Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02242/21.6BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/17/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:PROCESSO CAUTELAR; JUÍZO PERFUNCTÓRIO; TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA;
REQUISITOS DETERMINANTES DO DECRETAMENTO DAS PROVIDÊNCIAS;
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE;
Sumário:
1 – Nos termos do artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, as providências cautelares são adoptadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente, situação em que, como dispõe o n.º 2 deste normativo, mesmo ainda na eventualidade de terem sido julgados verificados esses requisitos determinantes, sempre a adopção das providências pode ser recusada quando em sede da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, for julgado que os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.

2 - A existência de perigosidade [seja na vertente do receio da constituição de uma situação de facto consumado, seja na vertente da produção de prejuízos de difícil reparação], e da aparência do bom direito [enquanto avaliação sumária da probabilidade de existência do direito invocado] para os interesses que os Requerentes visam assegurar no processo principal, constituem requisitos determinantes para efeitos de ser apreciada a providência requerida, recaindo sempre sobre eles o ónus de fazer a prova sumária desses requisitos.

3 - Para o decretamento de uma providência cautelar têm de ser invocados, e recolhidos pelo Tribunal a quo, em termos de matéria de facto, indícios suficientes da verosimilhança do direito a ver suspensa a eficácia de um acto administrativo que autoriza e licencia uma operação urbanística, pois só perante a existência de tais elementos de prova e pertinente enquadramento será possível ao julgador formular um juízo positivo a respeito da aparência do direito invocado.

4 - O juízo que cabe levar a cabo no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, não pode o julgador misturá-lo com o juízo que deve ser feito a título principal, visto tratar-se dum juízo perfunctório, sumário, tal como é reclamado pelo legislador em termos cautelares, por constituir um juízo que é formulado sob reserva de se poder chegar a uma conclusão diversa em sede do processo principal.

5 - A lei e o Regulamento, que o Requerido [assim como o Contra interessado] deve observar, sendo um limite à sua actuação, é sobretudo o fundamento da sua acção, pelo que, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, mas antes, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça.

6 - O princípio da legalidade está necessariamente conexionado com outros princípios, como a igualdade e a justiça, também previstos no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, e aponta para o princípio mais abrangente da juridicidade da Administração, sendo que os mesmos só relevam, em princípio, na actividade discricionária da Administração, já que no campo vinculado o que importa ver é se a legalidade foi respeitada.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento aos recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


MUNICÍPIO ... e «AA» [devidamente identificados nos autos], respectivamente Requerido e Contra interessado nos autos de Processo cautelar que contra si foi intentado por «BB» e [SCom01...], Ld.ª [também devidamente identificados nos autos], inconformados, vieram apresentar [cada um por si] recurso de Apelação da Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual, com referência ao pedido formulado por este formulado [atinente, em suma, ao decretamento da suspensão de eficácia dos actos ilícitos cuja prática imputam ao Requerido, e que padecem de nulidade/anulabilidade, os quais licenciaram a edificação de um aterro, consubstanciados no despacho do Vereador do demandado Município, «CC», datado de 13 de junho de 2021 e que foi objecto do alvará para remodelação de terrenos nº 1/21, datado de 18 de junho de 2021, assim como ao decretamento do embargo de toda a obra a decorrer no imóvel do Contra interessado], foi julgado procedente o pedido de adopção das providências cautelares que haviam formulado a final do Requerimento inicial.

*

No âmbito das Alegações de recurso apresentadas pelo MUNICÍPIO ..., elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

[…]”
CONCLUSÕES:
I. O facto provado n.º 6 do elenco da matéria de facto provada da douta sentença recorrida deverá ser dado como não escrito ou como não provado, sendo que os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa são os dois documentos emitidos pela I.P, S.A, entidade com competência legal exclusiva na matéria, isto é, a sua pronúncia de 09.11.2020 constante de fls. 61 do p.a. 3/19-LTER em papel e o seu ofício n.º ...72 de 11.02.2021 junto sob o doc. ... com a oposição do contra-interessado de 21.12.2021, respectivamente, e que terão necessariamente de prevalecer sobre o depoimento de qualquer testemunha e sobre qualquer levantamento topográfico, na medida em que estes nada mais reproduzem do que as indicações que as próprias partes que os mandam elaborar transmitem ao respectivo topógrafo e sendo que nem os documentos n.ºs. ... a ...0 juntos com o requerimento inicial, nem a informação da IP, S.A. referida na douta sentença sem qualquer outra identificação precisa (e que não existe para além das duas supra referidas), contêm qualquer prova do facto em causa, verificando-se, assim, vício de julgamento de facto e um erro de apreciação da prova.
II. Deve ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto: “A infra-estrutura hidráulica existente – galeria de acesso a antigas minas subterrâneas - sob a plataforma da EN e que confina com o prédio do contra-interessado, que esteve inoperacional durante décadas, está agora limpa e desobstruída e ligada à rede pluvial municipal, por força de exigência imposta pela IP, S.A, sendo o Município actualmente responsável pela sua manutenção”, sendo que as provas que implicam que o facto seja dado como provado são as seguintes:
a) documentos de fls. 61 e 212 do p.a 3/19-LTER em papel;
b) documentos de fls. 26 e 27 do p.a 3/19-LTER remanescente junto aos autos via SITAF em 30.11.2022 e também juntos aos autos pelo contra-interessado com o seu requerimento de 22.11.2022;
c) documento n.º. ... junto pelo contra-interessado com a sua oposição;
d) documentos de fls. 209 do p.a 3/19-LTER em papel, vídeo e as duas facturas juntas pelo contra-interessado aos autos no seu requerimento de 24.01.2023 e fotos juntas aos autos pelo mesmo com o seu requerimento de 20.02.2023;
e) depoimento da testemunha «DD», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto 02:51:53 ao minuto 02:55:12 e do minuto 02:55:43 ao minuto 02:55:57;
f) depoimento da testemunha «EE», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto 02:28:47 ao minuto 02:29:32.
III. Os factos provados n.ºs 8, 9 e 13 do elenco da matéria de facto provada da douta sentença recorrida deverão ser dados como não escritos ou como não provados, atenta a omissão de alegação dos mesmos nos autos por qualquer das partes, o que implica consequentemente que sem factos não possa haver prova, sendo que, de tais “factos” consta também matéria de direito, que, por isso mesmo, não pode integrar o elenco dos factos provados, para além de que o Tribunal recorrido não tem competência em razão da matéria para se pronunciar sobre a matéria de direitos reais (constituição e existência servidão de aqueduto de águas pluviais pretensamente assinalada no PDM e sua alteração) sobre a qual se pronunciou em sede de matéria de facto (e bem assim, em sede de matéria de direito), cuja competência para apreciação e decisão cabe apenas e só aos Tribunais da Jurisdição Comum, estando vedado aos Tribunais Administrativos emitir pronúncia sobre matéria privatística.
IV. O facto provado n.º 13, na parte que refere que com a execução do aterro ocorre a inversão do estado das cotas de soleira de ambos os terrenos, para além de constituir uma impossibilidade física, uma vez que o terreno dos Requerentes nem sequer é mexido, mantendo a sua cota altimétrica inalterada, também teria de ser dado como não escrito ou não provado, por força dos seguintes elementos:
a) a matéria de facto alegada nos itens 29.º e 30.º da oposição do Município de 28.12.2021 e a prova da mesma que consta dos documentos de fls. 195 a 197, 207, 208, 232 e 233, 240, 241, 244, 312, 415 do p.a. 3/19-LTER em papel;
b) o depoimento da testemunha «FF», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto, do minuto 01:58:35 ao minuto 02:00:55.
V. Acresce que também se verifica manifesto vício de julgamento de facto no que aos factos provados n.ºs 8, 9 e 13 da douta decisão de facto respeita, sendo que, em relação aos mesmos se verifica a nulidade da douta sentença recorrida porquanto o Tribunal a quo apreciou e conheceu questões das quais não podia ter tomado conhecimento, em clara violação da norma do art. 615.º/1/d) do CPC, aplicável ex vi do art. 1.º do CPTA e artigo 95º/1 deste último diploma, que estabelecem que o Tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, o que não é claramente o caso, pelo que ocorreu um uso ilegítimo do poder jurisdicional por excesso de pronúncia.
VI. De resto, as servidões de aqueduto nada têm a ver com o escoamento natural das águas pluviais que correm dos prédios mais altos para os prédios mais baixos, antes se situando num plano completamente distinto, onerando um prédio concreto (serviente) em benefício de outro (dominante) para fins agrícolas ou industriais ou para gastos domésticos, e estando sujeitas à verificação concreta de um dos títulos de constituição que a lei prevê para o efeito (artigos 1.351º, 1543º, 1547º, 1548º, 1549º e 1561.º, todos do Código Civil), pelo que a matéria considerada na douta sentença, para além da sua incorrecção, é completamente estranha aos poderes do Juiz administrativo.
VII. O vício de julgamento de facto e a nulidade da sentença referidos nas duas conclusões anteriores inquinam, por consequência e necessariamente, os factos dados como provados sob os n.ºs 14, 15 e 16 da douta decisão de facto, os quais são decorrência lógica dos factos dados como provados n.ºs 8, 9 e 13, pelo que, também aqueles deverão ser considerados como não escritos, ou no limite, como não provados.
VIII. E, quando assim se não entenda, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, deverão os factos provados n.ºs 14, 15 e 16 da douta sentença recorrida ser dados como não provados em virtude de contrariarem por completo o facto que manifestamente se provou e que consta da conclusão II.
IX. Não obstante, sempre teriam os mesmos que ser dados como não provados, porque nenhuma prova foi feita quanto ao facto de os trabalhos de remodelação de terrenos licenciados provocarem os danos catastróficos que a douta sentença recorrida deu como provados sob os pontos 14, 15 e 16 da mesma.
X. Deve ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto: “Na Cartografia do PDM e do PUC de ... (Planta de Ordenamento e de Condicionantes do PDM e na Planta de Zonamento do PUC) está identificada uma linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado, a qual, todavia, na realidade não existe no local”, alegado nos itens 27.º, 28.º, 74.º a 79.º e 86.º da oposição do ora Recorrente de 28.12.2021 e nos itens 102.º, 106.º e 109.º a 111.º e 114.º da oposição do contra-interessado de 21.12.2021, sendo que os concretos meios de prova que implicam a prova de tal facto são os seguintes:
a) a confissão do Município relativa à representação de uma linha de água na cartografia municipal a atravessar o prédio do contra-interessado, constante dos itens 74.º, 76.º, 77.º da oposição que apresentou nos autos em 28.12.2021;
b) o documento de fls. 275 do p.a 3/19-LTER em papel, quanto ao facto de a Cartografia do PDM e do PUC de ... (Plantas de Ordenamento e de Condicionantes do PDM e Planta de Zonamento do PUC ) identificarem uma linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado;
c) o parecer emitido pela APA, I.P. emitido em 29.07.2020, no âmbito da consulta obrigatória às entidades externas ao Município, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 13.º do RJUE, e relativo ao procedimento de licenciamento de trabalhos de remodelação de terrenos n.º 3/19-LTER , em causa nos presentes autos, junto a fls. 262 e 263 do p.a. 3/19-LTER em papel;
d) o ofício da APA, I.P. datado de 03.04.2020 e junto sob o doc. ... com a oposição do contra-interessado de 21.12.2021;
e) o parecer emitido pela APA, I.P. em 06.10.2022, no âmbito da consulta obrigatória às entidades externas ao Município, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 13.º do RJUE, e relativo ao pedido de informação prévia n.º 53/22-INFPRE apresentado pelo contra-interessado nos serviços do Município (apesar de este procedimento administrativo não estar em causa nos presentes autos, o parecer da APA, I.P, diz respeito ao prédio em causa nos mesmos), documento junto pelo contra-interessado com o seu requerimento de 08.11.2022;
f) o depoimento da testemunha «GG», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto 02:34:33 ao minuto 02:35:10;
g) depoimento da testemunha «DD», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto 02:45:42 ao minuto 02:59:04;


h) depoimento da testemunha «EE», ouvida na sessão da inquirição de testemunhas de 24.11.2022, do minuto 02:26:34 ao minuto 02:28:46.
XI. O facto provado n.º 12 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida deverá ser corrigido, uma vez que acto suspendendo é apenas o despacho do Sr. Vereador da área do Planeamento e da Gestão Urbanística da MUNICÍPIO ... que licenciou os trabalhos de remodelação de terrenos no prédio do contra-interessado de 13.06.2021 e não o Alvará n.º ...1, que não é um acto administrativo, mas antes um título das operações urbanísticas.
XII. Os factos provados n.º 17, 19 e 20 do elenco dos factos provados da douta sentença recorrida não constituem quaisquer factos, pelo que deverão os mesmos ser considerados não escritos.
XIII. Os erros de julgamento de facto elencados viciaram por completo todo o raciocínio lógico que o Tribunal a quo formulou em sede de apreciação dos requisitos de que depende a concessão da presente tutela cautelar, a começar pela consideração da existência de uma servidão de aqueduto, ainda por cima de águas pluviais e a confusão entre linhas de água que têm de estar cartografadas nos instrumentos de gestão territorial e meros regos de águas pluviais.
XIV. O Tribunal a quo, ao considerar que existe probabilidade de êxito da acção principal (fumus boni iuris), quando na verdade nunca foi instaurada qualquer acção administrativa, é no mínimo ambíguo, senão contraditório, tornando a douta decisão ora sindicada ininteligível, o que, salvo o devido respeito, constitui nova causa de nulidade da mesma, nos termos do disposto no art. 615.º/1/c) do CPC, aplicável ex vi do art. 1.º do CPTA.
XV. Aliás, não tendo sido instaurada a acção principal de que os presentes autos seriam dependência, verifica-se, para além do mais, a caducidade das providências cautelares concedidas pelo Tribunal a quo, nos termos do disposto no art. 123.º/1/a) do CPTA, porquanto os Recorridos não fizeram uso, no respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que os pedidos de adopção de providências cautelares se destinou.
XVI. O acto suspendendo não viola o art. 21.º do RJUE, o qual se reporta apenas e só a normas de cariz público e não a normas de direito privado, pelo que, dizer-se que o acto suspendendo viola tal norma legal porque não preserva a servidão de aqueduto prevista e assinalada no PDM e no PUC, não faz sentido, na medida em que o Município aprecia e decide a pretensão urbanística com base nas normas de direito público aplicáveis ao caso, e não com base em normas de direito privado, não tendo, por isso, que salvaguardar ou observar o cumprimento das mesmas, designadamente e no que ao caso interessa, atendendo, a quaisquer eventuais servidões prediais, de águas ou outras que possam onerar o prédio objecto da operação urbanística, tratando-se, pois, de matéria que está subtraída à apreciação do mesmo no âmbito urbanístico e do próprio Juiz administrativo.
XVII. No PDMVC e no PUCVC, à semelhança de qualquer outro instrumento de gestão territorial do País, não estão, nem podem estar, cartografadas quaisquer servidões prediais, de águas ou outras, e no caso concreto, qualquer servidão de aqueduto constituída por águas pluviais, nem quaisquer eventuais direitos reais de quem quer que seja sobre os diferentes prédios que constituem o território, uma vez que se trata de matéria de direito privado, e como tal, completamente estranha à actividade de planeamento urbanístico.
XVIII. O acto suspendendo não viola qualquer plano urbanístico, nem o PDMVC, nem o PUCVC, sendo que a douta sentença recorrida também não indica qualquer norma legal de qualquer um dos regulamentos dos planos referidos que eventualmente o Município pudesse ter violado com a prática do acto sindicado.
XIX. E se o Tribunal a quo pretendia significar que o acto sindicado viola a cartografia de tais Planos, nenhuma razão lhe assiste, porquanto apesar de a linha de água estar referenciada na mesma, a realidade percepcionada no local pela entidade com competência na matéria impõe conclusão absolutamente contrária.
XX. Não tem o Tribunal a quo competência em razão da matéria para julgar que o acto suspendendo destrói e não preserva uma pretensa servidão de aqueduto, a qual de resto nem existe, (não foi alegada no processo a sua existência, não foi feita qualquer prova da sua existência, nem do modo de constituição da mesma, etc.), sendo que se está perante matéria de direito privado, cuja violação a existir, apenas pode ser apreciada e julgada pelos Tribunais Comuns e não pelos Tribunais Administrativos.



XXI. O acto suspendendo e todas as informações que o antecederam e que consideraram não existir qualquer linha de água estão correctos e não merecem reparo, uma vez que não obstante estar representada uma linha de água na cartografia municipal, a APA. I.P., por ser a entidade com competência legal e exclusiva na matéria, emitiu três pronúncias, com datas distintas, (29.07.2020, 03.04.2020 e 06.10.2022) todas no mesmo exacto sentido – inexistência de qualquer linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado, inexistência de qualquer colisão da pretensão do contra-interessado com o regime dos recursos hídricos sob tutela da referida entidade e inexistência de qualquer obrigação legal de emissão de parecer em face de tais constatações.
XXII. Verifica-se, pois, um erro de cartografia quanto à existência de pretensa linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado, sendo que a posição vertida no parecer emitido pela APA, I.P tem necessariamente carácter vinculativo para o Município, pelo que, não podia o ora Recorrente deixar de a seguir, e de decidir, pois, em conformidade com a posição expressa pela entidade consultada, tal como o fez.
XXIII. A APA, I.P. não se pronuncia no âmbito dos processos de licenciamento que lhe são enviados para efeitos de consulta e emissão de parecer nos termos do art. 13.º do RJUE, sobre águas da chuva que aparecem e desaparecem dos prédios conforme haja precipitação, ou não, e como tal, que têm carácter esporádico e intermitente, nem sobre pretensas servidões de água, de aqueduto ou outras, tratando-se de matéria excluída da sua competência por se tratar de matéria de direitos reais, ou seja, de direitos privados sobre tais águas.
XXIV. A APA, I.P. pronuncia-se antes e exclusivamente, não sobre águas pluviais, mas antes e apenas sobre linhas de água permanentes que constituem águas públicas, pelo que, foi em relação a essas águas, que a APA, I.P. se pronunciou, considerando não existirem as mesmas a atravessar o prédio do contra-interessado.
XXV. Nenhuma cartografia de nenhum instrumento de gestão territorial, tal como um PDM ou um PUC poderia alguma vez representar águas pluviais e direitos privados sobre as mesmas.
XXVI. Na apreciação e decisão dos processos de licenciamento, o Município não tem, nem pode ter em conta, quaisquer direitos de natureza privada, designadamente no âmbito de relações de vizinhança, como sejam, no caso, pretensas servidões de aqueduto, ainda por cima de águas pluviais, direitos esses que, a existirem, terão que ser acautelados e eventualmente dirimidos pelos Tribunais da jurisdição comum, mas já não da Jurisdição Administrativa.
XXVII. O Tribunal a quo não podia ter considerado estar preenchido o requisito do fumus boni iuris por considerar verificado o risco de eventuais inundações e aluimentos decorrentes de uma pretensa servidão de aqueduto e de uma alteração à mesma por força da execução dos trabalhos de modelação de terrenos licenciado, servidão essa que, repita-se, não existe, nem foi alegada, nem foi consequentemente provada nos autos, nem o douto Tribunal a quo poderia sequer ter discorrido sobre a sua existência, quanto mais, dar a mesma como provada, e bem assim, eventuais prejuízos decorrentes da sua pretensa alteração.
XXVIII. Não havia qualquer obrigação legal impendente sobre o Município de fazer intervir os vizinhos do contra-interessado e ora Recorridos no procedimento administrativo n.º 3/19-LTER, ora em causa, de os notificar da prática de qualquer acto administrativo no mesmo, nem muito menos de lhes conceder o direito de audiência prévia no âmbito do procedimento de licenciamento, antes da prática do acto final no mesmo.
XXIX. A relação procedimental é estabelecida apenas entre o Município e o requerente da pretensão, pelo que, apenas este é notificado dos actos praticados pela entidade pública no procedimento administrativo e apenas este é notificado para a prática de actos no âmbito do mesmo, sendo que, da conjugação das normas dos arts. 111.º e 121.º do CPA resulta expressamente que as notificações são efectuadas na pessoa do interessado e que apenas o interessado tem o direito a ser ouvido no procedimento antes da tomada da decisão final quando esta lhe seja desfavorável.
XXX. O procedimento do licenciamento/legalização é um procedimento que se desenvolve entre o respectivo requerente e a Administração e que se destina apenas a atestar a compatibilidade com as normas de direito público, maxime, com os Planos Urbanísticos em vigor e com a legislação urbanística aplicável, designadamente, com o RJUE, não se destinando a aferir da existência de direitos de índole privada e para exigir a sua observância por parte dos particulares, sendo que a decisão final daqueles procedimentos pressupõe a resolução prévia de eventuais questões nesse âmbito.
XXXI. Não houve qualquer pedido de constituição como interessados no procedimento por parte dos Requerentes, nos termos previstos no art. 68.º do CPA, nem, consequentemente, qualquer apreciação e decisão do ora Recorrente sobre um tal pedido.
XXXII. Nada na lei suporta, pois, o entendimento constante da douta sentença recorrida no sentido de considerar que os Requerentes do processo cautelar (vizinhos do contra-interessado) são interessados à luz dos arts. 67.º e 68.º do CPA, estatuto que beneficiariam de forma automática, e como tal, sem qualquer necessidade de apresentação de requerimento no procedimento administrativo a solicitar a atribuição ou reconhecimento dessa qualidade, com as consequências legais inerentes e sem qualquer decisão do Município sobre tal requerimento.
XXXIII. O acto suspendendo não se encontra inquinado de qualquer vício invalidante, sendo o mesmo plenamente válido e eficaz, não sendo manifesta ou sequer provável a procedência da pretensão que tivesse sido formulada num processo principal, o qual, de resto, nunca deu entrada em juízo, pelo que, o procedimento e os actos que o integram foram desenvolvidos em plena conformidade com o quadro legal, regulamentar e constitucional aplicável, como resulta, desde logo, de toda a documentação junta aos autos e que integra o p.a. 3/19-LTER.
XXXIV. O Tribunal a quo também não poderia ter tido em conta eventuais riscos de prejuízos para quem quer que seja decorrentes da pretensa alteração do traçado de uma suposta servidão de aqueduto de águas pluviais de modo a deferir a adopção de qualquer uma das providências cautelares requeridas nos autos por reporte ao critério do periculum in mora, porquanto a pretensa violação de direitos reais dos Requerentes é matéria não alegada, não provada, e completamente subtraída à competência do Juiz administrativo.
XXXV. Resultando da prova produzida nos autos que não existe qualquer linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado e que a infra-estrutura hidráulica existente sob a plataforma da EN e que confina com o prédio do contra-interessado está agora desobstruída e ligada à rede pluvial municipal, sendo o Município responsável pela sua manutenção, o pretenso receio dos ora Recorridos quanto à produção de prejuízos de difícil reparação na sua esfera jurídica, por falta de escoamento das águas, cai necessariamente por terra, o que a douta sentença deveria ter considerado.
XXXVI. O interesse no cumprimento do ordenamento legal e regulamentar aplicável, maxime as normas de direito do Urbanismo (que na perspectiva do Recorrente Município se encontram totalmente cumpridas) e o cumprimento do princípio da legalidade afiguram-se superiores a pretensos prejuízos dos Recorridos que na realidade não passam de meras conjecturas e que foram antes deitados por terra atenta a prova cabal quanto à inexistência de uma linha de água a atravessar o prédio do contra-interessado e quanto à infra-estrutura hidráulica existente sob a plataforma da EN que confina com o prédio do contra-interessado estar agora desobstruída e ser agora o Município o responsável pela sua manutenção, estando, assim, assegurado o escoamento de águas pluviais.
XXXVII. Dos elementos que constam dos autos, é manifesta a superioridade das vantagens na execução do acto sindicado face às desvantagens da paralisação decorrente da eventual manutenção das providências concedidas, nos termos do art. 120º/2 do CPTA, devendo, pois, prevalecer o interesse público sobre o interesse dos ora Recorridos, falecendo, pois, o requisito da ponderação de interesses tal como foi apreciado na douta decisão ora em crise, estando a mesma também por tal facto inquinada do vício de erro de julgamento de direito.
XXXVIII. Salvo o devido respeito, foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 95º/1, 120º e 123º/1/a) do CPTA, 64º, 96º/1, 615.º/1/c) e d) do CPC, aplicável ex vi do art. 1.º do CPTA, 40º/1, 80º/1 e 144º/1 da LOSJ, 1º/1 e 4º/1 do ETAF, 211º/1 da CRP21º do RJUE, 12º, 38º, 67º, 68º, 110º, 111º, 114º, 115º/1, 121º, 131º do CPA e 1.351º, 1543º, 1547º, 1548º, 1549º e 1561.º do Código Civil.

PEDIDO:
TERMOS EM QUE, E NOS DO DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER:
A) - DECLARADA NULA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS SUPRA EXPOSTOS;
B) - QUANDO ASSIM SE NÃO ENTENDA, O QUE APENAS POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO SE ADMITE, DEVERÁ SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS SUPRA EXPOSTOS, SUBSTITUINDO-SE POR NOVA DECISÃO QUE JULGUE O PROCESSO CAUTELAR TOTALMENTE IMPROCEDENTE., E EM CONSEQUENCIA, ABSOLVA O ORA RECORRENTE DOS PEDIDOS NELE FORMULADOS;
C) - SEM PRESCINDIR, DEVERÁ SER DECLARADA A CADUCIDADE DAS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES CONCEDIDAS PELO TRIBUNAL A QUO, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS SUPRA EXPOSTOS,
TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, COMO É, ALIÁS, DE INTEIRA
J U S T I ÇA.”

*

No âmbito das Alegações de recurso apresentadas pelo Contra interessado «AA», elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“CONCLUSÕES
I. Vem o contrainteressado interpor recurso para o Venerando Tribunal Central Administrativo Norte da sentença cautelar proferida, que não está conforme o articulado pelos Requerentes «BB» e [SCom01...], Lda., pela requerida e contrainteressado, nem está de acordo com a prova produzida nem de tudo quanto flui dos autos, mormente do ato de audiência de julgamento
II. Nos artigos 1º a 14º da sua oposição o contrainteressado arguiu a ineptidão da petição, com as consequências de nulidade prescrita no nº 1 do mesmo artigo 186º do CPC.
III. Tratando-se de questão com relevância para a decisão de mérito, sobre a qual a Juíza a quo devia pronunciar-se nos termos do artigo 608º, nº 2 CPC, sendo nula a sentença nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
IV. Inexiste ao FUMUS BONI IURIS, sendo que a procedência da presente cautelar exigia a prova da existência de um curso de água (público) no terreno do requerido.
V. O Tribunal recorrido veio a concluir que o que estará em causa nos autos será uma servidão de aqueduto privada que onera o prédio do contrainteressado em favor do prédio dos requerentes.

VI. Daí retiram-se duas conclusões:
- Que se trata de matéria não articulada pelos requerentes, pelo que o Tribunal conheceu de matéria que não podia conhecer, porque não alegada pelas partes, visto que a causa de pedir era a existência de uma linha de água pública;
- Que se trata de matéria que escapa à competência em razão da matéria aos Tribunais Administrativos, visto que os conflitos entre particulares relativas a servidões de aqueduto são da competência aos Tribunais Judiciais, pelo que o Tribunal a quo devia ter-se declarado incompetente para conhecer da presente cautelar.
VII. A Mªa Juiza a quo Gravação da audiência de julgamento do dia 24/11/2022 a 01.10.30 (início)
…A servidão de aqueduto não é uma linha de água…servidão de aqueduto é privada…(podem mudar) de acordo, porque são vizinhos…(a água) não vai correr pelo meio do terreno (do contrainteressado)… normalmente nos privados é à superfície…(mas podem) alterar e canalizar…e o próprio (contrainteressado) pode fazer sem autorização (alterar a servidão de aqueduto).
VIII. Assim, quando o Tribunal refere “erro nos pressupostos de facto” no Despacho da APA ou, com o devido respeito, andou mal, ou tal erro referia-se a não ter considerado a existência de tais águas mas que não eram públicas.
IX. Por isso bem andou a entidade recorrida ao licenciar o aterro, por considerar e bem ter ocorrido lapso nos Regulamentos do PDM e outros na marcação dessa linha, não competindo a tais regulamentos assegurar a existência de servidões privadas.
X. Inexiste o Direito ou sequer aparência do Direito in casu, inexiste FUMUS BONI IURIS, pelo que, falecendo este pressuposto, cumpria desde logo improceder a providência.
XI. Quanto ao periculum in mora, o Tribunal erroneamente deu como provado os pontos 14 a 16, que deviam ter sido dados como não provados, existindo prova documental e gravada que infirma esta sentenciada factualidade.
XII. Quanto à invocação das Infraestruturas de Portugal, em nossa interpretação a posição desta IP vai no sentido contrário, pois até notificou a Ré para se pronunciar quanto à eliminação da infraestrutura hidráulica no local, por desnecessária na atualidade!
XIII. Quanto à prova gravada, ouça-se o arquiteto «HH» que é prestador de serviços há décadas dos requerentes, em Gravação da audiência de julgamento do dia 24/11/2022, 00.58 (início) No terreno de cima (dos requerentes) existem pinheiros, eucaliptos, azinheiras e carvalhos
XIV. As construções pertencentes aos requerentes e outros existem a várias dezenas de metros do terreno do contrainteressado, não sendo suscetíveis de ser atingidos por eventuais acumulações de águas no terreno do contrainteressado.
XV. Nada foi documentado nos autos relativamente a isso, nenhum dando foi concretamente alegado e, não temos dúvidas que, se tal tivesse ocorrido, seriam às dezenas as fotografias e relatório de prejuízos que os requerentes juntariam aos autos!
XVI. A documentação fotográfica e vídeos juntos refletem precisamente o contrário, a elevada acumulação de água existiu apenas no terreno do contrainteressado.
XVII. Devendo dar-se como não provada a matéria dos artigos 14, 15, e 16 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.
XVIII. Foram erradamente interpretadas pela sentença recorrida, entre outras, as normas dos artigos 120º, nº 1 do CPTA, 1º, nº 1 e 4º do ETAF, 186º, nº 1 do CPC e os Regulamentos do PDM e outros Regulamentos do MUNICÍPIO ....
TERMOS EM QUE,
Em procedência do recurso, deve revogar-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente o pedido cautelar.”


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Os Recorridos «BB» e [SCom01...], Ld.ª apresentaram Contra alegações, conjuntas, sem que tenham apresentado as respectivas conclusões, sendo que, a final, requereram que os recurso jurisdicionais interpostos, quer pelo Recorrente MUNICÍPIO ... quer pelo Contra-interessado, sejam julgados improcedentes.



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O Tribunal a quo proferiu despacho visando a admissão dos recursos e fixação dos seus efeitos.

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O Tribunal a quo veio a proferir despacho visando a não ocorrência das nulidades apontadas à Sentença recorrida, assim como a rectificar lapsos de escrita.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.

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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que a declare nula, sempre tem de decidir “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.” [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA], reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.

Assim, as questões que vêm suscitadas pelos Recorrentes e patenteadas nas conclusões das suas Alegações resumem-se, em suma e a final, em apreciar e decidir, quanto ao Recorrente MUNICÍPIO ..., sobre se a Sentença recorrida padece das nulidades que lhe são apontadas, tendo subjacente o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, e de erro de julgamento em matéria de facto e de direito; e quanto ao Recorrente Contra interessado, sobre se a Sentença recorrida padece da nulidade que lhe aponta, tendo subjacente o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, assim como de erro julgamento em matéria de facto e de direito.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

No âmbito da factualidade considerada pela Sentença recorrida, foram fixados os seguintes factos:

“Com relevância para a apreciação e decisão da causa cautelar (mormente, da questão que supra se elegeu), o Tribunal julga indiciariamente provada a seguinte factualidade [essencial e instrumental e por ordem lógica e cronológica]:
1. «BB», ora 1º Requerente, é dono e legítimo proprietário do prédio rústico sito em ..., quinta de lavradio, vinha, mato e pinheiros, descrito na Conservatória de Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...36 e inscrito na matriz da freguesia ... com o artigo 120 [cf. factualidade não controvertida; cf. documentos (docs.) n.º 1 e n.º 2 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
2. A empresa “[SCom01...], LDA.”, ora 2ª Requerente, é dona e legítima proprietária da denominada “Quinta ...”, sita, no Lugar ..., freguesia ..., ... [cf. factualidade não controvertida; cf. documento (doc.) n.º 4 junto com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
3. «AA», ora Contra-Interessado, adquiriu a propriedade do imóvel sito no Lugar ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...77 e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ...75, daquela freguesia – o qual confronta com a estrada nacional e confronta directamente com a “Quinta ...” (propriedade da 2ª Requerente e com os imóveis de que o 1º Requerente é proprietário) [cf. factualidade não controvertida; cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 7 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pela testemunha «GG»].
4. O imóvel do Contra-Interessado referido em 3) situa-se a nascente e sul dos imóveis propriedade dos Requerentes, confrontando por nascente, em toda a sua extensão, com a E.N. ...3 [cf. factualidade não controvertida; cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 7 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
5. O imóvel do Contra-Interessado referido em 3) localiza-se a uma cota inferior à dos imóveis dos Requerentes identificados em 1) e 2) e também a uma cota inferior, em cerca de 3 metros, em relação à berma da E.N. ...3 – o que se verifica nas seguintes fotografias: “...
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[...]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[...]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

...” [cf. factualidade não controvertida; cf. documentos (docs.) n.º 7 a n.º 10 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»].
6. Aquando da construção da E.N. ...3 e o do respectivo talude, foi edificado um aqueduto na base do referido talude – o qual tinha por objectivo, permitir o escoamento das águas [cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 10 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
7. Aquando da propositura da providência cautelar, o terreno do Contra-Interessado identificado em 3) estava a ser objecto de movimentações de terras com deposição de inertes oriundos do seu exterior [cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 10 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
8. O terreno do Contra-Interessado referido em 3) é atravessado por uma linha de água que não corresponde a um curso de água contínuo, sendo formada pelo conjunto das águas pluviais que têm origem nos prédios superiores e que escorrem, de forma natural, para tal prédio inferior [cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
9. A linha de água referida em 8) consubstancia uma servidão de aqueduto que onera o terreno do Contra-Interessado referido em 3), que se situa a uma cota inferior em cerca de 2,50m à do prédio dos Requerentes – o que está assinalado no PDM (constando da sua planta de condicionantes do PDM), nos seguintes termos: “...

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
.
..[cf. documentos (docs.) n.º 5 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
10. A E.N. ...3, na sua extensão, confrontante com o prédio do Contra-Interessado referido em 3), varia entre a cota 48,05m e 50,95m, sendo que as cotas naturais daquele terreno, no seu eixo longitudinal situam-se entre os 2,50 e os 3,50m abaixo da cota da faixa de rodagem da estrada nacional [cf. documento (doc.) n.º 7 junto com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
11. A extensão de terreno dos Requerentes, confrontante com o prédio do Contra-Interessado referido em 3), desenvolve-se aproximadamente 0,80m abaixo das referidas cotas da E.N. ...3 [cf. documentos (docs.) n.º 1 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
12. Em 13 de Junho de 2021, o Vereador do MUNICÍPIO ..., ora, Requerido, proferiu Despacho que licenciou o aterro requerido pelo Contra-Interessado a realizar no prédio referido em 3), no âmbito do procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER e que foi objecto do Alvará n.º ...1, datado de 18 de Junho 2021 – actos ora suspendendos [cf. despacho de 13-06-2021 e alvará n.º ...1 constantes do Processo Administrativo-Instrutor (PA) n.º 3/19-LTER e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. documentos (docs.) n.º 14 e n.º 15 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
13. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), ocorre a inversão do estado das cotas de soleira de ambos os terrenos; importando a alteração do traçado da servidão de aqueduto que passa a entrar no interior da Quinta ... e dos imóveis referidos em 1) e em 2) [cf. documentos (docs.) n.º 1 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. documentos (docs.) e vídeos juntos aos autos, pelos Requerentes, em 23-11-2022, e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
14. Em períodos de intensa pluviosidade, com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), ocorre o alagamento e inundação da Quinta ... e dos imóveis referidos em 1) e em 2) [cf. documentos (docs.) n.º 1 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. documentos (docs.) e vídeos juntos aos autos, pelos Requerentes, em 23-11-2022, e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
15. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), a linha de água constituída pelo conjunto das águas pluviais dos prédios superiores inunda os terrenos dos Requerentes, os terrenos vizinhos e a estrada nacional, com desmoronamento de terras, descalçamento nos elementos edificados (casas, armazéns e outros), aluimento (de muros, casas, ruas, arruamentos) [cf. documentos (docs.) n.º 1 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. documentos (docs.) e vídeos juntos aos autos, pelos Requerentes, em 23-11-2022, e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
16. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), os prédios dos Requerentes ficam gravemente desvalorizados; sendo afectando o seu potencial, a sua rentabilidade e o seu valor [cf. documentos (docs.) n.º 1 a n.º 13 juntos com o requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. documentos (docs.) e vídeos juntos aos autos, pelos Requerentes, em 23-11-2022, e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «II», «JJ» e «FF»; cf. informação prestada pela “INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.” constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
17. Tem-se, aqui, presente o teor do requerimento inicial que deu entrada, neste Tribunal, em 25 de Novembro de 2021 [cf. requerimento inicial e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
18. No âmbito do presente processo cautelar, a Autoridade Administrativa não apresentou resolução fundamentada [cf. tramitação processual constante dos autos e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
19. Tem-se, aqui, presente a tramitação do procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER [cf. procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER constante da três pastas que compõem o PA e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido; cf. depoimento prestado pelas testemunhas «KK», «EE», e «DD»].
20. Tem-se, aqui, presente o teor de todos os documentos constantes dos autos cautelares e do respectivo Processo Administrativo-Instrutor (PA) [cf. documentos (docs.) constantes dos autos cautelares e do Processo Administrativo-Instrutor (PA) e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido].
***
Inexiste outra factualidade sumariamente provada ou não provada, para além da supra elencada com relevo para a apreciação da causa cautelar (e, bem assim, da questão que se elegeu). Sendo que a restante matéria foi desconsiderada por não ser relevante, por respeitar a conceitos de direito, por consistir em alegações de facto ou de direito, por encerrar opiniões ou conter juízos conclusivos.
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Motivação. A convicção do Tribunal quanto à factualidade indiciariamente julgada provada assentou na análise crítica (i) dos documentos que constam dos autos cautelares e do Processo Administrativo-Instrutor (PA), (ii) das posições assumidas pelas partes nos seus articulados [tendo-se aplicado o princípio cominatório semi-pleno pelo qual se deram como provados os factos que resultaram da admissão por acordo, compatibilizando-se toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência, tendo o Tribunal tido em atenção os factos para cuja prova era exigível documento; e, ainda, tendo sido tomada em consideração por este Tribunal a factualidade notória – cf. art. 412.º do CPC], e (iii) da aplicação das regras de distribuição do ónus probandi – tudo conforme referido a propósito de cada um dos pontos da factualidade indiciariamente julgada provada.”

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Tendo subjacente o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, aditamos ao probatório a factualidade que ao diante fixamos, seguindo a temporalidade dele constante, como segue:

5a) A Câmara Municipal ... emitiu em nome do Contra interessado, em 09 de dezembro de 2019, e visando a área envolvente ao seu terreno:
(i) um extracto da planta de condicionantes do PDM, à escala 1:10 000, onde está graficamente identificada com parte desenhada a cor azul, e parte escrita, a existência de um leito de curso de água, que atravessa o terreno em causa no sentido SO/NO, sendo esse leito identificado como “Domínio Hídrico” – Cfr. fls. 427 e 428 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;
(ii) um extracto da planta de ordenamento do PDM, à escala 1:10 000, onde está graficamente identificada com parte desenhada a cor azul, e parte escrita, a existência de um leito de curso de água, que atravessa o terreno em causa no sentido SO/NO, sendo esse leito identificado como “Espaços Naturais” – Cfr. fls. 429 e 430 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;
(iii) um extracto da planta de zonamento do PDM, à escala 1:5 000, onde está graficamente identificada com parte desenhada a cor azul, e parte escrita, a existência de um leito de curso de água, que atravessa o terreno em causa no sentido SO/NO, sendo esse leito identificado como “Espaços Naturais” – Cfr. fls. 435 e 436 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;

5b) O Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., datado de 05 de dezembro de 2019, na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo o licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 440 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;

5c) Com referência a esse requerimento, a Câmara Municipal ... remeteu ofício ao Contra interessado, datado de 19 de dezembro de 2019, onde entre o mais lhe foi comunicado que “[...] o terreno em causa está abrangido por uma série de condicionantes, tais como uma linha de água [...]“ - Cfr. fls. 444 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;

5d) No dia 07 de janeiro de 2020, o Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo o licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 390 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2;

5e) Com referência a esse pedido, a CCDRN emitiu ofício datado de 13 de março de 2020, dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ... - Cfr. fls. 395 e 396 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2 -, de onde para aqui se extrai o que segue:
“[...]
Pelas fotos enviadas no processo, torna-se claro que o movimento de terras no terreno já foi iniciado. Este aspecto adquire particular importância tendo em conta o facto de, na carta de condicionantes do PDM de ... se encontrar assinalada uma linha de água que atravessa o terreno [...]“

5f) No dia 08 de abril de 2020, o Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo o licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 316 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume2;

5g) Com referência a ofício da Câmara Municipal, datado de 15 de maio de 2020, a CCDRN remeteu ofício à Câmara Municipal ... – Cfr. fls. 301 e 305 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, do qual para aqui se extrai o que segue:
“[...]
Mais informamos que, mau grado na Carta Militar 1/25 000 o terreno em causa não ser atravessado pela linha de água existente na sua proximidade, na cartografia do PDM, nomeadamente nas Plantas de Condicionantes e de Ordenamento, essa linha de água já se encontra cartografada, cruzando o terreno no sentido SO/NO.
Assim sendo, tendo em vista a servidão aparentemente afectada, comunicamos a V. Ex.ª que a tutela específica para o caso em apreço é legalmente exercida pela Agência Portuguesa do Ambiente.
[...]“

5h) No dia 29 de julho de 2020, a APA remeteu ofício ao Presidente da CCDRN – Cfr. fls. 262 e 263 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, do qual para aqui se extrai o que segue:
“[...] tendo-se procedido à análise dos elementos remetidos e efetuada deslocação ao local, se apurou não haver evidência da existência, no local ou nas suas imediações, para montante ou jusante, da linha de água representada na cartografia, nomeadamente nas plantas do PDM – a linha de água não se encontra materializada no terreno.
[...]
Assim, localizada em zona considerada não ameaçada pelas cheias, a pretensão não interfere com a área afecta ao domínio Hídrico, pelo que, no âmbito da utilização dos recursos hídricos, não se justifica emitir parecer.“

5i) No dia 28 de setembro de 2020, o Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo o licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 236 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, tendo para esse efeito sido junto, entre o mais:
a) planta referente a levantamento topográfico e condicionantes à escala 1/500, datada de setembro de 2020 - Cfr. fls. 229 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, dela se extraindo, entre o mais:
a1) que nela está enunciada uma legenda onde está graficamente descrita a cor azul, uma linha de água, que atravessa o terreno do Contra interessado assim como a Estrada nacional ...3;
a2) visando a linha de água, o teor dessa legenda é o seguinte: “Linha de água inexistente assinalada na carta de condicionantes (conforme ofício da Agência Portuguesa de Ambiente)“;
b) memória descritiva e justificativa, datada de 29 de setembro de 2021 - Cfr. fls. 232 e 233 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, dela se extraindo, entre o mais:
b1) a referência a “[...] Galeria subterrânea pré-existente; Representou-se nas peças desenhadas a localização da galeria de granito encontrada, que se encontrava aterrada em ambos os lados da EN...3, tendo-se descoberto a mesma e criado acessos de ambos os lados através de manilhas de betão com 2m de diâmetro.
[...]
Condicionantes: Os instrumentos de gestão territorial em vigor, nomeadamente Plano Director Municipal e Plano de Urbanização da Cidade, representam no terreno do requerente as seguintes condicionantes, conforme peças desenhadas em anexo:
1 – Linha de água, inexistente conforme se verifica no local, não havendo qualquer vestígio de leito na proximidade, e conforme Agência Portuguesa do Ambiente.
[...]
A carta de condicionantes assinala uma linha de água a atravessar o terreno, mas que na realidade não se verifica, bem como não há qualquer leito alusivo à sua pré-existência.
[...]
O aterro proposto será executado com terra vegetal.
[...]“

5j) No dia 09 de novembro de 2020, a Infraestruturas de Portugal, IP, remeteu ofício ao Presidente da Câmara Municipal ... – Cfr. fls. 61 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, do qual para aqui se extrai o que segue:
“[...]
Relativamente ao processo acima indicado, informa-se V.Ex.ª que não se vê inconveniente na remodelação de terreno solicitada (aterro).
Informa-se ainda que a infraestrutura existente sob a plataforma da EN não consta do cadastro da IP (rede de aquedutos), não recebe águas provenientes da zona da estrada, nem é necessária à prestação do serviço rodoviário naquele local, considerando-se como uma galeria de acesso a antigas minas de água subterrâneas, pelo que caberá a essa Autarquia a sua aceitação.
[...]“

5l) No dia 01 de abril de 2021, o Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo o licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 199 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, tendo para esse efeito junto, entre o mais:
a) planta referente a levantamento topográfico e condicionantes à escala 1/500, datada de abril de 2021 - Cfr. fls. 192 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, dela se extraindo, entre o mais:
a1) que nela está enunciada uma legenda onde está graficamente descrita a cor azul, uma linha de água, que atravessa o terreno do Contra interessado assim como a Estrada nacional ...3;
a2) visando a linha de água, o teor dessa legenda é o seguinte: “Linha de água inexistente assinalada na carta de condicionantes (conforme ofício da Agência Portuguesa de Ambiente)“;
b) memória descritiva e justificativa, datada de 06 abril de 2021 - Cfr. fls. 195 a 197 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1 -, dela se extraindo, entre o mais:
b1) a referência a que “[...] A galeria existente em causa tem uma secção relevante, é construída em granito, apresenta estabilidade sólida, não representando qualquer risco para a via que atravessa. Representa sim, a única garantia de segurança da via EN...3, em caso de ocorrência de chuvas fortes, ou de encaminhamento de águas por terceiros, como recentemente presenciamos, em que devido ao não funcionamento da galeria em causa por obstrução, ocorreu a derrocada do muro de suporte da via, pondo em risco severo o serviço rodoviário.
[...]
Conforme peças desenhadas em anexo, o aterro não ultrapassa as cotas dos terrenos contíguos, bem como serão criados regos de encaminhamento das águas para a galeria em causa.
[...]
Condicionantes: Os instrumentos de gestão territorial em vigor, nomeadamente Plano Director Municipal e Plano de Urbanização da Cidade, representam no terreno do requerente as seguintes condicionantes, conforme peças desenhadas em anexo:
1 – Linha de água, inexistente conforme se verifica no local, não havendo qualquer vestígio de leito na proximidade, e conforme Agência Portuguesa do Ambiente.
[...]
A carta de condicionantes assinala uma linha de água a atravessar o terreno, mas que na realidade não se verifica, bem como não há qualquer leito alusivo à sua pré-existência.
[...]
O aterro proposto será executado com terra vegetal.
[...]“

5m) No dia 06 de maio de 2021, o Contra interessado subscreveu requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal ..., na qualidade de titular do processo n.º 3/19LTER, pedindo a emissão de alvará de licenciamento de trabalhos de remodelação de terreno - Cfr. fls. 174 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume1;

5n) Esses trabalhos de remodelação de terreno tinham por base um aterro para nivelamento do terreno com o acerto das cotas nas extremidades, o que foi aprovado por despacho datado de 13 de junho de 2021, tendo sido deferido o pedido de emissão do alvará por despacho de 16 de junho de 2021 – Cfr. fls. 203, 187 e 188 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1;

7a) A movimentação de terras no terreno do Contra interessado teve início, pelo menos a partir de 13 de março de 2020 – Tendo por referência o teor do ofício dirigido pela CCDRN ao Presidente da Câmara Municipal ... a fls. 395 e 396 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 2

12a) No dia 29 de novembro de 2021, a Infraestruturas de Portugal, IP, endereçou ao Contra interessado ofício dando conta, entre o mais, do embargo de obra, do que também foi expedido ofício dessa mesma data para o Presidente da Câmara Municipal ... – Cfr. fls. 26 a 36 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1;

12b) No dia 20 de dezembro de 2021, a Câmara Municipal ... expediu notificação dirigida ao Contra interessado, em suma, no sentido de que estava inibido de dar continuidade à obra – Cfr. fls. 38 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1;

12c) No dia 23 de fevereiro de 2022, foi emitida no seio dos serviços da Câmara Municipal, informação técnica onde entre o mais foi informado que “... o aterro não está a ser feito com recurso a terra vegetal conforme o mencionado na memória descritiva do projecto de execução.“ – Cfr. fls. 71 e 72 do PA junto aos autos; processo n.º 3/19LTER, volume 1;

21 - Aquando do licenciamento que veio a ser titulado pelo Alvará n.º ...1, de 18 de junho de 2021, a Câmara Municipal ... pediu parecer à CCDRN e à APA, tendo por pressuposto que o terreno do Contra interessado se situava em área com condicionantes, e que entre o mais, era atravessado por uma linha de água - Nos termos dos depoimentos da testemunhas «KK» e «LL», que assim depuseram, depoimentos que julgamos prestados com objectividade e isenção, o que permitiu a formação da nossa convicção em torno da fixação deste ítem da matéria de facto.

**

IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 07 de julho de 2023, pela qual, com referência ao pedido formulado a final do Requerimento inicial pelos Requerentes [atinente, em suma, a ser decretada a suspensão de eficácia dos já referidos actos ilícitos proferidos por R1 e que padecem de nulidade/anulabilidade, os quais licenciaram a edificação do aterro por R2, consubstanciados no despacho do Vereador do demandado Município, «CC», datado de 13.06.2021 e que foi objecto do alvará para remodelação de terrenos nº 1/21, datado de 18 .06.2021, e bem assim, a ser decretado o embargo de toda a obra a decorrer no imóvel de R2 acima identificado, com as legais consequências], veio a julgar pela procedência do pedido, e assim, pelo deferimento do decretamento das providências requeridas.

Pela Sentença recorrida, o Tribunal a quo apreciou e decidiu, em suma, que por estarem verificados todos os requisitos inerentes ao decretamento das providências, o pedido formulado pelos Requerentes tinha de ser julgado procedente.

No que é atinente às providências peticionadas e concedidas pelo Tribunal a quo, as mesmas têm subjacente, em suma, a invocação por parte dos Requerentes de que o terreno propriedade do Contra interessado está a ser alvo de movimentações de terras e com deposição de inertes provindos do seu exterior, e que esse terreno é atravessado por linha de água identificada no Plano Director Municipal ... [linha de água que atravessa também o terreno do Requerente «BB»], terreno esse que confronta a nascente [em toda a sua extensão] com a Estrada nacional ...3, e que está [esse terreno do Contra interessado] a uma cota inferior em cerca de 3 metros em relação a essa estrada nacional, estrada essa que aquando da sua construção, e sob o seu talude, foi construído um aqueduto que visa permitir o escoamento das águas. Mais referiram os Requerentes, que o terreno do Contra interessado tem uma cota natural inferior e que sempre funcionou como bacia hidrográfica, e que com o aterro no terreno do Contra interessado está a destruir-se a linha de água, assim como o aqueduto de escoamento construído sob a EN, e bem assim, a ser alterada a cota do terreno, ocorrendo a inversão das actuais cotas de terreno, levando a que em períodos de intensa e prolongada pluviosidade se venha a verificar o alagamento dos seus prédios, o risco de inundações dos seus prédios, colocando mesmo em insegurança a própria segurança rodoviária da EN...3. Referiram ainda os Requerentes que o Contra interessado iniciou os trabalhos de movimentação de terras sem qualquer licença prévia, e que mais tarde o Requerido MUNICÍPIO ... veio a emitir licença de trabalhos de remodelação do terreno, acto de licenciamento esse que padece de vícios geradores da sua nulidade e anulabilidade, designadamente por ter ocorrido a caducidade do alvará de licenciamento emitido, sustentando ainda que o licenciamento assentou no pressuposto de que inexiste no terreno qualquer linha de água. Referiu a final que se encontram preenchidos os requisitos determinantes do decretamento das providências cautelares a que se reporta o artigo 120.º, n.º 1 do CPTA [periculum in mora e fumus iuris] e n.º 2 [sobreposição dos interesses que defendem face aos contrapostos interesses - do Município e do Contra interessado], até que venha a ser proferida Sentença com trânsito em julgado na acção principal que vão intentar.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Vejamos então.

Em face das Alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente Município, assim como pelo Recorrente Contra interessado, e atentas as respectivas conclusões, vem sustentada a ocorrência da nulidade da Sentença, assim como a ocorrência de vários erros de julgamento em matéria de facto, e em matéria de direito.

Os Recorridos [os dois identificados Requerentes], apresentaram Contra alegações, pelas quais, em suma e a final, contrariaram, in totum, os argumentos esgrimidos por ambos os Recorrentes, requerendo que os recursos sejam julgados totalmente improcedentes.

Tanto quanto conseguimos apreender, os Recorrentes sustentam nas conclusões das suas Alegações de recurso, a ocorrência:

A) Quanto ao Recorrente MUNICÍPIO ..., sobre se a Sentença recorrida:
(a) padece da nulidade que lhe é apontada, tendo subjacente o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC [Cfr. conclusões V, VI e VII, e XIV];
(b) padece de erro de julgamento em matéria de facto:
i - devendo ser dados como não escritos [ou não provados] os factos 6 [Cfr. conclusão I], 8, 9 e 13 [Cfr. conclusão III], 14, 15 e 16 [Cfr. conclusão VII], 17, 19 e 20 [Cfr. conclusão XII];
ii - devendo ser aditados dois novos factos [Cfr. conclusões II e X];
iii - deve ser corrigida a redacção atinente à redação do facto que identifica o acto suspendendo [Cfr. conclusão XI].
(c) padecem de erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito;
i) por ter ocorrido a caducidade das providências cautelares concedidas, por não ter sido interposta a acção principal;
ii) por não se verificarem os requisitos determinantes do decretamento das providências cautelares [o fumus iuris, o periculum in mora, e a ponderação dos interesses, em favor dos Requerentes].

B) Por seu turno quanto ao Recorrente Contra interessado, sobre se a Sentença recorrida:
(a) padece da nulidade que lhe é apontada, tendo subjacente o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC [Cfr. conclusões II e III];
(b) padece de erro de julgamento em matéria de facto:
i - devendo ser dados como não provados os factos 14, 15 e 16 [Cfr. conclusões XI a XVII;
(c) padecem de erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito.

Neste patamar.

Cumpre então e desde já, apreciar da eventual ocorrência das invocadas nulidades da Sentença recorrida, como assim sustentado por ambos os Recorrentes, a que se reportam as alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

E por reporte às nulidades imputadas à Sentença recorrida, cumpre para aqui extrair o artigo 615.º do CPC, como segue:



Artigo 615.º
Causas de nulidade da sentença
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
[…]
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”

Enquanto Tribunal de recurso e tendo subjacente o disposto no artigo 627.º, n.º 1 do CPC, este TCA Norte conhece dos recursos jurisdicionais interpostos onde devem ser evidenciadas as irregularidades de que a Sentença pode enfermar [que se reportam a nulidades que afectam a Sentença do ponto de vista formal e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade], assim como os erros de julgamento de facto e/ou de direito, que por si são resultantes de desacerto tomado pelo Tribunal na formação da sua convicção em torno da realidade factual, ou da interpretação e aplicação do direito, em termos tais que o decidido não está em correspondência com a realidade fáctica ou normativa.

No dia 25 de setembro de 2023, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo proferiu o despacho a que se reporta o artigo 617.º, n.º 1 do CPC, visando as nulidades imputadas pelos Recorrentes à Sentença recorrida, nos termos que para aqui se extraem como segue:


Fim da transcrição
“[…]
§ Em cumprimento do douto despacho de pág. 4225 e atento o teor das alegações recursivas cumpre proferir despacho, nos seguintes moldes:
(a) Da leitura da sentença exarada nos autos (mormente, toda a fundamentação de facto indiciariamente julgada provada), é notório o manifesto lapso de escrita constante das suas páginas n.º 27 [ponto 9) da matéria de facto indiciariamente julgada provada], n.º 28 [ponto 13) da matéria de facto indiciariamente julgada provada], n.º 39 [3ª e 6ª linhas da página] e n.º 40 [3ª linha da página].
Pelo que, ao abrigo do consignado nos arts. 613.º e 614.º do Código de Processo Civil (CPC) [aplicáveis ex vi do art. 1.º, in fine, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)], determino a rectificação de tal lapso de escrita, nos seguintes termos: onde se lê, nas aludidas páginas, a expressão “aqueduto” deverá ler-se “escoamento”.
(b) Resulta do teor da página 23 da sentença, que a alegada questão inerente à ineptidão do requerimento inicial foi conhecida aquando do pressuposto processual concernente à propriedade do processo e à inexistência de nulidades que invalidassem todo o processado. Pelo que, necessariamente, a nulidade suscitada pelo Contra-Interessado terá de improceder.
(c) Finalmente, resulta do teor da fundamentação de facto indiciariamente julgada provada, em articulação com a fundamentação de direito, que inexiste o erro de julgamento apontado pelo Requerido nem muito menos a pretensa nulidade por este assacada respeitante à alegada incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para conhecer dos autos.
[…]”
Fim da transcrição

Como enunciado supra, para além de ter sustentado a não ocorrência das nulidades imputadas à Sentença recorrida, a Mm.ª Juíza identificou, como assim referiu, lapsos de escrita que como assim entendeu e identificou [como sendo a referência a “servidão de aqueduto”, quando queria dizer “servidão de escoamento”] era passível de ser por si rectificado, e decidiu rectificar, de cujo despacho foram as partes notificadas e quanto ao que nada alegaram e/ou requereram.

Neste patamar.

Em sede das questões que lhe cumpria resolver [Cfr. artigos 607.º, n.º 2 e 608.º, ambos do CPC], apreciou e decidiu o Tribunal a quo que era devido “…o conhecimento de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, sem prejuízo do conhecimento oficioso de outras, permitido ou imposto por lei, devendo analisar-se, em primeira linha, as questões que possam obstar ao conhecimento do mérito do pedido cautelar […] e mais ainda, que “Em sede de mérito cautelar, cumpre saber se, no caso em apreço, os requisitos consignados no art. 120.º, n.ºs 1 e 2, se encontram (ou não) preenchidos, com vista ao decretamento da providência cautelar requerida.

Tratando os autos de um processo cautelar, que se caracteriza pela sumariedade da sua instrução, e estando assim em causa a apreciação da tutela cautelar requerida pelos Requerentes ora Recorridos, o que importava ser prosseguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, era saber a final se estavam ou não verificados todos os requisitos, que são de verificação cumulativa, tendentes à adopção das providências cautelares por parte do Tribunal.

E tal foi efectuado no âmbito do julgamento prosseguido pelo Tribunal a quo, nos estritos termos em que o mesmo veio a fundamentar a sua decisão, e é por via dessa fundamentação, de facto e de direito colhida pelo Tribunal a quo, que será apreciado por este Tribunal de recurso sobre se incorreu o mesmo em algum erro de julgamento.

Vejamos.

Lida a Sentença recorrida dela se extrai que em sede do saneamento dos autos, a Mm.ª Juíza decidiu, entre o mais, o que para aqui se extrai como segue:

Início da transcrição
“[…]
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que invalidem todo o processado [Contrariamente, ao alegado, o requerimento inicial não se afigura inepto. Senão, vejamos. Nos termos do art. 186.º do CPC a petição é inepta: (a) quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; (b) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; ou (c) quando se cumulem pedidos substancialmente incompatíveis. Ora, resulta do teor do requerimento inicial que não se encontra preenchida nenhuma das alíneas do n.º 2, do citado dispositivo normativo. Aliás, tanto o pedido como a causa de pedir são perfeitamente inteligíveis e não existe qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem há pedidos incompatíveis. Finalmente, sempre se diga, que, do teor da oposição apresentada pelo Contra-Interessado, se verifica que o mesmo compreendeu perfeitamente o requerimento inicial (o Contra-Interessado percebeu os pedidos e a causa de pedir, como se constata, inter alia, nos artigos 3º, 4º , 7º, 17º, 23º, 25º e 29º a 133º da sua oposição – o que, por força do n.º 3, do art. 186.º do CPC conduz à improcedência da alegada ineptidão].
[…]”
Fim da transcrição

Ora, para além de se ter pronunciado concretamente sobre a invocada ineptidão do Requerimento inicial, o julgamento daí tirado não pode então enfermar de nulidade, antes quando muito, de eventual erro de julgamento, o que contende, a final, com consequência de uma ordem processual diversa.

Assim, resulta manifesto que ao contrário do que alegou o Recorrente Contra interessado [Cfr. alínea A) das suas Alegações de recurso e respectivas conclusões II e III], a Mm.ª Juíza apreciou e decidiu, concretamente, que não ocorria a invocada ineptidão do Requerimento inicial.

Por iguais termos também julgamos pela não ocorrência da apontada nulidade por excesso de pronúncia, invocada pelo Recorrente MUNICÍPIO ... [Cfr. conclusões IV, V e VI das respectivas Alegações de recurso].

Como assim foi julgado por este TCA Norte, por seu Acórdão datado de 17 de janeiro de 2016, proferido no processo 02279/11.5BEPRT, “[…] Determina o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1.º do CPTA, que a nulidade por omissão de pronúncia ocorre “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Este preceito relaciona-se com o comando ínsito na primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e não todos e cada um dos argumentos/fundamentos apresentados pelas partes, e excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão); e os acórdãos, entre outros, do STA de 03.07.2007, rec. 043/07, de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09 de 17/03/2010, rec. 0964/09).[…]”

Conforme assim tem julgado o Supremo Tribunal Administrativo, e de forma reiterada, só se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal, pura e simplesmente, não chegue a tomar posição sobre qualquer questão que devesse conhecer, inclusivamente, não decidindo explicitamente que não pode dela tomar conhecimento – neste sentido, Cfr. Acórdão datado de 19 de fevereiro de 2014, proferido no recurso 126/14, Acórdão datado de 09 de abril de 2008, proferido no recurso 756/07, e Acórdão datado de 23 de abril de 2008, proferido no recurso 964/06.

Com efeito, sempre que o Tribunal recorrido não leve em consideração um facto que deva ser julgado como provado, ou que tenha julgado provado ou levado em consideração algum facto que não devesse assim ser atendido, essa actuação/omissão não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, na precisa medida em que esses factos não se consubstanciam, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 95.º, n.º 1 do CPTA.

Como assim ensina Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981, páginas 144 a 146 “[…] quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão […]”.

Efectivamente, tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos Acórdãos dos Tribunais Superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

Com efeito, e ainda de acordo com o supra citado Autor “[…] uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.” […]”

Efetivamente, para os efeitos de omissão de pronúncia, o conceito de “questão” não integra os casos em que o juiz deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas.

Neste caso, o que pode ocorrer, quando muito, é o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado já como erro de julgamento, e portanto, equacionável em sede de mérito.

O que importa é que o Tribunal a quo decida a questão colocada, e não, que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão.

E a questão colocada pelo Tribunal a quo e assim vertida na Sentença recorrida [que pudesse obstar ao conhecimento do mérito do pedido cautelar, e neste domínio, saber se no caso em apreço os requisitos consignados no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2, se encontram (ou não) preenchidos, com vista ao decretamento da providência cautelar requerida], tal efectivamente sucedeu.

Ainda no campo das nulidades invocadas, o Recorrente Município sustenta que a Sentença recorrida padece da nulidade fundada na violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC [Cfr. conclusão XIV das respectivas Alegações de recurso].

Neste domínio, referiu em suma, a Sentença recorrida é ambígua, senão contraditória, o que em seu entender a torna ininteligível, por ter o Tribunal a quo considerado existir “… probabilidade de êxito da acção principal, quando na verdade nunca foi instaurada qualquer acção administrativa de impugnação do acto suspendendo no presente processo cautelar, ou seja, qualquer acção principal …”.

Ora, tendo subjacente o disposto no artigo 113.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPTA, isto é, de que o processo cautelar depende da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito, e que pode ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respectivo, tendo tramitação autónoma em relação ao processo principal, e que a ele será apensado quando a adopção de providências seja requerida antes de proposta a causa principal, é manifesto que em face dessa ordenação processual não pode assistir razão ao Recorrente, sendo certo que, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, o Tribunal a quo sempre tinha de tomar posição em torno da verificação sumária do requisito atinente ao fumus iuris, que sempre será de todo o modo, matéria a apreciar em sede do mérito da acção principal, e como assim apreciado pelo Tribunal a quo, padecendo os actos em causa de nulidade e de anulabilidade, e atento o regime de impugnação dos actos nulos, a sua impugnação pode ser prosseguida sem dependência de prazo [Cfr. artigo 58.º, n.º 1 do CPTA] pois pode ser levada a cabo a todo o tempo, sendo certo que os Requerentes, pelo menos e entre o mais, invocaram que o licenciamento das obras de aterro destroem e impedem a existência da linha de água assinalada no Plano Director Municipal, o que tudo configuraram como sendo passível de invalidade fulminada com a nulidade, o que não é de todo inverosímil.

Não há assim qualquer ambiguidade ou contraditoriedade no que foi apreciado e decidido pelo Tribunal neste domínio.

De maneira que, como assim julgamos, a Sentença recorrida não padece das assacadas nulidades, por ambiguidade ou ininteligibilidade da Sentença recorrida [fundada na violação do artigos 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC], nem por omissão/excesso de pronúncia [fundada na violação do artigos 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC],

Falece assim a invocação da ocorrência das nulidades imputadas à Sentença.

Cumpre agora apreciar e decidir sobre a ocorrência dos invocados erros de julgamento em torno da apreciação e fixação da matéria de facto, constante do probatório, dada como provada pelo Tribunal a quo, assim como da matéria que os Recorrentes entendem dever ser levada ao probatório, a que se opõem os Recorridos.

Dispõe o artigo 627.º, n.º 1 do CPC que “As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos”, ou seja, que o recurso é o meio processual por via do qual são impugnadas as decisões judiciais, e nessa medida, o tribunal superior é chamado a reexaminar a decisão proferida e os seus fundamentos.

Como refere António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, Almedina, página 92 “(…) A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão, determina uma importante limitação ao objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal a quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar as decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo se quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. (…)”

Assim, o recurso como meio de impugnação de uma decisão judicial, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e por outro lado, da conjugação do artigo 640.º, n.º 1 e do artigo 662.º, n.º 1, ambos do CPC, resulta afastada a possibilidade de o Tribunal de recurso com competência em matéria de facto efectuar um novo julgamento, pois faz recair sobre o recorrente o ónus de, em primeiro lugar, indicar os concretos pontos de facto que pretende ver modificados, e em segundo lugar, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo, do registo ou da gravação que imponham decisão diversa sobre esses pontos de facto.

Dispõe o n.º 1 do artigo 640.º do CPC, que “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Conforme assim tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o Tribunal de recurso só deve intervir quando for prosseguido o julgamento de que a convicção formada pelo Tribunal recorrido não seja razoável, isto é, quando se apresente como manifesta a desconformidade dos factos [dados por provados e/ou não provados] com os meios de prova patenteados nos autos, dessa forma se dando prevalência aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto – neste sentido, Cfr. o Acórdão do STA, de 19 de outubro de 2005, proferido no Processo n.º ...5.

Vejamos pois.

Nos termos e para efeitos do julgamento da matéria de facto, releva o princípio da livre apreciação da prova, no sentido de que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, devendo na decisão sobre a matéria de facto constar a especificação dos fundamentos que foram decisivos à tomada de posição sobre a materialidade controvertida relevante para a decisão a proferir, de acordo com o direito a aplicar ao caso concreto – Cfr. artigos 607.º, n.ºs e 5, e 662.º, ambos do CPC.

Em face do que sustentam os Recorrentes, em torno dos identificados pontos fixados no probatório, assiste-lhes razão, ainda que apenas em parte, porquanto são apenas os factos que delimitam a aplicação do direito, e é sobre eles que o direito deve ser convocado e aplicado pelo Tribunal.

Enquanto Tribunal de recurso, este TCA Norte apenas procede à alteração da decisão da matéria de facto [por retirada ou aditamento de factos ao probatório] quando, depois de apreciar os termos e a razoabilidade da convicção probatória prosseguida pelo Juiz do Tribunal a quo, e em face do que lhe vem presente pelas conclusões das Alegações de recurso, se vier a julgar que a mesma padece de deficiências – cfr., entre outros, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 348; Cfr. ainda Acórdão deste TCAN, datado de 06 de dezembro de 2013, proferido no Processo n.º 01035/05BEVIS.

Cotejando os identificados pontos do probatório fixado pelo Tribunal a quo, deles resulta que nem todos traduzem ou se reportam à alegação de factos.

Em conformidade com o que assim resulta do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC, a decisão em torno da matéria de facto apenas deve contemplar factos, e não matéria de direito, conclusiva ou contendo juízos de valor.

Como refere Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, página 187, “O questionário deve conter só matéria de facto. Deve estar rigorosamente expurgado de tudo quanto seja questão de direito; de tudo quanto envolva noções jurídicas […]”.

Por seu turno, José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4.ª Edição, páginas. 206 a 215, Coimbra Editora, refere que […] a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei;
[…]
Entendemos por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens.
[…]
Em conclusão: O juiz, ao organizar o questionário, deve evitar cuidadosamente que nele entrem noções, fórmulas, categorias, figuras ou conceitos jurídicos; deve inserir nos quesitos unicamente factos materiais e concretos.
[…]”.

Feitos estes considerandos, cumpre então apreciar e decidir.

Em sede dos invocados erros de julgamento em matéria de facto, o Recorrente Município sustenta que os mesmos ocorrem por via de três domínios: (i) por factos incorrectamente dados como provados, e que devem ser dados como não provados ou não escritos [Cfr. conclusões I, III, VII e XII das respectivas Alegações de recurso; (ii) pelo aditamento de factos aos factos dados como provados [Cfr. conclusões II e X das respectivas Alegações de recurso; e (iii) por errada redacção de um facto [Cfr. conclusão XI das respectivas Alegações de recurso].

Por sua vez, o Recorrente Contra interessado sustentou sob as conclusões XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI e XVII das suas Alegações de recurso, que o Tribunal a quo errou ao ter dado como provados os pontos 14, 15 e 16 do probatório, e que os mesmos deviam ter sido dados como não provados.

Cumpre então apreciar os invocados erros em torno dos factos incorrectamente dados como provados, e que devem ser dados como não provados ou não escritos [Cfr. conclusões I, III, VII e XII das Alegações de recurso do Recorrente Município.

Sustenta o Recorrente Município que os factos 6, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 17, 19 e 20 foram incorrectamente dados como provados pelo Tribunal a quo.

Os factos 6, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 17, 19 e 20, constantes do probatório, têm a seguinte redacção:

6. Aquando da construção da E.N. ...3 e o do respectivo talude, foi edificado um aqueduto na base do referido talude – o qual tinha por objectivo, permitir o escoamento das águas […]
8. O terreno do Contra-Interessado referido em 3) é atravessado por uma linha de água que não corresponde a um curso de água contínuo, sendo formada pelo conjunto das águas pluviais que têm origem nos prédios superiores e que escorrem, de forma natural, para tal prédio inferior [...]“
9. A linha de água referida em 8) consubstancia uma servidão de aqueduto que onera o terreno do Contra-Interessado referido em 3), que se situa a uma cota inferior em cerca de 2,50m à do prédio dos Requerentes – o que está assinalado no PDM (constando da sua planta de condicionantes do PDM), nos seguintes termos:[...]“
13. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), ocorre a inversão do estado das cotas de soleira de ambos os terrenos; importando a alteração do traçado da servidão de aqueduto que passa a entrar no interior da Quinta ... e dos imóveis referidos em 1) e em 2) [...]
14. Em períodos de intensa pluviosidade, com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), ocorre o alagamento e inundação da Quinta ... e dos imóveis referidos em 1) e em 2) [...]
15. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), a linha de água constituída pelo conjunto das águas pluviais dos prédios superiores inunda os terrenos dos Requerentes, os terrenos vizinhos e a estrada nacional, com desmoronamento de terras, descalçamento nos elementos edificados (casas, armazéns e outros), aluimento (de muros, casas, ruas, arruamentos) [...]
16. Com a execução aterro licenciado pelo despacho e com o alvará referidos em 12), os prédios dos Requerentes ficam gravemente desvalorizados; sendo afectando o seu potencial, a sua rentabilidade e o seu valor [...]
17. Tem-se, aqui, presente o teor do requerimento inicial que deu entrada, neste Tribunal, em 25 de Novembro de 2021 [...]
19. Tem-se, aqui, presente a tramitação do procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER [cf. procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER constante da três pastas que compõem o PA e cujo teor integral, aqui, se dá por reproduzido [...]
20. Tem-se, aqui, presente o teor de todos os documentos constantes dos autos cautelares e do respectivo Processo Administrativo-Instrutor (PA) [...]”

A Recorrente entende que o facto 6 constante do probatório, deve ser dado como não escrito ou não provado. E correspectivamente com a matéria a que se reporta esse facto, refere que deve ser aditado ao elenco dos factos provados um facto do seguinte teor: “A infra-estrutura hidráulica existente – galeria de acesso a antigas minas subterrâneas - sob a plataforma da EN e que confina com o prédio do contra-interessado, que esteve inoperacional durante décadas, está agora limpa e desobstruída e ligada à rede pluvial municipal, por força de exigência imposta pela IP, S.A, sendo o Município actualmente responsável pela sua manutenção”, tendo para o efeito indicado as provas que no seu entender suportam esse seu pedido.

Ora, atento o teor do facto 6 constante do probatório, e mostrando-se como perspectivado pela Mm.ª Juíza, primacialmente, referenciar a existência de uma estrutura sob a EN...3, tendo presentes os factos 5j), 5i).b1) e 5l).b1) por nós aditados supra ao probatório, alteramos a redacção do ponto 6 do probatório, dessa forma desatendendo a redacção do novo facto aportada pelo Recorrente, como segue:

6. Sob a E.N. ...3, em parte da via que confronta com o terreno do Contra interessado está edificada uma estrutura em granito - Cfr. os factos 5j), 5i).b1) e 5l).b1) do probatório; Cfr. ainda o depoimento da testemunha «DD», autor do projecto, que referiu que essa estrutura [situada 6 metros abaixo da cota da via e 3 metros abaixo da cota do terreno] estava aterrada, e que quando o talude da EN...3 desabou, anos antes, o Contra interessado decidiu ver onde existia essa estrutura/aqueduto, que referiu ter-lhe o mesmo dito que foi então desobstruída; não resultou todavia cabalmente provado qual o concreto propósito/destino dessa estrutura, porquanto os depoimentos sobre essa matéria, designadamente da testemunha «II» [que referiu ter visto na Câmara Municipal, num processo de loteamento a referência a um aqueduto por debaixo da EN...3, que está tapado; da testemunha «JJ», que referiu achar que foi construído um aqueduto, uma passagem hidráulica, um túnel, sob a EN; da testemunha «FF» [que referiu morar a 100 metros do local e que se recorda de um aqueduto por baixo da EN] não foram aptos a formar melhor convicção em sede cautelar, pois que o anterior proprietário do terreno, o que referiu foi que quando foi construída a EN...3 já era nascido, e que é possível a existência de um aqueduto, uma passagem por baixo da estrada, mas que não sabe, e que nunca se apercebeu da existência de uma passagem por debaixo da EN, terreno esse que já era do seu pai, em período temporal superior a 80 anos.

Quanto ao vertido sob os pontos 8, 9 e 13 do probatório, estamos perante factos conclusivos e/ou que também encerram matéria de direito, e que também assentam ainda em pressupostos erradamente considerados pelo Tribunal a quo.

Vejamos.

Embora tal não conste de forma clara dos factos em apreço, a fixação dessa matéria tem subjacente a consideração pelo Tribunal a quo, de ter julgado provado em sede dessa matéria de facto, que o terreno do Contra interessado é atravessado por uma linha de água, que se consubstancia numa servidão de escoamento, e que o seu traçado foi alterado por força do aterro licenciado.

A fixação desses factos encerram assim num erro de julgamento, que tendo por base os factos que já deixamos enunciados supra [Cfr. pontos 5a), 5c), 5g), 5i), 5l), e 21 do probatório], se tem por suprido.

Com efeito, pese embora a discussão da questão de facto se ter centrado em saber sobre se o terreno do Contra interessado é atravessado ou não por uma linha de água [como assim resulta transversal da gravação áudio da Audiência final onde foram inquiridas as testemunhas arroladas pelas partes, que ouvimos em reprodução na sua integralidade], e sobre se existia sob a Estrada nacional ...3 alguma construção, designadamente um aqueduto, apenas pode ser dado como provado, que na Planta de condicionantes e versando a zona onde está situado o terreno do Contra interessado está graficamente representada uma linha de água, e que em torno e/ou por efeito da construção da EN ...3 nesse local, está construído um equipamento que está colocado debaixo da via rodoviária, que terá uma finalidade, e que poderá visar dar seguimento a águas, de um lado da via para o outro lado da via, sendo irrelevante para o caso que a Infraestruturas de Portugal tenha emitido pronúncia por escrito no sentido de que essa estrutura não consta do seu cadastro, já que ela existe lá e há muitos anos, ou pelo menos de existência contemporânea com a construção da EN ...3. Daí que não pode também ser fixada matéria de facto provada em torno da alteração do traçado da servidão de escoamento por efeito do licenciamento do aterro, nem que ocorre a inversão das cotas de soleira, pois que, quando muito, o que tal poderia determinar era a alteração das cotas do solo, mas que todavia não resultou cabalmente provado por que termos e pressupostos é que tal ocorre ou é passível de ocorrer.

Mas como já vimos, supra, como fixado por este Tribunal de recurso, o que releva em sede da matéria de facto cabalmente provada, é que quer o MUNICÍPIO ..., quer a Agência Portuguesa do Ambiente, quer a Infraestruturas de Portugal, sabem que no PDM de ..., e na sua Planta de condicionantes, está graficamente representada uma linha de água.

De maneira que, porque os referidos factos 8, 9 e 13 do probatório, não traduzem factos que sejam decorrentes da instrução dos autos e da fundamentação que lhes foi aportada pelo Tribunal a quo, decidimos pela sua remoção do probatório.

E idêntico julgamento prosseguimos em torno dos pontos 14, 15 e 16 do probatório, sendo que atenta a sua redacção, e justaposta a fundamentação em que se ancorou o Tribunal a quo para efeitos de os julgar como provados, sempre encerram juízos conclusivos [ou que sobre eles não foi produzida prova cabal determinante da sua fixação], razão pela qual, tendo subjacente o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC, não podiam sequer ser tidos e mantidos como matéria de facto, e provada nos termos fixados.
De resto, sempre julgamos, tendo subjacente as regras de experiência comum, que estando graficamente representada no PDM ... um “leito de curso de água”, que atravessa o terreno do Contra interessado e a EN...3, no sentido SO/NO [Cfr. pontos 5a) e 5l.a1 do probatório], que se a morfologia desse espaço for alterado e preenchido com terra e não vegetal [Cfr. pontos 7 e 12c) do probatório], e sem ser precedido de licenciamento e controlo prévio da sua execução [Cfr. ponto 7a) do probatório], o espaço onde se situa o terreno na parte que confina com a EN...3, resulta evidente que quaisquer águas, independentemente de qual seja a sua origem, provindo de uma parte superior e encontrando obstáculo no caminho seguido, irá levar, com toda a potencialidade para tanto, a um alagamento das áreas circundantes, incluindo os terrenos dos Requerentes, e com consequências imprevisíveis.

Em torno do vertido sob o facto 12 do probatório, assiste razão ao Recorrente Município, pois é manifesto que o único acto administrativo praticado [Cfr. o disposto no artigo 148.º do CPA], é o que foi proferido em 13 de junho de 2021 pelo Vereador do MUNICÍPIO ..., sendo que em torno do Alvará emitido, n.º 1/21, mais não é do que uma formalidade consequente, destinada a dar pública notícia do licenciamento aprovado.

De todo o modo, sempre a consequência desse desacerto em que incorreu o Tribunal a quo não é de modo algum factor que tenha concorrido [ou que pudesse ter aptidão para ter concorrido] para efeitos do conhecimento do mérito do pedido cautelar formulado pelos Requerentes.

Assim, por simplicidade e economia processual, no facto 12 do probatório, onde se lê, “actos suspendendos”, deve passar a ler-se “acto suspendendo”.

Relativamente ao quanto foi fixado sob os pontos 17, 19 e 20 da matéria de facto assente, não constituem os mesmos qualquer facto, sendo para tanto irrelevante a fundamentação que em cada um deles consta dada pelo Tribunal a quo.

Enquanto factos, referir que “Tem-se, aqui, por presente o teor/a tramitação”, tal não caracteriza a existência de qualquer facto material e concreto que estivesse carecido de prova, ou que revista facto instrumental ou complementar para efeitos da decisão a proferir.

Mas de todo o modo, como assim julgamos, a técnica assim prosseguida pelo Tribunal a quo não revela qualquer consequência prática, designadamente para efeitos de ter julgado procedente o pedido de adopção de tutela cautelar, pois que, de resto, assim não o identificaram os Recorrentes, ou seja, que foi por ter identificado esses factos, que o Tribunal a quo veio a errar no julgamento de direito que veio a tirar a final, e que deva assim por essa razão este TCA Norte revogar a Sentença recorrida.

Razão pela qual, atenta a fundamentação expendida supra, se mantêm os identificados pontos no probatório.

Aqui chegados, julgamos assim estabilizado o julgamento da matéria de facto.

Prosseguindo.

Depois de fixar a factualidade que entendeu por relevante e com referência aos elementos de prova que a suportam, enunciou as razões que conduziram à procedência dos pedidos formulados, tendo estribando juridicamente a sua posição, especificando os fundamentos de facto e de direito que de acordo com a sua convicção justificam a decisão, dando assim cumprimento ao disposto no artigo 607.º, n.º 3 do CPC.

Tendo o Tribunal a quo apreciado e decidido sobre os termos e pressupostos pelos quais julgou verificado o fumus iuris, assim como o periculum in mora, e depois de efectuada a ponderação dos interesses em presença, veio a conceder provimento à pretensão deduzida pelos Requerentes.

Atenta a factualidade constante do probatório, o que julgamos inequivocamente provado [e não apenas indiciariamente], é que está representada na Planta de condicionantes do PDM de ... uma linha de água, e que essa linha de água assim representada atravessa o terreno da Contra interessada [Cfr. ponto 5a) do probatório].

Sempre julgamos porém, que se trata de matéria que reveste complexidade técnica, que impõe a convocação, para além de diversos regimes jurídicos, de uma adequada prova dos dados qualitativos/quantitativos em presença, designadamente em torno das cotas do solo, que não cabe ser levada a cabo no âmbito de um processo cautelar, e por via da apreciação de depoimentos prestados por testemunhas, ainda que qualificados em razão da sua formação académica e/ou profissional.

Queremos significar que, não cabe a este TCA Norte opcionar pelo maior bem prestado depoimento de qualquer das testemunhas arroladas para efeitos de dar ou não por cumprida a legalidade urbanística em torno da garantia pelo respeito por todas as normas dispostos pelo legislador, incluindo por via de instrumentos de gestão territorial elaborados pelo MUNICÍPIO ....

Parte este TCA Norte do princípio, todavia, o que encerra verosimilhança plausível, de que os serviços do Requerido Município emitiram o acto de licenciamento visando o licenciamento da operação urbanística em causa no terreno do Contra interessado, no pressuposto de que foram devidamente observados os instrumentos de gestão territorial por parte de quem executou o projecto [o Contra interessado, ou alguém a seu mando].

Com efeito, a matéria em causa requer uma análise factual e jurídica aprofundada, que não cabe levar a cabo num processo cautelar, dada a sumariedade da sua tramitação, principalmente quando no julgamento prosseguido por este TCA Norte, o que importa apreciar e decidir é se ocorre fundamento, como sustentado pelos Recorrentes, para dar como verificado, desde logo, o fumus iuris, sem que para tanto seja relevante e/ou se imponha a quantidade de erros de julgamento que nesse domínio e para esse efeito, possam vir sindicados pelos Recorrentes.

Neste patamar, cumpre agora apreciar os recursos em matéria de direito, versando a Sentença recorrida, que conheceu da verificação do fumus iuris, assim como do periculum in mora, assim como a julgar em sede da ponderação dos interesses, e a final, a julgar procedente o pedido dos Requerentes

Para efeitos do disposto no artigo 112.º, n.º 2 do CPTA, o pedido de providências cautelares e a sua adopção regem-se pela tramitação e segundo os critérios enunciados no Título IV do CPTA, que compreende os artigos 112.º a 134.º deste Código, sendo que sob o artigo 120.º vêm dispostos os critérios para a concessão de tutela cautelar.

E aí se dispõe sob o n.º 1 desse normativo, que as providências cautelares são adoptadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente, situação em que, como dispõe o n.º 2 do mesmo normativo, mesmo ainda na eventualidade de terem sido julgados verificados esses requisitos determinantes, sempre a adopção da providência ou das providências pode ser recusada quando em sede da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, for julgado que os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.

É fundamento para a concessão de tutela cautelar, por via da adopção da/s providência/s requerida/s, que o Tribunal aprecie da ocorrência de periculum in mora [numa das suas duas vertentes], e que indague da aparência do bom direito invocado pelo Requerido, no sentido de aferir sobre se é provável que a pretensão por si formulada, que é causa/fundamento do processo principal, venha a ser julgada procedente, requisitos estes que são de verificação cumulativa, e neste sentido, sendo julgado não verificado um deles, fica prejudicado o conhecimento do outro.

O Tribunal a quo veio a julgar verificados todos os requisitos determinantes do decretamento das providências requeridas.

Atenta a natureza das providências cautelares requeridas, e por regra, o Tribunal deve levar a cabo uma apreciação sumária da prova apresentada, sendo que esta tem de ter relevância para a questão decidenda, considerando a violação das normas invocadas e a posição do Requerente, e o confronto entre os seus interesses e os interesses públicos, avaliada em função das circunstâncias de facto concretas alegadas de parte a parte.

Neste patamar.

Depois de ter enunciado o regime jurídico que julgou ser convocável para efeitos da decisão a proferir, a saber, a apreciação e decisão da requerida tutela cautelar tendo por base a verificação dos requisitos a que se reporta o artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, em face do discurso fundamentador que o Tribunal veio a aportar na Sentença recorrida, decidiu conforme para aqui se extracta o que segue:

Início da transcrição
“[…]
Ora, compulsada a factualidade supra indiciariamente julgada provada em 1) a 20) – e para a qual, aqui, se remete por uma questão de economia processual –, desde já, se adianta que assiste razão aos Requerentes, verificando-se, in casu, o requisito inerente ao fumus boni iuris.
Senão, vejamos.
Resulta do teor dos actos suspendendos, que os mesmos foram proferidos em violação do art. 21.º do RJUE (que obriga a que o Requerido assegurasse a conformidade com planos municipais ou intermunicipais de ordenamento do território, planos especiais de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidões administrativas, restrições de utilidade pública e quaisquer outras normas legais e regulamentares aplicáveis, bem como sobre o uso e a integração urbana e paisagística), porquanto o aterro licenciado destrói e não preserva a linha de água/servidão de aqueduto prevista e assinalada no PDM e no PUC, a qual, atravessa o terreno do Contra-Interessado. Aliás, os actos impugnados no processo de licenciamento e os pareceres/informações que dele constam, no sentido de que, não existir a referida linha de água/servidão de aqueduto enfermam de erro sobre os pressupostos de facto e não tiveram em linha de conta os efeitos nefastos e os riscos de inundações, aluimentos, que o referido aterro pode ter para a envolvente (incluindo a estrada nacional, as habitações na envolvente e as propriedades dos Requerentes). Acresce que o 1º Requerente é proprietário dos imóveis que confinam com o imóvel do Contra-Interessado; pelo que ambos os Requerente são interessados à luz do disposto nos arts. 67.º e 68.º do CPA. Todavia, o Requerido decidiu quanto à matéria do terreno do Contra-Interessado, em violação do art. 115.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), sem suspender o procedimento e sem dar cumprimento à obrigação de audiência prévia, em violação do art. 121.º do CPA e em violação do art. 38.º do CPA (na medida em proferiu o acto de licenciamento, sem ouvir previamente os Requerentes quanto ao projecto de decisão e sem os notificar de qualquer decisão desse procedimento). O que também viola os arts. 12.º, 38.º, 67.º, 68.º, 110.º, 111.º e 114.º do CPA; padecendo os actos em causa de nulidade e de anulabilidade (arts. 161.º, n.º 1, n.º 2, d), g) e l), 162.º e 163.º do CPA).
Ante o exposto, e à luz de uma sumária cognição, os actos suspendendos afiguram-se indiciariamente ilegais e inválidos; devendo ser expurgados da ordem jurídica.
*
No tocante ao periculum in mora, o mesmo também se encontra preenchido, no caso em apreço, atenta a factualidade supra indiciariamente julgada provada em 12) a 16).
Com efeito, com a execução aterro licenciado pelo despacho de 13-06-2021 e com o alvará n.º ...1 (ambos exarados no procedimento administrativo de licenciamento de trabalhos de movimentação de terras (aterro) n.º 3/19-LTER), ocorre a inversão do estado das cotas de soleira dos terrenos dos Requerentes e do Contra-Interessado; importando a alteração do traçado da servidão de aqueduto que passa a entrar no interior da Quinta ... e dos imóveis dos Requerentes. Acresce que, em períodos de intensa pluviosidade, com a execução aterro licenciado, ocorre o alagamento e inundação da Quinta ... e dos imóveis dos Requerentes. Não se olvidando que, com tal execução, a linha de água constituída pelo conjunto das águas pluviais dos prédios superiores inunda os terrenos dos Requerentes, os terrenos vizinhos e a estrada nacional, provocando o desmoronamento de terras, o descalçamento nos elementos edificados (casas, armazéns e outros), e o aluimento (de muros, casas, ruas, arruamentos). Finalmente, com a aludida execução do aterro, os prédios dos Requerentes ficarão gravemente desvalorizados; sendo afectado o seu potencial, a sua rentabilidade e o seu valor.
Verifica-se, assim, in casu, também o requisito inerente ao periculum in mora.
*
Por último, no âmbito da ponderação dos interesses envolvidos, e considerando a factualidade supra indiciariamente julgada provada, não há interesse público prejudicado pelo decretamento das providências cautelares requeridas. Sendo certo que a suspensão do aterro ilícito e violador de normas urbanísticas e de direitos reais dos Requerentes é a forma de melhor acautelar o interesse público decorrente do ordenamento do território e do urbanismo. Não se olvidando que a própria Autoridade Administrativa não apresentou resolução fundamentada.
Estão, assim, verificados, no caso em apreço, todos os requisitos inerentes ao decretamento das providências cautelares requeridas – o que se decidirá.
[…]
Fim da transcrição

Em face do que deixamos extraído supra, apreciou e decidiu o Tribunal a quo, que em face da matéria de facto por si dada como provada, e que inexistindo outra factualidade relevante, ou não provada, que deva constar do probatório, que os requisitos do fumus iuris e do periculum in mora tinham de ser julgados como verificados, assim como, depois de ponderados os interesses em presença, que o pedido tinha assim de ser julgado procedente o pedido formulado a final do Requerimento inicial.

Como assim resulta da Sentença proferida, apreciou e decidiu assim o Tribunal a quo, em suma, que o acto suspendendo se afiguram indiciariamente ilegais e inválidos e que devem ser expurgados da ordem jurídica, por terem sido violados vários normativos por si identificados, que é determinante de nulidade e de anulabilidade do acto administrativo em causa.

Tendo a Sentença recorrida sido alterada na sua fundamentação de facto, a questão que se colocará agora é saber se com a matéria de facto fixada por interposição deste TCA Norte, se o sentido decisório do Tribunal a quo, em torno do mérito da pretensão cautelar, se será outro, agora sob o julgamento deste Tribunal de recurso.

Ora, como assim julgamos, em face do julgamento que fizemos incidir por via do recurso visando a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo o julgamento de direito que veio a ser por si tirado [Tribunal recorrido] vai manter-se, embora com diferente fundamentação.

Estando invocadas várias invalidades a um procedimento, algumas padecentes de nulidade, e a virem as mesmas a ter-se por verificadas, a não sustação dos trabalhos de aterro, no caso [como assim pedido], levará a que toda a área onde está a ser executada a obra vai ficar profundamente afectada, e com consequências absolutamente imprevisíveis.

Se esses pressupostos se verificam, essa é já matéria a ser apreciada na acção principal e não neste processo cautelar intentado como incidente.

Porém, em torno de ser provável ou não que a acção principal venha a ser julgada procedente, no que consubstancia a apreciação do fumus iuris no âmbito do processo cautelar, tal passava pela apreciação, em sumaria cognitio por parte do Tribunal a quo [tendo subjacente os pressupostos da instrumentalidade, provisoriedade e sumariedade], que para tanto devia prosseguir a devida instrução dos autos tendente a esse julgamento.

Feita a produção de prova, com o que deparamos na Sentença recorrida é que o Tribunal a quo formou uma convicção assente em pressupostos que não têm justaposta a respectiva realidade física.

Como assim julgamos, o licenciamento do pedido que foi apresentado pelo Contra interessado assentou no pressuposto assim considerado, a final, por parte do Requerido, assim como da CCDRN e da APA, de que o PDM identifica uma realidade em torno da existência de um leito de água que atravessa o terreno do Contra interessado, que não se verifica, ou seja, de que não existe esse leito de água, e nesse sentido, que não há assim qualquer condicionante urbanística nesse domínio.

Como assim julgamos, aqui radica a questão nuclear que incumbia ao Tribunal a quo apreciar nos termos e para efeitos da decisão a proferir, isto é, da verificação ou não dos pressupostos determinantes do decretamento das providências cautelares, e para conhecimento do fumus iuris.

E assim colocado o thema decidendum, assim como a quaestio decidenda, para efeitos de aferição do fumus iuris, em face do que resultou da instrução levada a cabo nos autos, de entre a factualidade que o Tribunal a quo devia ter levado ao probatório, seguindo a metodologia por si preconizada, era, designadamente de que tendo presente o Regulamento do PDM assim como as condicionantes em vigor no concelho ..., era que, nesse PDM está constante, entre o mais, uma Planta de condicionantes à escala de 1:10 000, e que identifica um “leito de curso de água“, a cor azul contínuo [com ramificação].

Em face do que está patenteado no PDM, estamos perante uma realidade identificada pelo MUNICÍPIO ..., em instrumento de gestão territorial, de feição regulamentar, provinda do seu seio, por si emitido no âmbito de concreta competência legal disposta pelo legislador ordinário em ordem a ser alcançado esse desiderato [como referido no Regulamento do PDM publicado, nos termos do Decreto-Lei n.º 380/99 de 22 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro].

Como assim consta da certidão publicada no Diário da República, a Assembleia Municipal ..., sob proposta da Câmara Municipal datada de 18 de fevereiro de 2005, aprovou em 11 de março de 2008 a revisão do Plano Director Municipal ... [tendo entre o mais revogado o PDM ..., a que se reporta o despacho do Ministro do Planeamento e Administração do Território, publicado no Diário da República n.º 301, 2.ª série, 7.º Suplemento, de 31 de dezembro de 1991, alterado pela Declaração n.º 91/98, publicada no Diário da República n.º 66, 2.ª série, de 19 de março], sendo que a sua publicação no Diário da República, ocorreu no dia 04 de abril de 2008, operando a sua entrada em vigor no dia seguinte, dia 05 de abril de 2008 [Cfr. artigo 171.º, n.º 2 do Regulamento do PDM].

O Plano Director Municipal ... em vigor à data do pedido de licenciamento formulado pelo Contra interessado, é o que resulta da sua revisão publicada através do Aviso n.º ...08, de 4 de abril de 2008, e alterada sucessivamente através de publicação do Aviso n.º ...14, no Diário da República n.º 26, série II, de 6 fevereiro de 2014, alteração por adaptação para transposição das normas do Plano de Ordenamento da Orla Costeira ..., publicada pelo Aviso 4754/2017 no Diário da República n.º 84, série II, de 2 maio de 2017, e alteração para regularização de atividades económicas ao abrigo do Decreto-Lei n. º 165/2014, publicada pelo Aviso n.º 15613/2018 no Diário da República n.º 208, série II, de 29 de outubro de 2018 – Cfr. publicações no Diário da República; acessível ainda pelo link electrónico em https://files.diariodarepublica.pt/2s/2008/04/067000000/1499615038.pdf.

Esse Regulamento do PDM constitui uma ocorrência da vida real, efectuada por actos de homens e de instituições, operando a partir da sua entrada em vigor uma mudança no mundo exterior, sendo um facto material e concreto, e se bem que possa ser objecto de interpretação, nas suas normas escritas e desenhadas, quer pelos seus emitentes quer pelos seus destinatários, o que não pode de todo efectuar-se é uma análise do PDM, das suas Plantas de condicionantes e de ordenamento, na pressuposição de que a representação gráfica nele prevista não deve ser observada pela entidade licenciadora, com fundamento em que não traduz a realidade existente no local, sem que seja previamente prosseguida qualquer actuação, seja provendo, designadamente, por uma rectificação [se disso for/fosse o caso], ou a revisão do PDM [Cfr. artigo 167.º do RPDM].

Como assim prestaram depoimento as testemunhas «KK» e «EE», ambas funcionárias da Câmara Municipal ... em torno da existência de uma linha de água, mormente, da sua representação na planta de condicionantes, os mesmos referiram que a Câmara Municipal fez uma consulta à APA porque na carta de condicionantes está representada uma linha de água, e de que sobre isso não tinham dúvidas algumas – Cfr. ponto 21 do probatório -, sendo que a testemunha «EE» até referiu que a APA informou que não existia nenhuma linha de água no local, e como referiu ainda esta testemunha, por lá ter ido o Eng.º «MM» da APA, que assim constatou.

Ora, a realidade física existente em torno da [in]existência de um leito de curso de água que provém de uma zona a montante e que atravessa o terreno da Contra interessada, e advindo esse conhecimento pelo menos a partir da data em que o Contra interessado apresentou pedido de licenciamento e invocou a inexistência dessa linha de água, em 05 de dezembro de 2019 [Cfr. ponto 5b) e 5c) do probatório] e nesse patamar, se disso fosse o caso, face a essa ulterior não constatação dessa linha de água no local – Cfr. pontos 5g), 5h) e 5i) do probatório -, estava o MUNICÍPIO ..., por via dos seus órgãos representativos, constituído no dever de dar início, designadamente, a um procedimento oficioso tendente a rectificar o PDM, na parte que tivesse de ser rectificado, com fundamento em padecer de um erro, ou a desencadear a sua revisão.

Pelo que resulta do depoimento daquelas testemunhas, estava formado o entendimento comum de que no PDM estava representada uma linha de água e que era obrigatória a consulta da APA, mas que em face da consulta e do que foi o seu resultado, de que inexistia a linha de água, que deixou de haver condicionante nesse domínio.

Enquanto acto regulamentar com expressão urbanística, os órgãos do MUNICÍPIO ..., estão estritamente vinculados pelo que foi o resultado das suas opções urbanísticas, resultando numa actuação contrária ao Estado de Direito, à rule of law, ao bloco de legalidade e ao princípio da juridicidade, a não decisão em conformidade com a matriz anteriormente fixada, a pretexto da inexistência da realidade material como vertida no PDM ....

O PDM de ... foi objecto de várias alterações, e nele continuou constante, na Planta de condicionantes, a representação do leito de curso de água, nos precisos termos e pressupostos que constavam da sua redacção, inicial, pelo menos a publicada em 2008.

Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro [com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 53/2000, de 7 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 310/2003, de 10 de Dezembro, pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro, pela Lei n.º 56/2007, de 31 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 46/2009, de 20 de fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º 181/2009, de 07 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 2/2011, de 06 de janeiro], veio desenvolver as bases da política de ordenamento do território e urbanismo, dele para aqui se extraindo os normativos que seguem:

“[…]
Artigo 1.º
Objecto
O presente diploma desenvolve as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo, definindo o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.
Artigo 2.º
Sistema de gestão territorial
1 - A política de ordenamento do território e de urbanismo assenta no sistema de gestão territorial, que se organiza, num quadro de interacção coordenada, em três âmbitos: [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
a) O âmbito nacional;
b) O âmbito regional;
c) O âmbito municipal. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
2 - O âmbito nacional é concretizado através dos seguintes instrumentos:
a) O Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território;
b) Os planos sectoriais com incidência territorial;
c) Os planos especiais de ordenamento do território, compreendendo os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas, os planos de ordenamento da orla costeira e os planos de ordenamento dos estuários.
3 - O âmbito regional é concretizado através dos planos regionais de ordenamento do território.
4 - O âmbito municipal é concretizado através dos seguintes instrumentos:
a) Os planos intermunicipais de ordenamento do território;
b) Os planos municipais de ordenamento do território, compreendendo os planos directores municipais, os planos de urbanização e os planos de pormenor. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
Artigo 3.º
Vinculação jurídica
1 - O Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, os planos sectoriais com incidência territorial, os planos regionais de ordenamento do território e os planos intermunicipais de ordenamento do território vinculam as entidades públicas.
2 - Os planos municipais de ordenamento do território e os planos especiais de ordenamento do território vinculam as entidades públicas e ainda directa e imediatamente os particulares. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
[…]
Artigo 103.º
Invalidade dos actos
São nulos os actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
[…]”

Ou seja, desde a sua entrada em vigor, até à sua revogação, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, manteve praticamente inalteradas aquelas normas legais.

Tendo o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, que lhe introduziu alterações profundas, de todo o modo, em torno do que estava vertido naquele outro diploma face ao que constituía o seu objecto, o sistema de gestão territorial, a vinculação jurídica, e a invalidade dos actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial, mantiveram-se essas previsões normativas inalteradas no que é a sua essencialidade [Cfr. artigo 1.º, 2.º, 3.º, e 130.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio].

Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, cumpre para aqui convocar o Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio [que revoga, entre o mais, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, com efeitos reportados a 13 de julho de 2015].

Como assim consignado no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, por via deste diploma legal eram desenvolvidas as bases da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, definindo o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional, intermunicipal e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.

Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, para aqui extraímos normas desse diploma legal, como segue:

“Artigo 2.º
Sistema de gestão territorial
1 - A política de ordenamento do território e de urbanismo assenta no sistema de gestão territorial, que se organiza, num quadro de interação coordenada, em quatro âmbitos: [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
a) O âmbito nacional;
b) O âmbito regional;
c) O âmbito intermunicipal;
d) O âmbito municipal. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
2 - O âmbito nacional é concretizado através dos seguintes instrumentos:
a) O programa nacional da política de ordenamento do território;
b) Os programas setoriais;
c) Os programas especiais.
3 - O âmbito regional é concretizado através dos programas regionais.
4 - O âmbito intermunicipal é concretizado através dos seguintes instrumentos:
a) Os programas intermunicipais;
b) O plano diretor intermunicipal;
c) Os planos de urbanização intermunicipais;
d) Os planos de pormenor intermunicipais.
5 - O âmbito municipal é concretizado através dos seguintes planos: [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
a) O plano diretor municipal; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
b) Os planos de urbanização;
c) Os planos de pormenor.
Artigo 3.º
Vinculação jurídica
1 - Os programas territoriais vinculam as entidades públicas.
2 - Os planos territoriais vinculam as entidades públicas e, direta e imediatamente, os particulares. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
3 - O disposto nos números anteriores não prejudica a vinculação direta e imediata dos particulares relativamente às normas de intervenção sobre a ocupação e utilização dos espaços florestais.
4 - São nulas as orientações e as normas dos programas e dos planos territoriais que extravasem o respetivo âmbito material.
5 - As normas dos programas territoriais que, em função da sua incidência territorial urbanística, condicionem a ocupação, uso e transformação do solo são obrigatoriamente integradas nos planos territoriais.
Artigo 4.º
Fundamento técnico
1 - Os programas e os planos territoriais devem explicitar, de forma clara, os fundamentos das respetivas previsões, indicações e determinações, a estabelecer com base no conhecimento sistematicamente adquirido:
a) Das características físicas, morfológicas e ecológicas do território; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]

b) Dos recursos naturais [sublinhado da autoria deste TCA Norte] e do património arquitetónico e arqueológico;
c) Da dinâmica demográfica natural e migratória;
d) Das transformações ambientais, económicas, sociais e culturais;
e) Das assimetrias regionais e das condições de acesso às infraestruturas, aos equipamentos, aos serviços e às funções urbanas.
2 - Os programas e os planos territoriais devem conter os indicadores qualitativos e Quantitativos para efeitos da avaliação prevista no capítulo VIII.
[…]”

Seja em face do disposto no Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, seja do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, os planos territoriais/municipais vinculam directa e imediatamente as entidades públicas e os particulares, sendo que a violação de qualquer instrumento de gestão territorial, o que é o caso do Regulamento PDM, importa na nulidade dos actos praticados [Cfr. artigo 103.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, e artigo 130.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio].

Dispõe ainda o artigo 68.º do RJUE [tempus regit actum], como segue:

“Artigo 68.º
Nulidades
Sem prejuízo da possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos nos termos gerais de direito, bem como do disposto no artigo 70.º, são nulas as licenças, as autorizações de utilização e as decisões relativas a pedidos de informação prévia previstos no presente diploma que:
a) Violem o disposto em plano municipal [sublinhado da autoria deste TCA Norte] ou intermunicipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença ou comunicação prévia de loteamento em vigor;
[…]
c) Não tenham sido precedidas de consulta das entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações sejam legalmente exigíveis, bem como quando não estejam em conformidade com esses pareceres, autorizações ou aprovações.” [sublinhado da autoria deste TCA Norte].

Por seu turno, a Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, veio estabelecer a titularidade dos recursos hídricos.

Por julgarmos com interesse para a decisão a proferir, para aqui extraímos normativos desse diploma legal, como segue:

[…]
Artigo 1.º
Âmbito
1 - Os recursos hídricos a que se aplica esta lei compreendem as águas, abrangendo ainda os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
2 - Em função da titularidade, os recursos hídricos compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, pertencentes a entidades públicas ou particulares. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
Artigo 2.º
Domínio público hídrico
1 - O domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
2 - O domínio público hídrico pode pertencer ao Estado, às Regiões Autónomas e aos municípios e freguesias.
[…]
Artigo 5.º
Domínio público lacustre e fluvial
O domínio público lacustre e fluvial compreende: [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
a) Cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos, nos termos do artigo seguinte;
b) Lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos, nos termos do artigo seguinte;
c) Cursos de água não navegáveis nem flutuáveis, com os respectivos leitos e margens, desde que localizados em terrenos públicos, ou os que por lei sejam reconhecidos como aproveitáveis para fins de utilidade pública, como a produção de energia eléctrica, irrigação, ou canalização de água para consumo público;
d) Canais e valas navegáveis ou flutuáveis, ou abertos por entes públicos, e as respectivas águas;
e) Albufeiras criadas para fins de utilidade pública, nomeadamente produção de energia eléctrica ou irrigação, com os respectivos leitos;
f) Lagos e lagoas não navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos e margens, formados pela natureza em terrenos públicos;
g) Lagos e lagoas circundados por diferentes prédios particulares ou existentes dentro de um prédio particular, quando tais lagos e lagoas sejam alimentados por corrente pública;
h) Cursos de água não navegáveis nem flutuáveis nascidos em prédios privados, logo que as suas águas transponham, abandonadas, os limites dos terrenos ou prédios onde nasceram ou para onde foram conduzidas pelo seu dono, se no final forem lançar-se no mar ou em outras águas públicas. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
[…]
Artigo 7.º
Domínio público hídrico das restantes águas
O domínio público hídrico das restantes águas compreende:
a) Águas nascidas e águas subterrâneas existentes em terrenos ou prédios públicos;
b) Águas nascidas em prédios privados, logo que transponham abandonadas os limites dos terrenos ou prédios onde nasceram ou para onde foram conduzidas pelo seu dono, se no final forem lançar-se no mar ou em outras águas públicas; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
c) Águas pluviais que caiam em terrenos públicos ou que, abandonadas, neles corram; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
d) Águas pluviais que caiam em algum terreno particular, quando transpuserem abandonadas os limites do mesmo prédio, se no final forem lançar-se no mar ou em outras águas públicas; [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
e) Águas das fontes públicas e dos poços e reservatórios públicos, incluindo todos os que vêm sendo continuamente usados pelo público ou administrados por entidades públicas.
[…]
Artigo 21.º
Servidões administrativas sobre parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas
1 - Todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e nomeadamente a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e ainda da fiscalização e policiamento das águas pelas entidades competentes. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
2 - Nas parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas, bem como no respectivo subsolo ou no espaço aéreo correspondente, não é permitida a execução de quaisquer obras permanentes ou temporárias sem autorização da entidade a quem couber a jurisdição sobre a utilização das águas públicas correspondentes. [sublinhado da autoria deste TCA Norte]
3 - Os proprietários de parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas devem mantê-las em bom estado de conservação e estão sujeitos a todas as obrigações que a lei estabelecer no que respeita à execução de obras hidráulicas necessárias à gestão adequada das águas públicas em causa, nomeadamente de correcção, regularização, conservação, desobstrução e limpeza.
4 - O Estado, através das administrações das regiões hidrográficas, ou dos organismos a quem estas houverem delegado competências, as regiões autónomas nos respetivos territórios, e o município, no caso de linhas de água em aglomerado urbano, podem substituir-se aos proprietários, realizando as obras necessárias à limpeza e desobstrução das águas públicas por conta deles.
5 - Se da execução das obras referidas no n.º 4 resultarem prejuízos que excedam os encargos resultantes das obrigações legais dos proprietários, o organismo público responsável pelos mesmos indemnizá-los-á.
6 - Se se tornar necessário para a execução de quaisquer das obras referidas no n.º 4 qualquer porção de terreno particular, ainda que situado para além das margens, o Estado ou as regiões autónomas nos respetivos territórios, podem expropriá-la.
[…]”

Conforme já apreciamos supra, a dilucidação das questões suscitadas nos autos, designadamente em torno da concreta função do aqueduto sob a EN...3, do nivelamento das cotas de terreno do Contra interessado e suas implicações com os terrenos adjacentes, assim como do curso futuro da linha de água representada no PDM ..., dada a sua natureza eminentemente técnica, e a profundidade do conhecimento que sobre ele tem de recair, e estando nós no âmbito de um processo cautelar, aquela matéria, em torno das invocadas invalidades apontadas ao acto suspendendo, terá de ser objecto de conhecimento mais aprofundado em sede do conhecimento do mérito do pedido formulado na acção principal.

Como assim resultou provado [Cfr. ponto 5a) do probatório], no PDM está representado um “leito de curso de água”, sendo que esta “linha” atravessa de facto o prédio do Contra interessado.

Essa “linha de água” está representada no PDM, e tem efeitos vinculativos quer para o MUNICÍPIO ..., quer para o Contra interessado [Cfr., entre outros, os artigos 1.º, n.º 2 e 37.º do RPDM].

A sua existência física é que pode encerrar algumas dúvidas, mas para a sua negação não pode ser considerado, somente, que em deslocação ao local se constatou a inexistência da linha de água representada no PDM.

A linha de água está representada num instrumento de gestão territorial, sendo que se ela existe na realidade, isto é, sobre se ela está lá patente na actualidade, ou se já existiu, num passado mais próximo ou mais longínquo, encerra uma contextualidade que pode ter origem em vários cenários e fundamentos.

Assim, quanto à condicionante a que se reporta “o leito de curso de água” representada no PDM e para a zona em causa, há fortes indícios nos autos de a mesma nunca ter sido considerada pelo MUNICÍPIO ... para efeitos de apreciação e licenciamento de quaisquer operações urbanísticas por si aprovadas no passado, incluindo a atinente à pretensão apresentada pelo Contra interessado, e se eventualmente o foi alguma vez, que sempre não lhe foi dada a relevante significância devida.

Por experiência de vida, se tivermos presente que no PDM está representado um leito de água, e que o seu percurso no terreno sempre tem, forçosa e necessariamente, de respeitar as condições morfológicas do solo assim como a lei da gravidade, forçoso é pois de concluir e julgar que, existindo, ou tendo existido no passado, mais distante ou mais recente, uma linha de água, ainda que de fraco ou insignificativo caudal, e se forem/se foram sendo construídas barreiras físicas no seu caminho, seja por via do aterramento do solo, seja por via de edificação, seja muita ou pouca água que corra/possa correr nessa linha de água representada no PDM, sendo um elemento da natureza que se regula por leis da física, em face de uma barreira que lhe seja presente, a linha de água ou submerge por baixo dessa estrutura [não sendo provável que a transponha por cima] ou segue para um dos lados da barreira, ou dividindo-se pelos dois lados.

O que tudo acaba por levar a que a linha de água prevista no PDM [que assim foi graficamente referenciada em face do constante em anteriores mapas cartográficos] pode hoje não existir, ou não ser visível, por força da intervenção técnica e humana em torno do seu curso original, a montante do terreno do Contra interessado, seja a jusante, e para o que pode ter contribuído a construção das novas infraestruturas introduzidas nesse local pela Estrada nacional ...3.

Como assim resulta do probatório, assim fixado por interposição deste TCA Norte, no âmbito e para efeitos do pedido de licenciamento requerida pelo Contra interessado, sendo manifestamente patente, em face do que consta do PDM, da sua Planta de condicionantes, que pelo terreno do Contra interessado passa uma linha de água, e cuja análise do pedido de licenciamento a desconsiderou, tal é determinante da nulidade da licença que tenha sido concedia ao seu abrigo normativo, mormente que o MUNICÍPIO ... tenha concedido em sede de licenciamento da operação urbanística.

Em face da nulidade com que é fulminado o procedimento licenciatório, e nele, consequentemente, a decisão que a final foi produzida, designadamente o acto suspendendo, datado de 13 de junho de 2021, no qual foi emitido o Alvará de licença n.º 1/2021, não pode ser aproveitado, a qualquer título, o que foi o resultado do pedido de parecer à Agência Portuguesa do Ambiente por parte do MUNICÍPIO ... e com base num argumento de fundo. É que o parecer emitido pela APA, assenta ele próprio em erro nos seus pressupostos de facto e de direito, violando expressamente o disposto no artigo 20.º, n.º 1 do RJUE, que a final se vem a manifestar na emissão de um documento, em sede de um procedimento incidental iniciado junto de si pelo MUNICÍPIO ... [ou pela CCDRN], pois que na Planta de condicionantes do PDM vem expressamente consagrada a representação física de uma linha de água.

A lei e o Regulamento, que o Requerido [assim como o Contra interessado] deve observar, sendo um limite à sua actuação, é sobretudo o fundamento da sua acção, pelo que, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, mas antes, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça.

O princípio da legalidade está necessariamente conexionado com outros princípios, como a igualdade e a justiça, também previstos no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, e aponta para o princípio mais abrangente da juridicidade da Administração, sendo que os mesmos só relevam, em princípio, na actividade discricionária da Administração, já que no campo vinculado o que importa ver é se a legalidade foi respeitada.

De maneira que, neste conspecto, porque o acto de licenciamento titulado pelo Alvará n.º ...1, emitido em 18 de junho de 2021 pelo Vereador da Câmara Municipal ..., não está/pode não estar conforme com o bloco de legalidade, numa avaliação sumária,
julgamos assim que é provável que a pretensão que venha a ser formulada pelos Requerentes, em sede da acção principal, venha a ser julgada procedente, estando assim verificado quer o periculum in mora quer o fumus iuris, e como assim ainda julgamos, efectuada a ponderação de interesses em presença, também o requisito a que se reporta o artigo 120.º, n.º 2 do CPTA.

Com efeito, atento o estado dos autos, mormente, a natureza da providência cautelar requerida, o tribunal leva a cabo uma apreciação sumária da prova apresentada, sendo que esta tem de ter relevância para a questão decidenda, considerando a violação das normas invocadas e o confronto entre os interesses dos Requerentes e do interesse público [assim como o interesse do Contra interessada], avaliada em função das circunstâncias de facto concretas alegadas de parte a parte, e dos factos provados, ainda que indiciariamente, não sobrevem nenhuma razão para que em sede da ponderação dos interesses em presença, o acto deva continuar válido na sua eficácia, e que o Contra interessado possa continuar a prosseguir em face do que lhe permitiu o acto licenciatório.

Conforme refere Ana Gouveia Martins, in A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo, página 505: ”Será necessário mas suficiente que a produção dos danos seja credível e razoavelmente fundada, com base num juízo de séria probabilidade. Ao tribunal compete proceder a um juízo de “dupla prognose, fáctica e normativa: factos prováveis de que a execução seja causa adequada”.

Por seu lado, José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa (Lições), pág. 303, sustenta que “[...] não se trata aqui de ponderar o interesse público com o interesse privado, mesmo que muitas vezes o interesse do requerido seja o interesse público e o interesse do requerente seja o interesse privado: o que está aqui em conflito são os resultados ou os prejuízos que podem resultar para os interesses, da concessão ou a recusa da concessão, para todos os interesses envolvidos, sejam públicos, sejam privados. [...] o que está em causa não é ponderar valores ou interesses entre si, mas danos ou prejuízos e, portanto, os prejuízos reais, que numa prognose relativa ao tempo previsível de duração da medida, e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, resultariam da recusa ou da concessão (plena ou limitada) da providência cautelar.”

Termos em que, por julgarmos estar em causa uma evidente predominância do interesse público, do ambiente e da observância e garantia da tutela urbanística, em particular do disposto num instrumento de gestão territorial de âmbito municipal, deve assim ser jugado procedente o pedido de tutela cautelar requerido pelos Requerentes ora Recorrentes, devendo suspender-se a eficácia do acto de licenciamento em apreço nos autos, titulado pelo Alvará de licença n.º 1/2021, assim como ser sustidos os trabalhos de remodelação do terreno, até que seja conhecido do mérito da causa que cabe levar a cabo na acção principal [Cfr. artigo 113.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA].

***

E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Processo cautelar; Juízo perfunctório; Tutela jurisdicional efectiva; Requisitos determinantes do decretamento das providências; Princípio da legalidade.

1 – Nos termos do artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, as providências cautelares são adoptadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente, situação em que, como dispõe o n.º 2 deste normativo, mesmo ainda na eventualidade de terem sido julgados verificados esses requisitos determinantes, sempre a adopção das providências pode ser recusada quando em sede da ponderação dos interesses públicos e privados em presença, for julgado que os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.

2 - A existência de perigosidade [seja na vertente do receio da constituição de uma situação de facto consumado, seja na vertente da produção de prejuízos de difícil reparação], e da aparência do bom direito [enquanto avaliação sumária da probabilidade de existência do direito invocado] para os interesses que os Requerentes visam assegurar no processo principal, constituem requisitos determinantes para efeitos de ser apreciada a providência requerida, recaindo sempre sobre eles o ónus de fazer a prova sumária desses requisitos.

3 - Para o decretamento de uma providência cautelar têm de ser invocados, e recolhidos pelo Tribunal a quo, em termos de matéria de facto, indícios suficientes da verosimilhança do direito a ver suspensa a eficácia de um acto administrativo que autoriza e licencia uma operação urbanística, pois só perante a existência de tais elementos de prova e pertinente enquadramento será possível ao julgador formular um juízo positivo a respeito da aparência do direito invocado.

4 - O juízo que cabe levar a cabo no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, não pode o julgador misturá-lo com o juízo que deve ser feito a título principal, visto tratar-se dum juízo perfunctório, sumário, tal como é reclamado pelo legislador em termos cautelares, por constituir um juízo que é formulado sob reserva de se poder chegar a uma conclusão diversa em sede do processo principal.

5 - A lei e o Regulamento, que o Requerido [assim como o Contra interessado] deve observar, sendo um limite à sua actuação, é sobretudo o fundamento da sua acção, pelo que, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, mas antes, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça.

6 - O princípio da legalidade está necessariamente conexionado com outros princípios, como a igualdade e a justiça, também previstos no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, e aponta para o princípio mais abrangente da juridicidade da Administração, sendo que os mesmos só relevam, em princípio, na actividade discricionária da Administração, já que no campo vinculado o que importa ver é se a legalidade foi respeitada.

***

IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência em NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelos Recorrentes MUNICÍPIO ... e «AA», mantendo a Sentença recorrida, embora com diferente fundamentação.

*

Custas a cargo dos Recorrentes – Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

**

Notifique.
*


Porto, 17 de novembro de 2023.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Luís Migueis Garcia – voto a decisão
Maria Alexandra Ribeiro