Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00276/20.7BEAVR-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/10/2022
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Hélder Vieira
Descritores:PROVA PERICIAL, CLARA DESNECESSIDADE DA REALIZAÇÃO
Sumário:I — Em contencioso administrativo, a idoneidade dos meios de prova deve ser avaliada pelo juiz da causa em função das especificidades próprias deste contencioso, uma vez que, por exemplo, no campo dos actos e omissões administrativas a demonstração dos factos tende a efectuar-se principalmente por prova documental;

II — No entanto, a instrução mediante outros meios de prova, como o pericial, pode ser uma via tão admissível quão necessária, devendo ser efectivamente avaliada pelo juiz a utilidade/necessidade da sua realização, no contexto da controvérsia fáctica em causa;

III — A clara desnecessidade (artigo 90º, nº 3 in fine, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) de produção de prova pericial deve ser objectivamente determinada, podendo resultar, designadamente, de uma evidência da sua inutilidade ou da desnecessidade da sua realização por se verificar fundadamente, v.g., tratar-se de mero expediente dilatório.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – RELATÓRIO

Recorrente: Município (...)
Recorrido: V..., SA

Vem interposto recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que indeferiu requerimento de realização de prova pericial.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, do seguinte teor:

“1. Em causa, nos presentes autos, está o pedido de condenação no pagamento de uma quantia pecuniária pelo R. à A, a título de ressarcimento de uma suposta prestação de serviços que aquela terá efetuado, ao abrigo de um suposto contrato público verbal, do qual, em verdade, o R. não tem qualquer registo e que, em concreto, desconhece, pelo que há a potencialidade de uma forte lesão ao interesse público.
2. Para que os autos fossem dotados de prova suficiente e cabal, no sentido de cumprir os princípios da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, e uma vez que, segundo a jurisprudência do STA, nestes casos está vedada a produção de prova testemunhal, o R. desde logo o R. requereu a produção de prova pericial singular, no entanto e estranhamente, o douto despacho saneador indeferiu essa pretensão.
3. In casu, o despacho recorrido rejeita a produção da prova pericial requerida pelo R., que, ademais, assume decisiva importância neste caso concreto, pelo que estamos perante um recurso com efeito suspensivo e subida imediata, em separado, nos termos do art. 140.º, 142.º, n.º 5 e 143.º, n.º 1 do CPTA e 644.º, n.º 2, al. d) e 645.º, n.º 2 do CPC.
4. Apesar de o R. ter explicitado e deixado bem evidente, na sua contestação, os motivos subjacentes à requisição da realização da prova pericial, que se diga, salva a devida vénia, são acertados, o Tribunal indeferiu a mesma, sem fundamentar devidamente e sem respeitar o disposto no art. 90.º, n.º 3 do CPTA.
5. Ora, o juízo de desnecessidade que a lei exige para que o Tribunal possa rejeitar os meios de prova requeridos pelas partes é um juízo fundamentado e, aliás, qualificado quanto à evidência da desnecessidade da prova, ou seja, não basta que, aos olhos do Tribunal, a prova seja objectivamente desnecessária, sendo ainda necessário um grau de intensidade elevado dessa desnecessidade, como denota a utilização do advérbio “claramente” (o que bem se compreende, dado que na acção administrativa se visa resolver litígios em que estão em causa determinantes interesses das partes).
6. Porém, o despacho recorrido não só não permitiu, em erro de julgamento, a produção da prova pericial, como se escudou, para esse efeito, em supostas dificuldades da peritagem que não se nos afiguram erróneas ou até mesmo inteligíveis – o que, s.m.r., sempre configura nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b) e c) do CPC.
7. Assim sendo e smr, o douto despacho recorrido, no segmento que indefere a produção da prova pericial, incorre desde logo em nulidade, quer por falta absoluta de fundamentação quanto à clara desnecessidade da prova pericial e ou por ambiguidade ou obscuridade que torna efectivamente a decisão ininteligível (cfr. art. 615.º, n.º 1, als. b) e c). Ou quando à tort assim não se entendesse, o que não se concede, então, sempre aquele segmento do despacho recorrido padeceria de erro de julgamento, mormente por ter rejeitado a produção da prova pericial sem que se verifique o requisito da manifesta desnecessidade, afrontando, desse modo, nomeadamente o disposto no n.º 3 do art. 90.º do CPTA, o direito à prova concedido ao R., bem como o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20.º da Constituição (e que deriva do basilar princípio do estado de direito democrático - cfr. 1.º, 2.º e 18.º da CRP) e, bem assim, os princípios da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, pelo que não se poderá manter na ordem jurídica.
8. Sem prescindir, sempre se alegue que a produção da prova pericial nos autos (em que se discute a realização de obras, a prestação de trabalhos e o fornecimento de bens para esse efeito) é indispensável à concretização das finalidades do processo, isto é, a justa composição do litígio e a descoberta da verdade material – cfr. entre o mais, art. 20.º da CRP e arts. 410.º e ss. do CPC.
9. Assim o é, desde logo, mas não só, devido ao facto da mobilização dos restantes meios de prova não se afigurarem adequados no caso dos presentes autos, a prova documental, por inspeção judicial ou testemunhal.
10. Efetivamente, a apresentação de prova testemunhal fica prejudicada, porque, não existindo contrato e ou a sua redução a escrito, facto que é confessado pela A. nomeadamente no artigo 5.º da pi e que para todos os efeitos consubstancia uma formalidade ad probationem, não pode a sua existência e tudo aquilo que dele deriva, ser provado mediante o recurso à prova testemunhal.
11. Como decorre do n.º 2 do artigo 364.º do Código Civil (doravante CC), que há-de ser conjugado com o n.º 1 do artigo 393.º do mesmo diploma, a prova da existência do contrato e de tudo aquilo que dele deriva só poderá ser feita mediante o recurso à figura da confissão, excluindo-se expressamente o recurso à prova testemunhal – neste sentido e por todos, v.g. Acórdão do STA datado de 17/03/2010, no proc. 01047/09.
12. Quanto à possível mobilização da prova documental, apesar de esta não se encontrar abstratamente proibida, a realidade é que ela não servirá de muito, pois, como se viu, configurando esse aliás um dos motivos da contenda, não houve a redução a escrito do suposto contrato, se que é que algum contrato houve, o que não concedemos, pelo que sua relevância nos autos será espúria ou, pelo menos, sempre muito reduzida.
13. Ficam a restar, pois, no universo probatório aplicável ao caso concreto, 2 tipos de prova: a pericial ou a inspeção judicial, sendo que, no que concerne à prova por inspeção judicial, esta terá pouca relevância pela simples mas decisiva razão de que o Tribunal não dispõe, lógica e naturalmente, dos conhecimentos técnicos necessários à correta observação, perceção e contabilização desses factos (por ex.: a alegada prestação ou não dos serviços, as condições em que os mesmos, a existirem, foram prestados, e os bens fornecidos).
14. Exclui-se, portanto, a utilização deste meio de prova no caso concreto, restando unicamente ao Tribunal e às partes o recurso à prova pericial.
15. Ora, a prova pericial foi concebida precisamente para casos em que a correta apreciação da matéria controvertida pelo Tribunal e, consequentemente, a realização das finalidades do processo (a descoberta da verdade material e a justa composição do litígio - cfr. entre o mais, art. 20.º da CRP e arts. 410.º e ss. do CPC), só é possível com o auxílio de peritos e com os seus relatórios periciais, os quais detêm os conhecimentos técnicos específicos, que se afiguram necessários à integral compreensão da factualidade controvertida, como é o caso em que se trata da realização de obras em que é necessário, entre o mais, dominar leges artis dessa atividade, demonstra-se, pois, totalmente oportuna no caso dos autos.
16. Oportunidade e pertinência essa que, aliás, foi reconhecida pela A., que não se opôs à realização da prova pericial requerida pelo R., antes a secundou e complementou, quando se pronunciou sobre o objecto da perícia.
17. Aliás, o Tribunal apenas pode indeferir a requisição de produção de prova pericial quando a sua realização se demonstre meramente dilatória, impertinente ou claramente desnecessária – Veja-se, mutatis mutandis, o Acórdão do TCAS datado de 17/06/2021 e tirado do proc. 41/20.1BESNT.S2.
18. No caso concreto, a realização da prova pericial não é dilatória, desde logo, porque nunca foi essa a postura assumida pelo R. perante o Tribunal, nem tampouco tal seria, em verdade, compatível com o seu próprio interesse, o qual, como se poderá compreender, radica na intenção de resolução e pacificação jurídica o mais rapidamente possível da querela. De igual modo, impertinente também não é, visto que o objeto da perícia proposta reporta-se totalmente e especificamente à matéria controvertida presente nos autos. Por fim, também não se poderá considerar como desnecessária, pois, como já se viu e adiante se reforçará, a matéria controvertida alvo dos presentes autos prende-se com temas cuja apreciação requer inequívocos conhecimentos técnicos e específicos, que naturalmente o Tribunal não possui nem tem que possuir, pelo que o auxílio dos peritos na função judicatória é indispensável.
19. Pelo que, não se verificando nenhuma das situações de indeferimento, como vimos melhor supra, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quando indeferiu o pedido de produção de prova pericial, violando entre o mais o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva constitucionalmente previsto no artigo 20.º da Constituição e, bem assim, dos comandos prescritos pelo legislador no n.º 3 do artigo 90.º do CPTA e nos arts. 410.º e ss. do CPC.
20. Ademais, parece-nos vítreo e manifesto que, também no caso concreto, e ao contrário do que sustenta o despacho em erro de julgamento, o juízo do perito não se substitui jamais ao juízo do Tribunal, servindo antes para auxiliar o Tribunal e obrigando este, em caso de divergência com esse juízo, a um dever acrescido de fundamentação – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11/03/2010 e tirado do proc. 949/05.4TBOVR-A.L1-8.
21. Por outro lado, também não se vislumbram as supostas dificuldades de resposta por parte do perito que são invocadas pelo Tribunal para recusar a produção da prova pericial, designadamente por entender que, em virtude do facto dos supostos materiais, a existirem, já terem sido integrados/consumidos na referida obra pública e por já ter decorrido um lato hiato temporal, no qual podem ter existido alterações.
22. Desde logo, mesmo não tendo presenciado os factos, um perito especializado em obras (por ex., um engenheiro civil ou um arquitecto) que se desloque ao local e que analise os documentos disponíveis, poderá efectivamente, com base nos seus conhecimentos especializados e na experiência profissional, por exemplo, calcular os materiais que terão sido despendidos e integrados na suposta obra, ainda que a mesma já tenha decorrido há algum tempo – sendo certo que cabe também ao perito, no desempenho cabal das suas funções, indagar e averiguar se houve algumas alterações posteriores.
23. Assim, essas supostas dificuldades não existem na realidade, pelo que jamais constituiriam um motivo válido de indeferimento de produção de prova pericial (existindo, só por aí, um erro de julgamento no despacho recorrido), sendo certo que se o perito (técnico especializado na matéria) não for capaz de superar essas alegadas dificuldades, que poderão nem sequer se manifestar, não se alcança, então, quem o será.
24. O objeto da perícia proposto pelo R. afigura-se coerente, adequado e necessário ao conhecimento dos factos que com a produção da prova pericial se pretendem esclarecer, por interessarem, inteiramente, à causa.
25. Em suma, temos que:
a) o quesito 1 (trabalhos e fornecimentos alegados) incide sobre matéria da qual o Tribunal não poderá conhecer, visto que não dispõe dos conhecimentos técnico-científicos ou especializados que são exigidos à sua correta apreensão, sem o auxílio de um juízo técnico especializado, pois, por exemplo, há que correta e rigorosamente distinguir o pavimento existente à data dos factos controvertidas, daquele que possivelmente passou a existir com a realização desses supostos trabalhos. Cabendo ao perito indicar e concluir, por exemplo, a tonelagem, a qualidade, o modo de emprego e até o contributo que foi dado para o arranjo final da obra pelos supostos materiais e trabalhos referidos pela A., pelo que não se afigura, portanto, inoportuno ou desnecessário, antes sendo determinante para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio;
b) o mesmo se diga acerca dos quesitos n.º 2 e 3 (relações com outras empreitadas), pois apenas um perito, especializado na realização de obras, é que poderá dilucidar e determinar se os supostos trabalhos cuja realização é reclamada pela A. podem ou não estar integrados em outros contratos públicos/adjudicações celebrados pelo R., visto que só aquele saberá analisar corretamente todos os projetos de construção, cadernos de encargos e mapas de quantidades e as suas incidências, principalmente no tocante às áreas de implantação;
c) os quesitos n.º 4 e 5 (necessidade dos trabalhos e fornecimentos alegados), só um técnico especializado nestas matérias é que poderá determinar os tipos de materiais necessários à realização dos trabalhos e os trabalhos referidos nos quesitos, sendo que apenas este é que dispõe dos conhecimentos técnicos necessários à escorreita e cabal averiguação dos trabalhos necessários e da quantidade e qualidade dos materiais que são exigidos à realização de tais obras e trabalhos (eventualmente com recolhas de amostras no local, etc);
d) quanto ao quesito 6 (preço de mercado dos alegados trabalhos e fornecimentos) é também necessário, não só ter pleno conhecimento dos sobreditos materiais e das suas aplicações, como, de igual modo, ter pleno conhecimento do mercado da construção civil e dos preços praticados, principalmente quando se está a questionar preços praticados num determinado ano em específico, sendo que tal explanação poderá ser fornecida por um perito ao Tribunal.
26. Por conseguinte, salvo o merecido respeito, as respostas aos quesitos propostos para a prova pericial afiguram-se, por conseguinte, necessárias ao auxílio ao Tribunal na descoberta da verdade material e na justa composição do litígio, pelo que, ao ter indeferido a prova, o douto despacho recorrido padece, naquele segmento, de manifesto erro de julgamento, mormente por violação do art. 20.º da CRP, art. 90.º, n.º 3 do CPTA e arts. 410.º e ss. do CPC, pelo que não deverá ser mantido na ordem jurídica.
Termos em que, deve o presente recurso ser admitido e julgado totalmente procedente, por provado, admitindo-se a produção da prova pericial requerida pelo R.,
só assim se fazendo, JUSTIÇA!”.

Não sobrevieram contra-alegações.

O Ministério Público foi notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA e não se pronunciou.

De harmonia com as conclusões da alegação de recurso, que balizam o objecto do recurso [(artigos 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi nº 3 do artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)], impõe-se determinar, se a tal nada obstar, se a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito, nos aspectos adiante pontualmente indicados.

Sublinha-se que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm, como vimos, o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, a qual apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal «a quo» ou, no adequado contexto impugnatório, que aí devessem ser oficiosamente conhecidas.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na decisão recorrida não estão, formal e discriminadamente, especificados os factos pertinentes à decisão, mas os mesmos ficam evidenciados no julgamento operado na decisão recorrida, que não suscitou qualquer dificuldade às partes nem prejudica a boa decisão do recurso, sendo certo que a transcrição integral da decisão recorrida dá garantias de que nada de útil foi menosprezado:

«OBJETO DO LITÍGIO
Analisada a factualidade alegada nos autos, o objeto do litígio reconduz-se ao apuramento do direito da A. ao pagamento da quantia total de € 8.462,60, acrescida de IVA e juros de mora desde a citação até ao integral pagamento, devida pela prestação de serviços, execução de trabalhos e fornecimento de bens ao R..
TEMAS DA PROVA
Constituem temas da prova a apurar,
1. A prestação de serviços, execução de trabalhos e fornecimento de bens ao R.. pela A.
1.1. No âmbito da empreitada “Pavimentação dos arruamentos de acesso aos Novos Polos Escolares de Oiã Poente e Oiã Nascente, Requalificação da Rua do Carro Quebrado de Cima e Travessa do Cemitério de Perrães”
1.1.1. Serviços prestados e trabalhos executados: aplicação, compactação, carga e descarga de saibro;
1.1.2. Quantidades / Horas de utilização dos veículos;
1.1.3. Data;
1.2. Em Vila Nova, Palhaça
1.2.1. Serviços prestados e trabalhos executados: aplicação, compactação, carga e descarga de saibro;
1.2.2. Quantidades/Horas de utilização dos veículos;
1.2.3. Data;
1.3. Em Murta,
1.3.1. Serviços prestados e trabalhos executados: transporte, carga e descarga de saibro;
1.3.2. Quantidades/Horas de utilização dos veículos;
1.3.3. Data;
1.4. Na Quinta das Basílias,
1.4.1. Serviços prestados e trabalhos executados: abertura de vala, arraso e colocação de aterro,
1.4.2. Quantidades/Horas de utilização dos veículos;
1.4.3. Data;
1.5. Na Feira da Palhaça,
1.5.1. Fornecimentos de tout venant;
1.5.2. Quantidade;
1.5.3. Data;
2. O acordo das partes,
2.1. Solicitações do R.;
2.2. Acordo quanto aos valores/preços e data de pagamento;
2.3. Aceitação pela A.;
3. As insistências da A. para pagamento;
4. O reconhecimento pelo R. dos montantes devidos à A..
*
Requerimentos de prova
Prova testemunhal: Admitem-se os róis de testemunhas da A. e do R.
Prova documental: Admitem-se os documentos juntos aos autos.
Notifique o R. para, em 10 dias, dar cumprimento ao disposto no art. 84.º, n.º 1 do CPTA, remetendo aos autos o p.a., organizado de forma sequencial e cronológica, ou todos os documentos de que disponha, relativos aos factos em causa nos autos.
Prova pericial:
Veio o R. requerer a realização de prova pericial.
Nos termos do art. 388.º do CPC “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.”
Não obstante a produção de prova pericial comportar em regra um juízo de valoração e apreciação de factos a realizar pelo perito, a mesma não deve ser realizada de molde a que tal apreciação seja furtada à reapreciação do julgador. É que o perito informa e o juiz decide (art. 389.º do CC).
Mais se note que,
 O parecer pericial deve estribar-se em factos, não sendo admissível a quesitação de juízos de valor ou conclusões sobre factos;
 O parecer pericial não se destina à resposta a quesitos que mais não correspondem que ao teor de documentos ou ao que dos mesmos resulta;
 Os factos quesitados devem exigir conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, pelo que a quesitação deve ser formulada em termos que diretamente apelem a tais conhecimentos;
 O perito não é testemunha, nem parte, daí que não podem ser objeto de perícia factos que apenas quem presenciou e vivenciou poderá responder;
 Os quesitos devem ser formulados em termos que permitam ao julgador apreciar a valoração do perito, isto é, acompanhar o raciocínio técnico do perito e, tanto quanto possível, apreender a sua razão de ciência.
Isto posto, é sabido que determinar se os trabalhos, serviços e fornecimentos foram executados é a resposta que ao Tribunal cumpre dar nos presentes autos e relativamente à qual o perito não se pode substituir.
Por outro lado, o perito, não sendo testemunha e não tendo presenciado os factos, e de resto, estando essencialmente em causa o fornecimento de bens que se integraram em obras e a prestação de serviços ou execução de trabalhos que se consomem/esgotam e/ou integram numa obra (sem possibilidade de individualização) e que, face ao tempo decorrido, pode ter sofrido alterações, não poderá dar a resposta pretendida pelo R.
Indefere-se, pois, a requerida realização de perícia.
Notifique.».

II.2 – O DIREITO
Tendo presente os termos da causa e os argumentos das partes, passamos a apreciar cada uma das questões a decidir no plano da impugnação da decisão sob recurso, tendo presente que «jura novit curia», o mesmo é dizer, de harmonia com o princípio do conhecimento oficioso do direito, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, tal como dispõe o nº 3 do artigo 5º do CPC.

II.2.1. Da nulidade da decisão
Alega o Recorrente: “…o despacho recorrido não só não permitiu, em erro de julgamento, a produção da prova pericial, como se escudou, para esse efeito, em supostas dificuldades da peritagem que não se nos afiguram erróneas ou até mesmo inteligíveis – o que, s.m.r., sempre configura nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b) e c) do CPC.
7. Assim sendo e smr, o douto despacho recorrido, no segmento que indefere a produção da prova pericial, incorre desde logo em nulidade, quer por falta absoluta de fundamentação quanto à clara desnecessidade da prova pericial e ou por ambiguidade ou obscuridade que torna efectivamente a decisão ininteligível (cfr. art. 615.º, n.º 1, als. b) e c).”.
Vejamos os dois aspectos que subjazem à arguição da nulidade da decisão recorrida.
Primeiro, o de que a decisão sob recurso “se escudou, para esse efeito, em supostas dificuldades da peritagem que não se nos afiguram erróneas ou até mesmo inteligíveis”, concluindo ainda pela nulidade “por ambiguidade ou obscuridade que torna efectivamente a decisão ininteligível”.
A invocada fundamentação errónea não é causa de nulidade, em face da tipificação das causas de nulidade das sentenças ínsita no artigo 615º do CPC.
A suscitada ininteligibilidade é causa de nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do nº 1 do referido artigo 615º.
Todavia, sempre faltaria caracterizar a ininteligibilidade — ónus do alegante —, pois não vêm arguidas concreta e objectivamente, nem se vislumbra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
O segundo aspecto reporta-se à arguida nulidade “por falta absoluta de fundamentação quanto à clara desnecessidade da prova pericial”, cujo fundamento se prevê, como tal, na alínea b) do nº 1 do referido artigo 615º do CPC.
A nulidade por falta de fundamentação também não se verifica no presente caso, na medida em que, com ou sem acerto em face do regime jurídico aplicável, certo é que fundamentação existe e o seu eventual desacerto não é causa de nulidade, por não prevista como tal, mas antes de eventual erro de julgamento.
Improcedem os fundamentos das invocadas nulidades.

II.2.2. Do mérito
Na acção de que emana o presente recurso peticiona-se, designadamente, a condenação do Réu “a pagar à autora, a quantia de 8.462,60 euros (oito mil e quatrocentos e sessenta e dois euros e sessenta cêntimos), acrescida do IVA à taxa legal em vigor à data do pagamento, correspondente ao valor total dos serviços, trabalhos e fornecimentos executados, bem como dos juros de mora vincendos, à taxa supletiva legal para os créditos de empresas comerciais, desde a citação e até integral e efectivo pagamento”.
A causa de pedir, em síntese, centra-se na prestação de serviços, execução de trabalhos e de fornecimentos de materiais (v.g. «tout venant») ao Réu Município (...) e a solicitação deste, por banda da sociedade autora V..., SA, a qual se dedica à actividade de execução de trabalhos de construção civil e de obras públicas.
Vimos acima, pela transcrição da decisão sob recurso, e temos presente os temas da prova.
A decisão recorrida, tendo expostos alguns considerandos sobre a prova pericial, veio a fundamentar a recusa da sua realização com estes dois fundamentos, sendo nossos os sublinhados e a ênfase a «bold»:
Primeiro: «Isto posto, é sabido que determinar se os trabalhos, serviços e fornecimentos foram executados é a resposta que ao Tribunal cumpre dar nos presentes autos e relativamente à qual o perito não se pode substituir.».
Segundo: «Por outro lado, o perito, não sendo testemunha e não tendo presenciado os factos, e de resto, estando essencialmente em causa o fornecimento de bens que se integraram em obras e a prestação de serviços ou execução de trabalhos que se consomem/esgotam e/ou integram numa obra (sem possibilidade de individualização) e que, face ao tempo decorrido, pode ter sofrido alterações, não poderá dar a resposta pretendida pelo R.
Indefere-se, pois, a requerida realização de perícia.»

Ora, quanto à primeira razão, se é indubitável, em face do disposto no artigo 389º do Código Civil, que cabe ao Tribunal determinar se os trabalhos, serviços e fornecimentos foram executados, não podendo ser substituído pelo perito, uma vez que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, também é verdade que, integrando matéria controvertida, essa execução de trabalhos, esse fornecimento de bens, a prestação dos serviços, requerem a concreta identificação dos locais, dos materiais empregues — quantidades e qualidade (vem, por exemplo, alegado ter sido fornecido «tout venant» de 1ª qualidade, etc) —, da sua concreta utilização, prestação e execução e, bem assim dos preços; todos estes são aspectos que constituem, afinal, a base da causa de pedir. Ora esses aspectos integram atinentes factos em matéria que não se afirma na decisão recorrida ser do domínio do Juiz da causa.
E, note-se, quanto a este primeiro fundamento da recusa da prova pericial, apenas isto está em causa.
Quanto ao segundo fundamento, o de que o perito não pode dar a resposta pretendida pelo Réu, vejamos o objecto da perícia.
Na contestação, o Réu veio requerer a prova pericial nos seguintes termos:
Peritagem: a não se entender como consignamos supra no artigo 3.º da contestação, então subsidiariamente, requer a realização de perícia por perito único, ao abrigo do art. 467.º do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA, desde já se sugerindo como perito o Exmo. Sr. Eng.º G…, eng.º civil, a notificar na morada sita em Estrada (…), juntando-se em anexo os quesitos a que o Senhor Perito deve dar resposta.
Com efeito, face ao objecto da acção (quer tal como configurada pela A. na pi., quer considerando o que se alegou na presente contestação), face à complexidade técnica das questões sub judice, afigura-se determinante para a descoberta da verdade material e para a justa decisão da causa, que se efectue peritagem, mormente para que se estabeleça com rigor se foi realizada a alegada obra, trabalhos e serviços, se os mesmos foram correctamente executados e a que preços devem, eventualmente, ser pagos.”.
Os quesitos apresentados em anexo foram os seguintes:
“Anexo – quesitos:
Tendo em conta as peças processuais e documentos constantes dos autos, que requer lhe sejam facultados, dando-se integralmente por reproduzidos, para todos os efeitos legais, todos os factos constantes das peças e documentos a que se faz referência, por uma questão de economia processual, diga o Senhor Perito se:
1) Foram ou não realizados os trabalhos e fornecimentos elencados nos números 9.º (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c) e d)) e 15.º (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c), d) e e)), todos da petição inicial da Autora?
2) Os trabalhos elencados no número 9.º da petição inicial da Autora (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c) e d)) fazem parte dos trabalhos contratualizados pelo Município (...) com a sociedade “J…, SA” e intitulados “Pavimentação dos Arruamentos de Acesso aos novos pólos escolares de Oiã Poente e Oiã Nascente, Requalificação da Rua do Carro Quebrado de Cima e Travessa do Cemitério de Perrães”?
3) Os trabalhos elencados no número 9.º da petição inicial da Autora (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c) e d)) fazem parte dos trabalhos contratualizados pelo Município (...) com a sociedade “S…, Lda.” e intitulados “Pavimentação do Largo do Centro Social da Palhaça e Travessa das Hortas (Palhaça) e dos Trabalhos Complementares à Conclusão do Arruamento a Poente da Escola Básica Integrada de Oiã (troços Inicial e Final) e da Rua do Carro Quebrado de Cima”?
4) Atendendo ao que podem constatar, é verdade que para realizar as obras públicas “Pavimentação dos Arruamentos de Acesso aos novos pólos escolares de Oiã Poente e Oiã Nascente, Requalificação da Rua do Carro Quebrado de Cima e Travessa do Cemitério de Perrães”, bem como para realizar as obras e trabalhos que o Município levaria a efeito naquele período em Vila Nova (Palhaça), em Murta e na Quinta das Basílias (e melhor descritos no artigo 9.º da petição inicial), foi necessário efectuar os trabalhos alegados pela Autora descritos no artigo 9.º da petição inicial (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c) e d))?
5) Atendendo ao que podem constatar, é verdade que para realizar as “obras públicas de Construção da Nova Feira da Palhaça – 2.ª fase e do seu Acesso Norte, nomeadamente as infraestruturas relativas a tais empreitadas” (artigo 11.º da petição inicial), foi necessário efectuar os trabalhos e fornecimentos alegados nos números 15.º da petição inicial da Autora (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c), d) e e), e f))?
6) Qual o preço de mercado, reportado à data, dos trabalhos e fornecimentos elencados nos números 9.º (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c) e d)) e 15.º (e assim tal como descritos nas alíneas a), b), c), d) e e)) da petição inicial da Autora, em função da sua natureza, espécie e quantidade (nomeadamente considerando os preços pagos pelo Município (...) nesse alegado período de 2015)?”.
Em face do teor dos quesitos e da matéria alegada na petição inicial para que remete, afigura-se haver larga margem de matéria de facto susceptível de ser objecto de prova pericial, como acima já expusemos, incluindo a atinente aos preços e, portanto, esta segunda razão de indeferimento também não contém fundamento de clara desnecessidade deste meio de prova.
Na verdade, o requerimento de utilização de determinado meio de prova — no caso, a prova pericial — pode ser indeferido, mas apenas quando o Juiz «o considera claramente desnecessário», como o exige o nº 3 do artigo 90º do CPTA.
Não sendo esse o caso presente, pelo menos pelos motivos constantes da decisão recorrida — sem prejuízo de outros e só aqueles integram o objecto do recurso —, ou seja, atendendo apenas aos fundamentos invocados na decisão recorrida, não ocorre uma clara desnecessidade daquele meio de prova.
De resto, note-se a amplitude dos poderes do juiz nesta matéria. Desde logo, como já se viu acima, a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (artigo 389º do CC); Se realizada por perito único, no limite, é o juiz que o nomeia, com todas as garantias de imparcialidade [artigos 467º, nºs 1 e 2 (no caso), 469º, 470 e 471º do CPC], podendo até ser determinada perícia colegial, v.g., entre o mais, no entendimento de que a mesma reveste especial complexidade (artigo 468º do CPC) e, finalmente e não menos importante, é ao juiz que cabe a fixação do objecto da perícia, com observância do contraditório (artigo 476º e 477º do CPC).
Finalmente, diga-se que, como resulta, entre o mais, do referido artigo 90º do CPTA, a idoneidade dos meios de prova deve ser avaliada pelo Juiz da causa, em função das especificidades próprias do contencioso administrativo que, por exemplo, o campo dos actos e omissões administrativas é mais subsidiário de uma demonstração dos factos por prova documental. Certo é, todavia, que noutras matérias e mormente num quadro fáctico, como o alegado, bastante desprovido da possibilidade de prova documental, a instrução mediante outros meios de prova, como o pericial, pode ser uma via tão admissível quão necessária, devendo ser efectivamente avaliada pelo Juiz a utilidade da sua realização, no contexto da controvérsia fáctica em causa.
A sua clara desnecessidade deve ser objectivamente determinada, podendo resultar, designadamente, de uma evidência da inutilidade ou desnecessidade da sua realização por se verificar fundadamente, v.g., tratar-se de mero expediente dilatório.
Termos em que procedem os fundamentos do recurso, devendo ser revogado a decisão impugnada, na medida em que, em síntese e em face do objecto da perícia, não contém fundamentos de recusa da sua realização de onde se retire a sua clara desnecessidade, sendo esta, nesse caso, uma exigência do legislador plasmada no nº 3, in fine, do artigo 90º do CPTA.

III. DECISÃO

Termos em que os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte acordam em conferência, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

Sem custas (artigo 527º do CPC).

Notifique e D.N..

Porto, 10 de Março de 2022

Helder Vieira, o Relator
Alexandra Alendouro
Paulo Ferreira de Magalhães