Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00108/21.9BECBR-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/19/2021
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:FALTA CITAÇÃO ESTADO – NULIDADE CITAÇÃO, MINISTÉRIO PÚBLICO, CENTRO COMPETÊNCIAS JURÍDICAS ESTADO,
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL - N.º 1 DO ART.º 11.º E DO N.º 4 DO ART.º 25.º DO CPTA, NA REDACÇÃO DA LEI N.º 118/2019, DE 17/09.
Sumário:1 . Apesar da parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA se referir à possibilidade de representação do Estado pelo MP, a verdade é que apenas a este incumbe tal representação, atendendo a que não existe norma que lhe retire essa função, subsistindo ainda outros preceitos normativos conexos que continuam a cometer essa tarefa ao MP em sentido positivo.

2 . Da primeira parte do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA apenas resulta que a citação feita ao Estado deve ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, cabendo-lhe assegurar a sua transmissão aos serviços competentes, v.g., ao Procurador da República junto do TAF onde corre o processo, ou em obediência à respetiva lei orgânica do MP.

3 . A coordenação mencionada na última parte do mesmo n.º 4 não confere ao centro de Competências Jurídicas do Estado qualquer espécie de poder funcional sobre o MP, cabendo-lhe apenas coordenar com este último nos termos solicitados, designadamente recolhendo as informações e os elementos necessários junto dos diversos gabinetes ministeriais e preparando, de acordo com o solicitado e se tal suceder, os termos da defesa a apresentar pelo Estado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 2:E.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:

I
RELATÓRIO

1 . O MINISTÉRIO PÚBLICO, agindo em nome próprio, como defensor da legalidade democrática - art.º 219.º, n.º1 da CRP e arts. 2.º e 4.º, n.º1, als. a) e j) do EMP – e como representante judiciário do Estado Português - art.º 219.º, n.º1 da CRP e arts. 2.º e 4.º, n.º1, al. b) do EMP –, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto, datada de 30 de Junho de 2021, que, no âmbito da acção administrativa instaurada por E. contra o Estado Português, indeferiu o requerimento do Ministério Público no âmbito do qual foi arguida a inconstitucionalidade material das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redacção da Lei n.º 118/2019, de 17/09 e arguida a nulidade por falta de citação do réu Estado e foi requerida:
a) A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição; e,
b) A declaração de nulidade da falta de citação do réu Estado - arts. 188.º, n.º 1, al. a) e 187.º, al. a) do CPC, subsidiariamente aplicáveis -, com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial e que seja determinada a citação do Estado no Ministério Público.

*
Nas suas alegações, o M.º P.º/recorrente formulou as seguintes conclusões:
" Vem a Autora, nos presentes autos intentar contra o Réu/ Estado Português uma ação de responsabilidade extracontratual no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos cometidos no exercício da sua função por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável (art. 12º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – RRCEE).
Por via disso a Autora pede a condenação do Réu Estado Português numa indemnização a título dessa responsabilidade no âmbito no processo intentado no Centro de Arbitragem Administrativa, (CAAD) em 21.04.2011, sendo que, em 21 de março de 2021, ainda não se encontra decidida a questão, a qual foi declarada procedente, tendo, todavia, o Ministério da Justiça recorrido para o Tribunal Central Administrativo do Sul, e a Autora interposto também recurso subordinado, o qual ainda se encontra pendente sob o número de Processo 9789/13.6BCLSB.
Foi remetido o ofício de citação, nos termos e para os efeitos dos art.os 81.º e 82.º do CPTA, para o Centro de Competências Jurídicas do Estado.
Entretanto foi igualmente entregue cópia da petição inicial ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do art.º 85.º, n.º 1, do CPTA.
O Ministério Público veio à ação pedir que fosse seguida a interpretação restritiva do art. 25º, nº 4, do CPTA, conforme com a unidade do sistema jurídico e com o disposto no art. 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, não se aplicando, assim, à citação do Réu Estado Português, que deve ser citado através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da Constituição e da lei;
E, embora sem conceder, caso assim não fosse entendido, fosse recusada a aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art. 11.º e do n.º 4 do art. 25º, do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art. 219.º da Constituição e do n.º 2 desta mesma disposição.
E, em qualquer dos casos, que fosse declarada a nulidade por falta de citação do Ministério Público, que deve intervir no processo como parte principal, em representação do Réu Estado Português [art.os 187.º, alínea b), e 188.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis, e art.os 219.º, n.º 1, da CRP, 51.º do ETAF e 4.º, n.º 1, alínea b), e 9.º, n.º 1, alínea a), do atual EMP], anulando-se o processado posterior à petição e determinando-se a citação do Réu Estado Português através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da CRP e da Lei.
O objeto do presente recurso visa insurgir-se com a decisão proferida pela Mmª Juiz “a quo” que indeferiu todos os pedidos conforme despacho judicial que aqui reproduzimos para todos os efeitos legais.
Assim, o disposto no art.187º, nº1, b) do CPC, prevê a anulação do processado posterior à petição, salvando-se apenas esta quando não tenha sido citado, logo no início do processo, o Ministério Público, nos caso em que deva intervir como parte principal.
Assim e, quando o Ministério Público em representação do Estado intervém aqui como parte principal, (o que é o caso em análise) há que concluir que não foi seguida tal norma legal, que foi violada.
Tal como se deve concluir que o acto de citação foi completamente omitido, pois que o Ministério Público, representante do Estado Português, não foi efetivamente citado, ao arrepio do a) do nº1 do art.188º do CPC, já que apenas lhe foi entregue uma cópia da petição inicial.
10ª Razão pela qual e, conforme pugnamos houve violação de tais normas legais subsidiariamente aplicáveis e, ao disposto nos arts. 219º, 1 da CRP, 51º do ETAF, e finalmente do art.4º,1 b) e 9º,1 a) do EMP, devendo ter sido anulado o processado posterior à petição inicial nos termos da Constituição da República Portuguesa, e da Lei ordinária, pedindo-se a revogação de tal despacho, nesta parte, e a sua substituição que vá de encontro à Lei Fundamental e à Lei ordinária.
11ª No que diz respeito à inconstitucionalidade material das normas do art. 11º, 1 a final, e do nº 4 do art.25º do CPTA, (sublinhado nosso) na redação dada pela Lei nº 118/2019, por violação do nº 1 (primeira proposição) e nº 2 do art.219º da Constituição da República Portuguesa foi decidido no despacho judicial recorrido pela não ocorrência de tal inconstitucionalidade.
12ª Considera-se no despacho recorrido que não há qualquer inconstitucionalidade no teor do art. 11º, 1 do CPTA, dado pela nova redação da Lei acima mencionada, - posição que não acolhemos, - pois que nela vem acrescentado que as entidades públicas podem fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria de apoio jurídico, “sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”.
13ª O que quanto a nós, vai contra o estabelecido na primeira proposição do nº 1 do art. 219º da CRP, pois que o Ministério Público foi e é sempre visto e, em primeira linha, e, não esquecendo que a sua função essencial nos tribunais Administrativos é como legítimo representante do Estado Português, não podendo ser considerado, como se quer fazer crer e estabelecer ao arrepio da Lei Fundamental, uma mera possibilidade, entre outras, na representação do Estado.
14ª Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de “autonomia” (Constituição, art. 219.º/2), com a sua atuação sempre vinculada a “critérios de legalidade e objetividade” (EMP, art. 3.º/2) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial.
Por isso, a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material.
15ª Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do n.º 1 do art. 11.º do CPTA, na redação conferida pelo art. 6.º da Lei n.º 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade:
A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo “possibilidade”, mas desse modo transforma a regra da “representação do Estado pelo Ministério Público” em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como, o que pode não ser vez alguma.
16ª Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do n.º 1 do art.º 11.º: “sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”) com a acolhida no CPC (n.º 1 do art. 24.º: “O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…”), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem carácter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta.
17ª A nova redação conferida à parte final do n.º 1 do art. 11.º CPTA torna puramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, em oposição ao exarado na grande revisão do CPTA de 2015, operada pelo D.L. n.º 214-G/2015, onde o respetivo projeto previa a introdução, no art. 11.º, sobre “patrocínio judiciário e representação processual”, de uma redação que, à semelhança do CPC, acentuava a representação-regra do Estado pelo Ministério Público:
3 — Nas ações propostas contra o Estado em que o pedido principal tenha por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, o Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo da possibilidade de patrocínio por mandatário judicial próprio nos termos do número anterior, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que aquele esteja constituído”.
18ª Por isso, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do n.º 1 do art. 219.º da Constituição, mesmo que se admita que o citado preceito constitucional não confere ao Ministério Público um monopólio ou exclusivo de representação do Estado em juízo, como se considerou no Parecer n.º 8/82 da Comissão Constitucional.
19ª Devendo a representação do Estado pelo Ministério Público constituir sempre a regra e não a exceção ou uma mera possibilidade.
20ª A desarmonia dessa norma com a Lei Fundamental torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do n.º 4 do art. 25.º, também aditado pela referida Lei n.º 118/2019.
“Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.
21ª No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é “unicamente” citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação (sublinhado nosso) e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal).
22ª Pois que, nos termos do art. 2.º/1 do D.L. n.º 149/2017, que aprova a respetiva orgânica, o Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP), “tem por missão prestar consultoria, assessoria e aconselhamento jurídicos, bem como informação jurídica em matéria de contratação pública, procedimentos contraordenacionais e procedimentos disciplinares, aos membros do Governo, ficando, igualmente, responsável por assegurar a representação em juízo do Conselho de Ministros, do Primeiro-Ministro e de qualquer outro membro do Governo organicamente integrado na Presidência do Conselho de Ministros ou que beneficie dos respetivos serviços partilhados”.
23ª Nenhuma norma lhe confere poderes representativos do Estado em juízo (sublinhado nosso).
Esse poder-dever é atribuído ao Ministério Público – desde logo por força da norma constitucional que se tem invocado como parâmetro ofendido pelas normas cuja conformidade com a Constituição se questiona.
24ª Assim não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n.º 1 do art. 219.º da Constituição.
25ª Dito de outra forma, o mecanismo implementado pelo n.º 4 do art. 25.º, conjugado com a parte final do n.º 1 do art. 11.º CPTA, ambos na redação da Lei n.º 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo.
26ª Acresce que a norma do n.º 4 do art. 25.º CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar “os termos da (…) intervenção em juízo” dos “serviços” a quem aquele entenda “transmitir” a citação.
27ª Apesar da sua falta de clareza e desarmonia com a arquitetura do sistema processual, resultará desse preceito que o dito Centro pode, se e quando lhe aprouver, confiar a representação judiciário do Estado ao Ministério Público – tratado como mero “serviço” administrativo – e coordenar “os termos da respetiva intervenção em juízo”.
28ª A norma ínsita na parte final do novo n.º 4 do art. 25.º CPTA confere à JurisApp competência para coordenar os próprios “termos” da intervenção do Ministério Público quanto a aspetos relativos à técnica do processo.
Desse modo, sai gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no n.º 2 do art. 219.º da Constituição, degradando-se esta magistratura à condição de mera serventuária subordinada da vontade da Administração.
29ª Nem se diga como vem registado no despacho recorrido, referindo-se ao Ministério Público que “não se vislumbra em que medida tenham sido “esvaziadas” as suas funções de representante do Estado previstas no art. 219º da CRP. Como aliás. Sucede no caso dos autos, em que o Ministério Público veio contestar, como representante em juízo do Estado.”
30ª Pois que nos termos das alterações acima mencionadas, a JurisApp podia ter encaminhado a ação a entidade diversa do Ministério Público na defesa e representação do Estado, o que não aconteceu no caso, mas existe essa possibilidade concreta, e já aconteceu noutros casos, o que vai claramente contra a Lei Fundamental, sendo de salientar, espante-se, que a própria JurisApp na ação nº466/19.2BEVIS que corre termos no TAF de Viseu, elaborou e apresentou em juízo a contestação do Estado Português “em sua representação em juízo”.
31ª Tal ocorrência dá para considerar que, com tais alterações tudo poderá acontecer, até que uma entidade sem poderes de representação do Estado Português em juízo o possa vir a fazer, ao arrepio das leis ordinárias mencionadas e da nossa Lei Fundamental.
32ª Assim se vê que a questão não se pode resumir, - conforme vem exarado no despacho -, de ser tão só uma mera “opção da organização/escolha do tipo de representação do Estado (seja Ministério Público, seja mandatário judicial Próprio), e que vá contra ao nº2 art. 219 da CRP…. (sic)… e ao princípio da autonomia do Ministério Público”.
33ª Em suma: as normas constantes do segmento final do n.º 1 do art. 11.º e do n.º 4 do art. 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei n.º 118/2019, são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no art. 219.º da Constituição, n.º 1, primeira proposição (“Ao Ministério Público compete representar o Estado”) e n.º 2 (“O Ministério Público goza de (…) autonomia…”), razão pela qual a posição contrária a tal conclusão exarada no despacho deva ser afastada e, consequentemente declaradas inconstitucionais tais dispositivos legais.
34ª Para finalizar temos a questão sobre a interpretação restritiva do nº 4 do art.25º do CPTA que nós perfilhamos e que foi afastada no despacho recorrido, já que indeferiu também tal pedido.
35ª Consideramos que pode e, deve ser feita na medida em que, como já o dissemos, o Estado Português é representado pelo Ministério Público, e como tal quem deverá ser citado em representação do mesmo deverá ser o próprio Ministério Público, e não um organismo da Administração Pública, sem personalidade jurídica e sem quaisquer poderes representativos do Estado, e muito menos dar-lhe capacidade para “coordenar os termos da respetiva intervenção em juízo”.
36ª Tal entidade apenas deveria ser chamado a intervir pelo Ministério Público caso este necessite dos seus serviços, de formar a colher elementos para a instrução da ação, não fazendo sentido que lhe seja dirigida a citação, ato de extrema relevância na defesa do Estado, devendo e podendo o Ministério Público precisar de colher tais elementos a outras entidades para elaborar a defesa do Estado o melhor possível e dentro do prazo estabelecido por lei que se inicia precisamente a partir da citação.
37ª Assim, e, mais uma vez para que não haja violação da Lei Fundamental e da Ordinária, tal interpretação será a mais correta, na medida em que concentra ou cinge a aplicação do nº4 do art. 25º do CPTA tão só às situações em que relativamente à pessoa coletiva Estado, o CPTA estende a personalidade judiciária aos próprios ministérios, devendo só nesses casos, a parte final do referido nº4 da norma legal ter aplicação”.
Termina, assim, pugnando:
“…. para que o despacho agora em crise seja revogado por outro que decida pelo deferimento dos pedidos, a saber:
a) Pela interpretação restritiva do art. 25º, nº 4, do CPTA, conforme com a unidade do sistema jurídico e com o disposto no art. 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, não se aplicando, assim, à citação do Réu Estado Português, que deve ser citado através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da Constituição e da lei;
b) Caso assim se não entenda, pela recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art. 11.º e do n.º 4 do art. 25º, do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art. 219.º da Constituição e do n.º 2 desta mesma disposição;
c) Em qualquer dos casos, pela declaração de nulidade por falta de citação do Ministério Público, que deve intervir no processo como parte principal, em representação do Réu Estado Português (arts. 187º, alínea b), e 188º, nº 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis, e arts. 219º, nº 1, da Constituição, 51º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 4º, nº 1, alínea b), e 9º, nº 1, alínea a), do atual EMP), anulando-se o processado posterior à petição e determinando-se a citação do Réu Estado Português através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da Constituição da República Portuguesa e da Lei”.
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Notificadas as alegações, apresentadas pelo recorrente, supra referidas, não foram apresentadas contra alegações.
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Sem vistos, mas com envio prévio do projecto às Ex.mas Juízas Desembargadoras, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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2 . Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts.1.º e 140.º, ambos do CPTA.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1 .
A decisão o TAF de Coimbra objecto de sindicância jurisdicional por este TCA é a seguinte:
“Nos presentes autos de ação administrativa onde figura como réu o Estado Português, veio o Ministério Público, após a remessa de ofício de citação para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, e de ter, concomitantemente, sido entregue ao mesmo cópia da petição inicial, requerer:
a) que seja efetuada a pugnada interpretação restritiva do art. 25.º, n.º 4 do CPTA, conforme com a unidade do sistema jurídico e com o disposto no art.º 219, n.º 1 da CRP, não se aplicando, assim, à citação do Estado Português, que deve ser citado através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da Constituição e da lei;
b) caso assim não se entenda, que seja recusada a aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da CRP e do n.º 2 desta mesma disposição;
c) em qualquer dos casos, que seja declarada a nulidade por falta de citação do Ministério Público, que deve intervir no processo como parte principal, em representação do Ré Estado Português [art.os 187.º, alínea a), e 188.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis e 9º, n.º 1, al. a) do atual EMP], anulando-se o processado posterior à petição e determinando-se a citação do réu Estado através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da CRP e da Lei.
Para o efeito, alega, em síntese, que:
- que deverá ser feita uma interpretação restritiva do art.º 25.º, n.º 4, do CPTA, conforme à unidade do sistema jurídico e à CRP, de forma a ser aplicável unicamente aos casos em que, devendo ser demandada a própria pessoa coletiva Estado, o CPTA preveja a possibilidade de serem demandados os próprios ministérios, por extensão da personalidade judiciária passiva destes, nos termos do disposto nos art.ºs 8.º-A, n.º 3, e 10.º, n.º 2, do CPTA, não podendo ser aplicada aos casos, como o dos autos, em que, tendo sido demandada a própria pessoal coletiva Estado, esta tem necessariamente de ser citada através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário;
- que, no que se reporta ao Estado, a norma do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal);
- que, por isso, não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da CRP;
- que o mecanismo implementado pelo n.º 4 do art.º 25.º, conjugado com a parte final do n.º 1 do art.º 11.º, ambos do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, conduz, em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, o que equivale, em termos reais, à séria afetação de um instituto constitucionalmente obrigatório, degradando-o de regra em exceção;
- que, de outra banda, a norma ínsita na parte final do novo n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, ao conferir à JurisApp competência para coordenar os próprios “termos” da intervenção do Ministério Público quanto a aspetos relativos à técnica do processo, leva a que saia gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no n.º 2 do art.º 219.º da CRP, degradando-se esta magistratura à condição de mera serventuária subordinada da vontade da Administração.
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Este Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra já se pronunciou sobre idêntico requerimento, também formulado pelo Ministério Público, então no processo n.º 714/19.1BECBR, sendo que, por se concordar com a análise então efetuada, se transcreve a decisão ali proferida, à qual se adere integralmente:
«Sob a epígrafe “Anulação do processado posterior à petição”, o art.º 187.º do CPC (aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA), dispõe que “é nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando- se apenas esta: a) quando o réu não tenha sido citado; b) quando não tenha sido citado, logo no início do processo, o Ministério Público, nos casos em que deva intervir como parte principal”.
Por sua vez, sob a epígrafe “Quando se verifica a falta de citação”, o art.º 188.º, n.º 1, do CPC (também aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA) determina que “há falta de citação: a) quando o ato tenha sido completamente omitido;
b) quando tenha havido erro de identidade do citado; c) quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d) quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade; e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”. Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que, “quando a carta para citação haja sido enviada para o domicílio convencionado, a prova da falta de conhecimento do ato deve ser acompanhada da prova da mudança de domicílio em data posterior àquela em que o destinatário alegue terem-se extinto as relações emergentes do contrato; a nulidade da citação decretada fica sem efeito se, no final, não se provar o facto extintivo invocado”.
Sob a epígrafe “Patrocínio judiciário e representação em juízo”, o art.º 11.º do CPTA, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, dispunha o seguinte:
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa coletiva.
6 - Os agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos”.
Por sua vez, sob a epígrafe “Citações e notificações”, o art.º 25.º do CPTA, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, apresentava o seguinte teor:
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios eletrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”.
A Lei n.º 118/2019, de 17/09, veio proceder à sexta alteração ao CPTA, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22/02, na sua redação atual [cfr. art.º 1.º, alínea d)].
Em consequência, nos termos do art.º 12.º, n.º 2, da Lei n.º 118/2019, foi republicado no anexo III à referida lei, que dela faz parte integrante, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com a redação introduzida pela nova lei.
No que ora releva, o art.º 11.º do CPTA manteve a epígrafe anterior, mas passou a ter a seguinte redação:
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a atuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa coletiva.
6 - Os agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos”.
Por sua vez, o art.º 25.º do CPTA manteve igualmente a sua epígrafe, mas passou a ter a seguinte redação:
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior realiza-se por via eletrónica, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.
Ora, considerando as disposições legais acima citadas (e a evolução da sua redação) e volvendo ao caso concreto, julgamos que, na situação dos autos, não se verifica, desde logo, a invocada falta de citação.
Compulsados os autos, verificamos que não ocorreu qualquer falta de citação nos termos previstos no art.º 188.º, n.º 1, do CPC, na medida em que o ato de citação:
- não foi completamente omitido [cfr. alínea a)];
- não houve erro de identidade do citado [cfr. alínea b)];
- não foi indevidamente empregue a citação edital [cfr. alínea c)];
- não foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade [cfr. alínea d)];
- não se demonstra que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável [cfr. alínea e)].
Com efeito, nos presentes autos foi demandado o Estado Português e não o Ministério Público enquanto parte e, nos termos do art.º 24.º, n.º 5, do CPTA, foi expedido ofício de citação de 29/07/2020 para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, encontrando-se formalmente realizado o ato de citação.
Na verdade, a questão que se coloca é a de saber se o facto de a redação conferida ao art.º 25.º, n.º 4, do CPTA pela Lei n.º 188/2019, de 17/09, não prever a representação do Estado exclusivamente por parte do Ministério Público – prevendo-se, ao invés, a realização da citação no Centro de Competências Jurídicas do Estado – conduz à falta de citação. Do que ali se trata é de uma questão de representação do Estado Português, consubstanciada numa opção legislativa, sendo que, para o que releva apreciar, importa tão-só analisar se se verifica ou não a falta da citação. No entanto, como se viu, foi expedido ofício de citação do Estado Português, enquanto parte demandada nos presentes autos, na figura do Centro de Competências Jurídicas do Estado, conforme prevê o art.º 25.º, n.º 4, do CPTA, não se verificando, por isso, a falta de citação do Réu Estado Português.
Assim, indefere-se o requerido quanto à alegada nulidade por falta de citação do Réu Estado Português.
*
Mais invoca o Ministério Público, incidentalmente, agindo em nome próprio e como representante judiciário do Estado, a inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação conferida pela Lei n.º 118/2019, por violação do disposto na primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da CRP e no n.º 2 desta mesma disposição.
Vejamos.
A questão da representação do Estado por parte do Ministério Público, no contencioso administrativo, tem sido alvo de discussão, especialmente desde a revisão Constitucional de 1997 e ressurgindo agora face à alteração dos art.os 11.º e 25.º, n.º 4, do CPTA, levada a cabo pela Lei n.º 118/2019, de 17/09 (neste sentido, veja-se Ricardo Pedro, “Representação do estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a algumas questões” – Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2.ª edição, AAFDL edições, Lisboa, 2016, p. 299).
Ora, sob a epígrafe “Funções e estatuto”, o art.º 219.º da CRP dispõe o seguinte:
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. A lei estabelece formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos dos crimes estritamente militares.
4. Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei.
5. A nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da ação disciplinar competem à Procuradoria-Geral da República”.
Como explica Alexandra Leitão, este preceito “(…) tem sido interpretado restritivamente no que respeita à representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo, no sentido de a limitar à defesa dos interesses patrimoniais do Estado, tal como está consagrado na alínea a) do artigo 53.º do Estatuto do Ministério Público. Justificam esta opção quer razões históricas, pelo tradicional cometimento das funções de defesa do Estado a representantes oriundos da própria Administração Pública, quer a (também tradicional) distinção entre processos em que a Administração atua através de atos de autoridade (as atuais ações administrativas especiais) e os restantes processos (as atuais — embora não todas — ações administrativas comuns)” processos (as atuais — embora não todas — ações administrativas comuns)”
(in “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos” - JULGAR - n.º 20 – 2013, Coimbra Editora, p. 191).
Importa, desde já, referir que, conforme decorria do disposto no art.º 10.º, n.º 2, do CPTA, na redação anterior à Lei n.º 118/2019, de 17/09, e tal como vinha sendo entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico, a representação do Estado nas ações administrativas de impugnação de atos e de condenação à prática de atos administrativos, bem como das demais previstas no n.º 1 do art.º 37.º do CPTA, cabia aos respetivos Ministérios, os quais, nos termos do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA, sempre se puderam fazer representar em juízo “por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico”.
A este propósito, escrevem M. Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha que:
“Da conjugação do disposto no n.º 1 deste artigo 11.º e no n.º 2 do artigo 10.º resulta a existência de um regime dualista quanto à representação processual do Estado. Com efeito, estabelece o n.º 1 deste artigo 11.º que, nas ações propostas contra o Estado, a representação do Estado compete ao MP. Mas resulta do n.º 2 do artigo 10.º que as ações cujo pedido principal (cfr. artigo 10.º, n.º 7) se reporte à ação ou omissão de órgãos integrados em ministérios não são propostas contra o Estado, mas contra o ministério cujos órgãos estejam em causa, pelo que a representação processual já não cabe ao MP.
Deste modo, é necessário distinguir, no plano do patrocínio judiciário, entre as ações que são propostas contra o Estado, em que vigora o regime de representação processual através do MP, e as ações que são propostas contra ministérios, em que o representante pode ser um advogado ou um licenciado em Direito com funções de apoio jurídico.
Até à revisão de 2015, o n.º 1 deste artigo 11.º fazia expressa referência à representação do Estado pelo MP nas ações de responsabilidade civil ou sobre contratos em que o Estado fosse parte. Na redação resultante da revisão de 2015, a referência foi suprimida, o que tornou o preceito neutro quanto a este ponto. A questão passou, assim, a ter de ser resolvida exclusivamente através da interpretação do n.º 2 do artigo 10.º; por conseguinte, o Estado será representado pelo MP em todas as ações que, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, não devam ser propostas contra ministérios, mas contra o próprio Estado, como se viu na anotação ao artigo 10.º” (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pp. 129 e 130).
Mais escrevem aqueles Autores que:
“A representação processual do Estado é uma das atribuições estatutárias do MP (artigos 219.º, n.º 1, da CRP e 5.º, n.º 1, alínea a), do EMP) e não se confunde com as demais tarefas que, no âmbito do contencioso administrativo, lhe são conferidas com vista à defesa do interesse geral da legalidade e à realização do interesse público. O quadro genérico das funções do MP está definido no artigo 51.º do ETAF, de tal modo que, para além da representação processual do Estado, cabe ao Ministério Público o exercício da ação pública e da ação popular, bem como a intervenção processual em processos em que não seja parte e nos recursos jurisdicionais que não tenha interposto, ao que acresce a interposição de recursos jurisdicionais de decisões ilegais, de recursos para uniformização de jurisprudência e de recursos de revisão (cfr. artigos 9.º, n.º 2, 55.º, n.º 1, alínea b), 62.º, 68.º, n.º 1, alínea b), 73.º, n.ºs 1 e 4, 77.º, 85.º, 104.º, n.º 2, 141.º, n.º 1, 146.º e 152.º, n.º 1, do CPTA).
Por outro lado, a representação processual do Estado, a que alude o artigo 11.º, n.º 1, deve processar-se nos termos estatutariamente previstos, com aplicação do disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do EMP - que prevê uma intervenção a título principal -, e a possibilidade de constituição, no âmbito da PGR, de departamentos de contencioso do Estado, segundo o disposto nos artigos 51.º a 53.º do mesmo diploma. O artigo 24.º do CPC, atribuindo em termos idênticos a representação judiciária do Estado ao MP, ressalva os casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, hipótese em que cessa a intervenção principal do MP”.
Do que acaba de se expor resulta que, mesmo antes da redação conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, o quadro legal quanto à representação do Estado no contencioso administrativo previa um dualismo:
- nas ações administrativas de impugnação e de condenação à prática de ato devido, mesmo que cumuladas com pedidos indemnizatórios (cfr. art.º 10.º, n.º 7, do CPTA), o Estado era representado, ou melhor, detinham legitimidade processual passiva os respetivos Ministérios, que se podiam fazer patrocinar “por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico” (cfr. art.º 11.º, n.º 1, do CPTA);
- nas ações “puras” de efetivação de responsabilidade civil extracontratual e contratual do Estado, é apenas e tão-só este que detém legitimidade processual passiva, sendo exclusivamente representado pelo Ministério Público.
Não obstante se mantenha este dualismo quanto à legitimidade processual passiva/representação do Estado, a verdade é que a Lei n.º 118/2019, de 17/09, alterou a redação do art.º 11.º, n.º 1, do CPTA, que passou a dispor que as entidades públicas podem fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, “sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”.
Por outro lado, foi aditado ao art.º 25.º o n.º 4, com o seguinte teor, relembrando:
Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.
Invoca o Ministério Público, a propósito da conjugação da nova redação dos citados preceitos, que “o único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), o seu ‘representante natural’ é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação”.
Daí que não se vislumbre, no seu entender, “qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição”.
Cremos, todavia, que não ocorre a alegada inconstitucionalidade.
Em primeiro lugar, porque o art.º 219.º da CRP atribui, de facto, ao Ministério Público as funções de (i) representação do Estado, (ii) defesa dos interesses que a lei determinar, (iii) participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, (iv) exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade e (v) defesa da legalidade democrática.
Contudo, ao contrário do defendido, mantêm-se os poderes do Ministério Público enquanto representante do Estado no contencioso administrativo.
Com efeito, mantendo-se as previsões estatutárias dos poderes do Ministério Público em matéria de representação do Estado, designadamente a alínea b) do n.º 1 do art.º 4.º do novo Estatuto do Ministério Público, aprovado alínea b) do n.º 1 do art.º 4.º do novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27/08, cuja vigência se iniciou em 01/01/2020, e o art.º 51.º, n.º 1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02 – que continuam a determinar que, em regra, a representação do Estado é assegurada pelo Ministério Público –, e, bem assim, o próprio Decreto-Lei n.º 149/2017, de 06/12, que aprova a orgânica do Centro de Competências Jurídicas do Estado – do qual (nomeadamente do seu art.º 2.º) não resulta, para este Centro, qualquer atribuição no sentido de representação do Estado em juízo, mas apenas de membros do Governo ou do próprio Conselho de Ministros –, não se vislumbra em que medida tenham sido “esvaziadas” as suas funções de representação do Estado previstas no art.º 219.º da CRP. Como, aliás, sucede no caso dos autos, em que o Ministério Público veio contestar, como representante em juízo do Estado.
A este propósito, refere Ricardo Pedro (in “Revista do Ministério Público”, n.º 159, julho/setembro 2019, pp. 49 e seguintes) que “o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, ao cometer ao MP a função de representar o Estado em juízo, pretende significar, tão só, que junto dos órgãos passivos e independentes que formam a justiça têm de estar presentes órgãos ativos dos interesses a cargo da Administração.
Esta função de representação do Estado é exercida, por exemplo, no contencioso administrativo, no qual o MP se apresenta como o advogado do Estado, isto é, com direitos e deveres processuais correspondentes aos do advogado da contraparte, dependendo do seu constituinte no que respeita à disposição do processo.
Assim acontece, também, no contencioso civil, por exemplo, em que o MP aparece como advogado do Estado, sem prejuízo de poder ser constituído mandatário judicial. O que aqui está em causa é, tão-somente, a previsão de um representante permanente do Estado, de alguém que, sempre que necessário, assegure a defesa dos seus direitos em juízo. O MP surge assim, neste domínio, como um corpo de advogados do Estado”.
Em segundo lugar, porque, tal como consta do Parecer n.º 8/82 da Comissão Constitucional, relativamente ao preceito constitucional da representação do Estado pelo Ministério Público, “(…) o que, aqui, pois, está em causa é, tão-somente, a previsão de um representante permanente do Estado. De alguém que, sempre que necessário, assegure a defesa dos seus direitos, em juízo.
Essa representação não foi, contudo, pensada em termos de monopólio;
(ii) - Neste domínio, se, por falta de conceitos capazes de exprimir com exatidão a realidade, se quiser lançar mão da ideia de uma reserva de competência, o máximo que, então, esta expressão significará é o seguinte: o legislador não pode privar, totalmente, o Ministério Público das funções de representação do Estado em juízo, cometendo-as, por inteiro, a outras entidades;
(iii) - A representação do Estado pelo Ministério Público terá que constituir sempre a regra. O que, decerto, se não imporá já é que a representação do Estado por outras entidades tenha que ser, sempre, uma representação concorrencial ou subsidiária da do Ministério Público;
(iv) - Pode, por isso, muito bem aceitar-se que, em certos domínios, essa função de representação do Estado seja atribuída, em exclusivo, a entidades diferentes […]. Será, assim, uma representação de substituição.
Questão é que existam razões que, seriamente, aconselhem uma tal solução. Razões que podem arrancar do propósito de se conseguir uma maior eficácia na defesa dos interesses do Estado”.
Afigura-se, pois, que, neste contexto, as funções de representação do Estado por parte do Ministério Público, previstas no art.º 219.º da CRP, não impõem um qualquer “monopólio”, o que, aliás, é corroborado pela dualidade de representação do Estado (Ministério Público/Ministérios - cfr. art.º 10.º, n.os 2 e 7, do CPTA), já existente antes da alteração levada a cabo pela Lei n.º 118/2019, de 17/09.
Por fim, ponderadas as regras hermenêuticas previstas no art.º 9.º do Código Civil, afigura-se-nos que, na nova redação do art.º 11.º, n.º 1, do CPTA, o legislador pretendeu, de facto, estabelecer que, nas ações “puras” de responsabilidade civil extracontratual e contratual do Estado, este pudesse fazer-se representar quer pelo Ministério Público, quer por mandatário judicial próprio (vide, para o efeito, Ricardo Pedro e António Mendes Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Anotação à Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, Almedina, 2019, p. 32), sendo que tal configura uma opção política que não cabe aqui apreciar.
É, portanto, neste sentido que se entende o recurso à expressão “possibilidade”, constante da nova redação do art.º 11.º, n.º 1, do CPTA, ou seja, como a escolha do tipo de representação do Estado, seja pelo Ministério Público, seja por mandatário judicial próprio, e não como o “esvaziar” das funções que constitucionalmente estão atribuídas ao Ministério Público, o que, de resto, não se verifica.
Aliás, refira-se que também o art.º 25.º, n.º 4, do CPTA, quando prevê que “a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”, não “esvazia” as funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público enquanto representante do Estado. Do que se trata é apenas da opção da organização/escolha do tipo de representação do Estado (seja pelo Ministério Público, seja por mandatário judicial próprio), daí que também não se verifique a alegada inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do art.º 219.º da CRP (princípio da autonomia do Ministério Público).
A este respeito, veja-se, ainda, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 03/07/2020 (proc. n.º 00902/19.2BEPNF-S1, publicado em www.dgsi.pt), que tratou das questões ora apreciadas e no qual se decidiu negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão que indeferiu a arguição de nulidade por falta da citação, podendo ali ler-se, entre o mais, o seguinte:
“(…) o inciso da parte final do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA na sua versão atual, no qual, referindo-se ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, se diz que este ‘assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo’, poderá criar dúvidas quanto à forma como será assegurada, em tal caso, a garantia da autonomia do Ministério Público, nos termos do artigo 219.º, n.º 2, da CRP e do respetivo Estatuto, em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local (cfr. artigo 2.º do Estatuto antigo e 3.º do Estatuto novo).
Mas não é despiciente relembrar que nos termos do Estatuto antigo (aprovado pela Lei n.º 47/86) não só era contemplada a interligação entre a atuação judicial do Ministério Público em representação do Estado e os demais serviços do Estado cuja atuação estivesse implicada, como se previa que ao Ministro da Justiça competia transmitir, ainda que por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado fosse interessado ou autorizar o Ministério Público, ouvido o departamento governamental de tutela, a confessar, transigir ou desistir nas ações cíveis em que o Estado fosse parte (cfr. artigo 80.º, alíneas a) e b), do Estatuto antigo).
3.21 E recentrando-nos na invocada desconformidade das normas em causa, temos que reafirmar a análise feita pela 1ª instância quanto à convocação do artigo 219.º, n.º 1, da CRP, nos termos da qual ‘ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática’. Dando por renovados os entendimentos doutrinais ali citados a tal respeito. Os quais evidenciam que a discussão em torno da representação do Estado pelo Ministério Público se encontra atualmente já limitada. Na medida em que é aceite, sem reservas, a conformidade constitucional com o inciso ‘ao Ministério Público compete representar o Estado’ constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, quanto às demais opções legais em que a representação do Estado, e a defesa dos interesses patrimoniais deste, não são feitas pelo Ministério Público, mas pelas entidades ou órgãos integrados na administração direta ou indireta do Estado (tenham ou não personalidade jurídica), quando nos termos da lei processual aplicável lhes é reconhecida personalidade e capacidade judiciária.
O que significa que restam apenas em discussão as ações relativas a contratos e a responsabilidade civil extracontratual em que o Estado seja demandado nos Tribunais Administrativos. E não se vê em como possam estas considerar-se núcleo essencial das funções do Ministério Público referidas no n.º 1 do artigo 219.º da CRP.
3.22 E por último sempre importará ainda dizer que independentemente de estar ou não a matéria em causa regulada nos dispositivos dos artigos 11.º e 24.º do CPTA na versão dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, no âmbito da reserva relativa da Assembleia da República nos termos do artigo 165.º, n.º 1, da CRP, também apontado como violado, o certo é que essa competência legislativa foi observada”.
Nos termos e com os fundamentos expostos, concluímos que não ocorre a alegada “inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação conferida pela Lei n.º 118/2019, por violação do disposto na primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição e no n.º 2 desta mesma disposição”, razão pela qual se indefere a requerida recusa de aplicação das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, de 17/09.”
*
Por último, e considerando tudo o que acima deixámos explicitado, não partilhamos, salvo o devido respeito, do entendimento do Ministério Público no que concerne à propugnada interpretação restritiva do normativo constante do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA.
Como se sabe, em sede de interpretação restritiva, “o intérprete chega à conclusão de que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer.
Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva” (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, p. 186).
Ora, não se vislumbra em que medida o espírito e a finalidade da norma, tal como pretendidas pelo legislador, exigem que a mesma seja interpretada de forma a abranger apenas as situações em que, relativamente à pessoa coletiva Estado, o CPTA estende a personalidade judiciária aos próprios ministérios, devendo somente nesses casos ter aplicação o segmento final do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, quando estabelece que, após a citação, dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, este “assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.
O legislador foi claro ao estatuir que a citação deve ser dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando estejamos em presença de ações em que tenha sido demandado o próprio Estado ou diversos ministérios, tratando-se aqui, como vimos supra, de uma questão de opção da organização/escolha do tipo de representação do réu Estado Português, consubstanciada numa opção legislativa e política, que não contende com a unidade do sistema jurídico, nem com o disposto no art.º 219.º, n.º 1, da CRP.
De facto, a mera circunstância de a citação ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado não afeta, como se disse, a representação do Estado pelo Ministério Público; trata-se de uma questão instrumental, de escolha do destinatário da citação, e nada mais. Aliás, o art.º 25.º do CPTA, até à mais recente alteração, nem sequer definia em quem devia ser feita a citação do Estado, retirando-se apenas do sentido normativo que deveria ser no seu representante, ou seja, o Ministério Público junto do tribunal em que o processo decorre. É que o Ministério Público não é um representante orgânico da pessoa coletiva Estado, mas apenas o seu representante em juízo, o que invalida o argumento de “representação natural”.
Ou seja, mesmo que de modo incorretamente expresso, o legislador do CPTA quis dizer o mesmo que diz no art.º 24.º do CPC, isto é, que pode ser admitida a representação do Estado pelo Ministério Público, como forma de abrir a possibilidade de a representação ocorrer por outra entidade, assim o venha a definir lei especial (porque o CPTA nada diz sobre o assunto).
E a “coordenação” por parte do Centro de Competência Jurídicas não representa qualquer atribuição de poder funcional a este último, mas apenas a definição da entidade à qual o Ministério Público se deve dirigir na preparação da representação do Estado (o que se mostrará relevante nos casos em que, nomeadamente, são necessários vários elementos de departamentos ministeriais distintos).
Não haverá, assim, razão ou fundamento bastante para efetuar a pretendida interpretação restritiva da norma constante do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA.
*
Assim, e concluindo, procedendo a uma interpretação conforme à CRP, à luz dos considerandos vindos de expender, o sentido que melhor resulta da conjugação da interpretação dos art.ºs 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA é o seguinte:
i. apesar de a parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA se referir agora à possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, a verdade é que apenas a este incumbe tal representação, atendendo a que não existe norma que lhe retire essa função, subsistindo ainda outros preceitos normativos conexos que continuam a cometer essa tarefa ao Ministério Público em sentido positivo;
ii. da primeira parte do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA apenas resulta que a citação feita ao Estado deve ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, cabendo-lhe assegurar a sua transmissão aos serviços competentes, v.g., ao Procurador da República junto do TAF onde corre o processo, ou em obediência à respetiva lei orgânica do Ministério Público;
iii. a coordenação mencionada na última parte do mesmo n.º 4 não confere ao Centro de Competências Jurídicas do Estado qualquer espécie de poder funcional sobre o Ministério Público, cabendo-lhe apenas cooperar com este último nos termos solicitados, designadamente recolhendo as informações e os elementos necessários junto dos diversos gabinetes ministeriais e preparando, de acordo com o solicitado e se tal suceder, os termos da defesa a apresentar pelo Estado.
Em face do que se conclui que não ocorre qualquer inconstitucionalidade, dado que o sentido das normas em causa não afeta a representação do Estado pelo Ministério Público, conforme exposto, com igual prejuízo, naturalmente, para a requerida declaração de nulidade por falta de citação.»
*
Deste modo, atento tudo quanto se deixou exposto, decide-se: a) indeferir o pedido de que seja efetuada uma interpretação restritiva do art.º 25.º, n.º 4, do CPTA, conforme com a unidade do sistema jurídico e com o disposto no art.º 219.º, n.º 1, da CRP, não se aplicando, assim, à citação do Réu Estado Português, que deve ser citado através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da Constituição e da lei;
b) indeferir o pedido de recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da CRP e do n.º 2 desta mesma disposição;
c) indeferir o pedido de declaração de nulidade por falta de citação do Ministério Público, que deve intervir no processo como parte principal, em representação do Réu Estado Português [art.os 187.º, alínea b), e 188.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis, e art.os 219.º, n.º 1, da CRP, 51.º do ETAF e 4.º, n.º 1, alínea b), e 9.º, n.º 1, alínea a), do atual EMP], anulando-se o processado posterior à petição e determinando-se a citação do Réu Estado Português através do Ministério Público, enquanto seu representante judiciário, nos termos da CRP e da lei.
Notifique”.

2 . MATÉRIA de DIREITO

No caso dos autos, as questões a decidir resumem-se em determinar se, na situação vertente, a decisão recorrida, ao indeferir o requerimento apresentado, quanto à requerida recusa de aplicação das normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, na redacção da Lei n.º 118/2019, bem como, consequentemente, quanto à requerida declaração de nulidade da citaçãodo réu Estado e anulação do processado posterior à petição inicial”, incorreu em erro de julgamento.
Sintetizando, a tese do Ministério Público consiste, no seguinte:
- Ocorre a nulidade da citação do Réu Estado Português operada por ofício dirigido ao Centro de Competências Jurídicas do Estado por entender que o mesmo deve ser representado por si, sendo materialmente inconstitucionais as normas constantes do segmento final do n.° 1 do art.º 11.° e do n.° 4 do art.º 25.° do CPTA, na redacção da Lei n.° 118/2019, de 17/09, que dispõem em sentido contrário, por violação do disposto no artigo 219.° da CRP.
Porque sobre a questão decidenda este TCA-N já se pronunciou em vários acórdãos, nos quais foi negada razão à tese defendida pelo Ministério Público, nomeadamente nos acórdãos de 3/07/2020, proc. n.º 902/19.2BEPNF-S1, 18/09/2020, proc. n.º 1240/19.4BEPNF-S1, 18/12/2020, proc. n.º 895/20.1BEPRT-S1, 18/12/2020, proc. n.º 1031/19.2BEAVR-S1, 22/01/2021, proc. n.º 714/19.1BECBR-S1 e de 19/02/2021, proc. n.º 952/20.4BEPRT-S2 e, mais, recentemente, nos Ac. de 8/10/2021, de 22/10/2021 e de 5/11/2021, in Procs. n.º 3262/19.6BEPRT-S1, 3463/19.7BEPRT e 260/213BECBR-S1--- onde os Juízes deste processo são precisamente os mesmos (relator e Ex.as Sr.as Juízas Desembargadoras Adjuntas) ---, perante a total correspondência entre a questão decidenda e a que foi apreciada e decidida nos referidos acórdãos, cuja fundamentação acompanhamos integralmente, remetemos a resposta à aludida questão para a solução que lhe foi dada no acórdão de 3/07/2020, proc. n.º 902/19.2BEPNF-S1, que, data venia, transcrevemos:
"...
3. Da análise e apreciação do recurso
3.1. A questão essencial que vem colocada em recurso é a de saber se as normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11º e do n.º 4 do artigo 25º do CPTA, na redação dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, deviam ter sido desaplicadas, por materialmente inconstitucionais, em termos que ao invés da citação ter sido dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO devia ter sido dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO por ser este quem deve representar na ação o demandado ESTADO PORTUGUÊS, e se, assim, o Tribunal a quo devia ter deferido a arguição de nulidade da falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS.
3.2. A questão surge na decorrência das alterações introduzidas ao CPTA pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro que a nova versão dada aos artigos 11º e 25º do CPTA operou no que toca à representação do ESTADO nos processos nos Tribunais Administrativos.
Sendo que, naturalmente, a aferição da eventual inconstitucionalidade daquelas normas por violação do artigo 219º n.ºs 1 e 2 da CRP, que foi suscitada na arguição da nulidade por falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS, relevará apenas na medida em que se for de concluir pela invocada inconstitucionalidade das indicadas normas, a sua aplicação deve ser recusada (cfr. artigo 204º da CRP).
3.3. Atentemos, então, nas normas em causa.
3.4. Dispõe o seguinte o artigo 219º da CRP:
“Artigo 219º
Funções e Estatuto
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. (…)
4. (…)
5. (…). ”
O artigo 11º do CPTA na sua versão original (a da Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro), dispunha o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a
constituição de advogado.
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa colectiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa colectiva.”
Com a revisão operada ao CPTA pelo DL. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro os n.ºs 1 e 2 daquele artigo 11º foram alterados e aditado ainda um novo n.º 6, os quais passaram a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 – (…).
4 - (…).
5 - (…).
6 - Os agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos.”

A Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que veio mais recentemente, modificar os regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas, alterou a redação do n.º 1 do artigo 11º do CPTA, a qual passou a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
(…)”
Simultaneamente também o artigo 25º do CPTA foi modificado.
Na versão original do CPTA (que veio a resultar da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de fevereiro) dispunha o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
Sem prejuízo do que, neste Código, especificamente se estabelece a propósito da citação dos contra-interessados quando estes sejam em número superior a 20, é aplicável o disposto na lei processual civil em matéria de citações e notificações.”
E com a revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015 passou a dispor o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios eletrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”
E com a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, assumiu a atual versão, com a modificação da redação dos n.ºs 3 e 4, os quais passaram a dispor o seguinte:
“1 - (…)
2 - (…)
3 - A notificação determinada no número anterior realiza-se por via eletrónica, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.”
3.5. Na atual versão dos dispositivos dos artigos 11º e 25º do CPTA resulta que a representação do ESTADO nas ações em que este seja parte demandada (por a ele lhe pertencer a legitimidade passiva nos termos do artigo 10º do CPTA) fica agora apenas garantida a possibilidade da sua representação em juízo ser assegurada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, e não já, como acontecia anteriormente, que essa representação a si lhe pertença. Simultaneamente, a citação do ESTADO deixou de se operar «na pessoa do magistrado do Ministério Público» na usual fórmula utilizada, e passou a ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que se integra na Presidência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar (cuja orgânica foi aprovada pelo DL. n.º 149/2017, de 6 de dezembro, e posteriormente alterada pelo DL. n.º 91/2019, de 5 de julho).
3.6. A questão está em saber se estes dispositivos, na sua atual redação, atentam a Constituição nos termos invocados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
3.7. Mas estão aqui em causa duas vertentes da representação da pessoa coletiva ESTADO no âmbito do contencioso administrativo: uma a vertente orgânica (funcional), outra na vertente de patrocínio judicial.
3.8. Ora, se o que importa aferir é se ocorreu a invocada falta de citação do ESTADO, por a citação ter sido dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado nos termos atualmente previstos no artigo 25º n.º 4 do CPTA (e não ao MINISTÉRIO PÚBLICO, como acontecia na solução legal anterior), não relevam aqui, e para a utilidade do presente recurso, os argumentos tecidos em torno da questão da invocada subalternização do MINISTÉRIO PÚBLICO à vontade da Administração, nem da invocada afronta à autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, decorrente do artigo 219º n.º 2 da CRP e legalmente definida no respetivo Estatuto (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), os quais se prendem já com o papel do MINISTÉRIO PÚBLICO enquanto “advogado” do ESTADO.
Essa questão (atinente já ao patrocínio judiciário e representação em juízo) colocar-se-á a jusante da que agora nos interessa.
3.9. A que agora releva e importa é saber se a opção do legislador infra-constitucional, de fazer operar a citação da pessoa coletiva ESTADO, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos tribunais administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, fere ou não o artigo 219º n.º 1 da CRP.
Sabendo-se que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219º n.º 1 do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA).
3.9. E a resposta tem que ser negativa.
3.10. É sabido que a questão do carater necessário ou não da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO no âmbito das ações sobre contratos ou relativas à responsabilidade civil não é de hoje.
Aliás, a opção legislativa acolhida pelo CPTA (na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004) havia sido já amplamente debatida no debate universitário que antecedeu aquela reforma do contencioso administrativo, e continuou a sê-lo posteriormente.
A tal respeito, vide, designadamente, Vieira de Andrade, defendendo fim do patrocínio do Estado pelo Ministério Público, em especial nas acções de responsabilidade, in, “Reforma do Contencioso Administrativo – O debate universitário (trabalhos preparatórios), Vol. I, Coimbra Editora, 2003, pág. 70, e in, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 5ª Edição, Almedina, 2004, pág. 267. No mesmo sentido, associando-se à critica de continuar a atribuir-se ao MINISTÉRIO PÚBLICO a representação do ESTADO, Pedro Gonçalves, in, “A acção administrativa comum” – “A Reforma da Justiça Administrativa”, STVDIA IVRIDICA n.º 86, Boletim da Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Dezembro 2005, pág. 167 (n. 90). Veja-se, ainda, Maria Isabel F. Costa, in, "O Ministério Público no contencioso administrativo - Memória e "Razão de Ser"", Revista do Ministério Público, Ano 28, AbrJun 2007, pág. 28, destacando ser função nuclear do MINISTÉRIO PÚBLICO a defesa da legalidade democrática, com expressão na acção penal e na ação pública do contencioso administrativo.
3.11. O certo é que se manteve, na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004 a regra da representação do ESTADO nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade civil. Opção legislativa que foi agora alterada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro.
3.12. Mas a questão objeto do recurso não é a de saber se o ESTADO, demandado que foi como réu na ação, se encontra ou não regularmente representado em juízo (enquanto pressuposto processual).
A questão é a de saber se ocorreu nulidade (falta) de citação (enquanto nulidade processual), se ao abrigo do artigo 25º n.º 4 do CPTA, na sua versão atual, a citação foi dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO, por dever ser recusada a aplicação dessa norma com fundamento em inconstitucionalidade. E se, assim, deve ser anulado todo o processado, e determinada a citação do ESTADO através do MINISTÉRIO PÚBLICO.
Atenha-se que nos termos do artigo 188º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, há falta de citação “… quando tenha havido erro de identidade do citado”.
3.13. É sabido que o nomini nomine «ESTADO» tem várias aceções. Mas neste âmbito, a que essencial releva é a pessoa coletiva ESTADO, em especial na sua vertente Estado-administração, fazendo-o distinguir-se das outras pessoas coletivas públicas dotadas de personalidade jurídica (e, por conseguinte, também, judiciária).
Sendo que a qualificação do ESTADO como pessoa coletiva decorre da própria Constituição, designadamente dos seus artigos 3º n.º 3, 5º n.º 3, 18º n.º 1, 22º, 27º n.º 5, 38º n.º 2, 41º n.º 4, 204º n.º 1 alínea b) e n.º 2, 269º n.ºs 1 e 2, 271º n.ºs 1 e 4 ou 276º n.º 4, sendo particularmente significativas, neste conspecto, as disposições onde se atribuem direitos ou deveres ao ESTADO e às outras pessoas coletivas públicas – vide, a este respeito, Diogo Freitas do Amaral, in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, II edição, Almedina, pág. 213 ss.
3.14. Na versão anterior do CPTA o chamamento do ESTADO à ação sobre contrato ou relativa a responsabilidade civil que contra ele tivesse sido instaurada fazia-se através da citação dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO, que era quem também, quem atuava na ação em sua representação legal.
Como refere Alexandra Leitão, in, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, JULGAR, n.º 20, 2013, pág. 13 ss. tratava-se aí de uma representação legal e não propriamente, como representação orgânica, como vinha sendo entendido em alguma doutrina “(…) enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas — é, por assim dizer, lógica e ontológica —, a representação legal decorre de uma opção do legislador. Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.”
3.15. A circunstância de a expressão «representação», usada nas normas em causa, não é, assim unívoca, sendo aplicada com aceções diferentes. As suas repercussões são, aliás, explicitadas, no âmbito da versão original do CPTA, por Esperança Mealha, in, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”, CEDIPRE ONLINE I 2, novembro 2010, pág. 29, na análise que ali se efetua quanto à medida em que a representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO interferia com os critérios de atribuição de personalidade judiciária vertidos no artigo 10º CPTA.
3.16. Não vemos como a representação orgânica da pessoa coletiva ESTADO nos tribunais administrativos, em defesa dos seus interesses patrimoniais, que são os que estão em causa nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade, esteja constitucionalmente acometida ao MINISTÉRIO PÚBLICO.
Mas será que o artigo 219º n.º 1 da CRP ao determinar, sob a epígrafe “Funções e Estatuto” que “ao Ministério Público compete representar o Estado”, lhe reserva a ele a representação legal do ESTADO nessas mesmas ações?
3.17. As justificações para a solução infra-constitucional adoptada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro podem ser muitas. Mas uma delas adverirá, com certeza, da circunstância aos dois meios processuais principais - a «ação administrativa comum» e a «ação administrativa especial», cujos respetivos âmbitos e regras processuais eram distintas (cfr. artigos 35º, 37º, 42º e 46º do CPTA, na versão original) – com a revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015, ter resultado o abandono daquele modelo dualista de meios processuais principais não urgentes, através do estabelecimento de uma única forma de processo declarativo não urgente, a «ação administrativa», na qual passaram a poder ser cumulados pedidos que anteriormente pertenciam a cada uma daquelas distintas formas de processo. Daí emergindo múltiplas dificuldades ao nível da determinação da legitimidade passiva, resultando, não raras vezes, em decisões de forma, com absolvição da instância, e sem possibilidade de aproveitamento do ato de citação, nem da respetiva interrupção da prescrição ou da caducidade, a verificar-se. Podendo, até, raiar em situações de denegação de justiça, com prejuízo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
3.17. Assim se explicará que a citação deva ser dirigida uma única citação ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o ESTADO, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o ESTADO, sendo que foi aliás esta última hipótese que sucedeu nos autos. E com essa citação, que o ESTADO (e/ou os Ministérios que sejam também demandados) é chamado à ação, e a instância fixada, nos termos do artigo 260º do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA (sem prejuízo das eventuais modificações que possam vir a ocorrer nos termos que processualmente sejam admitidos).
3.18. Não cabe aqui fazer qualquer juízo quanto ao melhor acerto da opção legislativa adoptada na Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, já que num Estado de Direito assente no primado da Lei (cfr. arts. 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2 da CRP) na sua aplicação aos casos concretos têm de ser acatados os juízos de valor legislativamente formulados, quando não ofendam normas de hierarquia superior nem se demonstre violação de limitações legais de carácter geral “…não podendo o intérprete sobrepor à ponderação legislativa os seus próprios juízos sobre o que pensa que deveria ser regime legal, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.” (cfr., por todos, o Acórdão do Pleno do STA de 13/11/2007, Procº n.º 01140/06, in, www.dgsi.pt/jsta).
3.19. Ainda que sejam de reportar as dificuldades da sua articulação com outras normas do sistema jurídico infra-constitucional.
Designadamente as decorrentes de o Estatuto do MINISTÉRIO PÚBLICO (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), se referir à intervenção principal do MINISTÉRIO PÚBLICO quando representa o ESTADO, as REGIÕES AUTÓNOMAS ou as AUTARQUIAS LOCAIS, simultaneamente dispondo que “… em caso de representação de região autónoma, de autarquia local ou, nos casos em que a lei especialmente o permita, do Estado, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio” (cfr. artigo 5º n.º 1 alíneas a) e b) e n.ºs do Estatuto antigo e artigo 9º do Estatuto novo) e de prever a existência de departamentos de contencioso do ESTADO enquanto órgão de coordenação e de representação do ESTADO em juízo em matéria cível, administrativa e tributária (cfr. artigo 51º do Estatuto antigo e 61º do Estatuto novo) aos quais compete (cfr. artigo 52º n.º 1 do Estatuto antigo e 61º n.º 1 do Estatuto novo) a “… representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, em casos de especial complexidade ou de valor patrimonial particularmente relevante, mediante decisão do Procurador-Geral da República (alínea a)); “… organizar a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais” (alínea b)); “… assegurar a defesa dos interesses coletivos e difusos” (alínea c)); “… preparar, examinar e acompanhar formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado” (alínea d)), e ainda “… apoiar os magistrados do Ministério Público na representação do Estado em juízo” (n.º 2).
3.19. Sendo certo que por outro lado, e no que toca às ações cíveis, o CPC atual dispõe no seu artigo 24º, a respeito da representação do ESTADO que este é nelas “… representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído” (n.º 1), ressalvando que “… se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.
Não podendo deixar de se estranhar, que quando estejam em causa ações da mesma natureza, mas por não integrarem a área da competência da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. artigo 4º do ETAF), estejam submetidas à jurisdição dos tribunais comuns, a representação do ESTADO possa ser feita de modo tão diametralmente distinto.
3.20. Claro que o inciso da parte final do n.º 4 do artigo 25º do CPTA na sua versão atual, no qual, referindo-se ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, se diz que este “assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo” poderá criar dúvidas quanto à forma como será assegurada, em tal caso, a garantia da autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do artigo 219º n.º 2 da CRP e do respetivo Estatuto, em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local (cfr. artigo 2º do Estatuto antigo e 3º do Estatuto novo).
Mas não é despiciente relembrar que nos termos Estatuto antigo (aprovado pela Lei n.º 47/86) não só era contemplada a interligação entre a atuação judicial do MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do ESTADO e os demais serviços do Estado, cuja atuação estivesse implicada, como se previa que ao Ministro da Justiça competia transmitir, ainda que por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas acções cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado fosse interessado ou autorizar o Ministério Público, ouvido o departamento governamental de tutela, a confessar, transigir ou desistir nas acções cíveis em que o Estado fosse parte (cfr. artigo 80º alíneas a) e b) do Estatuto antigo).
3.21. E recentrando-nos na invocada desconformidade das normas em causa, temos que reafirmar a análise feita pela 1ª instância quanto à convocação do artigo 219º n.º 1 da CRP, nos termos da qual “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Dando por renovados os entendimentos doutrinais ali citados a tal respeito. Os quais evidenciam que a discussão em torno da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO se encontra atualmente já limitada. Na medida em que é aceite, sem reservas, a conformidade constitucional com o inciso “ao Ministério Público compete representar o Estado” constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 219º da CRP, quanto às demais opções legais em que a representação do ESTADO, e a defesa dos interesses patrimoniais deste, não são feitas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, mas pelas entidades ou órgãos integrados na administração direta ou indireta do Estado (tenham ou não personalidade jurídica), quando nos termos da lei processual aplicável lhes é reconhecida personalidade e capacidade judiciária.
O que significa que restam apenas em discussão as ações relativas a contratos e a responsabilidade civil extracontratual em que o ESTADO seja demandado nos Tribunais Administrativos. E não se vê em como possam estas considerar-se núcleo essencial das funções do MINISTÉRIO PÚBLICO referidas no n.º 1 do artigo 219º da CRP.
3.22. E por último sempre importará ainda dizer que independentemente de estar ou não a matéria em causa, regulada nos dispositivos dos artigos 11º e 24º do CPTA na versão dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, no âmbito da reserva relativa da assembleia da república nos termos do artigo 165º n.º 1 da CRP, também apontado como violado, o certo é que essa competência legislativa foi observada.
3.23. Aqui chegados, tem pois que concluir-se, dever ser negado provimento ao recurso e manter-se, com a antecedente fundamentação, a decisão do Mmº Juiz a quo que indeferiu a arguição de nulidade de falta da citação”.
Termos em que, pelas razões expostas no acórdão transcrito, plenamente subsumíveis ao presente recurso e que acompanhamos por se mostrarem concordantes com o direito aplicável ao caso vertente, as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na actual redacção, que fazem operar a citação da pessoa coletiva Estado, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos Tribunais Administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, não violam a normação constitucional invocada pelo Ministério Público.
Concludentemente, não ocorre qualquer nulidade processual decorrente da falta da citação do Ministério Público, improcedendo o alegado erro de julgamento imputado ao despacho recorrido".

III
DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a decisão recorrida.
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Sem custas.
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Notifique-se.
DN.

Porto, 19 de Novembro de 2021

Antero Salvador
Helena Ribeiro
Conceição Silvestre