Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00189/06.5BEMDL |
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Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
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Data do Acordão: | 02/25/2011 |
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Tribunal: | TAF de Mirandela |
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Relator: | Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro |
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Descritores: | USO DE FRACÇÃO PARA ACTIVIDADE DE CULTO RELIGIOSO |
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Sumário: | 1. A lei de liberdade religiosa – Lei nº 16/2001 de 22/6 – não contém qualquer norma a prever o prévio licenciamento ou autorização para o exercício de culto, nem sequer a «declaração prévia» actualmente exigida para alguns estabelecimentos de prestação de serviços. 2. Mesmo em prédio ou fracção licenciada para habitação ou comércio pode ser instalado um lugar de culto, bastando para o efeito o acordo do proprietário ou da maioria dos condóminos, não sendo exigida qualquer autorização administrativa. 3. Em caso de ruído provocado pelas actividade de culto religioso, o presidente da câmara municipal dispõe de poderes de fiscalização e poderes cautelares que evitam a ocorrência de danos à saúde e sossego dos moradores, designadamente o poder de suspender ou encerrar preventivamente a actividade ou o local de culto.* * Sumário elaborado pelo Relator |
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Data de Entrada: | 09/17/2010 |
Recorrente: | Associação religiosa... |
Recorrido 1: | Município de Bragança |
Votação: | Unanimidade |
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Meio Processual: | Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional |
Decisão: | Concedido provimento ao recurso |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | Negar provimento ao recurso |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte: 1 – O Instituto…, associação religiosa com sede em Bragança, interpõe recurso jurisdicional do acórdão proferido em 02/07/2009 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou improcedente a acção administrativa especial por si interposta contra o Município de Bragança. Nas alegações, concluiu o seguinte: 1. A sentença ora recorrida faz errada interpretação dos pressupostos de facto e de direito ao considerar que o acto impugnado não padece dos vícios que lhe são apontados, nomeadamente, violação do princípio da boa fé, da Lei da Liberdade Religiosa (art. 29º), dos direitos fundamentais da liberdade religiosa e de culto, bem como do princípio da audiência prévia. 2. Com efeito, conforme entendeu a douta decisão sub judice, o Presidente da Câmara começou por ordenar a cessação da utilização da fracção com fundamento no uso diferente do previsto na licença. Depois, revoga essa decisão por violação de lei e a que agora é impugnada tem como fundamento a falta de licença de utilização. 3. Pois, na sequência do Requerimento apresentado pelo proprietário da fracção, o Presidente da Câmara Municipal de Bragança revogou aquele despacho por aceitar que o fim dado à fracção estava abrangido nos fins licenciados, designadamente “serviços”. 4. Porém, entendeu o Presidente da Câmara Municipal que o autor devia requerer o licenciamento específico para o exercício da actividade de culto religioso na referenciada fracção AG. 5. Como o autor nada fez, fixou o prazo de 15 dias úteis para a cessação da utilização da referida fracção autónoma, em virtude de ter sido ocupada sem a necessária autorização de utilização. 6. Entendeu assim que a decisão sindicada não tem como fundamento o uso da fracção diferente daquele para o qual está licenciado, pois de acordo com a última decisão tomada, a administração aceita que no local seja praticado o culto religioso, mas exige que seja requerida a licença específica para aquele fim, pelo que as premissas em que assenta o autor estão erradas o que conduz à improcedência do fundamento. 7. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, é a douta decisão ora impugnada que assenta em premissas erradas padecendo o acto impugnado dos vícios que lhe são apontados, pois reconhecendo o Presidente da Câmara Municipal de Bragança que a fracção não está a ser utilizada para fim diferente do licenciado, tal equivale, como a própria sentença reconhece, a dizer que o fim dado à fracção está abrangido nos fins licenciados, designadamente “serviços”, o que equivale a dizer que a fracção tem licença para culto religioso, pelo que não padece de falta de licença de utilização. 8. Acresce que, não existe licenciamento específico para a actividade de culto religioso, o que aliás violaria os direitos fundamentais da liberdade religiosa e de culto consagrados constitucionalmente e directamente aplicáveis bem como a própria Lei da Liberdade Religiosa. 9. Sendo a liberdade religiosa um direito fundamental, o exercício efectivo do culto religioso, nunca poderia ficar dependente de qualquer acto administrativo de autorização para o seu efectivo exercício, conforme foi invocado, excepto se estivessem em causa outros direitos fundamentais. 10. Tanto mais que conforme também refere a douta sentença ora recorrida, no despacho sindicado não foi invocado o direito ao sossego e tranquilidade dos condóminos como fundamento para o decidido. 11. Face ao exposto, e conforme aceita a douta sentença sub judice, o fim dado à fracção estava abrangido nos fins licenciados, designadamente “serviços”, pelo que, a contrario senso, não padece a mesma de falta de licença de utilização para culto religioso. 12. Quando muito incumbiria às autoridades administrativas providenciar no sentido da reposição do equilíbrio ambiental quando perturbado ou degradado, inclusivamente no âmbito do controle do licenciamento municipal de edifícios, que visa garantir que edifícios ou fracções reúnem os requisitos necessários para satisfação das finalidades a que se destinam. 13. No âmbito dos direitos ao ambiente e à qualidade de vida, inclui-se o de protecção contra a poluição sonora, que constitui um dos principais factores de degradação da qualidade de vida das populações (Ac. STA de 23.10.2002, Proc. 01102/02). 14. Ora, conforme foi referido pelo Réu e consta da sentença ora recorrida, no despacho sindicado não foi invocado o direito ao sossego e tranquilidade dos condóminos como fundamento para o decidido nem estes se constituíram como contra-interessados nos presentes autos. 15. Assim, a CRP protege e consagra o direito fundamental à liberdade de culto possuindo como limites imanentes com cujo âmbito e objecto têm de ser devidamente compaginados e conciliados, tais por ex. o direito à habitação em condições de higiene e conforto que serve a intimidade pessoal e a privacidade familiar e o direito ao ambiente e qualidade de vida (AC. STA de 26.07.95, Proc. 038118), que nem sequer são postos em causa no acto ora impugnado, pelo que não se vislumbra a que título e para que fim pretende o Presidente da Câmara de Bragança que seja requerido licenciamento específico para culto religioso quando tal fim já está abrangido pelo alvará de licença de utilização nº 17/03, emitido pela mesma Câmara. 16. Por exemplo, um grupo de cidadãos procurou encerrar uma Igreja Evangélica – Assembleia de Deus, com base na falta de licença e elevado ruído. O Tribunal ordenou a insonorização do templo e fixou as horas a que poderia ser realizado o culto religioso, medida esta que parece excessiva (cfr. Teles Pereira, Les Èglises et l´État au Portugal, European Journal for Church and State Research, 3, 1996, 104 e seguintes). 17. Sem prescindir, a decisão ora recorrida não pode recusar relevância invalidante à preterição da audiência de interessados, por não se poder afirmar que a decisão viciada só podia ter o conteúdo que teve em concreto, pelo que procede a anulabilidade do acto impugnado (Ac. STA de 28.05.98, Proc. 041522). 18. Pois, o art. 109º, nº 1 do D.L. 555/99, de 16 de Dezembro, estipula que o Presidente da Câmara Municipal é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupadas sem a necessária licença ou autorização de utilização ou quando estejam a ser afectos a fim diverso do previsto no respectivo alvará, não distinguindo entre as duas hipóteses, já que a utilização para fim diverso equivale a falta de licença para o fim utilizado, não correspondendo nenhuma das situações ao caso em apreço, já que foi reconhecido pelo Presidente da Câmara que o fim dado à fracção estava abrangido pelos fins licenciados, designadamente “serviços”, pelo que nunca poderia decidir carecer a fracção AG de licença de utilização para culto religioso. Nas contra-alegações, o recorrido pugna pelo não provimento do recurso. O Ministério Público junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do art. 146º, nº1 do CPTA, pronunciou-se pela improcedência do recurso. 2. O aresto recorrido deu como provado os seguintes factos: 1) O autor é uma associação de culto religioso, sem fins lucrativos. 2) O autor vem utilizando para os actos de culto religioso, há mais de um ano, a fracção autónoma designada pelas letras “AG”, correspondente ao rés-do-chão, do prédio urbano sito na Rotunda…, freguesia da Sé, concelho de Bragança, com base num contrato de comodato – doc. n. 1 junto com a petição. 3) No referido local, o único que o autor tem, são celebradas quatro cerimónias semanais de culto: às quartas e sextas-feiras, das 20h00 às 21h30 e aos domingos das 10h às 12h e das 15h às 17h30 – processo administrativo. 4) Sendo indeterminado o número de pessoas que a elas assistem, embora na ordem das dezenas – processo administrativo. 5) Por ofício datado de 12-07-2005, assinado pelo Presidente da Câmara de Bragança, a D. Ângela Marília Reis Martins, foi notificada para proceder à cessação da utilização da referida fracção «em virtude de esta se encontrar a ser utilizada para fim diverso ao previsto no alvará de licença de utilização emitido pela Câmara Municipal.» - documento n.º 2 junto com a petição. 6) O proprietário da aludida fracção, o Sr. V…, requereu junto da Câmara Municipal de Bragança a revogação da deliberação de cessação da utilização em virtude de entender que a mesma estava abrangida pelo alvará n.º 17/03, emitido em 27-01-2003 que abarca “restauração/bebidas e ou serviços e ou comércio” – docs. 3 e 4 juntos com a petição. 7) Na sequência do requerimento do proprietário da infracção o aqui autor foi notificado pelo oficio n.º 649, de 18-01-2006, assinado pelo Presidente da Câmara de Bragança, que: «Por Despacho proferido pelo Sr.º Presidente da Câmara Municipal, em 18/01/2006, sustentado na informação jurídica prestada pelo Gabinete Jurídico desta edilidade, em 22/12/2005, corroborada pelo Sr.º Chefe de Divisão de Urbanismo, Arqt.º D…, em 29/12/2005, foi revogado o Despacho de 11/07/2005, do Sr.º Presidente da Câmara Municipal, que fixou em 30 dias o prazo para terminar a utilização indevida da fracção, em virtude de esta se encontrar a ser utilizada para fim diverso ao previsto no alvará de autorização de utilização n.º 17/03, de 27 de Janeiro, emitido pela Câmara Municipal, cfr. artigo 109º, n.º 1, in fine, do D.L. n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pelo D.L. n.º 177/2001, de 04 de Junho, porque enfermo do vício de violação de lei, cfr. o n.º 1 do artigo 136º conjugado com o artigo 141º e n.º 1 do artigo 142º todos do CPA. Mais se notifica, nos termos do artigo 71º, n.º 2 do CPA (ex vi artigo 122º do D.L. 555/99), que deve o Instituto… /organização religiosa, na qualidade de comodatário da Fracção AG (vd. Contrato de Comodato celebrado entre o proprietário/ Sr.º V… e o Instituto…), representado pelo Sr.º H…, no prazo de 10 dias, vir requerer o licenciamento específico para o exercício da actividade de culto religioso na referenciada Fracção AG, junto desta autarquia, sempre no respeito pelas normas legais e regulamentares aplicáveis.» - doc. 5 junto com a petição. 8) Por ofício n.º 2509, datado de 16-03-2006, assinado pelo Vereador Permanente, Arq.º A…, por delegação de competências, foi H…, na qualidade de Representante do Instituto … notificado que: «Na sequência do oficio nº 649 de 18-02-2006, que lhe foi enviado na qualidade de comodatário da fracção “AG” do prédio supra, e por se verificar que não requereu junto desta autarquia o licenciamento específico para o exercício da actividade de culto religioso, no respeito pelas normas legais e regulamentares aplicáveis, fica por este V. Exa NOTIFICADO que, por despacho do Exmº Sr. Presidente da Câmara Municipal datado de 14 do corrente mês foi fixado, nos termos do artº 109º, nº 1 do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pelo DL nº 177/01, de 4 de Junho, o prazo de 15 dias úteis para cessação da utilização da referida fracção autónoma, em virtude de ter sido ocupada sem a necessária autorização de utilização. Mais fica NOTIFICADO que, caso o Instituto…, não cesse a utilização indevida no prazo fixado, a Câmara Municipal pode determinar o despejo administrativo, aplicando-se com as devidas adaptações o disposto no artº 92º, de acordo com o preceituado no nº 2 do artº 109º do diploma antes mencionado.» - doc. 6 junto com a petição. 3. O recorrente é uma associação religiosa que, titulada por um contrato de comodato, ocupa uma fracção licenciada para “restauração/bebidas e ou serviços ou comércio”, utilizando-a para a prática de actos de culto religioso. O presidente da Câmara Municipal, numa primeira decisão, ordenou a cessação da actividade de culto religioso nessa fracção, «em virtude de esta se encontrar a ser utilizada para fim diverso ao previsto no alvará de licença de utilização emitido pela Câmara Municipal». Na sequência de requerimento apresentado pelo proprietário da fracção, o presidente revogou aquele despacho, por aceitar que o fim dado à fracção estava abrangido nos fins licenciados, designadamente a finalidade de “serviços”. Mas, no mesmo despacho ordenou a notificação do recorrente para no prazo de 10 dias requerer o «licenciamento específico» para o exercício da actividade de culto religioso na referenciada fracção, no respeito pelas normas legais e regulamentares aplicáveis. Como no prazo concedido o recorrente nada fez, o presidente, invocando o disposto no artigo 109º, nº 1 do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pelo DL nº 177/01, de 4 de Junho, fixou o prazo de 15 dias úteis para «cessação da utilização» da referida fracção autónoma, em virtude de ter sido ocupada sem a necessária autorização de utilização. O recorrente interpôs acção administrativa especial pedindo a declaração de nulidade ou a anulação desse despacho com fundamento na violação do direito fundamental à liberdade religiosa e dos princípios da boa fé, da proporcionalidade e da audiência prévia. O acórdão recorrido julgou improcedente a acção com um argumento de ordem formal: o recorrente delineou a acção como se o fundamento para a cessação de utilização tivesse sido a afectação a fim diverso do previsto no alvará, quando o acto impugnado teve por fundamento a falta de autorização de utilização do local para culto religioso. Por isso mesmo, diz o acórdão, «tal equívoco conduz à improcedência dos vícios apontados ao acto». E que só teria sentido invocar a violação da boa fé, dos direitos fundamentais, do artigo 29º da Lei nº 16/2001, de 22/6 (Lei de Liberdade Religiosa) e do princípio da proporcionalidade, se o fundamento do acto impugnado tivesse sido a afectação da fracção a fim diverso do licenciado ou a falta de sossego e tranquilidade dos condóminos; mas como não é esse o fundamento do acto, o acto mantêm-se intocável. Quanto à preterição da audiência prévia, considerou-se estar perante o exercício de poderes vinculados e, por isso mesmo é de aproveitar o acto impugnado, pois não oferece «qualquer dúvida» a interpretação a dar ao art. 109º do DL nº 555/99, de 16/12. O recorrente discorda desta decisão e tem toda a razão, no que respeita ao motivo pelo qual se evitou conhecer das ilegalidades. Ao contrário do que se diz no acórdão, o recorrente não acciona o Município pelo facto de ter ordenado a cessação de utilização do local com fundamento em uso diferente do licenciado. A causa de pedir da acção é o facto de se exigir uma autorização para o exercício do culto religioso no local, facto com o qual a recorrente discorda, por entender já possuir autorização para tal. O recorrente é muito claro quanto a isso: «o requerente não solicitou licenciamento específico para o exercício da actividade de culto por entender que o mesmo estava abrangido pelo alvará existente» (art. 11º da petição inicial); «não é necessária qualquer licença para o exercício do culto religioso, pois tal equivaleria a uma restrição administrativa ao direito de liberdade de culto, o que não se coaduna com a primazia do direito constitucional» (art. 42º da p.i); «o despacho sub judice tem como fundamento exclusivo o interesse público consubstanciado na falta da devida licença (que na perspectiva da requerente existe para serviços) e não a defesa dos interesses privados do sossego e da tranquilidade» (art. 59º da p.i). Não se pode pois dizer que o autor delineou a acção como se estivesse em causa a cessação do uso da fracção motivada por afectação a fim diverso do previsto no alvará. As ilegalidades que imputa acto dirigem-se directamente ao conteúdo do acto impugnado e ao procedimento em que ele foi tomado: a violação boa fé assenta no facto de em despacho anterior ter sido considerado que o culto religioso estava em conformidade com o alvará; a violação do direito fundamental funda-se no facto de se exigir autorização prévia para o exercício de culto religioso; e a falta de audiência prévia reporta-se ao acto impugnado. Só a violação do princípio da proporcionalidade é que está desfocada do acto, uma vez que o princípio é invocado como factor de ponderação da colisão entre o direito à liberdade de culto e o direito à saúde e sossego, sendo certo que não foi com base na perturbação deste ultimo que o acto foi praticado. Pode-se, desde já, avançar que o pecado original do Município recorrido foi ter enquadrado esta questão no âmbito do regime jurídico da urbanização e edificação, constante do DL nº 555/99 de 16/12 (alterado pelo DL nº 177/2001 de 4/6), e não no âmbito do regime jurídico da poluição sonora, na data regulado pela DL nº 292/2000, de 14/1 (alterado pelo DL nº 259/2002, de 23/11). Com efeito, quer a administração do condomínio quer alguns condóminos fizeram queixa do ruído causado pela forma como o culto religioso era exercido no local. Para acudir a tais queixas, a presidente da câmara municipal dispunha e dispõe de poderes de fiscalização e poderes cautelares que evitam a ocorrência de danos à saúde e sossego dos moradores, designadamente o poder de suspender ou encerrar preventivamente a actividade ou o local de culto (cfr. art. 27º do DL nº 292/2000). Ao enquadrar este problema no regime das edificações urbanas defrontou-se com a questão crucial neste processo, que é a de saber se o local está ou não licenciado para aquela finalidade. Tendo, numa primeira fase, despachado que não, acabou por revogar esse despacho e admitir que a culto religioso se enquadrava na finalidade «serviços» constante do alvará de utilização da fracção. Embora esse juízo seja questionável, está o mesmo arredado do processo, porque a câmara municipal entende que, além dessa licença de utilização, tem que existir uma nova licença para que no local funcione um local de culto. O raciocínio é simples: tal como a instalação de um estabelecimento de comércio ou de prestação de serviços precisa de licença de utilização, também o estabelecimento de um lugar de culto está sujeito à mesma licença. Mas, se esse raciocínio é correcto para alguns estabelecimentos de comércio ou armazenagem de produtos alimentares, incluindo restauração e bebidas, estabelecimentos de produtos não alimentares e de prestação de serviço, não é para os locais de culto. A lei não prevê qualquer procedimento para licenciar ou autorizar um local de culto. Na data da prática do acto impugnado, o licenciamento do funcionamento daqueles estabelecimentos estava regulado no DL nº 370/99, de 18/9 (estabelecimentos de comércio e prestação de serviços) e no DL nº 57/2002 de 11/3 (estabelecimentos de restauração e bebidas). O objectivo da licença de utilização estava definido no nº 2 do artigo 11º do primeiro diploma: «destina-se a comprovar, para além da conformidade da obra concluída com o projecto aprovado, a adequação do estabelecimento ao uso previsto e a observância das normas legais e regulamentares aplicáveis ao tipo de estabelecimento a instalar, nomeadamente às condições sanitárias e de segurança contra riscos de incêndio». Nem todos os estabelecimentos estavam sujeitos a prévia licença de utilização, mas apenas os identificados na Portaria nº 33/2000, de 28/1. Por isso, mesmo que se admitisse que o culto religioso é uma «prestação de serviços», por não estar referido naquela portaria, o local de culto não está sujeito a licença de utilização. Actualmente, o funcionamento desses estabelecimentos, incluindo os de serviços, está regulado no DL nº 259/2007, de 17/7 e na Portaria nº 791/2007 de 23/7, sendo suficiente para a sua entrada em funcionamento uma declaração prévia, na qual o titular da exploração se «responsabiliza que o estabelecimento cumpre todos requisitos adequados ao exercício da actividade ou do ramo de comércio» (nº 1 do art. 4º). A lei de liberdade religiosa – Lei nº 16/2001 de 22/6 – não contém qualquer norma a prever o prévio licenciamento ou autorização para o exercício de culto, nem sequer a «declaração prévia» actualmente exigida para alguns estabelecimentos de prestação de serviços. Bem pelo contrário, no que respeita aos locais de culto, dá indicação de que não deve haver constrangimentos administrativos. A alínea b) do artigo 23º preceitua que «as igrejas de demais comunidades religiosas são livres no exercício das suas funções e do culto, podendo, nomeadamente, sem interferências do Estado ou de terceiros, estabelecer lugares de culto ou de reunião para fins religiosos»; e o nº 1 do artigo 29º estabelece que «havendo acordo do proprietário, ou da maioria dos condóminos no caso de edifício em propriedade horizontal, a utilização para fins religiosos do prédio ou da fracção destinadas a outros fins não pode ser fundamentos de objecção, nem da aplicação de sanções, pelas autoridades administrativas ou autárquicas, enquanto não existir uma alternativa adequada à realização dos mesmos fins». Portanto, mesmo em prédio ou facção licenciado para habitação ou comércio pode ser instalado um lugar de culto, bastando para o efeito o acordo do proprietário ou da maioria dos condóminos, não sendo exigida, até se encontre uma alternativa adequada, qualquer autorização administrativa. Isto não significa que a liberdade de culto prevista no nº 1 do artigo 41º da CRP não possa ser limitada em função de outras direitos fundamentais, tal como a saúde e o ambiente. Com qualquer outro direito fundamental, a lei pode estabelecer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos, como expressamente se prevê no nº 2 do artigo 18º da CRP. Como se diz no acórdão do STA de 23/10/2002 (proc. nº 01102/02, in www. dgsi.pt) «está afastada a possibilidade de o princípio da liberdade de culto servir de suporte para isentar a recorrente das obrigações ou deveres que são impostos à generalidade dos cidadãos, designadamente da observância das regras do ordenamento urbanístico e das que visam satisfazer interesses ambientais». Só que não há norma que, para controlo das condições de segurança e de saúde, exija que os locais de culto sejam previamente autorizados. O Município recorrido entende que essa autorização é exigida pela alínea f) do nº 3 do artigo 4º e nº 2 do artigo 62º do DL nº 555/99. Mas a autorização prevista nessas normas não é a autorização de instalação ou funcionamento de um estabelecimento comercial ou de serviços, mas a licença de utilização do prédio ou fracção emitida na sequência de obras de construção, ampliação ou alteração de edifícios. Como prescreve o nº 2 daquele artigo 62º essa autorização «destina-se a verificar a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e com as condições de licenciamento ou autorização». Não está em causa averiguar se o estabelecimento a instalar no prédio ou fracção é ou não adequado ao uso previsto no alvará e se as normas legais e regulamentares aplicáveis ao tipo de estabelecimento estão satisfeitas. Esta licença de utilização, actualmente substituída pela «declaração prévia», pressupõe que tenha sido emitida aquela. Ora, no caso em apreço, a licença a que se reporta a alínea f) do nº 3 do artigo 4º do DL nº 555/99 já havia sido emitida e titulada pelo alvará nº 17/03. Ou seja, o acto impugnado, caiu no equívoco de exigir do recorrente uma autorização para utilizar a fracção como local de culto, a qual não é legalmente exigível, fazendo-o porém ao abrigo das normas reguladoras da licença de utilização do prédio em conformidade com os fins previsto no título de propriedade horizontal e na licença de construção. Antes de tudo, o acto impugnado ofende o princípio da legalidade, no sentido de que a prática de um acto pela Administração tem que corresponder à sua previsão em lei vigente - princípio da reserva de lei ou da conformidade (nº 1 do art. 3º do CPA). Como esclarece Sérvulo Correia, a vinculação da administração à prossecução do interesse público implica necessariamente a previsão normativa de todos os actos administrativos, ao menos através da atribuição de competência discricionária. No nosso Direito, não são possíveis os actos administrativos preater legem», mesmo no campo da administração de prestação. Os actos administrativos estão sujeitos a uma reserva total de norma jurídica» (cfr. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, pág. 298 e Lições de Direito Administrativo, pág. 243 e ss). Não havendo uma norma prévia a obrigar as igrejas e comunidades religiosas a pedir autorização prévia para estabelecer um local de culto, o acto impugnado é ilegal por ter produzido efeitos que não estavam pré-determinados na lei: ofende a alínea f) do nº 3 do artigo 4º do DL nº 555/99, porque a autorização aí prevista já havia sido concedida; e ofende o artigo 23º da Lei nº 16/2001, porque aí não se prevê que o estabelecimento de lugares de culto esteja dependente de autorização administrativa. Embora o acto impugnado toque em liberdades fundamentais, o seu conteúdo e propósito foi o de aplicar normas urbanísticas e não restringir a liberdade de culto. A lesão reconduz-se à errada aplicação de normas urbanísticas, erro de direito que é suficiente para determinar a anulabilidade do acto impugnado. Mas não é pela desconformidade com as regas da boa fé, nem pela preterição da audiência dos interessados que o acto poderia ser invalidado. O anterior despacho revogatório do acto que considerou que o culto religioso tem um fim diverso do constante no alvará não é um comportamento administrativo que objectivamente provoque uma crença plausível de que as normas legais e regulamentares estão cumpridas. É sempre possível uma acção fiscalizador do local, designadamente para averiguar as condições acústicas do local e a protecção dos interesses ambientais e de saúde dos vizinhos. Por isso, também não é um comportamento contraditório (venire contra factum proprium), violador das boa fé, emitir um acto com fundamentos diversos dos constantes de acto anterior, mesmo que ilegais. Também não houve violação da audiência do contraditório porque, antes da prática do acto, o município havia notificado o recorrente para requerer o «licenciamento especial», acto que lhe abriu a possibilidade de ser ouvido sobre essa solicitação. Se tinha algo a dizer, era esse o momento oportuno; se nada disse é porque, como refere nos articulados, entendeu que a licença não era exigível. Ora, se na pendência do procedimento já tinha essa opinião, mas não quis apresentá-la por escrito à Administração, que interesses justificariam a anular o acto com fundamento em que não foi ouvido? 4. Pelo exposto, acordam em: a) Conceder provimento ao recurso jurisdicional e anular o acórdão recorrido; b) Julgar procedente e provada a acção administrativa especial e consequentemente anular o acto impugnado. Custas pelo recorrido, nesta e na primeira instância. Notifique-se. TCAN, 25 de Fevereiro de 2011 Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho Ass. Antero Pires Salvador |