Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00481/20.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2022
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:ARMAS. LICENÇA. RENOVAÇÃO. BOA-FÉ E CONFIANÇA.
Sumário:I) – No acto que decide renovação de licença de uso e porte de arma B1 a Administração tem margem de discricionariedade.

II) – Não é pela simples constatação de diferenciada conduta da adoptada de pretérito que se pode afirmar uma violação da protecção de confiança e boa-fé; a realidade de facto pode ser mutável, bem como o interesse público vir a exigir linha de actuação diferente da do passado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

Ministério da Administração Interna (Largo da Penha de França, n.º 1, 1199-010 Lisboa), interpõe recurso jurisdicional na presente acção administrativa contra si intentada no TAF de Penafiel por AA... (Rua (…)), e em que o tribunal “a quo” condenou o réu “a conceder ao Autor a renovação da licença para uso e porte de arma de defesa classe B1 a que alude o procedimento administrativo NPL: 29295/2017”.

O recorrente conclui:

1- O presente recurso é interposto da sentença que julgou procedente a acção administrativa interposta pelo Recorrido e que considerou «Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa totalmente procedente, por provada, e, em consequência, condeno a Entidade Demandada a conceder ao Autor a renovação da licença para uso e porte de arma de defesa classe B1 a que alude o procedimento administrativo NPL: 29295/2017.»
2- A decisão agora posta em recurso padece de erros de julgamento de facto e de direito e consequentemente, contém uma errónea subsunção jurídica dos factos.
3- O Douto Tribunal A Quo definiu como thema decidendum que «cumpre apreciar e decidir é de saber se o Autor preenche os requisitos previstos no Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de classe B1». (cfr. fls. 5 de 15 da Douta Sentença)
4- Desta mesma sentença do Tribunal A Quo, importam os factos descritos sob as seguintes alíneas: A) - fls. 5 de 15; B) - fls. 5 de 15; C) - fls. 5 e 6 de 15; D) - fls. 6 e 7 de 15; E) - fls. 7 de 15; F) - fls. 7 de 15; G) - fls. 7 de 15; H) - fls. 7 e 8 de 15; I) – fls. 8 de 15; e J) – fls. 8 de 15.
5- Neste recurso, impugna-se a matéria de facto dada como assente na Douta Sentença do Tribunal A Quo, nomeadamente, quanto à matéria dada como NÃO PROVADA e com relevância para boa decisão da causa.
6- Os pontos de facto com relevância para a boa decisão da causa não apreciados e que deviam ter sido julgados como NÃO PROVADOS foram os descritos nos arts.: 24.º (este apenas indicado para compreensão e preenchimento do “local supra citado” no art. 28.º), 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º - Cfr. a fls. 4 e 5 de 9 da Douta P.I. e a fls. 5 e ss dos Autos – SITAF - PE, Doc. n.º 004873105.
7- Os factos articulados e descritos da Douta P.I. na conclusão supra foram impugnados directamente, indirectamente e contraditados na Douta Contestação (DC) pela R. nos arts. 11.º, 12.º, 13.º - Cfr. a fls. 3 de 22 da DC e a fls. 100 e ss dos Autos – SITAF - PE, Doc. n.º 004893253; 17.º- Cfr. a fls. 4 e 5 de 22 da DC; 18.º - 5 e 6 de 22 da DC; 51.º- Cfr. a fls. 12 de 22 da DC; 60.º- Cfr. a fls. 13 de 22 da DC; 82.º, 83.º, 84.º, 85.º, 86.º - Cfr. a fls. 19 de 22 da DC; 93.º - Cfr. a fls. 20 e 21 de 22 da DC; e 96.º- Cfr. a fls. 21 de 22 da DC.
8- Porquanto, cumpre-se o ónus imposto à Recorrente e indica-se os concretos pontos de facto da Douta P.I. incorrectamente julgados – nos termos do art. 640.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil (CPC) – que são os arts.: 24.º (este apenas indicado para compreensão do “local supra citado” no art. 28.º), 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º - Cfr. a fls. 4 e 5 de 9 da Douta P.I. e a fls. 5 e ss dos Autos – SITAF - PE, Doc. n.º 004873105.
9- Posto isto, recordemos que o A. na parte final da Douta P.I. – “Condensação” declara que «que os documentos que probatoriamente suportam tais factos encontram-se já juntos no competente processo administrativo» (Cfr. a fls. 9 de 9 da Douta P.I., a fls..dos autos).
10- Bem como, o Douto Tribunal A Quo na sentença proferida na parte “Dispensa de prova testemunhal e por declarações de parte” considera que «verifica-se que os documentos juntos aos autos são os únicos, e necessários à prolação da decisão» (Cfr. a fls. 1 de 15 da Douta Sentença).
11- Dando-se aqui cumprimento ao exigido no art. 640.º, n.º 1, al. b) do CPC e expressamente se refere os concretos meios probatórios que constam nos autos e que impunham decisão diversa da recorrida, mormente, o Processo Administrativo Instrutor (PA) que é composto por 61 (sessenta e uma) folhas e foi junto em 19.10.2020, a fls. 35 e ss do SITAF – PE, Doc. n.º 004893252 e do mesmo se extrai que inexiste qualquer prova e / ou indício que demonstre os factos articulados pelo A. nos arts. 28.º a 39.º da Douta P.I. (Cfr. a fls. 4 e 5 de 9 da Douta P.I. e a fls. 5 e ss dos Autos – SITAF – PE, Doc. n.º 004873105).
12- Destarte, em consonância com a al. c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, os concretos pontos de factos que devem ser julgados como NÃO PROVADOS e com relevância para a boa decisão da causa são os arts. arts. 28.º a 39.º da Douta P.I. (Cfr. a fls. 4 e 5 de 9 da Douta P.I. e a fls. 5 e ss dos Autos – SITAF – PE, Doc. n.º 004873105).
13- Assim conjugada a posição do A. apresentada nos factos articulados de 28.º a 39.º da Douta P.I. confrontando com a posição assumida pela R. nos arts. 11.º, 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, 51.º, 60.º, 82.º, 93.º, 96.º na DC, bem como pelo PA junto aos autos, nos termos dos arts. 83.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e 571.º, 572.º, 573.º e 574.º do CPC) ex vi art. 1.º do CPTA; o Douto Tribunal “A Quo” deveria ter julgado como “Não Provados” os factos articulados nos arts. 28.º a 39.º da Douta P.I por serem relevantes para a Boa Decisão da Causa e, em consequência, ter absolvido a R. do pedido.
14- Prosseguindo e salvo o devido respeito e que é muito pelo Douto Tribunal A Quo consideramos que este cometeu erros de julgamento na sentença proferida.
15- A PSP, tem como atribuições, entre outras, conforme previsto na sua Lei Orgânica, garantir as condições de segurança, a ordem e a tranquilidade públicas e a segurança e a protecção das pessoas e dos bens; prevenir a criminalidade em geral e prevenir a prática dos demais actos contrários à lei, bem como, licenciar, controlar e fiscalizar o uso e transporte de armas, tudo tal como se encontra previsto, respectivamente, no art. 3.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e n.º 3, al. a) do mesmo preceito da Lei n.º 53/2007 de 31 de Agosto.
16- Destas atribuições à PSP resulta a sua competência exclusiva e poder discricionário quanto ao licenciamento, controle e fiscalização do uso e transporte de armas e designadamente da aplicação do Regime jurídico das Armas e suas Munições (RJAM) publicado através da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro.
17- No RJAM, com relevância para os presentes autos, há que atentar ao disposto nos arts. 2.º, n.º 5, als. p) e s); 3.º, n.ºs 1 e 4; 5.º, n.º 1; 6.º; 12.º, n.º 1; 14.º, n.º 1, al. b); 20.º; 27.º, n.º 2; 28.º e 84.º. 18- Desde logo, porque o A. que tem mais de 73 (setenta e três) anos, é proprietário de 2 armas da classe B1 (Cfr. fls. 1 a 4 do PA) e requereu a renovação da sua licença (Cfr. art. 12.º, n.º 1 e 28.º do RJAM) de uso e porte de arma, para que este traga consigo 1 (uma) ou 2 (duas) armas (Cfr. art. 3.º, n.º 4 do RJAM) municiadas em condições de serem usadas imediatamente e as possa empunhar, apontar ou disparar (Cfr. als. p) e s) do n.º 5 do art. 5.º do RJAM).
19- O A. requereu a renovação da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade (Cfr. al. b) do n.º 1 do art. 14.º do RJAM) e conforme Factos Provados A), B) e C) da Douta Sentença.
20- No seguimento do procedimento administrativo, o A. foi notificado do projecto de indeferimento e foi-lhe concedido o Direito de Audiência Prévia pela R. (Cfr. art. 100.º do Código do Procedimento Administrativo, CPA).
21- Na qual o A. se pronunciou sobre o mesmo e em que a Recorrente, recusou a concessão da renovação da licença do A. porque considerou que não são relevantes os motivos justificativos da pretensão (arts. 14.º, n.º 1, al. b) e 20.º do RJAM), à data do pedido e dos requisitos exigidos para a sua concessão (arts. 14.º, n.º 1, al. b) e 28.º do RJAM), tal como se encontra no Facto Provado D) da Douta Sentença.
22- Contudo, como se viu, assim não entendeu o Douto Tribunal A Quo, emergindo, assim, a necessidade de referir não existe qualquer direito constitucional ao uso e porte de arma, conforme Venerando Acórdão n.º 243/2007 de 30 de Março de 2007 do Tribunal Constitucional, Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
23- Realçando-se que não é pelo facto de o A. ter requerido anteriormente em 2007 (Facto H) - e com o mesmo “fundamento” em 2017 (Facto C) – e tal lhe ter sido indeferido em 2008 (Facto I) e ter visto deferida a sua reclamação em 2009 (Facto J) - que, presentemente, em 2021, que lhe deve ser atribuída a licença de uso e porte de arma conforme Sentença do Douto Tribunal A Quo.
24- Ou seja, entende o Douto Tribunal A Quo que pela mesma licença ser atribuída há mais de 30 anos e o “fundamento” ser o mesmo que esta se deve manter e ser renovada.
25- Pois, cumpre dizer, são proibidas por lei as licenças vitalícias, nos termos do n.º 2 do art. 27.º do RJAM e bem como já assim decidiu o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, Ac. de 05.06.2013, Proc. n.º 267/11.9GAILH.C1, Relator: Olga Maurício, disponível em www.dgsi.pt.
26- Além de que o mundo não é imutável, o A. não é imutável e a PSP não cristalizou no tempo.
27- Pelo que quanto à concessão de licença do uso e porte de arma de fogo para a afectação de defesa pessoal, acresce a condição de que o seu uso apenas pode ocorrer em casos de absoluta necessidade e desde que proporcionado às circunstâncias.
28- Conforme assim já decidiram os nossos Venerandos Tribunais Superiores, desde logo, no Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 26.04.2005, Processo n.º 01198/04, Relator: São Pedro e Ac. do Tribunal Central Administrativo Norte de 23.04.2021, Processo n.º 00098/14.4BEPRT, Relatora: Helena Canelas, disponíveis em www.dgsi.pt.
29- Assim, reductio ad absurdum da Douta Sentença do Douto Tribunal A Quo, qualquer titular de uma licença de uso e porte de arma ao fim de alguns anos, tem e terá – sempre (!) – direito à sua renovação.
30- Estabelecendo-se um precedente decisório (vide ANDRADE, José Carlos Vieira de - Lições de Direito Administrativo, 5ª edição. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017) que conjugadamente aplicado com o princípio da igualdade aos cidadãos obrigará a Administração a decidir em igual sentido em idênticas e / ou iguais situações.
31- Além de que o A. não conseguiu provar, quer no procedimento administrativo (Cfr. arts. 116.º do CPA).
32- Quer nos presentes autos, nomeadamente, quanto aos factos articulados nos arts. 28.º a 39.º da Douta P.I.
33- Pois, o A. não deu cumprimento ao disposto nos arts. 341.º, 342.º do Código Civil; 8.º, 30.º e 84.º do CPTA e 410.º a 414.º do CPC ex vi art. 1.º do CPTA e através da adequada prova documental - Cfr. arts. 376.º, 377.º, 383.º, 386.º e 387.º do CC, 423.º a 425.º do CPC ex vi art. 1.º do CPTA - que preenchia os pressupostos para que lhe fosse concedida a renovação da licença de uso e porte de arma.
34- Mantendo-se o decidido pelo Douto Tribunal A Quo, a Administração terá que renovar as licenças dos particulares que já detenham a mesma licença há alguns anos - mesmo que considere que já não se verificam os pressupostos para que aquela seja renovada face às circunstâncias hodiernas - quando o pedido é apresentado.
35- Bem como, ao manter-se o decidido é violado o princípio de separação e interdependência de poderes consagrado nos arts. 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 3.º, n.º 1 do CPTA.
36- Entre a decisão de 2009 (Facto J) e a presente sentença distam mais de 12 anos, por conseguinte, só à PSP é que caberá saber – de acordo com a sua intervenção diária e reiterada junto da sociedade e dos cidadãos - o que é mais adequado, proporcional e garante para a manutenção da segurança e paz pública.
37- Pelo que se a exigência e o rigor para a verificação dos fundamentos de forma individualizada por parte da Administração na atribuição da licença de uso e porte de arma, quer seja a concessão primitiva, quer seja a sua renovação, ao longo do tempo, foram elevados a verdadeiras situações de excepção do uso e porte de arma, tal avaliação cabe apenas à PSP.
38- Em consequência, tal não pode significar que a PSP, por um lado, seja “punida” porque decidiu adoptar uma postura institucional de maior rigor, cautela e salvaguarda do interesse público e de prevenção geral nas atribuições a que se encontra vinculada.
39- Por outro lado, que os Venerandos Tribunais venham “coarctar e limitar” a conduta e intervenção diária da Administração que tem que se adaptar às céleres transformações sociais.
40- Sem esquecer que foi essa a intenção do legislador ao conceder um poder discricionário e uma competência exclusiva à PSP, dado que é esta que se encontra verdadeiramente qualificada para avaliar os pedidos que recebe para as licenças de uso e porte de arma.
41- Além de que inexiste qualquer arbitrariedade na decisão tomada pela Recorrente que procurou dentro do quadro legal – Audiência Prévia (Facto D) - obter todas as informações necessárias à verificação dos pressupostos exigidos para a renovação da licença de uso e porte de arma do A., ora Recorrido.
42- Tanto é assim que o A. alcançou perfeitamente (Cfr. art. 236.º do CC) os fundamentos pelos quais lhe ia ser e foi indeferida a sua pretensão, caso contrário, não teria articulado os factos descritos arts. 28.º a 39.º da Douta P.I.
43- Pelo que os princípios da boa-fé e da protecção da confiança nas relações entre os cidadãos e a Administração são de aplicação bilateral e não unilateral.
44- Nesta senda, não é apenas à Administração que cabe agir de boa-fé para com os particulares, mas também cabe aos cidadãos agirem de boa-fé para com a Administração (Art. 10.º, n.º 1, 2.ª parte do CPA).
45- Além de que, salvo o devido respeito e que é muito pelo Douto Tribunal A Quo, o Ac. do Venerando STA de 02.05.95, recurso n.º 22871 não encontra aqui aplicação, desde logo, porque cada pedido de concessão ou renovação consubstanciam procedimentos administrativos autónomos e independentes.
46- Bem como, a entender-se nestes precisos termos, como o fez o Douto Tribunal A Quo, encontrar-nos-íamos na figura do precedente decisório tal como supra-referimos.
47- Assim, sopesados os elementos constantes no PA, a decisão de indeferimento da renovação de licença de uso e porte de arma de defesa classe B1 no procedimento administrativo NPL: 29595/2017 verificar-se-á que a mesma não padece de qualquer arbitrariedade.
48- Pelo que a Douta Decisão do Tribunal A Quo conduz a uma «dupla administração» e sendo certo que o controlo jurisdicional «deve incidir unicamente sobre os erros manifestos, os critérios ou juízos ostensivamente erróneos ou inconsistentes, os atropelos visíveis à lógica e ao bom senso ou ainda as manifestações de pura arbitrariedade», (Ac. do Venerando Supremo Tribunal Administrativo de 24.09.2003, Processo n.º 0590/03, Relator: Abel Anastásio, disponível em www.dgsi.pt), o que inexiste nos presentes autos.
49- A Recorrente, no uso do seu poder discricionário e conhecimento adequado para a prevenção da criminalidade, prossecução do interesse público e no estrito cumprimento pelo devido e legal processo administrativo (cfr. Arts. 3.º, 266.º da CRP, 100.º, 116.º, 152.º e 153.º do CPA, arts. 14.º, n.º 1, al. b), 20.º e 28.º do RJAM) ao proferir o acto de indeferimento do pedido de renovação da licença de uso e porte de arma B1, fê-lo legal e legitimamente e este não padece de qualquer vício e / ou ilegalidade.
50- Pelo Exposto, a Sentença do Douto Tribunal A Quo violou as normas inscritas nos arts. 2.º, 3.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa; 236.º, 341.º, 342.º, 376.º, 377.º, 383.º, 386.º e 387.º do Código Civil; 3.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e n.º 3, al. a) da Lei Orgânica da Polícia da Segurança Pública (Lei n.º 53/2007 de 31 de Agosto); 2.º, n.º 5, als. p) e s), 3.º, n.ºs 1 e 4, 5.º, n.º 1, 6.º, 12.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, al. b), 20.º, 27.º, n.º 2, 28.º e 84.º do Regime jurídico das Armas e suas Munições (Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro); 10.º, 100.º, 116.º, 152.º e 153.º do Código do Procedimento Administrativo; 1.º, 3.º, n.º 1, 8.º, 30.º, 83.º, 84.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos; 410.º a 414.º, 423.º a 425.º, 571.º, 572.º, 573.º e 574.º do Código de Processo Civil; em consequência, deve a Sentença do Tribunal A Quo ser REVOGADA pelo Venerando Tribunal Ad Quem e ser Julgada a Acção totalmente Improcedente por Não Provada e ser absolvida a R. do pedido, assim se fazendo inteira Justiça!

Contra-alegou o Autor, concluindo.

1- A Lei n° 5/2006, de 23/02 (RJAM) aprovou o regime jurídico das armas e munições, sendo que um dos objetivos pretendidos pelo legislador com a aprovação deste diploma legal foi regular toda a atividade relacionada com armas, com especial ênfase para as armas de fogo, dado a sua potencial perigosidade.
2- Atendendo ao contexto temporal em que foi formulado o pedido do Autor e proferida a decisão administrativa que o indeferiu, o quadro normativo aplicável é que resulta do RJAM na redação dada pela Lei n.° 12/2011, de 27/04, pelo que as referências feitas a este diploma legal devem ter-se por efetuadas para o regime constante da alteração dada pela Lei n.° 12/2011, de 27/04.
3- Assim. nos termos deste diploma legal deve entender-se por «porte de arma» "o ato de trazer consigo uma arma branca ou uma arma municiada ou carregada ou em condições de o ser para uso imediato" e «uso de arma» "o ato de empunhar, apontar ou disparar uma arma" (cfr. artigo 2° n° 5) alíneas p) e s), respetivamente). As armas, assim corno as munições e outros acessórios, são classificadas em várias classes, a saber, nas classes A, B, B 1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização (cfr. artigo 3° n° 1),
4- No que diz respeito às armas da classe B 1, a sua aquisição, a detenção, o uso e o porte de arma " ... podem ser autorizados:
a) aos titulares de licença de uso e porte de arma da classe B 1;
h) aos titulares de licença especial atribuída ao abrigo do n.° 1 do artigo 19.° e
c) a quem, nos termos da respetiva lei orgânica ou estatuto profissional, possa ser atribuída ou dispensada a licença de uso e porte de arma de classe B 1, após verificação da situação individual" - cfr. artigo 5° n° 3.
5- Sendo que, é de acordo "… com a classificação das armas constante do artigo 3.°, os fins a que as mesmas se destinam, bem como a justificação da sua necessidade" que podem ser concedidas pelo diretor nacional da PSP as respetivas licenças de uso e porte ou detenção (cfr, artigo 12° n°1). E no que diz respeito à atribuição da licença B1, o artigo 14° do RJAM estipula que pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
"a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.°;
c) Obtenham aprovação em curso deformação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo,"
6- Centrando-se na interpretação e preenchimento do requisito previsto na alínea b), do n. ° 1, do artigo 14.° do RJAM, como resulta dos factos provados, o Autor, detendo licença de uso e corte de arma de classe B 1 válida até 13/03/2017, apresentou em, 26/01/2017, requerimento de renovação da referida licença, justificado com a seguinte factualidade:
"é aposentado da função pública; é portador há mais de 26 anos da licença de uso e porte de arma de defesa B 1 e sempre, até hoje, lhe tem sido, ininterruptamente, renovada; frequentou com êxito o curso de "Atualização Técnica e Cívica para portadores de armas de fogo classe B1, realizada em Maio de 2011 e fevereiro de 2012; reside só numa moradia isolada, rodeado de bouças e as moradias habitadas em regime de permanência situam-se a mais de 1000 metros de distância, receando assim pela sua integridade física e pelos seus bens como prova o mapa Google; acresce que as forças de segurança (GNR) têm o seu quartel a cerca de 8,0 km da sua moradia. "
7- Todavia, a sua pretensão foi indeferida pois segundo o entendimento da Entidade Demandada, o Autor não apresentou "meio de prova condigno que asseverasse essa necessidade, e correlativamente aos fundamentos invocados, alegando apenas, que pelo facto de viver em residência isolada, em lugar ermo, situado em zona florestal, no meio de bouças, sem vizinhança por perto e longe das forças de segurança, levando-o temer pela sua segurança,
8- A administração incorreu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito na apreciação que fez sobre a verificação deste requisito e que tal decisão violou, ainda, os princípios da colaboração com os particulares, da boa-fé, da confiança e da proporcionalidade.
9- A atividade administrativa encontra-se subordinada ao principio do Estado de Direito, condição que envolve a vinculação da Administração à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins ,- cfr. artigo 266,°, n.° 2 da CRP e artigo 3.°, 11. ,° 1 do CPA.
10- No que diz respeito ao preenchimento do requisito previsto na alínea b), do n. ° 1, do artigo 14° do RJAM [e também da alínea c)], o legislador conferiu alguma margem de discricionariedade à Administração. pois não fixou, nem enunciou, os factos que preenchem esse requisito, sendo que a discricionariedade consiste numa liberdade de escolha entre várias soluções tidas como igualmente possíveis.
11- "No entanto, discricionariedade não é sinónimo de arbítrio, pois, constituindo uma peculiar maneira de aplicação de normas jurídicas, encontra-se vinculada a regras de competência, ao fim do poder concedido, a variados princípios jurídicos como a igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade, boa-fé, a regras processuais e ao dever de fundamentação, sem exceção, ao principio da legalidade, mesmo na vertente de reserva de lei "
12- De igual forma, o erro sobre os pressupostos de facto subjacentes à decisão é relevante no exercício de poderes discricionários, pois que a livre apreciação pretendida pelo Legislador ao conceder aqueles poderes pressupõe a veracidade dos factos em que a decisão se baseia. É o que se entende por momento vinculado do ato discricionário – a constatação dos factos realmente ocorridos e/ou relevantes. Ora, a decisão impugnada não atendeu a factos relevantes para a decisão a proferir e violou o princípio da boa-fé, na vertente da confiança e da segurança jurídica, previsto no artigo 10.° do CPA,
13- Nos termos do artigo 266.°. n. ° 2 da CRP, "os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade ( ...) e da boa-fé. "
14- No plano legislativo, o princípio da boa-fé está concretizado no artigo 10.° do CPA que dispõe o seguinte:
"1 -No exercício da atividade administrativa e em todas os suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé.
2 - No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do Direito relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida. "
15- Este princípio significa que os particulares e a Administração devem cooperar e atuar de forma leal e correra entre si, o que é prosseguido através das dimensões da tuteia da confiança legítima e da materialidade subjacente.
16- Deste princípio decorre para a Administração o dever de, no relacionamento com os particulares, atuar num ambiente recíproco de confiança e de previsibilidade, evitando adoção de comportamentos contraditórios, sendo que, para que se possa concluir pela violação dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança será necessário que se verifique a criação de uma expetativa legítima, fundada numa atuacão administrativa lícita, um investimento de confiança baseado nessa atuação e ainda a frustração dessa confiança depositada na Administração, revelada por um comportamento de rotura com a posição institucional anteriormente assumida.
17- Isto posto, resultou provado que no pedido efetuado pelo Autor, em 22/11/2007, de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, e imediatamente antecedente ao pedido objeto dos autos, aquele havia fundamentado o seu pedido com os mesmos factos que fundamentaram o pedido formulado em janeiro de 2017 e objeto dos autos (até de forma menos densificada), ou seja, o Autor referiu que "é aposentado da Função Pública, reside numa casa isolada, rodeado por bouças e as habitações mais próximas situam-se a uma distância de mais de 1000 metros. "
18- E, não obstante, numa primeira fase esta pretensão ter sido indeferida por despacho do Comandante do Comando Metropolitano do Porto da PSP, o certo é que, após reclamação do Autor, este despacho acabou por ser revogado por despacho do Diretor Nacional da PSP, que renovou a licença de uso e porte de arma da classe B1 , referindo no aludido despacho que as razões invocadas pelo Autor se afiguravam justificativas, designadamente, "o facto de o requerente residir numa habitação isolada, rodeada por bouças, e as habitações mais proximas se situarem a uma distância de mais de 1000 metros ". E ainda "os anos em que se encontrou licenciado, sem que tenha havido qualquer incidente relativo ao uso da arma ou outro de natureza criminal. Demonstram zelo e prudência no seu uso e caução significativa da idoneidade do seu portador. "
19- Comparando os fundamentos do pedido de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B 1, efetuado pelo Autor em 22/11/2007, e o pedido de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B 1, efetuado pelo Autor em 26/10/2017, constata-se que são exatamente os mesmos, sendo também os mesmos os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n. 1 do artigo 14. ° do RJAM (a redação destas alíneas manteve-se inalterada desde a versão original do RJAM), pelo que, a atuação da Ré aquando da prolação do ato impugnado é contraditória com a decisão que incidiu sobre o pedido de renovação efetuado em 22/11/2007, sem que se encontrem razões justificativas para tal (nomeadamente a alegação e prova pela Entidade Demandada que os factos que fundamentaram o pedido do Autor sofreram alterações e/ou já não se verificavam).
20- Ora, como se expendeu no Acórdão do Pleno do STA de 02/05/95, recurso n. °22871, "violam o principio da confiança comportamentos intrinsecamente contraditórios e inconsequentes, quer quando comparadas com outros anteriormente praticados quer quando se tenha em conta o contexto global dos pressupostos de facto e de direito vinculativos da prática de um acto. "
21- Não nos podemos deixar levar, pelo falso Argumento da Ré, empurrando desesperadamente para o Autor o ónus da prova, abusando, do poder de discricionariedade, indeferindo o pedido de renovação, quando os fundamentos são os mesmos.
22- Ora vejamos, a habitação do Autor não mudou de local, não foram construídas moradias num raio inferior a 1000 metros, a lei mantêm-se com os mesmos pressupostos no qual o Autor cumpre na íntegra todos os trâmites que o procedimento obriga, por estes motivos sempre lhe foi concedida a licença de uso e porte de arma classe B 1, contudo, a Ré, sem qualquer razão justificativa para tal e usufruindo do poder de discricionariedade, indefere o pedido, quando anteriormente o Exmo. Sr. Diretor Nacional da PSP emite o seguinte despacho:
"4· Ora, acontece que o requerente fundamenta o seu pedido no facto de ser portador de licença e uso de porte de arma de defesa há cerca de 20 anos e sempre a mesma ler lhe sido revalidada. Primeiro, pela profissão que exercia e pelo local onde tem a sua residência. Agora, pelo perigo que constitui o local onde reside, casa isolada, rodeada por bouças, e as habitações, mais proximas situarem a uma distância de mais de 1000 metros.
5. Das razões invocados para justificarem a necessidade de andar armado, que não forma postas em causa pela PSP, afiguram-se nos muito justificativas, designadamente o facto de o requerente residir numa morada isolada, rodeado por bouças, e as habitações mais proximas se situarem a uma distância de mais de 1000 metros.
Igualmente, os anos que se encontrou licenciado, sem que tenha havito qualquer incidente relativo ao uso da arma ou de outro de natureza criminal. demonstram zelo e prudência no seu uso e caução significativa da idoneidade do seu portador.
Assim, considero que a atribuição de uma licença de arma de fogo é um acto que deve ser ponderado e analisado em concreto, sou do entendimento, que neste caso estão reunidas as condições para a renovação da licença pretendida
23- Se fossem cumpridos os prazos para uma decisão nos termos nas leis aplicáveis, o Autor não teria 73 anos, mas apenas uns 69 anos de idade.
24- Acresce que, a Lei também não estipula limites de idade para os requerentes dos pedidos de licença ou renovação da licença para o uso e porte de arma de fogo e, consequentemente, também não condiciona, qualquer limite de idade, exceptuando a obrigatoriedade de possuir a idade mínima de 18 anos.
25- Posteriormente, à entrada do pedido de renovação, surgiu uma nova alteração ao Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM), Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação dada pela Lei n.° 50/2019, de 24 de Julho, a vigorar a partir de 23 de Setembro de 2019, a qual condiciona o seu n.° 4 do artigo 23.° (Exame Médico) o seguinte" A partir dos 70 anos de idade, o certificado médico dos titulares de licença B, B 1, C, D, E, F deve ser apresentado bianualmente."
26- As exigências à data do referido pedido de renovação, dependia, exclusivamente, do cumprimento das imposições da Lei n. ° 5/2006, de 23 de Fevereiro, à data de entrada do citado pedido de renovação. Ou seja, até 26/01/2017.
27- Esclarecemos desde já, que a freguesia de Monte Córdova é área de atuação da GNR - Guarda Nacional Republicana, tendo como missão a Segurança Pública, Regulação do Tráfego Rodoviário, etc ...
28- Assim convém reforçar, que não cabe á PSP, mas sim à GNR a segurança da moradia do Autor, cujo quartel dista do local da residência a cerca de 8,0 Kms.
29- Os cidadãos do concelho de Santo Tirso, nos quais o Autor se inclui, não vêem policiamento apeado na cidade, muito menos são vistos nas freguesias para mais sendo Monte Córdova uma freguesia com características rurais e com áreas, predominantemente, florestais.
30- Se a moradia do Autor estivesse localizada na área da PSP era sinal que se encontrava numa área urbana, A PSP tem como sua área de atuação: Centro Urbano de Santo Tirso, parte nas freguesias de Santa Cristina do Couto, Lama e Areias.
31- Toda a restante área do concelho é de responsabilidade da GNR, através dos quarteis que se localizam na freguesia de Vila das Aves e de Santo Tirso.
32- Com efeito, por um lado, nada obstava a que a Ré tivesse procedido à junção de tais factos anteriormente à apresentação das alegações de recurso, e, por outro, na sentença não foi introduzida qualquer nova questão que implicasse a junção de prova adicional, pois que, na verdade, a matéria que foi julgada como não provada e que a Ré pretende impugnar, já havia, por este, sido alegada em sede de contestação.
33- Não tendo, porém, a Ré procedido, nem em sede de contestação, nem posteriormente, qualquer elemento probatório relativo a essa matéria .
34- Pretendendo fazê-lo agora, em sede de recurso, o que manifestamente lhe é vedado.

A Exmº Procuradora-Geral Adjunta, notificada nos termos do art.º 146º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de provimento do recurso.
*
Os factos, que o tribunal “a quo” enunciou como provados:
A) Desde 23 de junho de 1989 que o Autor é, ininterruptamente, portador de licença de uso e porte de arma da classe B1 – facto admitido por acordo;
B) A licença para uso e porte de arma de defesa da classe B1, com o NPL: 12365/2012-01, emitida em 14/03/2012 e averbada em nome do Autor, expirou em 13/03/2017 – facto admitido por acordo;
C) Em 26/01/2017, o Autor requereu a renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, com o fundamento seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

D) Após pronúncia do Autor em sede de audiência prévia, o Diretor Nacional Adjunto da PSP, por delegação de competências, indeferiu a pretensão do Autor por despacho datado de 03/04/2020, do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
“Na sua pronúncia, em sede de audiência de interessados, com o propósito de mostrar preenchido o requisito da alínea b) do n.° 1 do artigo 14.° do RJAM, reitera carecer de andar armado por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal , ou de propriedade, sem ter, no entanto, apresentado meio de prova condigno que asseverasse essa necessidade, e correlativamente aos fundamentos invocados, alegando apenas, que pelo facto de viver em residência isolada, em lugar ermo, situado em zona florestal, no meio de bouças, sem vizinhança por perto e longe das forças de segurança, levando-o temer pela sua segurança.
Ora, com a recente tentativa, continua a não atestar com a mínima segurança razões que justifiquem o facto de andar armado, entendendo-se que os argumentos apresentados convergem apenas a um mero receio e/ou medos de poder vir a sofrer eventual ato ofensivo contra a sua pessoa ou propriedade desperdiçando o momento processual próprio para que pudesse comprovar e justificar a sua pretensão com novos elementos.
Mantém-se, assim, inalterada a posição inicial tomada por este Departamento acerca da pretensão formulada, porquanto da análise da audiência prévia exercida, por escrito, constatou-se que também aqui não conseguiu ultrapassar os obstáculos necessários à satisfação da sua pretensão, não tendo conseguido confirmar o preenchimento do requisito previsto na alínea b) do n.° 1, do artigo 14.° da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações entretanto ocorridas.
Importa salientar que, a licença de uso e porte de arma é o ato pelo qual a Administração confere a alguém o exercício de uma atividade privada proibida por lei e, por isso, deverá ser apenas concedido a quem acumule todos os requisitos nela previstos.
A decisão em causa ponderou e teve em consideração, por um lado, a vantagem ou interesse do requerente e, por outro, os interesses públicos que à Administração compete salvaguardar, designadamente a defesa do cidadão e a proteção pública dos direitos fundamentais.”
cfr. fls. 22 e 32 a 33 do P.A.;
E) O despacho de indeferimento foi exarado sob a informação/proposta n.º 1454/SL/2020, de 02/03/2020, que consta a fls. 22 a 29 do P.A. e cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido;
F) O Autor apresentou reclamação da decisão referida na alínea D) – cfr. fls. 34 a 45 do P.A.;
G) Por decisão proferida em 21/08/2020, foi negado provimento à reclamação referida na alínea antecedente – cfr. fls. 51 a 59 do P.A.
H) Em 22/11/2007, o Autor já havia requerido a renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, com o fundamento seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento a fls. 147 a 163 dos autos;
I) Após pronúncia do Autor em sede de audiência prévia dos interessados, o Comandante do Comando Metropolitano do Porto da PSP, por delegação de competências, indeferiu a pretensão do Autor por despacho datado de 20/10/2008 – cfr. documento a fls. 176 a 178 dos autos;
J) Após reclamação apresentada pelo Autor, o Diretor Nacional da PSP, por despacho de 13/04/2009, revogou o despacho referido na alínea antecedente e renovou a licença de uso e porte de arma a que se alude na alínea H), com a seguinte fundamentação:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. documento a fls. 193 a 195 dos autos.
*
A apelação.
O tribunal “a quo” julgou «a presente ação administrativa totalmente procedente, por provada, e, em consequência, condeno a Entidade Demandada a conceder ao Autor a renovação da licença para uso e porte de arma de defesa classe B1 a que alude o procedimento administrativo NPL: 29295/2017.».
Os factos.
O recorrente situa que o seu recurso atinge “a matéria de facto dada como assente na Douta Sentença do Tribunal A Quo, nomeadamente, quanto à matéria dada como NÃO PROVADA e com relevância para boa decisão da causa.”.
Indicando que “Os pontos de facto com relevância para a boa decisão da causa não apreciados e que deviam ter sido julgados como NÃO PROVADOS foram os descritos nos arts.: 24.º (este apenas indicado para compreensão e preenchimento do “local supra citado” no art. 28.º), 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º”.
Mas esses naturalmente que não estão provados!
Tanto que depois de enunciar o que “Com importância para a decisão da causa julgo provados os seguintes factos:” (que desfilou no bloco de narrativa que supra também se elencou), subsequentemente o tribunal “a quo” referiu que “Inexiste qualquer outra factualidade que, relevando para o exame e decisão da causa, tenha sido julgada como provada ou não provada.”.
O que foi levado à p. i.:
24.º A residência do autor situa-se em local ermo em zona florestal, rodeado de bouças, numa moradia isolada em sua propriedade.
(…)
28.º Acresce que neste local supra citado, por vezes tem acontecido homicídios, suicídios, furtos, roubos, agressões físicas e assédios.
29.º O consumo de estupefacientes é prática habitual neste mesmo local, na qual as forças policiais limitam-se apenas e só a tomar conta das ocorrências.
30.º O aqui Autor já em ocasião oportuna, ou seja, numa situação de perigo iminente, na qual diversos indivíduos em período nocturno, rodearam a sua propriedade com vista a provocar a colocar em perigo quer a propriedade quer o Autor.
31.º Situação esta, na qual o Autor teve de puxar a sua arma de fogo e disparar para o ar com vista a dissuadir os indivíduos a não praticarem qualquer tipo de crime.
32.º A gravidade da situação em apreço, assim o exigiu uma vez que estava em perigo quer a sua propriedade quer a sua integridade física.
33.º Para mais, o Autor tem uma vida social muito activa o que leva a que este diariamente se desloque para fora da área de residência e só regresse à mesma sozinho e já em período nocturno.
34.º Motivos supra expostos sempre julgados suficientes, por quem de direito, e, por via disso valorizados e, levados em linha de conta em renovações anteriores.
35.º Ao contrário do que a Ré alega no seu despacho de indeferimento, aqui existe com toda a convicção um perigo iminente e não apenas um mero receio.
36.º Estamos perante situações em que o Autor encontra-se na iminência de sofrer um ato ofensivo contra a sua pessoa ou propriedade.
37.º Este histórico narrado é relevante uma vez que constitui condição para a renovação da licença B1.
38.º Com isto, faz com que o Autor, reúna os pressupostos da alínea b) do n.º 1 do art. 14º do RJAM ao contrário do que a Ré afirma.
39.º Conclui-se que o Autor reúne cumulativamente, todas os pressupostos para atribuição da licença B1 do n.º 1 do art. 14º do RJAM.
Se na mente do recorrente está a sua “relevância para boa decisão da causa”, a modos de apontar uma insuficiência de julgamento, que requereria essa específica consideração e ponderação como alegação constitutiva do direito do autor a ser julgada como matéria de facto (donde, a excluir, claro está, parte de alegação de direito) não provada, o certo é que nem daí/por aí se retira(ria) prova de facto oposto, como igualmente desemboca(ria) num juízo que, no propugnado resultado de não provado, não deixa(ria) de ser coincidente ao que quanto ao julgamento de facto se nos depara vertido na decisão recorrida, e sem retirar, na perspectiva do interesse processual do recorrente, igual liberdade de apreciação da mesma constelação de facto na solução de direito.
Pelo que o ponto é destituído de interesse e utilidade para si.
Nada se impõe modificar.
Posto isto.
O direito.
A decisão recorrida tem o seguinte teor [extracto]:
«(…)
Na presente ação administrativa, o Autor impugna o ato administrativo proferido pela Entidade Demandada que indeferiu o seu requerimento para a renovação de licença de uso e porte de arma de classe B1 e peticiona a condenação da Entidade Demandada a atribuir-lhe a referida licença.
O artigo 67.º, n.º 1 do CPTA indica as situações em que a ação de condenação à prática de ato devido deve ser utilizada, integrando as pretensões dos particulares relacionadas com atos administrativos de conteúdo negativo (de indeferimento), cuja tutela apenas é prosseguida através da condenação da Administração à prática do ato (pretendido) e não na impugnação do ato de conteúdo negativo.
Mais resulta do disposto no artigo 66.º, n.º 2 do CPTA que o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento (ou de deferimento parcial), cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória.
Isto posto, e sem prejuízo da possibilidade de cumulação prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º do CPTA, o que importa é averiguar do mérito ou do bem fundado da pretensão do Autor e não propriamente das ilegalidades imputadas ao ato impugnado em juízo, pelo que, mais do que apreciar se o ato impugnado padece dos vícios que lhe são assacados, importa decidir sobre o pedido condenatório formulado, pois apenas se este for julgado procedente, o ora Autor verá a sua pretensão satisfeita.
Assim, a questão de mérito que ao Tribunal cumpre apreciar e decidir é de saber se o Autor preenche os requisitos previstos no Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de classe B1.
(…)
O Autor instaurou a presente ação administrativa pretendendo que lhe seja atribuída a renovação da licença de uso e porte de arma de defesa da classe B1, em substituição do ato proferido pela Entidade Demandada que indeferiu o pedido de renovação da referida licença, com fundamento em não estarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 14.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
Vejamos.
A Lei nº 5/2006, de 23/02 (RJAM) aprovou o regime jurídico das armas e munições, sendo que um dos objetivos pretendidos pelo legislador com a aprovação deste diploma legal foi regular toda a atividade relacionada com armas, com especial ênfase para as armas de fogo, dado a sua potencial perigosidade.
Atendendo ao contexto temporal em que foi formulado o pedido do Autor e proferida a decisão administrativa que o indeferiu, o quadro normativo aplicável é que resulta do RJAM, na redação dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/04, pelo que as referências feitas a este diploma legal devem ter-se por efetuadas para o regime constante da alteração dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/04.
Assim, nos termos deste diploma legal deve entender-se por «porte de arma» “o ato de trazer consigo uma arma branca ou uma arma municiada ou carregada ou em condições de o ser para uso imediato” e «uso de arma» “o ato de empunhar, apontar ou disparar uma arma” (cfr. artigo 2º nº 5) alíneas p) e s), respetivamente).
As armas, assim como as munições e outros acessórios, são classificadas em várias classes, a saber, nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização (cfr. artigo 3º nº 1).
No que diz respeito às armas da classe B1, a sua aquisição, a detenção, o uso e o porte de arma “…podem ser autorizados: a) aos titulares de licença de uso e porte de arma da classe B1; b) aos titulares de licença especial atribuída ao abrigo do n.º 1 do artigo 19.º e c) a quem, nos termos da respetiva lei orgânica ou estatuto profissional, possa ser atribuída ou dispensada a licença de uso e porte de arma de classe B1, após verificação da situação individual” - cfr. artigo 5º nº 3.
Sendo que, é de acordo “…com a classificação das armas constante do artigo 3.º, os fins a que as mesmas se destinam, bem como a justificação da sua necessidade” que podem ser concedidas pelo diretor nacional da PSP as respetivas licenças de uso e porte ou detenção (cfr. artigo 12º nº 1).
E no que diz respeito à atribuição da licença B1, o artigo 14º do RJAM estipula que pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
“a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.”
No caso sub judice, a divergências das Partes situa-se no plano normativo, centrando-se na interpretação e preenchimento do requisito previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 14.º do RJAM.
Como resulta dos factos provados, o Autor, detendo licença de uso e porte de arma da classe B1 válida até 13/03/2017, apresentou, em 26/01/2017, requerimento de renovação da referida licença, justificado com a seguinte factualidade: “é aposentado da função pública; é portador há mais de 26 anos da licença de uso e porte de arma de defesa B1 e sempre, até hoje, lhe tem sido, ininterruptamente, renovada; frequentou com êxito o curso de “Atualização Técnica e Cívica para portadores de armas de fogo classe B1, realizada em Maio de 2011 e fevereiro de 2012; reside só numa moradia isolada, rodeada de bouças e as moradias habitadas em regime de permanência situam-se a mais de 1000 metros de distância, receando assim pela sua integridade física e pelos seus bens como prova o mapa Google; acresce que as forças de segurança (GNR) têm o seu quartel a cerca de 8,0 km da sua moradia.”
Todavia, a sua pretensão foi indeferida pois segundo o entendimento da Entidade Demandada, o Autor não apresentou “meio de prova condigno que asseverasse essa necessidade, e correlativamente aos fundamentos invocados, alegando apenas, que pelo facto de viver em residência isolada, em lugar ermo, situado em zona florestal, no meio de bouças, sem vizinhança por perto e longe das forças de segurança, levando-o temer pela sua segurança.
Ora, com a recente tentativa, continua a não atestar com a mínima segurança razões que justifiquem o facto de andar armado, entendendo-se que os argumentos apresentados convergem apenas a um mero receio e/ou medos de poder vir a sofrer eventual ato ofensivo contra a sua pessoa ou propriedade desperdiçando o momento processual próprio para que pudesse comprovar e justificar a sua pretensão com novos elementos.
Entende o Autor que a Administração incorreu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito na apreciação que fez sobre a verificação deste requisito e que tal decisão violou, ainda, os princípios da colaboração com os particulares, da boa-fé, da confiança e da proporcionalidade.
A atividade administrativa encontra-se subordinada ao princípio do Estado de Direito, condição que envolve a vinculação da Administração à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins – cfr. artigo 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 3.º, n.º 1 do CPA.
No que diz respeito ao preenchimento do requisito previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 14º do RJAM [e também da alínea c)], o legislador conferiu alguma margem de discricionariedade à Administração, pois não fixou, nem enunciou, os factos que preenchem esse requisito, sendo que a discricionariedade consiste numa liberdade de escolha entre várias soluções tidas como igualmente possíveis.
No entanto, discricionariedade não é sinónimo de arbítrio, pois, constituindo uma peculiar maneira de aplicação de normas jurídicas, encontra-se vinculada a regras de competência, ao fim do poder concedido, a variados princípios jurídicos como a igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade, boa-fé, a regras processuais e ao dever de fundamentação, sem exceção, ao princípio da legalidade, mesmo na vertente de reserva de lei.
De igual forma, o erro sobre os pressupostos de facto subjacentes à decisão é relevante no exercício de poderes discricionários, pois que a livre apreciação pretendida pelo Legislador ao conceder aqueles poderes pressupõe a veracidade dos factos em que a decisão se baseia.
É o que se entende por momento vinculado do ato discricionário - a constatação dos factos realmente ocorridos e/ou relevantes.
Ora, a decisão impugnada não atendeu a factos relevantes para a decisão a proferir e violou o princípio da boa-fé, na vertente da confiança e da segurança jurídica, previsto no artigo 10.º do CPA, como se passará a expor.
Nos termos do artigo 266.º, n.º 2 da CRP, “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade (…) e da boa-fé.”
No plano legislativo, o princípio da boa-fé está concretizado no artigo 10.º do CPA que dispõe o seguinte:
“1 - No exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé.
2 - No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do Direito relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida.”
Este princípio significa que os particulares e a Administração devem cooperar e atuar de forma leal e correta entre si, o que é prosseguido através das dimensões da tutela da confiança legítima e da materialidade subjacente.
Deste princípio decorre para a Administração o dever de, no relacionamento com os particulares, atuar num ambiente recíproco de confiança e de previsibilidade, evitando adoção de comportamentos contraditórios, sendo que, para que se possa concluir pela violação dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança será necessário que se verifique a criação de uma expetativa legítima, fundada numa atuação administrativa lícita, um investimento de confiança baseado nessa atuação e ainda a frustração dessa confiança depositada na Administração, revelada por um comportamento de rotura com a posição institucional anteriormente assumida.
Isto posto, resultou provado que no pedido efetuado pelo Autor, em 22/11/2007, de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, e imediatamente antecedente ao pedido objeto dos autos, aquele havia fundamentado o seu pedido com os mesmos factos que fundamentaram o pedido formulado em janeiro de 2017 e objeto dos autos (até de forma menos densificada), ou seja, o Autor referiu que “é aposentado da Função Pública, reside numa casa isolada, rodeada por bouças e as habitações mais próximas situam-se a uma distância de mais de 1000 metros.”
E, não obstante, numa primeira fase esta pretensão ter sido indeferida por despacho do Comandante do Comando Metropolitano do Porto da PSP, o certo é que, após reclamação do Autor, este despacho acabou por ser revogado por despacho do Diretor Nacional da PSP, que renovou a licença de uso e porte de arma da classe B1, referindo no aludido despacho que as razões invocadas pelo Autor se afiguravam justificativas, designadamente, “o facto de o requerente residir numa habitação isolada, rodeada por bouças, e as habitações mais próximas se situarem a uma distância de mais de 1000 metros. E ainda “os anos em que se encontrou licenciado, sem que tenha havido qualquer incidente relativo ao uso da arma ou outro de natureza criminal, demonstram zelo e prudência no seu uso e caução significativa da idoneidade do seu portador.”
Comparando os fundamentos do pedido de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, efetuado pelo Autor em 22/11/2007, e o pedido de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1, efetuado pelo Autor em 26/01/2017, constata-se que são exatamente os mesmos, sendo também os mesmos os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 14.º do RJAM (a redação destas alíneas manteve-se inalterada desde a versão original do RJAM), pelo que, a atuação da Entidade Demandada aquando da prolação do ato impugnado é contraditória com a decisão que incidiu sobre o pedido de renovação efetuado em 22/11/2007, sem que se encontrem razões justificativas para tal (nomeadamente a alegação e prova pela Entidade Demandada que os factos que fundamentaram o pedido do Autor sofreram alterações e/ou já não se verificavam).
Ora, como se expendeu no Acórdão do Pleno do STA de 02/05/95, recurso n.º 22871, “violam o princípio da confiança comportamentos intrinsecamente contraditórios e inconsequentes, quer quando comparados com outros anteriormente praticados quer quando se tenha em conta o contexto global dos pressupostos de facto e de direito vinculativos da prática de um acto.”
Assim, a factualidade dada como provada tem que ser valorizável em sede dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança, que não foram cumpridos pela Entidade Demandada nos termos supramencionados, já que a sua conduta em procedimento administrativo anterior foi de molde a justificar no Autor a expetativa legítima de ver a sua pretensão deferida, pelo que, a presente ação administrativa terá que ser julgada procedente, o que se determinará, ficando, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas (de natureza formal).
(…)».
Ponderando.
Objecto do presente recurso jurisdicional é a sentença recorrida.
A qual decidiu a pretensão do Autor em juízo, deduzida em reacção ao despacho do Diretor Nacional Adjunto da PSP datado de 03/04/2020, que lhe indeferiu pedido de renovação da licença de uso e porte de arma da classe B1.
A lógica da decisão recorrida encontra alicerce no precedente de anterior pedido de renovação, perante mesma circunstância, ter obtido acolhimento; pelo que princípios da boa-fé e da protecção da confiança imporiam mesma conduta de renovação da licença.
Sobre o princípio da boa-fé, intimamente relacionado com o da protecção da confiança, pode ler-se no acórdão do STA de 18-06-2003, proferido no recurso 1188/02: “O principio em análise opera com relação aos actos jurídicos bem como com os direitos que se exercitam e as obrigações que se cumprem, passando, fundamentalmente, pela emissão de um juízo de valor aplicado a uma conduta quando confrontada com um determinado comportamento anterior. Um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da protecção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança. Vide, Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, in “Constituição da República Portuguesa Comentada”, a págs. 396, Margarida Olazabal Cabral, in “O concurso público nos contratos administrativos”, a págs. 92, Jesus Gonzalez Perez, in “El principio general de la buena fe en el derecho administrativo”, 2ª edição, a págs. 52, Frederico Castilho Blanco, in “La protección de confianza en el derecho administrativo”, a págs. 77 e seguintes e Sainz Moreno, in “La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados”, in Revista de Administración pública”, nº 89, a págs. 314. Pode dizer-se, numa formulação sintética, que a Administração viola a boa-fé quando falta à confiança que despertou num Particular ao actuar em desconformidade com aquilo que fazia antever o seu comportamento anterior, sendo que, enquanto princípio geral de direito, a boa-fé significa “que qualquer pessoa deve ter um comportamento correcto, leal e sem reservas, quando entra em relação com outros pessoas” - apud M. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, in “Código do Procedimento Administrativo”, 2ª edição, a págs. 108 -, apresentando-se como vocacionado para, designadamente, impedir o verificação de comportamentos desleais e incorrectos (obrigação de lealdade). Aliás, a exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito.”.
Na decisão recorrida entendeu-se que, na comparação com o que tinha sido anterior renovação da licença, e para a mesma situação, o último indeferimento seria atentatório aos bons princípios de conduta.
Contudo, com olhar bem atento ao que foi fundamentação de um e outro acto, não se nos depara que até tenham sido totalmente coincidentes os motivos.
Recorrente e recorrida até encarreiram assim, mas, na nossa leitura, erradamente.
De pretérito não foi apenas tido em conta “designadamente o facto de o requerente residir numa habitação isolada, rodeada por bouças, e as habitações mais próximas se situarem a uma distância de mais de 1000 metros”. Mesmo como razão aí tida como muito justificativa, o sentido decisório não se bastou com isso. Aporta o mais de motivação.
Donde, logo sai fragilizado o juízo pelo qual enveredou o tribunal “a quo”.
[O qual acabou por condenar a Entidade Demandada a conceder ao Autor a renovação da licença, sem, afinal de contas, como tinha enunciado dar resposta, “saber se o Autor preenche os requisitos previstos no Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de classe B1.”
E como importaria.
Cfr. Ac. deste TCAN, de 23-04-2021, proc. n.º 98/14.4BEPRT:
“Das disposições conjugadas dos artigos 13º nºs 1 e 3 e 14º nº 1 alínea b) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação resultante das alterações introduzidas pelas Leis nº 59/2007, de 4 de setembro, nº 17/2009, de 6 de maio, nº 26/2010, de 30 de agosto, e nº 12/2011, de 27 de abril), resulta que a atribuição da licença de uso e porte de arma da classe B depende de se encontrar demonstrada a justificação para a sua concessão por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade.”]
De todo o modo, não negando as características do local de habitação como essencialmente determinantes, e elegendo mesmo como fundamento determinante (mas que também pode não ser único no complexo de razões), vejamos.
Como se assinala no Ac. do Trib. Const. n.º 243/2007, de 30/03/2007, “estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa, conforme se reconhece no Acórdão n.º 1010/96 (DR, II Série de 13 de Dezembro de 1996), que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa (…)”.
No art.º 14º do RJAM, prevê-se que:
1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 –(…)
3 – (…)
4 – (…)
5 – (…)
6 – (…)
7 – (…)
Bem como no seu art. 20.º prevê que «Para além da não verificação dos requisitos exigidos na presente lei para a concessão da licença pretendida, pode o pedido ser recusado, nomeadamente, quando tiver sido determinada a cassação da licença ao requerente, não forem considerados relevantes os motivos justificativos da pretensão ou não se considerem adequados para os fins requeridos.».
«A renovação das licenças deve ser requerida até ao termo do seu prazo e depende da verificação, à data do pedido, dos requisitos exigidos para a sua concessão.» (art.º 28º, n.º 1).
As partes não se afastam do que foi perspectiva presente na decisão recorrida, a propósito do contexto discricionário.
O recorrente “desloca” no seu recurso para temática da prova, mas nada disso pode constituir censura, ausente de fundamentação na solução jurídica alcançada.
Podemos afirmar que no procedimento em que tudo se desenrolou advém o exercício de um poder envolto de margem de discricionariedade, em que a Administração tem de procurar a melhor solução do ponto de vista do interesse público.
«É claro que – como sublinha Vieira de Andrade – a melhor solução do ponto de vista do agente não é necessariamente uma única decisão possível deduzível em abstracto da lei: sempre há-de ficar para a administração uma margem de apreciação e decisão, sob pena de se negar o poder discricionário (…) A sua decisão é sempre fundada nos critérios indicados pela lei, mas a concreta definição da fisionomia relevante do caso exige uma reconstrução que tenha em conta os dados da realidade de facto» (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo II, Almedina, 2ª reimpressão, Maio de 2003, pág. 81); e essa realidade de facto pode ser mutável, bem como o interesse público vir a exigir linha de actuação diferente da do passado (até pela própria mutação de outros pressupostos que acompanhem, dando diferente peso de avaliação aos que permanecem).
Não é pela simples constatação de diferenciada conduta da adoptada de pretérito que se pode afirmar uma violação dos mencionados princípios.
Não é sem sentido que o legislador, afasta “ad eternum” direito adquirido, prevendo mecanismo de renovação; aquele que vê a sua licença renovada vê assinalado o tempo da licença, sujeita à precaridade de ter de vir a ser novamente renovada, e sem que fique dotado de um “investimento de confiança” a que de futuro obtenha mesma solução; sem que isso abale o que é de boa-fé; sendo que "...a boa-fé, em sentido jurídico, tem forçosamente de ser reconduzida a regras de comportamento, a normas jurídicas, e não apenas a estados espirituais ou psicológicos." (Esteves de Oliveira, Código de Procedimento Administrativo, 2.ª edição, pág. 109).
Claro que sem embargo, pelo que decide de modo diferente ao que é a prática habitualmente seguida, de um reflexo de exigência ao nível da fundamentação (art.º 152º, nº 1, d), do CPA).
Mas isso nunca serviu aqui de causa.
[e caso fosse, e com êxito “Cabendo a competência quanto às funções estritamente administrativas apenas à Administração Pública, só a esta compete retomar o procedimento administrativo visado nos autos, sob pena de violação do princípio de separação de poderes.” (Ac. deste TCAN, de 07-05-2021, proc. n.º 02013/18.7BEPRT)]
Nesta sede, “o tribunal sindica apenas quanto a aspectos vinculados e por parâmetros jurídicos externos e formais como a manifesta inadequação, que não permitem a substituição da valoração efectuada pela Administração pelo tribunal, de modo que não se justifica que este entre a apreciar a argumentação do particular no sentido de que seria melhor escolha, no confronto do seu interesse com o interesse público, o deferimento da licença de uso e porte de arma de defesa.” (Ac. do STA, de 14-10-2003, proc. n.º 0878/03).
Como se extrai do Acórdão do STA de 24-09-2003, Proc. n.º 590/03, Analisando os termos em que o Legislador entregou à Administração este poder, constata-se que não o fez depositando em suas mãos uma verdadeira discricionariedade, ou um poder discricionária puro. Não se trata de entregar ao órgão administrativo uma liberdade de escolha de comportamentos administrativos ou de soluções juridicamente indiferentes, todas elas igualmente idóneas para a satisfação do interesse público, e por isso insindicáveis pelo Tribunal.
Pelo contrário, a lei estabeleceu determinados pressupostos, a que chamou "condições", que, uma vez preenchidas ("cumpridas", diz o preceito) darão lugar à concessão da licença.
Acontece, porém, que na enunciação de tais pressupostos são utilizadas fórmulas que contêm alguma indeterminação, a saber: "carecer de licença" (…)
O emprego de tais fórmulas, conjugado com o tipo legal de acto a praticar, implica, naturalmente, a entrega ao órgão decisório da possibilidade de usar de juízos de prognose, de matriz predominantemente técnico-valorativa (cfr M S. GIANNINI, Diritto Amministrativo, II, 1988, p. 495, SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, pp. 171 e 478). A prognose refere-se evidentemente, à hipótese de ocorrência de situações, relativas à vida pessoal e profissional do requerente, em que ele, perante uma agressão, possa ter de recorrer à legítima defesa.
Ora, nesta matéria, estão as polícias particularmente bem colocadas – seguramente mais bem colocadas do que o Tribunal – para fazerem essa avaliação, dada a sua experiência em matéria de segurança dos cidadãos e à facilidade com que podem captar, caso a caso, factos e situações concretas de verdadeira "necessidade" de dispor de arma de defesa que importe acautelar, mediante a concessão de licença.
Por isso é que, não obstante a norma em causa exprimir sobretudo vinculação e não discricionariedade, deixa lugar a uma certa margem de livre apreciação administrativa, o que equivale, portanto, à desconsideração de alguma margem de eventual erro na respectiva aplicação, que não fica sujeito a controlo jurisdicional.
É que, sob pena de se cair na dupla administração, este controlo deve incidir unicamente sobre os erros manifestos, os critérios ou juízos ostensivamente erróneos ou inconsistentes, os atropelos visíveis à lógica e ao bom senso ou ainda as manifestações de pura arbitrariedade.».
E, no caso, não temos que, nessa medida de controlo, e perante o que circunstancialmente se encontra apurado, a pretensão do autor se encontre ilegalmente apreciada no acto impugnado.
*
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, e, julgando improcedente a acção, absolver o Réu do nela peticionado.

Custas: pelo Autor.

Porto, 27 de Maio de 2022.

Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa