor da reposição do reequilíbrio do contrato em cerca de 10% a 11% do valor do contrato. - cfr. declarações de parte de ambos os representantes legais da Requerente e depoimento da testemunha, Eng. E.;
25. Numa das reuniões realizadas com o Presidente do Município R. foi abordada, pelo Eng. E., a possibilidade de criação de uma “comissão arbitral ad hoc” para avaliar/ quantificar os valores atinentes a eventual reposição de equilíbrio financeiro. - cfr. depoimento de parte do Requerido e depoimento da testemunha, Eng. E. - em sede de acareação;
26. No dia 24.04.2019, realizou-se uma reunião em que estiveram presentes o Eng. E., o Eng. T. e o Eng. A., da parte da Requerente, e o Eng. L. e o Eng. A., da parte do Requerido. - cfr. declarações de parte de ambos os representantes legais da Requerente e depoimento das testemunhas, Eng. A. e Eng. José L.;

Factos não provados
A) A existência de um acordo verbal entre Requerente e Requerido quanto à anulação, por este último, das multas contratuais aplicadas.
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Motivação:
“A convicção do Tribunal quanto a todos os factos vertidos formou-se se com base na posição expressa pelas partes nos respetivos articulados e na análise do teor dos documentos pontualmente invocados, seja os juntos com os articulados, seja os constantes do processo administrativo armazenado em plataforma One Drive, ao qual o Requerido concedeu acesso através do fornecimento de password (cfr. fls. 1068-1070 dos autos), que não foram impugnados e, por isso, se mostram mais que suficientes para a análise perfunctória que se exige nestes autos.”
Quanto aos factos ora aditados o Tribunal estribou a sua convicção na prova produzida, quer através do depoimento de parte do representante legal do Requerido, das declarações de parte dos representantes legais da Requerente, quer através dos depoimentos das testemunhas inquiridas, e bem assim, na diligência de acareação levada a cabo entre o legal representante do Requerido e a testemunha Eng. E., por parte da Requerente; e ainda através da ponderação da prova documental existente nos autos sobre a factualidade alegada.
Com efeito, o Presidente da Câmara Municipal do Requerido no depoimento de parte prestado, e bem assim na diligência de acareação com a testemunha Eng. E., com relevo para a questão em apreço nesta lide cautelar, afirmou que este esteve presente em algumas reuniões com os representantes da Requerente e o Eng. E. e que pelo referido Eng. E. lhe foi proposto um acordo para o reequilíbrio contratual - relativamente ao qual não respondeu -; mais informou que os serviços nunca lhe propuseram um acordo. Declarou que no âmbito dessa proposta de acordo, o Eng. E. aventou a possibilidade de criação de uma comissão ad hoc, mas que no seu entendimento cabia aos serviços aferir qual seria o melhor procedimento a esse respeito. Disse, igualmente, que não lhe foi apresentada a hipótese de as multas contratuais aplicadas serem levantadas.
O legal representante da Requerente, Eng. A., em sede de declarações de parte, afirmou que no final de abril de 2019 a maior parte da obra estava executada, e que o restante era relativo a aditamentos ao contratos e a trabalhos a mais, que impactaram no prazo e nos trabalhos contratuais a realizar, que estavam relacionados com outros trabalhos que careciam de definição. Refere que suspendeu os trabalhos de execução da empreitada após a aplicação das multas contratuais.
Declara que, em 24.04.2019, o valor necessário para efeito de reequilíbrio contratual ascenderia a cerca de 1.000.000,00€, ao que acresciam um conjunto de trabalhos que foram sendo feitos, na base da confiança. Refere que, nessa data, foi realizada uma reunião, estando presentes por parte da Câmara Municipal o Eng. L. e o Eng. A., onde foram discutidos diversos assuntos como seja recuperar o entendimento que existia em termos de reequilíbrio financeiro, formalizar um conjunto de trabalhos - complementares - que eram fundamentais para acabar a empreitada, regularizar trabalhos a mais referentes a eletricidade, estrutura e betão, que, disse já estarem feitos pelo que a questão reconduzia-se à sua medição e contabilização. Acrescenta que, à data da identificada reunião, já estariam concedidas tacitamente prorrogações que a Requerente considerava serem até outubro de 2019, mas que não contemplavam trabalhos referentes à estrutura ajardinada e anodização da fachada.
Assenta que na referida reunião a Requerente informou não querer fazer trabalhos complementares, porque tal iria atrasar mais a obra; o Eng. A. disse que iria recuperar o reequilíbrio financeiro e que estaria fechado o valor mínimo correspondente a 10,5% do contrato para esse efeito. Com relevo, referiu ainda que foi acordado retomar os pagamentos, anular as multas contratuais aplicadas e que iria ser criada uma comissão ad hoc, sem que tenha sido definida uma data para a conclusão da obra.
Por sua vez, o legal representante da Requerente, Eng. T., em sede de declarações de parte, afirmou ter estado presente na reunião de 24.04.2019, na qual, além do seu irmão (Eng. A.) e também do Eng. L., e onde, além do mais, se acordou num valor de 300.000,00€, correspondente a 10,5% do valor do contrato; que a Requerente levantaria a suspensão dos trabalhos na obra; e que a Câmara Municipal anularia as multas aplicadas, pelo que não seria necessário proceder à impugnação judicial das mesmas. Afirmou também em 18.06.2019 houve uma outra reunião destinada a definir a arbitragem por recurso a uma comissão ad hoc - a decorrer antes do final da obra -, com vista a acertar o valor devido a título de reequilíbrio contratual que, refere, ser correspondente a cerca de 1.000.000,00€
Declara que nunca qualquer dos representantes do Município com quem interagiam deram indicação de que o acordo mencionado não seria cumprido.
Já a testemunha Eng. M., que exerceu as funções de diretor da obra, declarou que na sequência da aplicação de multa por parte do Requerido, os trabalhos de execução da empreitada foram suspensos e, posteriormente, levantados em maio de 2019. Afirmou ter falado, a propósito das multas contratuais aplicadas, com a fiscalização - Eng. M. -, e com o Eng. C. que sempre disseram que tal era uma questão de formalização e que “atendendo ao histórico e atendendo a todas as coisas que faltavam formalizar” que a multa, em princípio, não iria ser concretizada.
A testemunha Eng. E., Pai dos representantes legais da Requerente, exerceu as funções de assessor da empresa, desde o início da obra e até se reformar. Prestou depoimento e foi acareado com o legal representante do Requerido Município.
Referiu ter estado presente em reuniões com os representantes da Câmara (...), e também em reuniões com o Presidente da Câmara. Afirmou que, em quase todas as reuniões, foi debatida a reposição do equilíbrio contratual. Disse que, numa reunião consigo, o Presidente da Câmara concordou em haver uma indemnização num valor correspondente a 10%-11% do valor do contrato; e que numa reunião em que esteve presente, juntamente com o Eng. A., o Eng. T., Eng. C. e Eng. L. foi acordado, com a anuência da Câmara Municipal, preparar a comissão ad hoc, e a Requerente levantar a suspensão dos trabalhos. Afirma que chegou a ir falar com um Advogado para integrar aquela comissão ad hoc.
Mencionou que desde o início estava admitido que a multa era para anular no fim da obra, que esta teria sido aplicada por uma “questão política com a oposição”, e que o Presidente da Câmara afirmava querer aquilo resolvido antes do final da obra.
A testemunha Eng. A., exerceu as funções de direção de fiscalização ou coordenação de segurança em obra, em representação da sociedade “T., Lda.”. Com relevo para a questão em apreço declarou ter conhecimento de que a Requerente suspendeu os trabalhos na obra, durante alguns dias; não se recorda, todavia, quais os motivos alegados pelo empreiteiro para tal. Diz que foram apresentados vários pedidos de prorrogação e de reposição do equilíbrio.
A testemunha Eng. A., exercia as funções de prestador de serviços de engenharia junto do Município (...) e, na obra em apreço, exerceu funções equivalentes às de gestor do contrato. Referiu a existência de uma reunião em junho de 2018 em que estava presente o Eng. E. - não se recorda se acompanhado ou não -, o Presidente da Câmara e outros elementos do executivo; quanto a esta reunião disse não saber se se falou da constituição de uma comissão ad hoc.
Mencionou a reunião de 24.04.2019, que teve lugar nas instalações da Câmara, com a sua presença, do Vereador das Obras Municipais e três elementos da N.. Refere que ali foram debatidas as condições que existiam para acabar os trabalhos da obra em causa. Declarou não se recordar de todos os assuntos debatidos naquela reunião. Porém, para avivar a memória disse ter de socorrer-se de “apontamentos” que terá tirado no decurso da mesma, dos quais, declara, constam as seguintes menções: “não querem descontos nos autos”, “falta de dinheiro para fazer a obra”; e “três meses para colocar a obra pronta”.
Diz que o Presidente da Câmara sempre teve uma postura de “pessoa de bem”, manifestando vontade de que fosse apurado e pago o devido; contudo, afirma, a fiscalização da obra não reconhecia o direito ao reequilíbrio do contrato por parte da Requerente, já que defendia que existia responsabilidade do empreiteiro.
Expôs, ainda, que em face das insistências formais e informais, com vista ao reequilíbrio contratual, que foi falado criar uma comissão arbitral.
Mais atestou que não tem presente “nada acordado quanto à anulação das multas”.
A testemunha Eng. J., Vereador com pelouro das obras municipais, na Câmara Municipal (...), afirmou que quando tomou posse a obra já estava em curso e já se verificavam atrasos/prorrogações graciosas.
Disse que o empreiteiro tinha incumprido o prazo que lhe havia sido dado, pelo que lhe foram aplicas sanções; e que o empreiteiro parou, unilateralmente, os trabalhos.
Mencionou a reunião de 24.04.2019, dizendo que ali foi abordado/discutido o seguinte: as opiniões do empreiteiro; os seus problemas - as sanções aplicadas prejudicaram o andamento dos trabalhos; que estes precisavam de mais tempo para terminar a obra; que não queriam que se descontasse nos autos o valor daquelas sanções. Afirmou que não foi celebrado acordo para terminar a suspensão e não houve acordo de que as multas contratuais seriam anuladas.
Foi referido o reequilíbrio financeiro, que a obra estava a demorar muito tempo, foram pedidos esclarecimentos do projeto e caderno de encargos. Neste ponto referiu que a fiscalização defendia que o empreiteiro não detinha uma “organização atempada” e que, portanto, o reequilíbrio financeiro não era devido.
Em suma, os factos provados ora aditados resultam da valoração prova testemunhal produzida, na estrita medida em que os depoimentos das testemunhas e legais representantes foram coincidentes entre si.
Com efeito, todos os depoimentos prestados foram positivamente valorados pelo Tribunal, já que os respetivos legais representantes e testemunhas ouvidas/inquiridas depuseram sobre factualidade de que tinham conhecimento direto, com segurança e de modo objectivo.
Por sua vez, o único facto dado como não provado - a existência de um acordo verbal entre Requerente e Requerido quanto à anulação, por este último, das multas contratuais aplicadas - resulta a inexistência de coincidência de depoimentos entre os representantes legais da Requerente e Requerido, e das testemunhas arroladas respetivamente por cada uma das partes. Ora, a verdade é que relativamente a este ponto o Tribunal não considerou qualquer dos depoimentos prestados, individualmente considerados, como sendo suficientemente isentos e imparciais para em função dos mesmos formar uma convicção quanto à existência, ou não, do aludido acordo. (…)”.
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IV.2 - DO DIREITO
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Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas nos recursos jurisdicionais em análise.
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I- Da imputada nulidade de sentença
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A Recorrente vem arguir a nulidade de sentença recorrida com fundamento na alínea d) do nº.1 do artigo 615º do CPC.

Realmente, sustenta a mesma que, tendo impugnado todos os documentos apresentados com a oposição e com o processo instrutor, cabia ao Requerido a prova da veracidade dos documentos, o que não sucedeu, pelo que, ao decidir como decidiu, “(…) o Tribunal a quo decidiu em violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código Civil, e no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, uma vez que fundamentou a sua convicção em documentos cuja veracidade não se encontrava provada pela parte que os apresentou, nulidade que se argui para os devidos efeitos legais (…)”.

Quid iuris?
Nos termos do n.º 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – alínea d).
A nulidade de sentença por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixar de apreciar questão que devia conhecer.
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia, por sua vez, constitui o reverso da emergente da omissão de pronúncia.
Verifica-se esta, quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
Ao que sejam “questões”, para estes efeitos, respondem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto no Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 2.ª edição, pág. 704: são “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, não significando “considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito [artigo 511-1] as partes tenham deduzido…”[página 680].

No mesmo sentido se podendo ver, A. Varela, RLJ, 122,112 e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 195.

E tem sido particularmente reiterada a jurisprudência que o juiz deve conhecer de todas as questões, não carecendo de conhecer de todas as razões ou de todos os argumentos [cfr-se., por todos, os Ac. de 25.2.1997, no BMJ, 464 – 464 e de 16.1.1996, na CJ STJ, 1996, 1.º, 44 e, em www.dgsi.pt, os de 13.9.2007, processo n.º 07B2113 e de 28.10.2008, processo n.º 08A3005].

Munidos destes considerandos de enquadramento doutrinal e jurisprudencial, e regressando ao caso concreto, adiante-se, desde já, que, atendendo aos fundamentos concretamente invocados, não assiste razão à Recorrente na arguida nulidade de sentença.

Na verdade, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 95º, nº. 1 do C.P.T.A.

Efetivamente, segundo o ensinamento de Alberto dos Reis [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146.]: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão (…)”.

Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento.
Com efeito, e ainda de acordo com o supra citado Autor “(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.» [idem].

Nesta esteira, é de manifesta evidência que não pode apontar-se à decisão judicial recorrida qualquer nulidade de sentença, por violação do disposto no artigo 615º, nº.1, alínea d) do CPC.
Questão diversa é a de saber se a decisão judicial recorrida incorreu em desrespeito do preceituado no artigo 374º, nº. 2 do C.C.
Mas, como emerge grandemente do supra exposto, tal interrogação não se insere no vício de nulidade de sentença, por omissão e/ou excesso de pronúncia, antes se incluindo no âmbito de eventual erro de julgamento.
Seja como for, note-se que os argumentos invocados pela Recorrente a este propósito são absolutamente imprestáveis para demonstrar a ideia de que os documentos juntos com a oposição [aqui incluindo-se o P.A.] não têm qualquer valor probatório, por terem sido impugnados e não haver sido demonstrada a sua genuinidade.
Realmente, não se ignora que, por força do preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos 373.º a 375.º fazem prova plena quanto às declarações atribuídas aos seu autor.
Todavia, há que distinguir a prova plena - que só funciona nas relações declaratário-declarante, e na medida em que as declarações sejam prejudiciais a este - do valor do documento como elemento de prova.
Ora, o Recorrido não invocou o valor probatório pleno da documentação junta com a oposição, tendo antes procedido à junção da dita documentação em apoio da tese factual que defende.
Pelo que nada obstava à sua apreciação e utilização pelo Tribunal como elemento de prova, de acordo com a liberdade de julgamento que lhe consente o princípio da livre apreciação da prova.
Não se reconhece, portanto, a existência de nulidade de sentença, por omissão e/ou excesso de pronúncia, nem de qualquer violação do disposto no artigo 374º, nº.2 do C.C.
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II- Do[s] imputado[s] erro[s] de julgamento de facto
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A segunda questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pela Recorrente.

Vejamos.
A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objectivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.
Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».
Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.
Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.
Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no recentíssimo Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:
“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”(…)”.

Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.
E, nesse domínio, dir-se-á que a Recorrente faz expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
O que serve para concluir que a Recorrente cumpre adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.
Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.
Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.

Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso ”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.

Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.

Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Cientes destes considerandos de enquadramento, atentemos, agora, no caso sub juditio.

A Recorrente veio pugnar pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo errou ao não dar como provado os seguintes factos: “(…)
1) A existência de um acordo verbal entre Requerente e Requerido quanto à anulação, por este último, das multas contratuais aplicadas;
2) Foi celebrado um acordo verbal entre Requerente e Requerido para o pagamento, por parte deste, de uma indemnização a título de reposição do equilíbrio financeiro do contrato à Requerente de, pelo menos, cerca de 10/11% do valor inicial da empreitada, ou seja, cerca de € 300.000,00;
3) A Requerente requereu ao Requerido, por carta datada de 05-04-2019 e recebida pelo Requerido pelo menos no dia 09-04-2019, prorrogação legal do prazo de execução da empreitada até ao dia 12-10-2019, com os respetivos plano de trabalhos, plano de mão-de-obra, plano de equipamentos e cronograma financeiro, tendo procedido à atualização do valor da reposição do equilíbrio financeiro apresentado, para a quantia de € 1.012.729,30;
4) No dia 11-06-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução da cobertura ajardinada na empreitada, com prazo de execução de 30 dias;
5) No dia 23-05-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução de trabalhos de instalação de equipamentos e mobiliário, com prazo de execução de 30 dias;
6) No dia 24-09-2019, foi celebrado, entre a Requerente e o Requerido, o contrato para a execução do contrato de anodização da fachada, no âmbito do qual não foi estipulado prazo para a execução do trabalho;
7) Os trabalhos relacionados com as carpintarias (equipamentos e mobiliário) interferiam com os trabalhos relacionados com a instalação dos ar condicionados, uma vez que não se conseguia concluir os trabalhos dos armários sem colocar o ar condicionado atrás e criar as entradas e saídas de ar, e dos trabalhos da especialidade de eletricidade, uma vez que havia fios que passavam por dentro dos armários, impactando todas as outras especialidades;
8) As forras das paredes, que também eram em carpintaria condicionavam todas as estruturas e que foi um processo que impactou nas outras especialidades. Sem a definição das carpintarias (equipamentos e mobiliário) não se conseguiam colocar os aparelhos cuja instalação estava prevista na empreitada;
9) Os trabalhos da cobertura ajardinada impactavam com as outras especialidades porque era uma zona técnica e onde estão alojados equipamentos de ar condicionado;
10) Os trabalhos a mais relacionados com a anodização da fachada, tinham impacto nos trabalhos relacionados com as caixilharias e com o revestimento de zinco na parte da frente;
11) Nenhuma das prorrogações de prazo concedidas pelo Requerido à Requerente contemplou as ordens de execução desses (cobertura ajardinada, equipamentos e mobiliário e anodização da fachada) trabalhos a mais;
12) Na sequência de peritagem realizada no âmbito do processo referido no número 21 dos factos dados como provados, foi referido pelo colégio de peritos o seguinte:
a. O valor dos trabalhos reconhecidos pela fiscalização (até ao auto 31, de julho de 2019) representa cerca de 99% do valor do contrato inicial;
b. A visita feita em 29.07.2020 mostrou uma obra aparentemente concluída embora com alguns defeitos, conforme melhor se explica na resposta ao quesito d) adiante.
c. O custo total estimado para a correção de defeitos é de € 21.600,00 (…)”.

A motivação que estriba o erro de julgamento em análise prende-se com a circunstância de se tratar de tecido fáctico com relevo para a boa decisão da causa, cuja aquisição processual deriva, para além do posicionamento das partes exarado nas respetivas peças processual e do respetivo suporte documental das mesmas, da prestação de certos depoimentos em sede de inquirição de testemunhas.

Apreciando.
Ressuma da motivação da matéria de facto que o Tribunal a quo fundou a desconsideração do facto não provado sob o nº.1 na asserção da falta de isenção e imparcialidade dos depoimentos prestados a este propósito.
Quando a atribuição de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é ilógica e é inadmissível face às regras da experiência e ao senso comum.
Ora, a Recorrente procura afastar a atestada falta de isenção e imparcialidade do depoimento prestado pela testemunha M., invocando, para tanto, que a mesma não se encontra ligada a nenhuma das partes, sendo, por isso, perfeitamente isenta e imparcial.
Esta alegação não corporiza, porém, a realidade emergente dos autos.
Realmente, basta atentar na identificação e razão de ciência declaradas pela testemunha em causa para facilmente apreender que a realidade que importa atender na equação supra espraiada é antes outra, tal é a evidência apodítica da ligação da testemunha M. à aqui Recorrente.
Com efeito, a testemunha M., quando instada sobre os costumes e razão de ciência, referiu expressamente ter trabalhado na N., entre 2018 e 2020, tendo, inclusive, sido o diretor de obra na empreitada em causa, da Garagem de Linhares.
Dúvidas não podem, pois, subsistir do nexo ligante no plano profissional entre a testemunha M. e a aqui Recorrente, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à demonstração da tese da R. no plano em análise.
Deste modo, e à míngua da alegação de outras razões demonstrativas da eventual inadmissibilidade da atuação do Tribunal a quo em análise, é mandatório concluir que carece de substrato a pretendida atribuição de credibilidade ao depoimento prestado por testemunha em questão.
Naturalmente, se este depoimento é de irrelevar pelas razões de falta de credibilidade e isenção, deve aqui incluir-se igualmente a desconsideração da materialidade vertida nos factos não provados sob os nºs. 7, 8, 9, 10, cuja admissão, tal como o facto não provado nº.1, vem sustentada pela Recorrente unicamente na consideração do depoimento prestado pela testemunha M..

Por sua vez, e no que tange ao facto não provado sob o nº 2, importa considerar que se as testemunhas A., T. e E. assinalaram a “(…) existência de um acordo verbal celebrado entre a Requerente e o Requerido para o pagamento de cerca de € 300.000,00, à volta de 10/11% do valor da empreitada, a título de reposição do equilíbrio financeiro da empreitada (…)”, também o Sr. Presidente da Câmara Municipal (...) foi perentório a afirmar [e reiterar em sede de acareação] que a questão em torno de um eventual acordo nos termos preconizados pela Recorrente, não obstante colocada à consideração da fiscalização, nunca foi autorizado por si.
Estamos, portanto, perante duas posições divergentes sobre a mesma materialidade.
Como é sabido, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita [cfr. artigo 414º do C.P.C.].
Assim sendo, nos termos desta normação, propendemos para o sentido acolhido pelo Tribunal a quo.

Diversamente, e já quanto ao facto não provado nº. 3, entendemos que o tecido fáctico invocado pela Recorrente, em virtude da sua condição de plenamente documentado e não contraditado, devia ter sido incluído na matéria de facto coligida nos autos, bem como a resposta do Recorrido neste domínio, atenta a sua relevância para a apreciação do mérito dos autos, o que importa ora retificar mediante a sua inclusão [expurgados de conclusões e juízos de valor] no probatório coligido nos autos.

Já quanto aos factos não provados sob os nº.s 4, 5, 6 e 12, não se deteta a existência de qualquer erro de julgamento de facto, visto tratar-se de materialidade não alegada no requerimento inicial e não extraível dos acervo documental junto com a petição inicial.

Quanto à possibilidade de tal factualidade poderia ser aditada nos termos do artigo 662º do CPC, para além do supra exposto, importa reiterar que a junção de documentos com o recurso só é admitida nos casos excecionais previstos no artigo 425º do C.P.C., bem como nos casos em que a junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância, o que, como já vimos, não se veio a demonstrar, pelo que inexiste qualquer possibilidade de credibilização de tal tecido fáctico com base nos documentos juntos com o recurso e cujo desentranhamento foi já ordenado nos autos.
Ademais, transpor os factos provados numa ação para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui [cfr. aresto do STJ, de 05.05.2005, tirado no processo nº. 05B691], de modo que não é admitir a integração do “(…) facto dado como provado sob o nº. 21 na sentença, ao qual este processo corre por apenso (…)” no probatório coligido nos autos.

Finalmente, e no tocante ao facto não provado sob o nº. 11, saliente-se que não cabe ao Tribunal verter no probatório juízos conclusivos, opinativos ou de direito eventualmente emergentes de determinado tecido documental, antes devendo limitar-se a dar como provado os reportados documentos, isto é, o seu teor, mesmo que por remissão, deixando para a sede própria, isto é, para o momento de apreciação e decisão dessas questões, as ilações que desse factos entenda dever extrair.
De facto, os juízos conclusivos e/ou de direito não têm lugar no domínio da fixação da matéria de facto.
Assim, entendemos ser forçosa a conclusão de que não é aceitável que se dê como provado que “Nenhuma das prorrogações de prazo concedidas pelo Requerido à Requerente contemplou as ordens de execução desses (cobertura ajardinada, equipamentos e mobiliário e anodização da fachada) trabalhos a mais”.
Os juízos valorativos em torno da abrangência dos pedidos de prorrogação de prazo concedidas pelo Requerente devem ser formulados, se for esse o caso, em sede de direito, em face dos factos dados como provados.
Desta feita, sendo essa a sua natureza substancial, impera concluir pela irrelevância jurídica da matéria elencada nos factos não provados sob o nº.11.

Em suma, vinga apenas o erro de julgamento associado ao facto não provado sob o nº. 3 nos termos e com alcance supra explicitados.

Nestes termos, adita-se ao probatório os seguintes pontos:
27) A Requerente requereu ao Requerido, por carta datada de 05.04.2019 e recebida pelo Requerido pelo menos no dia 09.04.2019, prorrogação legal do prazo de execução da empreitada até ao dia 12.10.2019, com os respetivos plano de trabalhos, plano de mão-de-obra, plano de equipamentos e cronograma financeiro, tendo procedido à atualização do valor da reposição do equilíbrio financeiro apresentado, para a quantia de € 1.012.729,30.
28) Por oficio do Município do Requerido, com a Ref.ª n.º 1354/19, de 18.04.2019, foi comunicado à Requerente o indeferimento do pedido de prorrogação de prazo, bem como o pedido de reequilíbrio financeiro do contrato, ambos veiculados pela carta datada de 05.04.2019 [cfr. doc. n.º 25 junto com o requerimento inicial].

Nestes termos, procedem parcialmente as conclusões de recurso no domínio do erro de julgamento da decisão da matéria de facto.
*


III- Do imputado erro de julgamento de direito
*


A questão decidenda, como sabemos, traduz-se em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, por ofensa da normação vertida nos artigos “(…) 334.° e 762.°, ambos do Código Civil (…)”.

Vejamos, convocando, desde já, a fundamentação de direito que ficou vertida na decisão judicial recorrida: “(…)
Como questões decidendas identifica-se, desde logo, ser necessário aferir se se encontram verificados os pressupostos, enunciados no artigo 120° n.1 e 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de que depende a sua concessão.
Importa, antes de mais, proceder a uma breve enunciação do que é a tutela cautelar e dos princípios que lhe estão subjacentes.
O processo cautelar destina-se a solicitar a adoção de providência ou providências, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, assim promovendo a regulação provisória dos interesses em litígio, pelo que, têm carácter urgente. Para tal efeito deve o Tribunal proceder a uma avaliação perfunctória do mérito da pretensão do Requerente. Nas palavras de Vieira de Andrade: - “O juiz tem agora o poder e o dever de, ainda que em termos sumários, avaliar a probabilidade da procedência da ação principal, isto é, em regra, de avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um «verdadeiro» acto administrativo.”- cfr. “A Justiça Administrativa”, Lições, 16a edição, Almedina, pág. 330.
Os critérios de decisão das providências cautelares vêm enunciados no artigo 120° nº.s 1 e 2 do CPTA:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências. (...)
Da leitura deste normativo, resulta claro que, a “aparência de bom direito” é um dos critérios relevantes à apreciação de decretamento da providência, mas acompanhado de um outro requisito: - o “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízo de difícil reparação”.
Logo, importa apreciar se se encontram, ou não, reunidos os pressupostos, cumulativos, de que depende o decretamento da providência requerida, a saber: (a) “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízo de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal” e (b) “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente” e, uma vez verificados estes, (c) efetuar a ponderação dos interesses públicos e privados em presença, nos termos do disposto no n.2 do artigo 120° do CPTA.
Importa, pois proceder à apreciação do fumus boni iuris, ou seja à aferição de que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.
Quanto a este pressuposto o legislador exige um “juízo positivo de probabilidade” que justifique a concessão da providência.
A questão sub iudice no que se reporta ao pedido de intimação dos Requeridos para se absterem de acionar / pagar as garantias bancárias já foi objeto de apreciação e julgamento na sentença antes proferida nos autos, nos seguintes termos:
“(…)
Em concreto, através dos presentes autos, visa a Requerente a intimação das Entidades Requeridas para abstenção do acionamento e pagamento das garantias bancárias n.° 962300488020834 e n.° 962300488023876, “on first demand” isto é, suscetíveis de uma execução, imediata e independente de qualquer manifestação de vontade da parte que as tenha oferecido, garantias prestadas pelo Requerido, Banco Santander Totta, S.A., a favor da entidade adjudicante, aqui Requerido Município, com vista a caucionar o integral cumprimento das obrigações assumidas pelo garantido, aqui Requerente, no âmbito do contrato de empreitada de obras públicas designado “Antiga Garagem Linhares - Obra - Ref.a CP006/16" (cfr. factos 1, 2, 3, 4, 5 e 6 da materialidade provada).
De facto, a materialidade provada revela que, em 18/04/2019, foi proferido, pelo Requerido, o Despacho n.° 28/GR/2019 que, após análise e ponderação dos argumentos de facto e de direito apontados pela Requerente, em sede de direito de audiência prévia, concluiu pela decisão de:
“Aplicar à adjudicatária a sanção contratual de dois por mil sobre o valor contratual (€5.788,00- cinco mil setecentos e oitenta e oito euros) desde o passado dia 9 de março de 2019, liquidado até 3 de abril corrente, no montante de €150.488,00 (cento e cinquenta mil, quatrocentos e oitenta e oito euros);
2) Aplicar à adjudicatária a referida sanção contratual diária €5.788,00 (cinco mil setecentos e oitenta e oito euros) desde o dia 4 de abril até à conclusão dos trabalhos ou até que a sanção global atinja 20% do preço contratual, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”;
3) O valor da sanção deve ser descontado nos próximos pagamentos à adjudicatária ou, sendo tais pagamentos insuficientes e a adjudicatária não proceder ao pagamento voluntário, mediante o recurso à garantia bancária que serve de caução.” (cfr. factos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 do probatório).
E, foi na sequência dessa decisão de aplicação de sanção contratual, decisão que reveste natureza de ato administrativo, nos termos do artigo 307°, n.° 2, alínea c) do Código dos Contratos Públicos, que, constatado o pagamento insuficiente daquela sanção, a Requerida procedeu ao recurso às garantias bancárias que serviam de caução, tendo para o efeito, através de missiva datada de 30/01/2020, endereçado ao Requerido Banco pedido de entrega da importância global daquelas, no montante de € 289.400,00 (duzentos e oitenta e nove mil e quatrocentos euros) - cfr. factos 14, 15, 16, 17, 18 e 19 do probatório.
Ora:
O contrato de garantia bancária autónoma, prática corrente no comércio internacional, tem o seu campo de eleição, no plano interno, na área dos concursos de obras públicas e dos contratos de empreitadas, sobretudo na sua modalidade de garantia “on first demand” ou “à primeira solicitação”.
A garantia bancária nesta fórmula “on first demand”, surge, como algo líquido, cartular, equivalente a numerário, precisamente porque o banco emitente, a quem se reconhece solvabilidade, assume a obrigação de pagar a quantia incondicionalmente, logo que, para o efeito, seja solicitado.
A modalidade de garantia “on first demand” representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco que a presta fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, quando tenha ocorrido a inexecução ou má execução do contrato base.
Sucede, porém, que, como é jurisprudencialmente consensual, apesar da natureza automática da garantia “on first demand”, a sua automaticidade não é absoluta, admitindo-se a oposição, pelo garante ao beneficiário, da exceção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou estes sejam facto notório.
Veja-se, neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.° 07279/08.8TBMAI.P1.S1, de 20/03/2012, em cujo sumário se lê:
“O pagamento à 1ª solicitação (on first demand), assumido pelo garante, implica a sua obrigação de pagar ao beneficiário a indemnização objeto da garantia, não podendo opor-lhe quaisquer exceções reportadas à relação principal (contrato-base), a menos que haja evidentes e graves indícios de atuação de má-fé, nela se incluindo a conduta abusiva do direito.”
No caso em apreço, a factualidade é demonstrativa de que as garantias bancárias prestadas pelo Requerido Banco assumem a modalidade de garantias “on first demand”, por decorrer das suas declarações formais a afirmação de que se responsabiliza “sem quaisquer reservas, por fazer entrega de toda e qualquer importância, até ao limite da garantia, logo que interpelado por simples notificação escrita por parte da Entidade Beneficiária", mais aí tendo afirmado que “(...) o Banco, no caso de vir a ser chamado a honrar a presente garantia bancária, não tomará em consideração quaisquer objeções do Garantido, sendo-lhe igualmente vedado opor à Entidade Beneficiária quaisquer reservas ou meios de defesa de que o Garantido se possa valer face ao Banco." - cfr. factos 3 e 6 do probatório.
As garantias bancárias em causa nos autos assumem, pois, aquela modalidade, pelo que, diferentemente daquele que é o entendimento e pretensão da Requerente, não é aceitável uma decisão judicial que proíba, a título cautelar, o seu acionamento ou pagamento.
Em primeiro lugar, note-se que a maioria da jurisprudência identificada e a doutrina citada pela Requerente referem-se à possibilidade de o garante se opor ao acionamento da garantia com fundamentos suscetíveis de configurarem uma atuação de má-fé, nela se incluindo a conduta abusiva do direito, mas, o que sucede nos presentes autos é absolutamente distinto.
Aqui, não é o Requerido Banco que opõe ao Requerido uma atuação abusiva, mas sim, a própria Requerente, circunstância que, desde logo, obriga a uma interpretação, ainda, mais restritiva daqueles entendimentos doutrinais e jurisprudenciais.
Depois, aceitar a possibilidade de uma decisão judicial proibir, a título cautelar, o acionamento ou pagamento de garantias bancárias, mais não configuraria que uma anulação precisamente da específica natureza daquela garantia, ou seja, uma subversão da natureza “on first demand”.
Se se condicionasse o pagamento destas garantias a uma decisão judicial, ainda que perfunctória, estar-se-ia a retirar-lhes a sua inata natureza de caução incondicional, circunstância que conduziria inelutavelmente a que as mesmas deixassem de assumir a função legal e contratual que lhes está subjacente, a saber, assegurar à entidade pública meios eficazes e pré-judiciais de garantir a boa execução do contrato.
Importa recordar, como acima se afirmou, que a garantia bancária é admitida como modo de prestar caução, equivalente a um depósito a favor do dono da obra que o banco garante assume a obrigação de pagar “à primeira solicitação”.
Quer dizer, a garantia tem de ser executável logo que solicitada, pelo que não pode aquele que oferece a garantia pretender, no caso a Requerente, nem pode o banco garante eximir-se ao pagamento imediato do montante garantido, assim que solicitado nos termos e modos contratuais.
Em abono do que se vem a sustentar, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.° 0219/06.06TVPRT.P1.S1., de 05/07/2012, onde se explana o seguinte entendimento: “O cumprimento de garantias bancária on first demand não pode ser recusado mediante a mera invocação da pendência de um conflito jurisdicionalizado sustentado no contrato-base, sendo reservado para casos excecionais, maxime quando, mediante prova segura e irrefutável, se revele a existência de fraude ou de violação flagrante das regras da boa-fé.”
Veja-se, também, o que se sumariou no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.° 010152/13, de 11/07/2013: “IV Mas, tratando-se de uma garantia à primeira solicitação, tal garantia não admite discussões acerca da alegada execução ou inexecução ou má execução do contrato de empreitada. Face à natureza da garantia prestada, o garante tem de pagar até ao valor garantido, sem possibilidade de discussão. Depois, o devedor tem de reembolsar o garante também sem mais discussões. Caso o devedor discorde daquele acionamento da garantia, resta-lhe o ónus de demandar judicialmente o credor, para reaver o que houver desembolsado. A única possibilidade de o devedor ou do garantido se opor ao pagamento ao garante após a solicitação, é invocando ter em seu poder prova ilíquida e inequívoca de fraude manifesta ou abuso evidente do beneficiário.”
Ou, ainda, mais recentemente, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19/10/2012, proferido no processo n.° 00731/12.2BEBRG, onde se sumariou:
“(...) 2. Não se podem invocar, em princípio, questões ligadas ao contrato principal para afastar a execução da garantia bancária, pois esta tem fins próprios, autossuficientes, servindo como um simples sucedâneo de um depósito em dinheiro.
3. Apenas se aceitam como exceções os casos de fraude manifesta ou abuso de direito por parte do credor, em que o devedor da garantia bancária pode recusar pagamento nos termos do disposto nos artigos 334° e 762°, ambos do Código Civil.
4. A fraude ou abuso do direito deve ser evidente, manifesto, para que se paralise o direito a acionar a garantia.”
Da jurisprudência que se vem a destacar ressalta, assim, que os únicos fundamentos que se têm vindo a admitir como possíveis razões de subversão à natureza de “on first demand” da garantia, serão os casos de manifesto erro de vontade na formação do contrato da garantia bancária, devido ou não a fraude, o que, no caso em apreço, não foi de todo alegado. Ou, as situações em que ocorram manifestas fraudes ou abusos de direito do beneficiário, o que, também, não resulta da factualidade provada, mesmo que, em hipótese se admita a plausibilidade das questões suscitadas pela Requerente em ordem à conclusão de que lhe assiste o direito à prorrogação do prazo de execução do contrato da empreitada, de conclusão e receção provisória da empreitada e o direito à reposição do equilíbrio financeiro do contrato de empreitada, ficção que, concretize-se, apenas se equaciona por mera hipótese para este efeito, na medida em que a materialidade provada conduz a uma conclusão exatamente em sentido oposto.
De facto, evidencia a materialidade assente que, na sequência da decisão de aplicação da sanção contratual, a Requerente foi notificada da compensação efetuada pelo Requerido, no valor de € 204.556,93, titulados em faturas emitidas por aquela, mais tendo sido levado ao seu conhecimento a informação de que permanecia devedora da importância de € 374.243,07, que, a não ser paga voluntariamente, seria efetivada a caução bancária prestada (cfr. facto 15 do probatório).
Esta factualidade, desacompanhada de outra que evidencie que a Requerente se tenha insurgida contra aquela forma de extinção de obrigações (artigo 847 ° do Código Civil), são realidades que confrontadas se revelam elucidativas da inexistência, in casu, de qualquer situação subsumível ao instituto do abuso do direito.
A não ser devida a sanção contratual aplicada, seria expectável que a Requerente, na sequência da notificação da compensação, tivesse diligenciado pela sindicância daquela atuação. Mas, pelo contrário, não se alcança qualquer sustentação nesse sentido, nem tal facto se encontra, mesmo que perfunctoriamente, demonstrado.
Estas considerações são bastantes para a conclusão de que não se vislumbra dos autos alegação de factualidade subsumível à existência de fraude manifesta ou abuso evidente do beneficiário, razão pela qual, terá que, necessariamente, improceder a pretensão de intimação à abstenção de acionamento e pagamento das garantias bancárias, por, desde logo, inverificação do requisito do fumus boni iuris.
Note-se, em reforço, de tudo quanto se desenvolveu, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17/09/2015, proferido no processo n.° 012420/15, onde se reforça o entendimento que aqui se sufraga sem reservas de que:
“I. Na garantia bancária autónoma o Banco que a presta obriga-se a pagar ao beneficiário determinada importância, sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato base.
II. Contudo, a automaticidade da garantia não funciona em termos absolutos, podendo ser recusado o pagamento nos casos de manifesta má-fé, fraude ou abuso por parte do beneficiário, quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes e sempre que exista prova irrefutável de que o mesmo foi cumprido.”
III. Impende sobre o requerente cautelar que pretenda obstar ao acionamento deste tipo de garantias, o ónus de alegar e provar, que o beneficiário da garantia atuou com má-fé, de forma fraudulenta ou abusiva.”
Se é facto que a característica da automaticidade da garantia bancária não é absoluta, também, ficou assente que os presentes autos não evidenciam qualquer situação de fraude manifesta ou abuso evidente na execução da garantia, aliás, o Requerido, por diversas vezes, mesmo a tal não se encontrando obrigado, transmitiu à Requerente aquele seu direito de execução das garantias bancárias, comportamento que, igualmente, não se coaduna com uma atuação abusiva (cfr. factos 16 e 17 do probatório).
Não se mostra, pois, preenchido o requisito do fumus boni iuris. (...)”
Ora, reiterando-se aqui a subsunção fáctico-jurídica efetuada na sentença proferida nestes autos (em 20.05.2020), importa, agora, em face da prova produzida em cumprimento do decidido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (em 19.02.2021) apreciar se existiu qualquer situação de fraude manifesta ou abuso evidente na execução da garantia, que imponha um julgamento diverso do ali proferido.
Tendo em conta que, com relevo para a apreciação da identificada questão foi provado, apenas, que existiram reuniões, antes e depois da aplicação das sanções contratuais, entre representantes de Requerente e do Requerido; que numa dessas reuniões a Requerente informou o Requerido de que iria requerer a reposição do equilíbrio financeiro do contrato - cujo valor, àquela data, computava, num valor mínimo, correspondente a 10% - 11% do valor do contrato; que foi abordada a possibilidade de criação de comissão arbitral ad hoc para avaliar / quantificar os valores atinentes a eventual reposição de equilíbrio financeiro; e que uma das referidas reuniões teve lugar no dia 24.04.2019 [cfr. pontos 22. a 26. do probatório], o Tribunal julga que a referida factualidade não é indiciadora, nem bastante para integrar / constituir uma situação de fraude manifesta ou de abuso evidente na execução da garantia.
Com efeito, relevante para a imputação de uma atitude de fraude manifesta ou de abuso evidente na execução da garantia seria a prova da existência de um acordo relativamente à anulação/revogação do acto que aplicou as sanções contratuais - o que não sucedeu, cfr. ponto A) dos factos não provados supra - e, de seguida, executar as garantias prestadas precisamente para pagamento daquelas multas contratuais que teria acordado em anular. No tocante a este pretenso acordo, importa ainda expressar que atento o tipo de relação contratual em causa e as partes envolvidas - sendo uma delas uma entidade pública - sempre seria necessária e exigível, a sua redução a escrito.
Destarte, ante o expendido, o teor da sentença transcrita - que se acolhe - e o julgamento de facto e de direito ora realizado em função da prova produzida, atendendo aos pressupostos que acima se deixaram enunciados (artigo 120° n.1 do CPTA) quanto à eventual concessão da presente providência, o Tribunal, julga evidente que não se verifica o requisito de que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.
***

Ao julgamento supra espraiado, não pode o Tribunal deixar de acrescentar, sucinta e sinteticamente, que a alegação da Requerente no tocante à verificação do periculum in mora é maioritariamente conclusiva e genérica, carecendo de alegação concreta factual.
Assim e perante tal enquadramento de facto, sempre se concluiria, igualmente, pela não verificação do pressuposto atinente ao periculum in mora. (…)”.

Espraiada a fundamentação vertida na decisão judicial recorrida, e cotejando a motivação de facto aduzida pelo julgador a quo, adiante-se, desde já, que o assim decidido é de manter, encontrando-se certeiramente justificado.

De facto, tal como conformada a causa de pedir, o acionamento das garantias bancárias pelo Requerido é revelador uma atuação abusiva e contrária à lei, no mais essencial, fruto das circunstâncias (i) de não existir qualquer incumprimento contratual por parte da Requerente, mas antes por parte do Requerido, ademais e especialmente, por falta de revisão do projeto de execução do contrato de empreitada e de disponibilização dos elementos necessários da solução da obra necessárias à sua execução, e ainda por omissão de pronúncia atempada quanto aos pedidos de prorrogação de prazo, o que, no entender da Recorrente, implica a aceitação tácita dos mesmos, bem como do (ii) Município Requerido ser devedor da Requerente da quantia de € 300,000,00, a título de reposição do equilíbrio financeiro do contrato e poder ter que vir a devolver à Requerente quaisquer quantias pagas a título de sanção contratual, somado ao acordo acima descrito.

Porém, não se retiram da matéria de facto apurada sinais suficientemente consistentes de que não houve qualquer incumprimento contratual por parte da Requerente.

De igual modo, os factos concretos e especificados no probatório revelam-se manifestamente insuficiente para viabilizar a afirmação de que o Requerido falhou na revisão do projeto de execução do contrato de empreitada, e, bem assim, na disponibilização dos elementos necessários da solução da obra necessárias à sua execução, sendo certo que não se pode extrair desta factualidade, bem como da eventual falta de pronúncia atempada por parte da Administração em relação aos pedidos de prorrogação de prazo, a emergência de um qualquer comportamento fraudulento ou abusivo.

Derradeiramente, não se descortina a aquisição processual de qualquer materialidade tendente a demonstrar que o Recorrido seja devedor da Requerente a título de reposição do equilíbrio financeiro do contrato e poder ter que vir a devolver à Requerente quaisquer quantias pagas a título de sanção contratual, somado ao acordo acima descrito.

Desta feita, e sopesando que o demais tecido fáctico apurado nos autos [inclusive o ora aditado] não é valorizável em sede da violação do princípio da boa-fé e do abuso do direito e não se prefigurando a densidade factual conducente à prova do incumprimento, por parte do Recorrido, dos deveres de conduta exigíveis no plano ético em que se move uma pessoa normal, reta e honesta colocada na situação jurídica concreta da Administração, impera concluir que não está evidenciada nos autos a tese da Recorrente no plano da existência de um comportamento abusivo e fraudulento por parte do Requerido na atuação traduzida no acionamento das garantias bancárias visada nos autos.

Deste modo, tendo também sido este o caminho trilhado na sentença recorrida, com maior ou menor variação de fundamentação, é mandatório concluir que esta fez correta subsunção do tecido fáctico apurado nos autos ao bloco legal aplicável, não sendo, por isso, merecedora da censura que a Recorrente lhe dirige no domínio versado.

Deve, portanto, ser negado provimento ao recurso jurisdicional e mantida a sentença recorrida.

Assim se decidirá.
* *

V – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice” e manter a decisão recorrida.
*
Custas pela Recorrente.
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Registe e Notifique-se.
* *

Porto, 13 de agosto de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Paulo Moura
Tiago Afonso Lopes de Miranda