Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00103/15.7BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/19/2021
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:VIOLAÇÃO DA LEI DOS COMPROMISSOS E DOS PAGAMENTOS EM ATRASO- NULIDADE DO CONTRATO-SANAÇÃO.
Sumário:1-A Lei n.º 8/12, de 21 de fevereiro (LCPA), regulamentada pelo Decreto-Lei nº 127/2012, de 21 de junho, estabeleceu as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso por parte das entidades públicas.

2-Do conjunto de obrigações estipuladas nesses diplomas destacam-se as obrigações das entidades públicas de: (i) regularizarem os pagamentos em atraso pré-existentes à data da sua entrada em vigor; (ii) de não aumentarem os pagamentos em atraso; (iii) de não assumirem compromissos que excedam os fundos disponíveis e (iv) de verificarem a conformidade legal da despesa e dos pagamentos.

3- A celebração de um contrato administrativo de prestação de serviços ou de fornecimento de bens sem a prévia e válida assunção do respetivo compromisso, tem como consequência a sua nulidade.

4- Essa nulidade é sanável por decisão judicial, quando ponderados os interesses públicos e privados em presença, o Tribunal conclua que a nulidade do contrato ou da obrigação se revela desproporcionada ou contrária à boa-fé (artigo 5.º, n.º4 da LCPA).

5- Só perante circunstâncias especificas, que não se bastam com o facto de se estar perante um fornecimento realizado ou serviço prestado, e de que a entidade pública tenha beneficiado, é que o Tribunal poderá decidir pela eventual sanação da nulidade decorrente do incumprimento da LCPA.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Recorrente:D., Lda
Recorrido 1:MUNICÍPIO (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Execução de Sentença (Extensão dos Efeitos da Sentença)
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

1.1. D., Lda., apresentou requerimento de injunção junto do Balcão Nacional de Injunções/Comarca de Viseu, Instância Local de Moimenta da Beira- Secção de Competência Genérica- J1, no qual figura como requerido/ devedor o MUNICÍPIO (...), requerendo o pagamento da quantia global, incluindo juros, de €19.101,13.
Para tanto, invocou que, na sequência de contrato de fornecimento de bens ou serviços, de 03-10-2013 a 02-11-2013, prestou os serviços/fornecimentos que constam das faturas nºs 319, 316, 317, 313 e 314, datadas de 03/10/2013, com os valores, respetivamente, de € 599,63, € 1.292,12, € 5.779,77, € 4.931,32 e € 5.487,62, todas com vencimento em 02/11/2013;
Mais reclamou a quantia de € 140,00 nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10/05, bem como de juros calculados à taxa prevista no parágrafo 3º do artigo 102º do Código Comercial.

1.2. O MUNICÍPIO (...) notificado para pagar o montante solicitado ou deduzir oposição a essa pretensão, deduziu oposição, invocando, em síntese, que o mencionado contrato terá sido celebrado mediante ajuste direto simplificado, mas que não cumpriu com os demais requisitos impostos pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, conhecida como Lei dos Compromissos, que instituiu normas rígidas para a realização de despesa pública, pelo que se encontra impedido de proceder a esses pagamentos;
Alega que no caso não se verificam os requisitos previstos nessa lei em termos de regularidade financeira da despesa, não existindo o compromisso dessa despesa, tendo essa despesa sido assumida em desconformidade com as regras e procedimentos previstos na LCPA;
Refere que, provando-se os alegados fornecimentos/prestação de serviços foram efetivamente realizados e o preço por eles devidos, os titulares dos cargos políticos, dirigentes, ou responsáveis pela contabilidade que assumiram esses compromissos em violação da mesma lei, devem ser responsabilizados, em sede própria, em face da responsabilidade civil, financeira, sancionatória e reintegratória, em que incorreram ( artigo 11.º, n.º1 da LCPA).

1.3. A A. pronunciou-se, alegando que o Réu não impugna que os serviços foram encomendados e prestados, referindo que os argumentos relativos à Lei dos Compromissos lhe são alheios e que o Réu enriqueceu à sua custa, pelo que no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa o Réu seria obrigado a pagar-lhe a quantia peticionada.

1.4. Por despacho de 22/10/2014, no exercício do dever de cooperação judiciária, o tribunal convidou a Autora a concretizar os termos e condições da celebração do contrato.

1.5. A Autora apresentou requerimento inicial aperfeiçoado e juntou aos autos cinco faturas, cujo pagamento reclama.

1.6. Em resposta aos factos aditados, o Réu arguiu a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º, nº 1 e 2, alínea a) do CPC, invocando que a Autora não deu satisfação integral ao convite efetuado pelo tribunal.

1.7. Por despacho de 26/11/2014, o Tribunal suscitou oficiosamente a exceção dilatória da incompetência material para conhecer do presente litígio, por tal competência, nos termos do artigo 4.º, n.º1, alínea f) do ETAF, caber aos Tribunais Administrativos e Fiscais, e determinou a notificação das partes para o contraditório.

1.8. O MUNICÍPIO (...) respondeu, assentindo na verificação da referida exceção da incompetência material do tribunal.

1.9. A Autora respondeu, invocando não se verificar a suscitada exceção dilatória da incompetência material do tribunal.

1.10. Por decisão proferida em 17/12/2014, a então designada a Instância Local de Moimenta da Beira, Secção de Competência Genérica – JI, da Comarca de Viseu, conheceu da exceção dilatória da incompetência, em razão da matéria, dos tribunais comuns para conhecer da relação jurídica material delineada pela Autora na petição inicial, julgando-a procedente e, em consequência, absolveu o Réu da instância.

1.11. Após transito em julgado da sentença referida, os autos foram oficiosamente remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.

1.12. Realizou-se audiência preliminar.

1.13. No despacho saneador-sentença de 07/05/2015, proferiu-se saneador tabelar e julgou-se a ação improcedente, constando da mesma o seguinte dispositivo:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a presente ação e, em consequência, absolvo o Réu do pedido de condenação.
Fixo à presente ação o valor de € 19.101,13.
Custas a cargo da A.
Registe e notifique.»

1.14. Inconformada com o saneador-sentença, a Autora interpôs recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
«1. A A. não se conforma com a sentença proferida nos presentes autos.
DO ERRADO CONHECIMENTO IMEDIATO DO MÉRITO DA CAUSA
2. Entende a A. que o Tribunal a quo não deveria conhecer de imediato do mérito da causa.
3. Por um lado, não foi produzida prova que permitisse afirmar ou infirmar a inexistência do cumprimento pela Ré da lei dos compromissos, apesar de tal matéria ter sido alegada pela Ré e ter sido impugnada pela A..
4. Os factos considerados assentes pelo Tribunal a quo são insuficientes para conhecer do mérito da acção, isto é, para demonstrar a inexistência do cumprimento dos formalismos constantes da Lei 8/2012, de 21/02, uma vez que da matéria considerada assente resulta apenas provado que ocorreu devolução de facturas com a alegação de “por não existir nenhum procedimento/requisição que sustente o serviço prestado e material mencionado nas mesmas, ao abrigo da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro”.
5. Não resultou provado que efectivamente inexistiu qualquer procedimento/requisição que sustentasse o serviço prestado e material mencionado nas facturas, ao abrigo da lei n.º 8/2012, de 21/02.
6. Mas mesmo que tal venha a resultar provado, em função da prova a produzir, poderá demonstrar-se ainda que ocorreu má-fé da Ré ou intervenção directa desta para evitar que tais procedimentos tenham ocorrido nos termos legais, para prejudicar a A. e a Ré esquivar-se ao pagamento, o que não pode ser imputável àquela e implicará, salvo melhor opinião, a condenação da Ré.
DA INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 8/2012, DE 21 DE FEVEREIRO
7. Por outro lado, entende a recorrente que não lhe pode ser assacável nem imputável a ausência de cumprimento dos formalismos legais que constam da Lei 8/2012, de 21/02.
8. Deve considerar-se, pois, que atento o disposto no número 4 do artigo 5.º (“A nulidade prevista no número anterior pode ser sanada por decisão judicial quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé”) sempre o Tribunal deveria, ponderados os factos aqui em causa e atento os princípios da proporcionalidade e da boa-fé, considerar válido e eficaz o contrato celebrado, pugnando pela condenação da Ré no pedido, o que, erradamente, não fez.
9. Limitou-se o Tribunal a quo a considerar que – atento as datas da emissão das facturas e dos serviços prestados (no ano seguinte à publicação da lei) – os interesses privados em causa deveriam soçobrar aos interesses públicos.
10. Face ao exposto, entende a recorrente que, neste particular, o interesse da A. não pode ser preterido pela exigência do cumprimento da Lei 8/2012, de 21/02, quando é certo que tal preterição consubstanciará, de forma evidente e inequívoca, violação dos princípios da proporcionalidade e boa-fé.
11. Sem prescindir, sempre se deve considerar que impunha-se ao Tribunal recorrido a produção de prova para ponderação da aplicabilidade do regime supra invocado, concretamente e caso assim entendesse, da existência de condições para “atento os princípios da proporcionalidade e da boa-fé, considerar válido e eficaz o contrato celebrado”.
DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
12. Resulta da factualidade carreada para os presentes autos, de forma clara e inequívoca, que a Ré enriqueceu à custa da A., quer porque a Ré enriqueceu pelo trabalho e entrega de bens pela A., sem causa que o justifique (caso se considere inexistir legítima relação comercial entre as partes), quer porque ocorreu locupletamento injusto da Ré.
13. Inexiste qualquer excepção para a aplicação do supra referido regime legal, pelo que, caso se entenda inexistirem fundamentos válidos para a inaplicabilidade do regime a que se refere a Lei 8/2012, de 21/02 – o que não se admite, mas por mero dever de patrocínio se concede – sempre deverá a Ré ser condenada a pagar à A. o montante peticionado nos autos, atento o regime do enriquecimento sem causa.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE CONDENAR-SE A RÉ NO PEDIDO, ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA»

1.15. O Réu contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

«A) Os fundamentos e o sentido da douta decisão recorrida não resultam abalados em face do teor do recurso apresentado pela Recorrente, sendo portanto de concluir pela sua não revogação, a qual absolveu o R ora Recorrido do pedido de condenação.
B) O presente recurso dirige à douta sentença recorrida os vícios de violação do disposto no art. 5º, nº 4 da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro e do art. 473º do Código Civil, contudo, balizado nas conclusões que o enformam, tal recurso encontra-se votado ao fracasso, pois não assiste qualquer razão à Recorrente.
C) A Recorrente limita-se a alegar que “não foi produzida prova que permitisse afirmar ou infirmar a inexistência do cumprimento pela Ré da lei dos compromissos”, o que não constitui fundamento para concluir pelo errado conhecimento imediato do mérito da causa levado a cabo pela douta decisão recorrida.
D) Nos termos do disposto no art. 595º, nº 1, al. b) do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA, o despacho saneador destina-se a “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
E) Situação essa que se verificou in casu, pois o estado do presente processo, em face dos factos provados e da prova documental já junta aos autos, permite concluir que não foram cumpridas as formalidades legais impostas por lei para efetuar a despesa.
F) A Lei nº 8/2012, de 21/02, pressupõe um conjunto muito rígido de normas para realização de despesa pública, entre as quais a obrigação de existência de um número sequencial e válido de compromisso, refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente, cfr. art. 5º, nº 3 da Lei nº 8/2012, de 21/02 e do art. 7º, nº 3, al. c) do Decreto-Lei nº 127/2012, de 21 de junho.
G) A realização de despesa deixa de estar sujeita apenas ao cabimento prévio com base na existência de dotação orçamental para passar a estar também sujeita à existência de fundos disponíveis na fase do compromisso, por forma a garantir a real capacidade de efetuar o respetivo pagamento.
H) Nenhum compromisso pode ser assumido sem que tenham sido cumpridas cumulativamente as condições previstas nos art.s 9º e 10º da Lei nº 8/2012, de 21/02 e no art. 7º do Decreto-Lei nº 127/2012.
I) Dos documentos juntos pela Recorrente aos presentes autos resulta inequivocamente que não foi efetuado qualquer compromisso válido e eficaz, tendo o Recorrido referido isso expressamente quando devolveu as faturas cujo pagamento está peticionado nos presentes autos através do seu ofício nº 770/CONT/13 de 07/11/2013, com a alegação de “por não existir nenhum procedimento/requisição que sustente o serviço prestado e material mencionado nas mesmas, ao abrigo da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro”.
J) A Recorrente não impugnou este facto, não podendo por isso deixar de dar-se como provado, sendo inaceitável a alegação agora efetuada de que não resultou provado que inexistiu qualquer procedimento/requisição que sustentasse o serviço prestado e o material mencionado nas faturas, ao abrigo da referida lei.
K) No presente caso, os requisitos impostos por lei, nomeadamente a regularidade financeira da despesa, obrigando à existência de um número sequencial e válido de compromisso, refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente, e ao registo daquele no sistema informático de apoio à execução orçamental, não existiram.
L) Se o Recorrido não assumiu um compromisso nos termos da Lei nº 8/2012 (cf. artigo 5º, nº 3), tal facto conduz à nulidade do contrato ou da obrigação subjacente ao contrato de fornecimento de bens e serviços que a Recorrente alega ter celebrado com a Câmara Municipal.
M) Bem andou o douto Tribunal recorrido ao conhecer de imediato do mérito da causa, por para tanto estarem reunidos os pressupostos de facto e de direito, pelo que nenhuma censura merece.
N) A douta decisão recorrida efetuou uma correta subsunção dos factos à legislação aplicável, concretamente à Lei nº 8/2012, de 21/02, da qual efetuou uma irrepreensível interpretação.
O) A Recorrente, apesar de se referir à “inaplicabilidade da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro”, quer nas alegações quer nas conclusões não põe em causa o facto de tal lei ser aplicável à situação de facto em causa nos presentes autos, mas antes conclui que se estaria perante uma exceção que essa mesma lei consagra no seu art. 5º, nº 4.
P) Acompanhamos a argumentação expendida na douta decisão recorrida a este respeito e que foi supra transcrita no corpo das alegações.
Q) A nulidade do contrato ou obrigação subjacente não se revela desproporcionada ou contrária à boa-fé.
R) A douta decisão recorrida procedeu à ponderação dos princípios da proporcionalidade e da boa-fé, concluindo fundamentadamente que a nulidade do contrato que terá sido celebrado entre Recorrente e o Recorrido ou da obrigação subjacente ao mesmo não é desproporcionada ou contrária à boa-fé, não se encontrando reunidos os pressupostos para que tal nulidade pudesse ser sanada.
S) Não tem aplicação in casu a exceção prevista no art. 5º, nº 2 da Lei nº 8/2012, de 21/02.
T) Não assiste razão à Recorrente ao invocar o instituto do enriquecimento sem causa, pois a consequência da preterição das formalidades legais é a impossibilidade do Recorrido proceder ao pagamento do preço peticionado (art. 9º, nº 1 da Lei nº 8/2012, de 21/02) e ainda a impossibilidade da Recorrente o reclamar ao Recorrido sob qualquer forma (art. 9º, nº 2).
U) Como doutamente decidiu o Tribunal “a quo”, “a A. não pode sequer reclamar o pagamento ao Réu com base no instituto do enriquecimento sem causa (também cf. artigo 474º do Código Civil)”, sob pena da Lei nº 8/2012, de 21/02, ficar esvaziada no seu conteúdo e efeito útil.
V) A presente ação não podia deixar de improceder e consequentemente conduzir à absolvição do R Recorrido do pedido de condenação, como sucedeu, nenhuma censura merecendo a douta decisão recorrida.
W) Não pode ser assacada à douta decisão recorrida a violação de nenhuma das disposições legais invocadas, devendo consequentemente o presente recurso improceder.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a Douta Decisão que elaborou o despacho saneador ora recorrida, que nenhuma censura merece.».


1.16. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.

1.17. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.

Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.

2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem e que importa resolver, passam por saber se o Tribunal a quo errou ao conhecer do mérito da causa no saneador e se, bem assim, errou na interpretação e aplicação das normas da Lei n.º 8/12, de 21 de fevereiro.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO

3.1. A 1.ª Instância deu como provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
«A) A A. emitiu as faturas nºs 319, 316, 317, 313 e 314, datadas de 03/10/2013, com os valores, respetivamente, de € 599,63, € 1.292,12, € 5.779,77, € 4.931,32 e € 5.487,62, todas com data de vencimento em 02/11/2013, em nome da Câmara Municipal (...).
B) As faturas identificadas na alínea anterior foram enviadas ao Réu para pagamento, mas este devolveu-as «...por não existir nenhum procedimento/requisição que sustente o serviço prestado e material mencionado nas mesmas, ao abrigo da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro.».
C) Os bens constantes das faturas foram fornecidos ao Réu.»
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III.B.DE DIREITO
b.1. Do errado conhecimento imediato do mérito da ação em sede de despacho saneador

Nas conclusões formuladas sob os pontos 2.º a 6.º das alegações de recurso, a Apelante sustenta que o Tribunal a quo errou quando decidiu conhecer de imediato do mérito da causa, alegando que não foi produzida prova que permitisse afirmar ou infirmar a inexistência do cumprimento pela Ré da lei dos compromissos, apesar de tal matéria ter sido alegada pela Ré e impugnada por si.

A seu ver, os factos considerados assentes pelo Tribunal a quo são insuficientes para demonstrar a inexistência do cumprimento dos formalismos constantes da Lei 8/2012, de 21/02, uma vez que da matéria considerada assente resulta apenas provado que ocorreu devolução de faturas com a alegação de “por não existir nenhum procedimento/requisição que sustente o serviço prestado e material mencionado nas mesmas, ao abrigo da Lei nº 8/2012, de 21 de fevereiro”.

Refere que não resultou provado que efetivamente inexistiu qualquer procedimento/requisição que sustentasse o serviço prestado e material mencionado nas faturas, ao abrigo da lei n.º 8/2012, de 21/02 e que mesmo que tal venha a resultar provado, em função da prova a produzir, poderá demonstrar-se ainda que ocorreu má-fé da Ré ou intervenção direta desta para evitar que tais procedimentos tenham ocorrido nos termos legais, para prejudicar a A. e a Ré esquivar-se ao pagamento, o que não pode ser imputável àquela e implicará, salvo melhor opinião, a condenação da Ré.

A Apelante, se bem compreendemos o sentido das suas conclusões de recurso, insurge-se contra o conhecimento do mérito da ação em sede de saneador-sentença, por considerar que existem factos relevantes para essa decisão que não foram considerados e que se dados como provados imporiam ao Tribunal a quo a prolação de uma decisão de procedência da sua pretensão. Ou seja, advoga que a factualidade que alegou deve ser dada como provada o que conduzirá a uma decisão favorável aos seus interesses.

Mas sem razão.
É inquestionável que o Juiz só deve conhecer do mérito da causa no despacho saneador quando dispõe de todos os elementos fácticos necessários a uma correta, criteriosa e justa decisão, pelo que, a prática normal é que o juiz se abstenha de o fazer, se concluir que o processo não contém todos os elementos que permitam uma decisão segura, conscienciosa e justa. Cfr. Ac. TCAN, de 05.03.2021, proc. n.º 173/14.0BECBR-B, por nós relatado;

É abundante e esclarecedora a corrente jurisprudencial segundo a qual o Juiz só deve conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, quando tenha adquirido a certeza de que haja o que houver na fase da instrução e na da discussão da causa, a decisão não será diferente, depois dessas fases, daquela que tiver no momento do despacho saneador.
O que não significa que o Juiz não deva optar pelo conhecimento imediato do pedido, quando o estado do processo possibilitar uma decisão conscienciosa, sem necessidade de ulteriores provas e independentemente de a mesma vir a ser favorável a uma ou a outra das partes em litígio.
É, aliás, esta a posição defendida por ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES in “Temas da Reforma do Processo Civil” II volume, pág. 135, que refere, designadamente, na parte que ora nos interessa, «Se, de acordo com as plausíveis soluções da questão de direito, a decisão final de modo algum pode ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na elaboração da base instrutória e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito».
E o citado Autor acrescenta, impressivamente, que «Se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil toda a tarefa de seleção da matéria de facto, instrução e julgamento da mesma».

Em suma, a necessidade de produção acrescida de prova deve resultar de uma ponderação a realizar pelo julgador em face da prova documental existente nos autos e da posição assumida pelas partes quanto aos factos essenciais à decisão de mérito a proferir, não havendo qualquer imposição legal relativamente a essa formalidade, pelo que, a dispensa de inquirição de testemunhas, não pode considerar-se a preterição de uma formalidade legal, ou traduzir-se na violação dos princípios do inquisitório ou do acesso ao direito, se a prova fornecida pelos autos se revelar bastante para o conhecimento do objeto da ação.
Foi o que justamente sucedeu no caso em apreço, em que o Tribunal a quo considerou, atendendo à prova documental junta aos autos e à posição assumida pelas partes, que os autos já forneciam os elementos necessários para a seleção dos factos relevantes para a decisão a proferir sem necessidade de quaisquer outras diligências probatórias.

Note-se que a própria Apelante não cuidou de indicar, quer nas alegações, quer em sede conclusiva, quais os factos vertidos na petição inicial que, na sua ótica, seriam essenciais para o sucesso da sua pretensão condenatória, limitando-se a tecer considerações genéricas, aludindo vagamente, sem qualquer suporte real ou consistente, à necessidade da fase da instrução, mas nada especifica de modo a concretizar o seu pensamento.

No caso estava em causa saber se, considerando a proibição da realização de quaisquer pagamentos que não tenham cumprido as regras legais aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas previstas, quer na Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, quer no Decreto-Lei n.º 127 /2012, de 21 de junho, que veio estabelecer os procedimentos necessários à aplicação da referida Lei, a falta de compromisso das despesas em causa determinava a nulidade do contrato e, para esse fim, nenhum factos para além dos que foram considerados, importava dar como provados.
No caso vertente, os factos que constam do elenco dos factos provados, são os relevantes, necessários e suficientes para a decisão proferida, como melhor veremos infra, pelo que não merece censura a decisão de conhecer do mérito logo no saneador.

Termos em que improcedem as considerações, em sentido contrário, tecidas pela Recorrente.

b.2. Do erro de julgamento de direito: da inaplicabilidade da Lei n.º 8/212, de 21 de fevereiro.
O Tribunal a quo julgou a ação movida pela Apelante, por via da qual pretendia obter a condenação do Município Apelado a pagar-lhe os serviços e fornecimentos que lhe efetuou, constantes das faturas que emitiu, improcedente, e absolveu o Apelado da obrigação de pagamento dos montantes reclamados, com fundamento na Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, cujos formalismos considerou não terem sido observados, pese embora tenha sido julgado provado que os fornecimentos/serviços a que se reportam as faturas reclamadas foram prestados ao Apelado.
Foi a seguinte a fundamentação apresentada pela 1.ª Instância:
« (…)
De acordo com o conceito de compromissos (artigo 3º, alínea a), da Lei nº 8/2012), não resulta do probatório que o Réu tenha emitido uma ordem de compra, uma nota de encomenda ou um documento equivalente, ou assinado um contrato, um acordo ou um protocolo com a A., relativamente às faturas em causa.
O Réu não assumiu um compromisso nos termos da Lei nº 8/2012 (cf. artigo 5º, nº 3), conduzindo, assim, à nulidade do contrato ou da obrigação subjacente ao contrato de fornecimento de bens e serviços que a A. alega ter celebrado com a Ré.
O regime da nulidade, nos termos do artigo 134º do anterior CPA [revogado pelo Decreto-Lei nº 4/2015, de 7 de janeiro, inaplicável ao caso dos autos] estabelecia que «1. O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade. 2. A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal. 3. O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.» (destaques da signatária).
Os princípios gerais de direito a que a norma apela são os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais.
Porém, nos termos do já citado artigo 5º, nº 4, da Lei nº 8/2012, a nulidade do contrato ou da obrigação apenas pode ser sanada por decisão judicial quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, se revele desproporcionada ou contrária à boa fé.
O princípio da boa fé encontra-se consagrado no artigo 266º da CRP e no artigo 6º-A do CPA.
O princípio da boa fé significa «...enquanto princípio geral de direito, que qualquer pessoa deve ter um comportamento correcto, leal e sem reservas, quando entra em relação com outras pessoas.» (cf. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco Amorim, in “Código do Procedimento Administrativo”, Comentado, 2ª Edição, Almedina, pág. 108) (Vide Ac. do Colendo STA de 09/07/2014, Processo 01561/13).
A Lei nº 8/2012 já se encontra em vigor desde 22/02/2012 e as faturas emitidas pela A. datam de 03/10/2013, cujos serviços e bens foram fornecidos nessa data.
Assim, de um lado temos o interesse público do Réu em cumprir a lei dos compromissos e, por outro lado, o interesse privado da A. em receber o preço dos serviços e bens que forneceu ao Réu.
A lei dos compromissos era e é de conhecimento público, porque foi publicada no Diário da República.
A A. devia ter sido diligente e ter procurado certificar-se do cumprimento da Lei pelo Réu antes de prestar os serviços e fornecer os bens constantes das suas faturas, porque o Réu não criou na sua esfera jurídica nenhuma expectativa ao recebimento do preço, ao não ter assumido nenhum compromisso nos termos legais.
A nulidade do contrato ou obrigação subjacente não se revela desproporcionada ou contrária à boa fé.
Assim sendo, nos termos do artigo 9º, nº 2, da Lei nº 8/2012, a A., porque procedeu ao fornecimento de bens e serviços ao Réu sem que tivesse sido emitido previamente o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente com clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, nos termos do nº 3 do artigo 5º da mesma lei, não pode reclamar do Estado ou do Réu o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma (também cf. artigo 7º, nº 3, do Decreto-Lei nº 127/2012, de 21 de junho).
O que significa que a A. não pode sequer reclamar o pagamento ao Réu com base no instituto do enriquecimento sem causa (também cf. artigo 474º do Código Civil).
Por tudo quanto fica exposto, a presente ação tem que improceder e o Réu vai ser absolvido do pedido.»

A Apelante entende que a decisão recorrida errou na interpretação e aplicação da Lei n.º 8/2012, de 21/2 à situação vertente e, ainda, ao considerar a inaplicabilidade ao caso do instituto do enriquecimento sem causa.

Sustenta que atento o disposto no número 4 do artigo 5.º da citada Lei sempre o Tribunal a quo deveria, ponderados os factos aqui em causa e atento os princípios da proporcionalidade e da boa-fé, considerar válido e eficaz o contrato celebrado, o que, erradamente, não fez, limitando-se a considerar que – atento as datas da emissão das faturas e dos serviços prestados (no ano seguinte à publicação da lei) – os interesses privados em causa deveriam soçobrar aos interesses públicos. Um tal entendimento, consubstancia a violação dos princípios da proporcionalidade e boa-fé.

Ademais, entende que da factualidade carreada para os presentes autos, decorre que a Ré enriqueceu à custa da A., quer porque a Ré enriqueceu pelo trabalho e entrega de bens pela A., sem causa que o justifique (caso se considere inexistir legítima relação comercial entre as partes), quer porque ocorreu locupletamento injusto da Ré, pelo que deverá a Ré ser condenada .

Vejamos.
A Lei n.º 8/12, de 21 de fevereiro, conhecida como Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso (LCPA), veio estabelecer “as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas” ( cfr. art.º 1.º), prevendo-se no seu art.º 14.º que “os procedimentos necessários à aplicação da presente lei e à operacionalização da prestação de informação constante do art.º 10.º são regulados por decreto-lei”, tratando-se por conseguinte de uma lei incompleta, na medida em que a sua aplicação ficou condicionada à aprovação de uma regulamentação futura, a realizar por decreto-lei, e note-se, a incidir sobre aspetos procedimentais.
Essa regulamentação foi posteriormente efetuada através do Decreto-Lei nº 127/2012, de 21 de junho, que estabeleceu os procedimentos necessários à aplicação da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, prevendo um conjunto de obrigações, todas elas instrumentalizadas ao objetivo principal de controlar e reduzir os pagamentos em atraso das entidades públicas.
Do conjunto de obrigações estipuladas nesses diplomas destacam-se, as obrigações de (i) regularizar os pagamentos em atraso pré-existentes à data da sua entrada em vigor, ou seja, anteriores a 22 de fevereiro de 2012 (cfr. art.º 17.º); (ii) de não aumentar os pagamentos em atraso; (iii) de não assumir compromissos que excedam os fundos disponíveis e (iv) de verificar a conformidade legal da despesa e dos pagamentos.
O artigo 3.º, alínea a) da LCPA contém a definição de «Compromissos», entendendo-se como tal «(…) as obrigações de efetuar pagamentos a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições. Os compromissos consideram-se assumidos quando é executada uma ação formal pela entidade, como sejam a emissão de ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente, ou a assinatura de um contrato, acordo ou protocolo, podendo também ter um caráter permanente e estar associados a pagamentos durante um período indeterminado de tempo, nomeadamente salários, rendas, eletricidade ou pagamentos de prestações diversas».
Tendo em vista o objetivo de controlar e reduzir os pagamentos em atraso, o Art.º 7.º da LCPA prescreve que “a execução orçamental não pode conduzir, em qualquer momento, a um aumento dos pagamentos em atraso» entendendo-se como talas contas a pagar que permaneçam nessa situação mais de 90 dias posteriormente à data do vencimento acordada ou especificada na fatura, contrato, ou documentos equivalentes( cfr. art.º 3.º, al. e) da LCPA)
Para assegurar este objetivo, o legislador optou por criar um novo mecanismo de controlo, fazendo incidir esse controlo numa fase anterior à execução da despesa, ou seja, num momento prévio à existência de uma vinculação jurídica a efetuar um determinado pagamento. Este controlo situa-se, por conseguinte, numa fase intermédia do processo de realização da despesa, sendo posterior à cabimentação e à própria autorização de realização de despesa, mas anterior à existência de qualquer vinculação jurídica, ou seja, anterior à realização da despesa.
Por outro lado, importa sublinhar que este novo controlo a realizar na fase do compromisso traduz-se, desde logo, na obrigação de “os dirigentes, gestores e responsáveis pela contabilidade não podem[rem] assumir compromissos que excedam os fundos disponíveis”, conforme decorre do disposto no art.º 5.º, n.º1 da LCPA.
A alínea f) do art.º 3.º da LCPA dispõe que os fundos disponíveis são “ as verbas disponíveis a muito curto prazo, que incluem, quando aplicável e desde que não tenham sido comprometidos ou gastos: a) a dotação corrigida líquida de cativos, relativa aos três meses seguintes; b) as transferências ou subsídios com origem no Orçamento do Estado, relativos aos três meses seguintes; c) a receita efetiva própria que tenha sido cobrada ou recebida como adiantamento; d) a previsão da receita efetiva própria a cobrar nos três meses seguintes; e) o produto de empréstimos contraídos nos termos da lei; f) as transferências ainda não efetuadas decorrentes dos programas e projetos do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) cujas faturas se encontram liquidadas, e devidamente certificadas ou validadas; g) outros montantes autorizados nos termos do art.º 4”.
Note-se que o art.º 5.º do DL127/2012, de 21 de junho, alterou esta definição de fundos disponíveis, ampliando o âmbito desse conceito, mas que aqui nos dispensamos de apreciar por não ter relevância para a economia dos presentes autos.
Decorre do exposto que, em rigor, as entidades públicas só poderão assumir compromissos se tiverem fundos disponíveis para que as despesas que pretendem realizar sejam pagas antes de se converterem num pagamento em atraso.
Os fundos disponíveis constituem assim um limite quantitativo à assunção de compromissos, ou seja, um limite à possibilidade de as entidades públicas realizarem despesa, de tal modo que, nenhuma entidade pública abrangida pela LCPA poderá assumir validamente um compromisso se previamente concluir que não tem fundos disponíveis.
Nesse sentido, dispõe o n.º 2 do art.º 7.º do DL127/2012, de 21 de junho, que «Os compromissos assumidos não podem ultrapassar os fundos disponíveis», e estabelece-se no seu n.º5 que « O cumprimento do previsto no n.º 2 é verificado através das declarações eletrónicas das entidades, nos suportes informáticos relevantes, por parte das seguintes instituições:
a) Direção-Geral do Orçamento (DGO), no subsector da administração central;
b) Direções Regionais de Finanças que reportam à DGO, no subsector da administração regional;
c) Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), no Serviço Nacional de Saúde (SNS);
d) Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL), no subsector da administração local;
e) Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (IGFSS, I. P.), no subsector da segurança social.»

Mas o controlo na fase do compromisso não se restringe ao teste quantitativo dos fundos disponíveis e à obrigação da não assunção de compromissos excedentários, impondo-se ainda um controlo quanto à legalidade da despesa. Nesse sentido dispõe o n.º 5 do art.º 5.º da LCPA que A autorização para a assunção de um compromisso é sempre precedida pela verificação da conformidade legal da despesa, nos presentes termos e nos demais exigidos por lei.»

No mesmo sentido, e com maior exigência, prevê artigo 7.º, n. º3 do DL 127/2012, de 21 de junho, que:
«3 – Sob pena da respetiva nulidade, e sem prejuízo das responsabilidades aplicáveis, bem como do disposto nos artigos 9.º e 10.º do presente diploma, nenhum compromisso pode ser assumido sem que tenham sido cumpridas as seguintes condições:
a) Verificada a conformidade legal e a regularidade financeira da despesa, nos termos da lei;
b) Registado no sistema informático de apoio à execução orçamental;
c) Emitido um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente.»

Ou seja, este preceito faz ainda depender a validade da assunção do compromisso de outras condições, para além da legalidade da despesa, como seja da condição da regularidade financeira da despesa, o mesmo é dizer, da respetiva inscrição orçamental, correspondente cabimento e adequada classificação económica (cfr. art.º 42.º, n.º6, al.b) da LEO e art.º 22.º, n.º2 do RAFE). E bem assim, do registo do compromisso no “sistema informático de apoio à execução orçamental” e de emissão de “um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente”.

Note-se que a não observância das referidas condições determina a nulidade do compromisso, embora neste diploma não se preveja de que forma é que a essa nulidade poderá afetar os contratos celebrados.
Contudo, prevê-se nos n.ºs 2 e 3 do art.º 5.º da LCPA que:
«2 – As entidades têm obrigatoriamente sistemas informáticos que registam os fundos disponíveis, os compromissos, os passivos, as contas a pagar e os pagamentos em atraso, especificados pela respetiva data de vencimento.
3 – Os sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos.»
Decorre do n.º3 do art.º 5.º da LCPA que as entidades públicas têm de dispor de sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento que emitam um número de compromisso válido e sequencial, a ser refletido na ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente, e que, quando assim, não seja, os contratos celebrados ou as obrigações que lhe correspondam serão, para todos os efeitos, nulos .

Trata-se de uma nulidade atípica, que produz efeitos originariamente, dispondo-se todavia no art.º 5.º, n.º4 da LCPA que « A nulidade prevista no número anterior pode ser sanada por decisão judicial quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé. [redação deste número introduzida pela Lei nº 20/2012, de 14 de maio, desde 15 de maio].
No essencial, este norma consagra uma aproximação ao regime previsto no n.º4 do art.º 283.º do Código dos Contratos Públicos, que estabelece uma válvula de escape à aplicação do regime de anulabilidade previsto no n.º2 do mesmo artigo. Cfr. “ A invalidade e a (in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos”, in Estudos da Contratação Pública-I, CEDIPRE, Coimbra Editora, 2008, pág. 650; No caso, porém, estamos perante uma nulidade e não uma anulabilidade, pelo que, atenta a improdução originária de efeitos jurídicos, a sanação a que se alude neste preceito, pressupõe que sejam operados efeitos constitutivos retroativamente.

Incumpridas as obrigações previstas na LCPA, a mesma prevê consequências para os sujeitos que de alguma forma adotem comportamentos desconformes aos prescritos nesse diploma e no DL 127/2012, de 21 de junho, que se podemos reconduzir a consequências subjetivo-institucionais e subjetivo-individuais.

No âmbito das consequências subjetivo-institucionais, incluem-se: (i)a redução de fundos disponíveis, para as entidades que aumentem o montante dos pagamentos em atraso durante a vigência da LCPA ( n.ºs 3 e 4 do art.º 8); (ii)realização de auditorias periódicas: quando sejam violadas as disposições da LCPA as entidades públicas ficam sujeitas à realização de auditorias periódicas ( art.º 12.º ), que constituem uma forma de controlo financeiro, cuja realização é da competência da Inspeção Geral de Finanças e a (iii)aplicação de multas.
Quanto às consequências subjetivo-individuais, importa por ter em consideração as seguintes disposições legais:
-Art.º 5, n.º1 da LCPA: «1 – Os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores e responsáveis pela contabilidade não podem assumir compromissos que excedam os fundos disponíveis, referidos na alínea f) do artigo 3º. [redação deste número introduzida pela Lei nº 64/2012, de 20 de dezembro, desde 21 de dezembro].
- Artigo 9º, sob a epígrafe «Pagamentos» (na redação anterior à Lei 22/2015, de 17 de março):
«1 – Os pagamentos só podem ser realizados quando os compromissos tiverem sido assumidos em conformidade com as regras e procedimentos previstos na presente lei, em cumprimento dos demais requisitos legais de execução de despesas e após o fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições.
2 – Os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma.
3 – Sem prejuízo do disposto no artigo 11.º, os responsáveis pela assunção de compromissos em desconformidade com as regras e procedimentos previstos na presente lei respondem pessoal e solidariamente perante os agentes económicos quanto aos danos por estes incorridos.» (destaques da signatária).»
-Artigo 11º, sob a epígrafe «Violação das regras relativas a assunção de compromissos» que dispõe o seguinte:
«1 – Os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores ou responsáveis pela contabilidade que assumam compromissos em violação do previsto na presente lei incorrem em responsabilidade civil, criminal, disciplinar e financeira, sancionatória e ou reintegratória, nos termos da lei em vigor.
2 – O disposto no número anterior não prejudica a demonstração da exclusão de culpa, nos termos gerais de direito.».
-E o artigo 13º, que sob a epígrafe Prevalência”, dispõe:
«O disposto nos artigos 3.º a 9.º e 11.º da presente lei tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas legais ou convencionais, especiais ou excecionais, que disponham em sentido contrário.».
Decorre destas normas, que o legislador da LCPA não deixou de acautelar o interesse dos agentes económicos que prestaram o serviço ou forneceram o bem e que, na impossibilidade de uma restituição em espécie, e perante, portanto, a necessidade de um pagamento, de serem indemnizados.

A respeito dos termos “pagamento” e “ressarcimento” usados pelo legislador no n.º2 do artigo 9.º da LCPA, entende-se que « sendo nulo o contrato porque desconforme o documento de compromisso, será mais rigoroso considerar ter sido intenção do legislador o afastamento dos efeitos restitutivos da nulidade, evitando que deles resulte um aumento dos pagamentos em atraso. Atento tal objetivo, a inexigibilidade referida deverá limitar-se aos casos em que, impossibilitada a restituição em espécie, a mesma haja de ser feita por via da restituição pelo valor correspondente, porque, sendo possível a restituição em espécie, não parecem subsistir motivos para que ao agente económico seja negado o direito de lhe ver ser restituído o que prestou, por dai não decorrer qualquer obrigação de pagamento por parte da entidade pública e, em consequência, não poderem aumentar os pagamentos em atraso”. Cfr. In Revista de DIREITO REGIONAL E LOCAL, n.º 20, Outubro/Dezembro de 2012, CEJUR, pág.41/42;

Nos termos do artigo 11.º serão responsabilizáveis os titulares de cargos políticos, os dirigentes, os gestores ou os responsáveis pela contabilidade, quando os mesmos assumam compromissos desconformes com as normas de natureza financeira, podendo estar-se perante uma responsabilidade de natureza civil, criminal, disciplinar e/ou financeira, em sentido estrito.

No que concerne à responsabilidade civil a que se refere o art.º 11.º, n.º1 da LCPA, a mesma respeita apenas às obrigações indemnizatórias a que se encontram adstritos os sujeitos aí mencionados, sem prejuízo de, a violação das normas da LCPA poder originar a obrigação de indemnizar, nos termos gerais, por parte das entidades públicas sujeitas àquele diploma.
Os titulares do direito a serem indemnizados em resultado da assunção desconforme de compromissos tanto poderão ser (i) as próprias entidades públicas sujeitas à aplicação da LCPA como, podem ser (ii) os agentes económicos perante os quais os compromissos hajam sido assumidos.
Quanto aos danos, podemos identificar duas categorias: (i)danos mediatamente imputados ao agente responsável pela assunção desconforme do compromisso, quando os agentes económicos procurem ser ressarcidos perante a entidade em nome da qual o compromisso foi assumido, e esta, uma vez satisfeito aquele crédito indemnizatório, exerça o seu direito de regresso perante o agente responsável; (ii) danos imediatamente imputados ao agente que assumiu o compromisso, nos casos em que aquele agente responde diretamente perante o lesado ( casos em que a pretensão ressarcitória emerge originariamente da entidade sujeita À LCPA e que será exercida perante o agente responsável pelo compromisso desconforme) ; (iii) e os casos do n.º3 do art.º 9 da LCPA, em que o agente que assumiu um compromisso desconforme responderá diretamente perante o agente económico lesado. À exceção deste último caso, serão casos de responsabilidade contratual.
A respeito deste n.º 3 do artigo 9.º, refere-se que «à desresponsabilização institucional associada à consequência da não reclamação de pagamentos, prevista no n.º2 do art.º 9.º, corresponde a um movimento de sentido inverso, previsto no seu n.º3, de responsabilização pessoal ou individual dos agentes que assumam compromissos em desconformidade com o preceituado nas normas da LCPA. Nestes casos, a responsabilidade das entidades é substituída pela responsabilidade dos agentes que as integram, ao contrário dos demais casos em que, sem prejuízo do exercício do direito de regresso relativamente aos agentes responsáveis, a responsabilidade civil será operada diretamente entre tais entidades e os agentes económicos lesados. O facto ilícito relevante para o regime de responsabilidade que se analisa será (necessariamente) a ausência de número de compromisso e de identificação do responsável, aquando da assunção do compromisso. (…) O dano a indemnizar é a prestação material realizada pelo lesado, cuja restituição não poderá ser exigida». Cfr. Revista cit., pág.44/45.
Neste último caso, o agente responderá ao abrigo do regime de responsabilidade extracontratual uma vez que responderá por danos produzidos ao abrigo de um comportamento ilícito e culposo, mas que não constitui a violação de nenhuma obrigação assumida perante o agente económico, nem decorre da frustração da confiança depositada na formação de qualquer contrato.
Traçados os elementos mais marcantes do regime legal instituído pela LCPA e DL regulamentador, vejamos se a decisão recorrida padece dos erros de julgamentos que lhe são assacados.

b.1. Da Violação da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro

Sobre as consequências para os agentes económicos resultantes da violação da LCPA, máxime da falta de prévio compromisso das despesas relativas a um determinado contrato administrativo, este TCAN já se pronunciou, ao que logramos apurar, em dois arestos.

Assim, no aresto deste TCAN, de 08-04-2016, proferido no processo n.º 02730/14.0BEPRT, sumariou-se a seguinte jurisprudência:
«1– A nulidade de Contrato de Prestação de Serviços não implica a desresponsabilização da entidade pública.
Os Serviços prestados ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, entretanto declarado nulo, não autoriza a ilação de que o mesmo equivalha a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido, pelo que os serviços originariamente contratualizados, enquanto “Contrato de facto”, terão de ser remunerados.
2-Não se mostra aceitável que uma entidade pública possa beneficiar de uma qualquer prestação serviços, para depois não proceder ao correspondente pagamento, a pretexto da invalidade do contrato, da sua responsabilidade.
3 – Assim, em função do facto do nº 4 do Art.º 5º da Lei nº 8/2012 facultar ao Tribunal a possibilidade de sanar a nulidade contratual verificada, e ter sido prestado o serviço convencionado, é manifesto que ponderados os interesses em presença, sempre se mostraria desproporcionada e contrária ao princípio da boa-fé impedir que a Sociedade prestadora do serviço ficasse impedida de receber o correspondente pagamento, mormente sendo a nulidade contratual verificada imputável à entidade pública.
Com efeito, outra posição conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Freguesia, traduzindo-se ainda numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto», resultante da nulidade verificada, equivalesse a um nada.»

No caso sobre que versou o referenciado Acórdão deste TCAN, estava em causa decidir se a sentença proferida pela 1.ª Instância, que absolveu a entidade pública, no caso, a União de Freguesia de (…) do pedido de pagamento formulado pela empresa J..., Lda, relativo à prestação de serviços respeitantes ao aluguer, montagem de desmontagem de equipamento para as Festas de Grijó de 2013, de que foram emitidas as correspondentes faturas, que não vieram a ser pagas em tempo, tendo a entidade pública posteriormente, em 10 de março de 2014,emitido documento de reconhecimento dessa dívida e de pagamento em prestações mensais e sucessivas de 310,00€ e uma prestação de 326,39€, tendo apenas pago três prestações de 310,00€ cada em 30/04/2014, 26/04/2014 e 23/05/2014.
A 1.ª Instância, com base em fundamentação similar à invocada na sentença ora recorrida, considerou que não tendo sido emitido qualquer número de compromisso válido (procedimento previsto na Lei nº 8/2012), o contrato de prestação de serviços em causa e a correspondente obrigação de pagamento de retribuição seria nulo, bem como o ulterior acordo de reconhecimento da dívida e pagamento e, embora a 1.ª Instância tivesse admitido que a nulidade detetada “pode ser sanada por decisão judicial, quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou das obrigações se revele desproporcionada ou contrária à boa fé”, nos termos do nº 4 do artº 5º da supra referida Lei, considerou que tal teria de ter sido alegado e demonstrado, para que se pudesse aferir da desproporcionalidade e violação do principio da boa-fé de tal procedimento.

O TCAN revogou essa decisão da 1.ª Instância, com base na seguinte linha argumentativa:« (…)Resulta assim do referido normativo (nº4) que a verificada nulidade poderá ser sanada por decisão judicial, quando ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vicio do ato procedimental em causa, se mostre que a mesma se mostra desproporcionada e/ou contrária à boa-fé.
Não resulta dos elementos disponíveis que a originária Junta de Freguesia em momento anterior à celebração do contrato, tenha invocado quaisquer dificuldades em cumprir o convencionado, mormente por razões de ordem legal.
Se mais razões não houvesse e para além do reconhecimento formal da divida, a União das Freguesias ainda chegou a pagar três das prestações a que se havia comprometido a pagar, o que desde logo reforça o reconhecimento da existência de divida.

Em bom rigor, a União das Freguesias, após realizadas as festas de 2013, e depois de ter usufruído dos serviços contratados, veio a invocar uma irregularidade formal da sua inteira responsabilidade, para não pagar as faturas decorrentes do contrato que livremente estabelecera, o que desde logo se consubstancia num manifesto «venire contra factum proprium».
Como resulta, de jurisprudência perfeitamente consolidada haverá «venire contra factum proprium» quando alguém assume uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente. A proibição do «venire contra factum proprium» reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador da confiança.
(…)
Resulta dos elementos disponíveis nos autos que a originária Junta de Freguesia criou legitima expetativa de que assumiria e cumpriria integralmente as suas obrigações.
Decorrente do que supra ficou dito, importa verificar se não se mostrarão preenchidos os requisitos que permitirão sanar a nulidade do contrato, em resultado da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, ou perante a constatação de que a referida nulidade se mostre desproporcionada ou contrária à boa-fé, à luz do transcrito nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012.
O que se decidirá, não afastará, em qualquer caso, o referido imediatamente antes do segmento decisório da Sentença Recorrida, onde se afirma que, o decidido não invalidará a “responsabilidade civil, criminal, disciplinar e financeira dos titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores ou responsáveis pela contabilidade que tiverem assumido o compromisso em causa, nos termos do art.º 11º, n.º 1 da LPCA.”
Em qualquer caso, e como tem vindo a ser reconhecido pela Jurisprudência, designadamente deste TCAN, mal se compreenderia que uma entidade pública pudesse beneficiar de um qualquer serviço, para depois não proceder ao correspondente pagamento, a pretexto da invalidade do contrato, da sua responsabilidade (Cfr. Acórdão nº 636/14BEVIS TCAN de 22-01-2016).
Com efeito, a nulidade do contrato não implica a desresponsabilização da entidade pública, sendo que o Estado e as pessoas coletivas de direito público respondem sempre, quer exclusivamente, no caso de culpa leve (Cfr. n.º 1 do artigo 7.º da Lei nº 67/2007), quer, em caso de dolo ou culpa grave, de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões ilícitas tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício (Cfr. artigo 8.º, n.º 3, da mesma Lei).
Acresce ainda à argumentação aduzida o explicitado no sumário do Acórdão também deste TCAN nº 949/11BEBRG, de 17/04/2015, onde se refere que “(…)
Tal como relativamente aos serviços prestados ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, resultante da sua caducidade, e continuando a ser prestados os serviços anteriormente contratualizados, sem oposição, enquanto “Contrato de facto”, tais serviços terão de ser remunerados.
A inexistência de contrato, por caducidade do mesmo, não autoriza “a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido.”
Tendo a aqui Recorrente prestado o serviço convencionado com a Junta de Freguesia, o que esta reconhece, não poderá esta deixar de lhe pagar o valor convencionado, independentemente da responsabilidade civil, financeira e disciplinar da Junta de Freguesia dos seus órgãos e Presidente, o que aqui não importa apurar.
Com efeito, não obstante a nulidade contratual decorrente do incumprimento do estatuído na Lei nº 8/2012, imputável à Junta de Freguesia, tendo o convencionado sido satisfeito pela aqui Recorrente, não deverá ser facultada à Junta de Freguesia a possibilidade de faltar ao correspondente pagamento, uma vez prestado o serviço.
Se é certo que a nulidade do contrato implica que deva ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art.º 285.º, n.º 1 do C. Civil), em qualquer caso, assim não será linearmente nos contratos nos quais uma das partes beneficie de um serviço, como é o caso dos autos.
(…)
Em qualquer caso, a regra do art. 289º/1 do C. Civil, aplicada no domínio dos contratos de prestação de serviços mostra-se inadequada à sua própria teleologia, carecendo de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é desigual, isto é, deve ser objeto de redução teleológica, (cfr. Karl Larenz, ob. cit., pp. 450/457) de molde a que, nos contratos de prestação de serviços, em que uma das partes beneficie do gozo de serviços cuja restituição em espécie não é possível, a inexistência contratual por caducidade não abranja as prestações já efetuadas.

Tendo os serviços convencionados sido prestados, ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, a relação jurídica deverá ser equiparada a um “Contrato de facto”, cujos serviços terão de ser remunerados.
Em linha com o Acórdão do Colendo STA nº 047638 de 21-09-2004, estando vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste (art. 474° C. Civil), mas tendo sido reconhecida a nulidade do contrato, deverá, no caso, a Junta de Freguesia, ser condenada no pagamento dos serviços prestados, enquanto «relação contratual de facto», à luz do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012.
Como se disse, a nulidade do contrato não autoriza “
a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido”.
Efetivamente, da factualidade provada é possível concluir que as partes estabeleceram relações contratuais, assentes na prestação de um serviço de aluguer, montagem e desmontagem de equipamentos nas Festas de Grijó de 2013, serviço que foi efetivamente prestado.
Acresce que a Freguesia nunca pôs em causa que o serviço faturado tenha efetivamente sido prestado.
Aqui chegados, em função do facto do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012 facultar ao Tribunal a possibilidade de sanar, por assim dizer, a nulidade verificada, e ter sido prestado o serviço convencionado, sem prejuízo de tudo quanto supra ficou dito, é manifesto que ponderados os interesses em presença, sempre se mostraria desproporcionada e contrária ao princípio da boa-fé impedir que a Sociedade prestadora do serviço ficasse impedida de receber o correspondente pagamento.
Face à verificada nulidade contratual, não imputável à Recorrente, outra posição que não aquela para que se propende, conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Freguesia, além de que se traduziria numa desproporcionada violação do principio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto» resultante da nulidade verificada equivalesse a um nada.
Assim, impõe-se revogar a decisão recorrida, e a condenação da União das Freguesias, nos termos do nº 4 do Artº 5º da Lei nº 8/2012, no pagamento do remanescente do valor convencionado, de 10.246,39€, mais juros de mora à taxa legal até ao efetivo pagamento»

A mesma argumentação foi esgrimida por este TCAN em Acórdão de 03/05/2019, proferido no processo n.º 01253/15.5BEPRT, agora confirmando a decisão da 1.ª Instância que em ação movida por uma empresa contra o Município de Vila Nova de Gaia, a reclamar o pagamento de um conjunto de faturas relativas a serviços prestados de vigilância, condenou o réu ao pagamento dos respetivos montantes, não obstante a falta de assunção válida do prévio compromisso nos termos da LCPA, estribando-se na jurisprudência firmada no Acórdão do TCAN que supra citamos. Neste Acórdão, o TCAN para além de subscrever a jurisprudência citada na decisão da 1.ª Instância, acrescentou que no caso, considerando que estava em causa a renovação de um contrato originariamente celebrado no ano de 2002, o compromisso a que reporta o art.º 3.º, al. a) da LCPA sempre haveria que reportar-se ao originário compromisso que teve a sua génese em 2002 aquando da celebração do contrato, frisando que, mesmo que assim não fosse, a invocada nulidade poderia ter as suas consequências sanadas por via do aludido artigo 5.º, n.º4 da LCPA, pelo que, sempre o Município teria de suportar as dívidas que contratualmente assumiu, à luz do referido normativo, como resultou do decidido em 1.ª Instância.
Mas salvo o devido respeito, tendo em conta o objetivo visado pela LCPA e o regime instituído pela mesma, não cremos que a jurisprudência vertida nos identificados acórdãos seja consentânea com a melhor interpretação e aplicação do regime previsto nesse diploma e no respetivo DL regulamentador.
É certo que nos termos do artigo 5.º, n.º4 a nulidade decorrente da desconformidade da realização da despesa com as prescrições impostas pela LCPA que exige a prévia assunção do compromisso, e em termos válidos, pode ser sanada por decisão judicial, conferindo-se ao Tribunal essa possibilidade, quando ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé.
A questão está em saber quando é que a nulidade de um contrato, ponderados os interesses públicos e privados em presença, se revela desproporcionada ou contrária à boa-fé. Mas uma ilação que consideramos ser de extrair do regime instituído pela referida LCPA é que não bastará ao Tribunal, para sanar a referida nulidade, que os serviços ou bens cujo pagamento é reclamado tenham sido prestados pelo agente económico à entidade pública adjudicante para que se esteja perante uma situação em que a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé. É que a LCPA impõe que o pagamento apenas pode ser realizado “após o fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições” ( art.º 9.º, n.º1), donde resulta que constitui condição para que se possa efetuar o pagamento de uma despesa à luz do regime da LCPA que a prestação/fornecimento de serviços ou bens já tenha sido executada, exigência que acresce à necessidade do respetivo compromisso.
Deste modo, ainda que haja compromisso válido da despesa, a entidade pública não poderá efetuar o pagamento de um bem ou serviço enquanto o mesmo não estiver efetuado. As “outras condições” a que se alude no artigo 9.º, n.º1 da LCPA, serão casos excecionais, que remetem para a hipótese das condições postas pelo Código da Contratação Pública para que os adiantamentos de preço possam ser concedidos.
Se o fornecimento do bem ou prestação do serviço constitui requisito prévio à possibilidade de pagamento por parte da entidade pública, ele não pode ser o pressuposto a considerar para que o tribunal, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 5.º, nº4 da LCPA sane a nulidade do contrato. Em todas as situações em que se coloque a questão da nulidade do contrato por falta de assunção prévia e válida do compromisso relativo à despesa em que o mesmo se traduz, tem de verificar-se a prestação efetiva do serviço ou o fornecimento do bem, pelo que, essa circunstância não traduz nenhuma particularidade ou especificidade que estabeleça uma diferenciação no leque de situações abrangidas pela norma, que habilite o Tribunal a considera-la como uma razão forte para obstar à nulidade do contrato determinada pela LCPA, pois então, tal nulidade seria sempre sanada.
Assim, outras razões que não o facto do serviço/ fornecimento ter sido prestado efetivamente e de a entidade pública o ter aceite, condição necessária para que se coloque à entidade pública a obrigação de pagamento, terão de ser alegadas e provadas, para que o Tribunal a quo , após devida e conscienciosa ponderação, à luz dos poderes que lhe são conferidos pelo n.º4 do art.º 5.º da LCPA, possa decidir pela sanação da nulidade do contato, decorrente da violação da obrigação de efetuar o prévio e válido cabimento da respetiva despesa.
Que razões podem ser essas, é caminho que não vimos ainda trilhado pela jurisprudência mas que nos permitimos ilustrar com alguns exemplos que, a verificarem-se em concreto, poderiam, a nosso ver, justificar a sanação da nulidade do contrato por parte do julgador. Tal seria o caso de, por exemplo, se estar perante uma situação em que, cumulativamente, o montante a pagar fosse de pequena monta e a entidade pública não registasse pagamentos em atraso, tendo fundos disponíveis para efetuar o pagamento, caso em que não haveria nenhum risco de a situação irregular decorrente da falta de compromisso prévio contribuir para engrossar a lista de pagamentos em atraso ou fazer surgir um pagamento em atraso, desde que cumpridas as demais exigências, desde logo, as decorrentes da observância do procedimento pré-contratual .
Tal poderia também ser o caso, desde que alegado e provado, duma situação em que o agente económico, em face das obrigações que sobre si impendem nos termos do artigo 9.º, n.º2 da LCPA, perante a falta de indicação do número do compromisso, tivesse previamente ao fornecimento do bem ou à prestação do serviço contratado com a entidade publica, alertado aquela para a falta do compromisso e, nessa sequência, informado por aquela que a falta de envio do número de compromisso se ficou a dever a um lapso, que iria ser regularizado, com a indicação para que executasse o contrato. Numa tal situação, afigura-se-nos ser equacionável que o Tribunal a quo pondere sobre a possibilidade de sanação da nulidade do contrato, quando se apure que não obstante o exposto, o compromisso não chegou a ser validamente efetuado pela entidade pública, sendo que, num tal contexto, a nulidade do contrato poderia configurar uma consequência desproporcionada e violadora da boa-fé.
Outras situações poderiam ainda equacionar-se, como, veja-se, atendendo ao momento presente que vivemos de emergência sanitária, se estivesse perante uma necessidade urgente e inadiável de contratação de serviços ou aquisição de bens para a salvaguarda da saúde pública por parte da Administração, que a tivessem levado a contratar esses bens ou serviços à margem do cumprimento da LCPA, e da legislação da contratação publica, tudo circunstâncias especialíssimas que careciam de ser alegadas e provadas pelo autor, de molde a demonstrar não só a sua boa fé e as razões concretas que o levaram a prestar aquele serviço/fornecimento e que a Administração o tivesse adjudicado à margem da LCPA e das regras da contratação pública.
De contrário, estará o Tribunal a avalizar a ultrapassagem das regras da contratação pública e da LCPA, dando aso a todas as ilegalidades que são suscetíveis de ocorrer quando tais regras sejam postergadas, designadamente, violação da obrigação de não engrossar o leque de pagamentos em atraso, de regras concorrenciais e do princípio da igualdade, que impõe que os procedimentos de contratação pública sigam determinados formalismos, com regras estritas previstas no CCP com vista à salvaguarda do interesse público, nomeadamente, da livre concorrência entre os agentes económicos a quem assiste o direito de concorrerem à prestação de serviço e/ou fornecimento de bens à Administração Pública num clima saudavelmente concorrencial.

No caso, nenhumas razões foram invocadas e provadas pela autora que permitissem ao Tribunal a quo ponderar e decidir-se pela sanação da nulidade do contrato, nos termos do art.º 5.º, n.º4 da LCPA. Ademais, como bem se refere na sentença recorrida «A A. devia ter sido diligente e ter procurado certificar-se do cumprimento da Lei pelo Réu antes de prestar os serviços e fornecer os bens constantes das suas faturas, porque o Réu não criou na sua esfera jurídica nenhuma expectativa ao recebimento do preço, ao não ter assumido nenhum compromisso nos termos legais.»

A este respeito, pode ler-se no parecer emitido pelo Ministério Público, que pugna pela manutenção da decisão recorrida, o seguinte: «(…) no que concerne à invocada violação do princípio da confiança, o artigo 6.º-A do anterior CPA [aqui ainda aplicável, ex vi artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro], veio acolher expressamente o princípio da boa-fé, no domínio do direito administrativo, estabelecendo que «no exercício da atividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé», sendo que o respeito pela boa-fé se realiza através da ponderação dos “valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial: a) da confiança suscitada na contra parte pela atuação em causa; b) do objetivo a alcançar com a atuação empreendida”.
Uma das mais importantes concretizações da boa-fé, constante da al. a) do n.º 2 do citado artigo 6.º-A, é justamente o princípio da proteção da confiança, que se traduz numa regra fático-jurídica fundamental que impõe que sejam asseguradas as legítimas expectativas criadas aos cidadãos, baseadas na conduta de outrem.
Postula-se, assim, a proteção dos particulares em relação à atuação administrativa que objetivamente incuta uma convicção fundada na sua efetivação.
Todavia, tal proteção não é absoluta, já que pressupõe a verificação de determinados requisitos, a saber, a existência de uma situação de confiança, traduzida na boa-fé subjetiva da pessoa lesada; a ocorrência de elementos objetivos capazes de provocarem uma crença plausível; o desenvolvimento efetivo de atividades jurídicas assentes nessa crença e, outrossim, a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado (FREITAS DO AMARAL, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 137.).
Ora, como bem enfatizou a julgadora do TAF de Viseu, inexistem quaisquer expetativas da Recorrente juridicamente tuteláveis, que importe salvaguardar, atendendo a que esta não podia ignorar o regime legal vigente e, ademais, lhe era imposto que pautasse a sua conduta, para com o Recorrido Município, de acordo com as exigências procedimentais decorrentes dos já mencionados diplomas legais.
E, por esta via, é de afastar, também, a invocada desproporcionalidade da nulidade do contrato, face aos relevantes e superiores interesses públicos, ditados por uma conjuntura de grave crise económica e, daí, aos imperativos legais de controlo rigoroso da despesa pública, perante os quais terão de ceder os interesses individuais da Recorrente.»

Recorde-se que nos termos do art.º 9.º, n.º2 « Os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma».

No caso, estando-se perante um contrato do qual nada se sabe em termos de procedimento pré-contratual, quiçá, nulo até por total ausência de respeito pelos trâmites procedimentais impostos pelo Código da Contratação Pública, e em relação ao qual não foi emitido nenhum compromisso válido, quando, sobre o próprio agente económico, a Apelante, nos termos do artigo 9.º, n.º2 da LCPA citado, impendia a obrigação de fiscalizar o cumprimento da existência de compromisso, que não era de difícil execução, tanto mais que a LCPA fora publicada a 21/02/2012, ou seja, muito antes do fornecimento/prestação de serviços ao Apelado, e que não podia ser ignorada pela Apelante, não cremos que se esteja perante uma situação em que o julgador possa sanar a nulidade do contrato.

Salvo melhor entendimento, só perante circunstâncias especificas, que não se bastam com o facto de estar-se perante um fornecimento/serviço efetivamente realizado e de que a entidade pública beneficiou, que tinham obrigatoriamente de ter sido alegadas e provadas pela autora/Apelante- art.º 342.º, nº1 do Cód. Civil, é que poderia o Tribunal decidir pela eventual sanação da nulidade decorrente do incumprimento da LCPA.

Resulta do que se vem dizendo que no caso não ocorre o erro de direito de que se vem a tratar, e que a Apelante imputa à sentença recorrida.

b.2. Da inaplicabilidade ao caso do instituto do enriquecimento sem causa.

No que concerne à inaplicabilidade ao caso do instituto do enriquecimento em causa, pronunciou-se a Senhora Procuradora- Geral Adjunta no parecer que emitiu ao abrigo do art.º 146.º, n.º 1 do CPTA, afirmando carecer « (…) de sentido, a invocação pela Recorrente D., L.da, neste enquadramento fáctico e jurídico do instituto do enriquecimento sem causa.
Com efeito, tal pretensão terá de soçobrar irremediavelmente, face ao teor literal da norma do n.º 2 do artigo 9.º da citada Lei n.º 8/2012 (na redação anterior à Lei 22/2015, de 17 de março), nos termos do qual “Os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma.” (o negrito não consta do original).
Nesta conformidade, afigura-se-nos isenta de qualquer reparo a interpretação que o TAF de Viseu efetuou das normas jurídicas alegadamente violadas, maxime, do artigo 173.º do Código Civil.»

A presente ação vem estruturada com fundamento no instituto da responsabilidade contratual decorrente de a Apelante e o Apelado terem celebrado um determinado contrato nos termos do qual a Apelante se obrigou a prestar/fornecer determinados serviços/bens ao Apelado mediante a obrigação deste de lhe pagar o correspondente valor/preço entre eles convencionado e de ter a Apelante cumprido a sua prestação contratual, ao passo que Apelado não cumpriu a sua, posto que não lhe pagou o preço convencionado como contrapartida, nisto residindo exclusivamente a causa de pedir invocada pela Apelante em que alicerça a sua pretensão de tutela judiciária, isto é, o pedido. Ou seja, a causa de pedir invocada pela Apelante cinge-se exclusivamente ao incumprimento do contrato celebrado com o Apelado e não no instituto do enriquecimento sem causa.

Consequentemente, condenar-se o Apelado, conforme pretende a Apelante, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, configuraria uma alteração da causa de pedir por ela delineada subjetivamente (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) em sede de petição inicial, o que, é processualmente inadmissível. Com efeito, nos termos do disposto no art.º 260.º do CPC, vigora em sede de processo civil nacional o princípio da estabilidade da instância de acordo com o qual a instância deve manter-se a mesma após a citação do réu quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as possibilidades de modificação consignadas na lei, que quanto à causa de pedir, se resumem aos casos taxativamente enunciados nos artigos 264.º e 265.º do CPC. Ou seja, às situações de existência de acordo das partes quanto à alteração ou ampliação da causa de pedir, ou, na ausência desse acordo, o autor apenas poderá alterar ou ampliar a causa e pedir em consequência de confissão feita pelo reu, contanto, que essa alteração ou ampliação seja feita pelo autor no prazo de 10 dias a contar da aceitação ( n.º1 do art.º 265.º do CPC).
Ora, no caso, a pretensa alteração da causa de pedir não só, conforme se colhe do teor da contestação apresentada pelo réu, não resulta de qualquer confissão que este tivesse feito na contestação, como se verifica que na sequência dessa pretensa confissão “inexistente”, a Apelante não veio aos autos declarar expressamente aceitar essa alegada confissão, conforme se impunha que acontecesse ( art.º 265.º, n.º1 do CPC) e, nessa sequência, alterar ou ampliar a causa de pedir no prazo de 10 dias a contar da aceitação dessa pretensa confissão ( art.º 265.º, n.º1 do CPC). Logo, dir-se-á que implicando a condenação do Apelado no pedido deduzido pela Apelante com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa a convolação da causa de pedir inicialmente alegada pela Apelante em sede de p.i- incumprimento contratual- para uma causa de pedir aí não invocada e em relação à qual não se verificam os requisitos do art.º 265.º, n.º1 do CPC- enriquecimento sem causa- a condenação do Apelado com base no instituto do enriquecimento sem causa, determinaria a nulidade da sentença com fundamento no art.º 615.º, n.º1, al. d) do CPC, em virtude de nela o Tribunal conhecer de questão, isto é, de causa de pedir não invocada pelo autor para fundamentar o seu pedido e que não é do conhecimento oficioso do Tribunal.

Acresce que, para além do instituto do enriquecimento sem causa ter pressupostos próprios que se encontram elencados no art.º 473.º do Cód. Civil que nos abstemos, por irrelevante, de aqui concretizar, tal instituto tem natureza subsidiária, nos termos do art.º 474.º do Cód. Civil, o que significa que o pretenso empobrecido só pode recorrer ao mesmo quando a lei não lhe faculte outro meio de ser indemnizado ou restituído.

Conforme se observa no Acórdão do TCAS, de 28/02/2018, proferido no processo n.º 6/14.2BEFUN, «no domínio da nulidade do contrato e do seu regime especial de restituição de tudo o que tiver sido prestado (art. 289.º, n.º 1, do C. Civil), está vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste (cfr. o acórdão do STA de 16.02.2010, proc. nº 379/07). É que a lei exige que o enriquecimento não tenha causa que o justifique, que seja obtido à custa do empobrecimento de outrem e que não haja um acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo deste e a vantagem obtida pelo enriquecimento. E prevendo a lei mecanismo que permite ao empobrecido algum meio específico de desfazer a deslocação patrimonial, será a esse meio que ele deverá recorrer, não se aplicando as normas dos art.s 473.º e s. do C.Civil (no ac. do STJ de 4.10.2007, proc. nº 07B2721, deu-se como exemplo típico o caso em que a deslocação patrimonial assenta sobre um negócio jurídico nulo ou anulável, em que a própria declaração de nulidade ou anulação do acto devolve ao património de uma das partes os bens ou o respetivo valor com que a outra se poderia enriquecer à sua custa).»

Na situação vertente, perante um incumprimento das normas da LCPA a Apelante dispunha, desde logo, do instituto da responsabilidade civil extracontratual que lhe permitia exigir, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º daquela lei indemnização aos próprios agentes responsáveis pela falta de compromisso (cfr. art.º 11.º, n.1) ou de indemnização com fundamento no instituto da responsabilidade contratual, pedindo o ressarcimento dos prejuízos sofridos à própria entidade pública.

No entanto, cumpre realçar que este TCAN nunca podia condenar o Apelado com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa pela questão prosaica de que sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais através dos quais se pretende o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida, com vista a modificar tais decisões com fundamento em invalidade, erro ou injustiça, o conhecimento dessa questão seria apreciar uma questão nova, em sede de recurso, que não foi suscitada por nenhuma das partes junto do Tribunal recorrido. Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 395-396;

Ora, no caso dos autos, a questão do enriquecimento sem causa, que não é do conhecimento oficioso do tribunal não foi eleita pela autora como causa de pedir para fundamentar o seu pedido, sequer foi invocada pelas qualquer das partes junto do Tribunal a quo, pelo que, configura questão nova que este Tribunal ad quem não pode conhecer sob pena incorrer na nulidade na nulidade da al. d) do n.º1 do art.º 615.º do CPC, não sendo pela circunstância de na sentença recorrida, se ter escrito que “ A Autora não pode sequer reclamar o pagamento ao Réu com base no instituto do enriquecimento sem causa” que altera o que sevem dizendo, posto que, nessa parte, essa sentença é nula com fundamento em excesso de pronúncia- art.º 615.º, n.º1, al. d) do CPC- por ter conhecido de questão, isto é, de causa de pedir não invocada.
Resulta do exposto improceder, igualmente, este fundamento de recurso invocado pela Apelante.

Aqui chegados, conforme decorre do que se vem dizendo improcedem todos os fundamentos de recurso, impondo-se julgar improcedente a Apelação e confirmar a sentença recorrida, com a presente fundamentação.
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IV-DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em
negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pela Apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*
Porto, 19 de março de 2021.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Isabel Jovita, em substituição

_____________________________________
i) Cfr. Ac. TCAN, de 05.03.2021, proc. n.º 173/14.0BECBR-B, por nós relatado;

ii) Cfr. “ A invalidade e a (in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos”, in Estudos da Contratação Pública-I, CEDIPRE, Coimbra Editora, 2008, pág. 650;

iii) Cfr. In Revista de DIREITO REGIONAL E LOCAL, n.º 20, Outubro/Dezembro de 2012, CEJUR, pág.41/42;

iv) Cfr. Revista cit., pág.44/45.

v) Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 395-396;