Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01571/13.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/13/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTO ILÍCITO; QUEDA EM CAIXAS DE SANEAMENTO.
Sumário:1- Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no Código Civil.

A existência de um desnível ligeiro entre as caixas de saneamento e o nível do pavimento, não permite que se dê como verificada uma situação de perigo para a segurança dos peões, tratando-se de uma situação recorrente e previsível.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Recorrente:G., SA
Recorrido 1:Município (...) e Outros
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO

1.1. G., SPA, instaurou contra o Município (...) e a CMPEA, a presente ação administrativa comum pedindo a condenação dos Réus a pagar à Autora a quantia global de € 39.694.88 (trinta e nove mil seiscentos e noventa e quatro caros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação até o seu integral pagamento, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.
Alegou, para tanto, em síntese, que no dia 4 de dezembro de 2010, pelas l5h00m, na Avenida do (...), no (...), em frente ao prédio com o número de polícia 365, ao passar por duas caixas, que ali se encontravam no pavimento do passeio, a uma quota inferior à do resto desse pavimento, sem vedação ou sinalização, a sinistrada, L., não se apercebeu das referidas caixas e enfiou o pé na cavidade por elas formada, tropeçou e caiu abruptamente para a frente, sobre ambas as mãos, fraturando, com essa queda, ambos os pulsos.
A referida L., à data do acidente, era funcionária da Santa Casa da Misericórdia (...), exercendo as funções de chefe de secção, e na sequência da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho no âmbito do processo por acidente de trabalho que ali correu, a autora pagou à sinistrada a quantia de € 22.231,48.
O referido acidente aconteceu devido à existência de um buraco no passeio, que não se encontrava sinalizado, pelo que tudo se ficou a dever à omissão por parte dos demandados dos seus deveres de vigilância, fiscalização, sinalização e prevenção.
*
1.2. Citado, o Réu Município (...) apresentou contestação na qual requereu a intervenção acessória da I., Companhia de seguros, S.A., defendendo-se por exceção, invocando a sua ilegitimidade passiva, e por impugnação, pugnando pela total improcedência da ação.
*
1.3. Citada, a Ré CMPEA apresentou contestação na qual requereu a intervenção acessória da Companhia de Seguros F., S.A. II, e defendeu-se por impugnação, pugnando pela improcedência da ação.
*
1.4. Proferiu-se despacho a admitir a intervenção acessória da I., Companhia de seguros, S.A. e da Companhia de Seguros F., S.A. II.
*
1.5. Citadas, a interveniente F. Companhia de Seguros, S.A.‖ que incorpora as duas seguradoras, contestou a ação, nos termos do articulado de fls. 156 a 162 (processo físico).
*
1.6. Realizou-se a audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador que conheceu da matéria de exceção suscitada, tendo-a julgado improcedente, fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova.
*
1.7. Realizou-se a audiência final.
*
1.8. Em 22 de abril de 2015, o TAF do Porto proferiu sentença que julgou a ação improcedente, constando da mesma o seguinte segmento decisório:
«Nestes termos, de acordo com a fundamentação exposta, julgo a presente acção improcedente e, em consequência, absolvo os RR. do pedido.
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique.»
*
1.9. Inconformada com o assim decidido, a G.- Companhia de Seguros, S.A, interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida, apresentando as seguintes conclusões:
«I. Deve ser dado como provado a al. f) dos factos dados como não provados.
II. É incontroverso que foram os réus que não procederam à reparação do passeio junto das caixas de saneamento e que, em virtude de tal facto, se deu o acidente.
III. Incumbe aos recorridos o dever de manutenção, fiscalização, conservação e sinalização do pavimento do passeio em causa, por estarem obrigados a realizar actos de gestão pública no espaço rodoviário, conforme o disposto nos art.s. 16º e 26º da Lei 159/99 de 14.09 e art.º 96.º, n.º 1 da Lei 169/99 de 18.09.
IV. Impendia sobre os recorridos uma presunção de culpa imposta pelo art.º 493º/1 do CC e cabia às mesmas alegar e provar que estão devidamente organizadas, que fiscalizam, com diligência, regular e sistematicamente as estradas e caminhos municipais e que só as particulares circunstâncias do caso concreto, por fortuitas ou absolutamente imprevisíveis, explicam a falta de sinalização, o que tudo não fizeram.
V. Provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fundamento da causa, não poderiam os réus ser absolvidos.
VI. A sentença recorrida violou, pois, o disposto no art.s 9º da LRCEE e 493º/1 do CC e 609º/2 do CPC, devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra que condene os réus no pedido.»

1.10. A F. – Companhia de Seguros contra-alegou, e formulou as seguintes conclusões:
«i) Não há qualquer contradição entre os factos provados e dar-se como não provado o facto da alínea F);
ii) Não se poderia sequer dar como provado o facto F) sem previamente dar como provado o facto E) em relação ao qual a recorrente se conformou com o seu julgamento como não provado.
iii) Não provou a recorrente factualidade susceptível de permitir que se conclua pela ocorrência de uma omissão ilícita das RR;
iv) A presunção de culpa apenas funciona depois de se provar a ocorrência de omissão ilícita;
v) Nem sequer provou a recorrente os factos que permitam a qualificação do acidente como de trabalho;
vi) Não violou a decisão recorrida nenhuma das disposições invocadas pela recorrente.»
*
1.11. O Município (...) contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«A. A douta sentença proferida pelo tribunal a quo e ora colocado em crise pela Recorrente é, a nosso ver, justa, bem fundamentada e inatacável, demonstrando urna aplicação exemplar das normas jurídicas, pelo que deverá ser confirmada por V. Exas.
B. Para sindicar a decisão judicial da lª instância, defende a Recorrente (i) que o facto F) dos factos não provados deveria ter sido dado corno provado e se encontra em contradição com a matéria que consta do ponto 4 dos factos provados e (ii) que a sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação do direito, nomeadamente do disposto nos artigos 9º da Lei nº 67/2007, de 17 de Julho e no artigo 609º do Código de Processo Civil.
C. Os factos dados como provados resultam de uma correcta conjugação e interpretação da prova documental junta aos autos, bem assim da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento.
D. No local em que ocorreu o sinistro existiam duas caixas a uma quota inferior ao restante passeio.
E. Mas daqui não se pode passar a concluir que toda e qualquer ocorrência no local, geradora de danos para terceiros, possa ser da responsabilidade do Recorrido, atentas as competências e atribuições que o ordenamento jurídico português concede às autarquias locais.
F. O cerne do presente pleito está em saber se o pequeníssimo desnível do passeio situado na Avenida (...), em frente ao prédio como número de polícia 365, nesta cidade (...), foi causa única e exclusiva (ou pelo menos determinante) da queda da sinistrada e se pode ser gerador de responsabilidade do Recorrido, atento o disposto na Lei nº 67/2007, de 17 de Julho.
G. Como muito bem conclui a sentença recorrida proferida pelo tribunal a quo, “o diminuto nível das caixas existentes no dito passeio (bem visível nas fotografias juntas aos autos com a p.i – fls.28 e 29 do processo físico e a que o Senhor Engenheiro J. se referiu como tratando-se de um desnível de 1,5 cm) não se revelou como determinante da queda sofrida pela sinistrada, não constituindo, por si, um facto de risco para segurança das pessoas que por lá normalmente passassem, mesmo sem tomar especial cautela e que exigisse uma pronta actuação, reparando ou até sinalizando a anomalia, de forma alertar o cidadão comum para a possível ocorrência de situações anómalas e causadoras de danos, com as quais não era exigível que contasse” – cfr. pág. 17 da sentença recorrida.
H. O Recorrido não omitiu qualquer dever ou obrigação legal que o coloque na posição de indemnizar a sinistrada e, neste caso concreto de sub-rogação, a própria Recorrente, porquanto não era exigível que tivesse tido outro tipo de actuação.
I. Não se vislumbra a prática de qualquer facto ilícito e culposo, estando deste modo afastados dois dos requisitos fundamentais para accionar a responsabilidade civil do Recorrido e deduzir a consequente pretensão indemnizatória.
J. Importa recordar que a responsabilidade da Administração não é automática, não sendo accionada sempre que se verifique uma ocorrência geradora de danos para um terceiro numa área em que tem competências de conservação ou de manutenção.
K. Nos termos da lei, é sempre necessário constatar a conduta ilícita e culposa da Administração, bem como o nexo de causalidade com os danos causados, o que não sucede de todo no caso em apreço.
L. Pelo que foi acima aduzido e pelos fundamentos constantes da decisão judicial recorrida proferida pelo tribunal a quo, é entendimento do Recorrido que a mesma não merece qualquer reparo, devendo ser confirmada por V. Exas.»
*
1.12. A CMPEA- Empresa de Águas do Município (...) contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
«a) Não há qualquer contradição entre os factos provados e dar-se como não provado o facto da alínea F)
b) Não é possível dar como provado o facto da alínea F) sem que se desse também por provado o da alínea E)
c) E em relação a este a recorrente conformou-se com o julgamento de “não provado”
d) A presunção de culpa pressupõe prova da ocorrência de omissão ilícita
e) E o único facto que ficou provado é que existia um ligeiro desnível entre as tampas e o passeio.
f) O que não pode ser gerador de responsabilidade civil, atento o disposto na Lei n.º 67/2007, de 17 de Junho.
g) Como doutamente se concluiu na douta sentença “a quo” “o diminuto desnível das caixas existentes no dito passeio (bem visível nas fotografias juntas aos autos com a p.i – fls.28 e 29 do processo físico e a que o Senhor Engenheiro J. se referiu como tratando-se de um desnível de 1,5 cm) não se revelou como determinante da queda sofrida pela sinistrada, não constituindo, por si, um facto de risco para segurança das pessoas que por lá normalmente passassem, mesmo sem tomar especial cautela e que exigisse uma pronta actuação, reparando ou até sinalizando a anomalia, de forma alertar o cidadão comum para a possível ocorrência de situações anómalas e causadoras de danos, com as quais não era exigível que contasse”
h) Não se verifica qualquer omissão por parte da recorrida e, consequentemente, não há qualquer obrigação de indemnizar.
i) Não se verifica também a prática de qualquer facto ilícito ou culposo, pelo que estão afastados dois dos requisitos fundamentais da responsabilidade civil da recorrida.
j) A responsabilidade da Administração não é automática, carecendo a presunção de culpa de uma conduta ilícita e culposa, e nexo de causalidade com os danos, o que claramente se não verifica.
k) A douta sentença recorrida não violou assim nenhuma das disposições invocadas pela recorrente.»
*

1.13. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer.
*
1.14. Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem são as de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento:
a) sobre a matéria de facto decorrente da matéria inserta na alínea F) dos factos não provados não ter sido dada como provada.
b) sobre a decisão de mérito por ter efetuado uma incorreta interpretação do direito, nomeadamente do disposto no artigo 9º da Lei nº 67/2007, de 17 de julho, 493.º, n.º1 do Cód. Civil e artigo 609º do Código de Processo Civil.
*
III.FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO.
3.1. Com interesse para a apreciação da causa, o Tribunal a quo considerou assente a seguinte matéria de facto:
«1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade seguradora.
2) No exercício dessa actividade a Autora, na qualidade de seguradora, celebrou com a Santa Casa da Misericórdia (...), na qualidade de segurada, um contrato de seguro do ramo de «acidentes de trabalho», titulado pela apólice n° 0012 10029294 000, tendo como objecto e risco seguro os riscos traumatológicos e os acidentes de trabalho sofridos por todas as pessoas nele identificadas e por ele seguras, entre as quais se incluía a trabalhadora L. (cfr. doc. nº1 junto com a p.i.).
3) No dia 16 de Dezembro de 2010, a segurada na autora participou a esta última a ocorrência de um acidente que teve lugar no dia 4 de Dezembro de 2010, pelas l5h00m, o qual aquela declarou como sendo de trabalho e como Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto tendo como trabalhadora sinistrada L., trabalhadora por conta daquela (cfr. dcc. n° 2 junto com a p.i.).
4) Aquele acidente ocorreu na Avenida do (...), no (...), em frente ao prédio com o número de polícia 365, ao passar por duas caixas, que ali se encontravam no pavimento do passeio, a uma quota inferior à do resto desse pavimento, sem vedação ou sinalização.
5) A sinistrada, L., não se apercebeu das referidas caixas e enfiou o pé na cavidade por elas formada, tropeçou e caiu abruptamente para a frente, sobre ambas as mãos, fraturando, com essa queda, ambos os pulsos.
6) Após a queda a sinistrada foi auxiliada por funcionários e cliente de um estabelecimento comercial situado junto ao local da queda, tendo sido levantada do local onde caiu e transportada pata o interior daquele estabelecimento.
7) Ao local foi depois chamado o INEM, que ali compareceu, tendo conduzido a sinistrada ao Hospital de (...), no (...), onde a sinistrada foi assistida de urgência.
8) A sinistrada, L., era, à data do acidente, funcionária da Santa Casa da Misericórdia (...), exercendo as funções de chefe de secção no ¯Lar (...), com a retribuição mensal de € 1.789,81 e subsídio de alimentação de € 93,94 – cfr. fls. 21 do processo físico.
9) Foi proferida sentença pelo Tribunal de Trabalho do Porto, juízo único, 3ª secção, em 24/9/2012 que decidiu:

(Imagem no original da sentença)
- cfr. doc. 18 junto com a p.i.
10) Na sequência da referida decisão judicial a A. pagou € 22.231,48 à sinistrada – cfr. doc. 19 e 20 juntos com a p.i..
11) Ao abrigo do mesmo processo a autora liquidou as taxas de justiça e demais despesas judiciais no valor de € 397,80 - cfr. doc. nºs 21 e 22 juntos com a p.i..
12) A A. pagou ao Centro Hospitalar (...), RP.E. — Unidade de (...) a quantia de €2.817,80 – cfr. doc. 4 junto com a p.i.
13) A A. pagou ao Hospital da (...) a quantia de € 145,11; a I. — Consultadoria Clínica Médica, Lda a quantia de € 4,31; ao Instituto de Saúde (...) a quantia de € 1.700,00 - cfr. doc. nºs 5, 6, 7 e 8 juntos com a p.i.
14) Para transporte da sinistrada, a autora pagou ainda a T., Lda a quantia de €585,00 - cfr. doc. nºs 12, 13, 14, 15 e 16 juntos com a p.i.
15) A sinistrada ficou afectada de uma incapacidade temporária absoluta de 05.12.2010 a 22.06.2011; uma incapacidade temporária parcial dc 50% entre 23.06.2011 e 06.07.2011 e uma incapacidade temporária parcial de 10% entre 07.07.2011 e 07.09.2011, pelas quais a autora pagou à sinistrada a quantia global dc € 10.663,83 - cfr. doc. 17 junto com a p.i.
16) O Réu, Município (...), celebrou com a ¯I.,Companhia de Seguros, S.A. contrato de seguro titulado pela apólice nº 82032780 –cfr. doc. de fls.199 a 205 do processo físico.
17) A Ré, CMPEA, celebrou com a ¯Companhia de Seguros F., S.A. contrato de seguro, titulado pela apólice nº 8364321 – cfr. doc. de fls. 128 a 130 do processo físico.
Não resultaram provados os seguintes factos:
A) O acidente ocorreu quando a sinistrada se dirigia da sua residência para a paragem do autocarro, local onde iria, como habitual fazer, apanhar o autocarro para se dirigir para o ¯Lar (...).
B) A sinistrada, L. exercia funções na Santa Casa da Misericórdia (...), desde 25.06.1968, com um horário flexível de 40 horas semanais, as quais poderia prestar em qualquer dia da semana, incluindo sábados e domingos.
C) A A. pagou a M. a quantia de € 65,00.
D) O sinistro em causa nos autos ficou a dever-se, de forma única e exclusiva, ao desnível de caixas de saneamento existentes no passeio.
E) As referidas caixas saneamento formavam um buraco aberto no pavimento, que representavam um perigo evidente para o trânsito de peões, por nele poderem cair ou tropeçar.
F) Tendo sido ali construído, deixado e mantido pelos Réus.
G) Criando, para quem circulasse a pé pelo passeio público, o perigo de nelas cair ou tropeçar.»
*
III. B. DE DIREITO
b.1. Do erro de julgamento sobre a matéria de facto.
A Recorrente sustenta que a sentença recorrida errou ao julgar como não provada a matéria da alínea F) dos factos tidos como não provados, que está em contradição com a matéria dada como assente no ponto 4 dos factos provados.
Para tanto, aduz ser incontroverso que foram os RR. que não procederam à reparação do passeio junto das caixas de saneamento, o que foi reconhecido e dado como provado no ponto 4 dos factos assentes, onde se considera que no local se encontravam duas caixas de saneamento, colocadas a uma quota inferior à do resto do pavimento, sem vedação ou sinalização, tendo ficado sobejamente provado que o acidente se ficou a dever à existência do buraco nessas caixas de saneamento.
Assim, existe uma contradição entre os factos dados como não provados na alínea F e a matéria dada como provada no ponto 4 que reclama, nos termos do art.º 662.º do CPC, a anulação da decisão sobre esse facto não provado, cuja resposta deverá ser alterada, dando-se como provado que: «os réus construíram, deixaram e mantiveram no local o buraco de duas caixas no pavimento do passeio».
Vejamos.
A matéria que a 1. ª Instância deu como provada no ponto 4 dos factos assentes na sentença foi a seguinte: « 4) Aquele acidente ocorreu na Avenida do (...), no (...), em frente ao prédio com o número de polícia 365, ao passar por duas caixas, que ali se encontravam no pavimento do passeio, a uma quota inferior à do resto desse pavimento, sem vedação ou sinalização.».
Por seu turno, da alínea F) dos factos não provados o Tribunal a quo deu como não provada a seguinte matéria: «Tendo sido ali construído, deixado e mantido pelos Réus».
Em primeiro lugar, dir-se-á que a matéria desta alínea F) só é compreensível se atentarmos na matéria da alínea E) dos factos não provados, onde se refere o seguinte: «As referidas caixas saneamento formavam um buraco aberto no pavimento, que representavam um perigo evidente para o trânsito de peões, por nele poderem cair ou tropeçar».
Analisada a matéria que vem dada como não provada nestas duas alíneas, que têm de ser analisadas em conjunto, a não prova desta matéria não configura nenhuma contradição com a matéria dada como provada no ponto 4.
Na verdade, o dar-se como não provado, como sucedeu nos autos, que as caixas de saneamento em causa, onde a sinistrada caiu, formavam um “buraco aberto no pavimento que representavam um perigo evidente para o trânsito de peões, por nele poderem cair ou tropeçar” e bem assim, como não provado que o aludido buraco tivesse “sido ali construído, deixado e mantido pelos Réus” em nada contradiz a matéria dada como assente no ponto 4 dos factos provados na sentença. E isso, porque, naquele ponto 4 o Tribunal a quo limita-se a dar como provado que no local onde a sinistrada caiu “ao passar por duas caixas, que ali se encontravam no pavimento do passeio, a uma quota inferior à do resto desse pavimento, sem vedação ou sinalização” não permite que daí se conclua que existisse um “buraco aberto no pavimento que representava um perigo evidente para o trânsito de peões, por nele poderem cair ou tropeçar” e que esse buraco tivesse sido construído, deixado e mantido pelos RR, mas apenas que aquelas caixas estavam implantadas a uma quota inferior á do passeio.
Admitir a existência de um desnível em duas caixas de saneamento em face do pavimento não é o mesmo que consentir na existência de um buraco aberto no pavimento que constitua perigo de queda ou tropeçamento para os peões que por ali passem, não havendo qualquer contradição no julgamento da matéria de facto.
Termos em que se indefere o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto por alegada contradição nas respostas dadas.
*
b.2. Do erro de julgamento sobre a decisão de mérito decorrente de uma incorreta interpretação do direito, nomeadamente do disposto nos artigos 9º da Lei nº 67/2007, de 17 de julho e 493.º, n.º 1 do CC e, artigo 609º do Código de Processo Civil.

Nas conclusões II a VI do recurso interposto, a Recorrente imputa erro de julgamento sobre a matéria de direito, invocando que a sentença sob sindicância violou o disposto nos artigos 9.º da Lei 67/2007 e art.º 493.º, n.º1 do Código Civil, assim como o artigo 609.º do Cód. Proc. Civil.
Para tal, sustenta ser incontroverso que foram os réus que não procederam à reparação do passeio junto das caixas de saneamento e que, em virtude de tal facto, se deu o acidente.
Pelo que, incumbindo aos recorridos o dever de manutenção, fiscalização, conservação e sinalização do pavimento do passeio em causa, por estarem obrigados a realizar atos de gestão pública no espaço rodoviário, conforme o disposto nos art.ºs. 16º e 26º da Lei 159/99 de 14.09 e art.º 96.º, n.º 1 da Lei 169/99 de 18.0, sobre os mesmos impendia a uma presunção de culpa imposta pelo art.º 493º/1 do CC, cabendo-lhes alegar e provar que estão devidamente organizadas, que fiscalizam, com diligência, regular e sistematicamente as estradas e caminhos municipais e que só as particulares circunstâncias do caso concreto, por fortuitas ou absolutamente imprevisíveis, explicam a falta de sinalização, o que tudo não fizeram, pelo que, tendo sido provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fundamento da causa, não poderiam os réus ser absolvidos.
Vejamos.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra, no seu artigo 22.º, um princípio geral de responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas, prevendo que “…são civilmente responsáveis (…) por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem…”.
Por seu turno, no âmbito da lei ordinária, é aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, o regime consagrado na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, doravante, RRCEEP, que, basicamente, assenta nos mesmos pressupostos da responsabilidade civil prevista no art.º 483.º do Código Civil.
Resulta do art.º 1.º, n.ºs 1 e 2 desse diploma, que define o seu âmbito de aplicação, que:
«1 – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as ações ou omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo…».
A responsabilidade extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, decorrente do exercício da função administrativa, por factos ilícitos, que é a que nos interessa considerar no âmbito do caso em juízo, vem regulada nos artigos 7.º a 10.º desse diploma, o qual dispõe também sobre a responsabilidade pelo risco (cf. art. 11.º), sobre a responsabilidade que decorre do exercício da função jurisdicional(cf. arts. 12.º a 14.º), sobre a responsabilidade que decorre do exercício da função político legislativa (cf. art. 15.º), e bem assim sobre a indemnização pelo sacrifício (cf. art. 16.º) ou responsabilidade por facto lícito.
Estabelece-se no n.º 1 do Art.º 7.º desse diploma que «…o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício…».
Por seu turno, prevê-se no n.º 1, do art.º 8.º do mesmo diploma legal que «…os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, por eles cometidas, com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que estavam obrigados em razão do cargo...», resultando do dispondo o n.º 2 do mesmo preceito que «…o Estado e demais pessoas coletivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício...».
Ao pressuposto da ilicitude refere-se o art.º 9.º do diploma em análise, estabelecendo o seu n.º1 que «…consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos…”. Estão aqui previstas duas modalidades de ilicitude, a saber: a ilicitude decorrente da ilegalidade e a ilicitude por inobservância de deveres objetivos de cuidado.
Assinale-se, que no n.º 2 deste normativo, contempla-se ainda a ilicitude decorrente das situações de funcionamento anormal do serviço, tal como previstas nos nºs 3 e 4 do artigo 7º.
Quanto ao facto ilícito, precise-se que apenas há lugar a responsabilidade civil por danos que sejam consequência de factos humanos domináveis pela vontade, podendo tais atos consistir em ações ou omissões.
Citando MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO DE MATOS Cfr. “Direito Administrativo Geral”, Tomo III (Actividade administrativa), 2.ª edição, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2009, p. 486] -, no entender destes autores, consubstanciam ações, entre o mais, as simples atuações administrativas e os atos reais, incluindo todas as omissões juridicamente relevantes.
Como bem se sintetiza em acórdão deste TCAN Cfr. Ac. TCAN, 19/06/2008, Proc. n.º 0113/06.5BEPNF ;, o facto ilícito é “…o facto do órgão ou agente constituído por um comportamento voluntário, que tanto pode revestir a forma de ação como de omissão, advindo a ilicitude da ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais emitidas com vista à proteção de interesses alheios…”. Ou seja, a ilicitude é sinónimo de antijuridicidade que se pode expressar num juízo negativo ou de desvalor formulado pela ordem jurídica e incidente sobre o facto ou sobre o seu resultado.
Deste modo, será tida por ilícita toda e qualquer conduta que viole o bloco de legalidade (isto é, que viole princípios ou normas constitucionais, legais, regulamentares, internacionais, comunitários), infrinja regras de ordem técnica e de prudência comum, ou deveres objetivos de cuidado ou que viole os parâmetros pelos quais se deve reger o normal funcionamento dos serviços. Cfr. Ob. Cit. pág. 486-487;



Quanto à culpa, dispõe-se no n.º 1 do art.º 10.º da mencionada lei, que «…a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor...» e no n.º 2 desse normativo, prescreve-se que «…sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos…».
Por sua vez, no n.º 3 desse mesmo preceito estatui-se que «…para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sem que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância…».
Note-se que o pressuposto da culpa, fora dos casos em que se esteja perante a verificação de «danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos”, prevista no art.º 11.º da Lei 67/2007 e das situações de indemnização por sacrifício, previstas no art.º16º desse diploma, é pressuposto necessário para que se possa responsabilizar a Administração pela ocorrência de danos, tendo de haver um facto ilícito e censurável para que possa reclamar-se da Administração a responsabilidade pelos danos que se verifiquem em consequência da atuação de um seu agente.
Sublinhe-se ainda que este art.º 10.º da citada Lei, estabelece um critério próprio de aferição da culpa, no domínio da responsabilidade da Administração, prevendo como padrão aferidor da culpa, o agente zeloso e cumpridor, pelo que se pode concluir que o legislador assumiu ser imperativo que a Administração atue, através dos seus agentes, com a diligência a que uma pessoa competente está vinculada, sob pena de violação dos deveres de zelo e de boa administração.
Quanto à culpa, a mesma traduzir-se-á, fundamentalmente, num juízo de censura sobre o comportamento ativo ou omissivo do titular de órgão ou de agente, em resultado dessa conduta não corresponder à que é exigível e esperada de um funcionário típico, normal, zeloso e cumpridor, nas circunstâncias do caso concreto. Trata-se, essencialmente, de apreciar a culpa num plano funcional, no plano do exercício de funções.
Em face do enunciado, a ilicitude e a culpa são conceitos preenchidos pela omissão ou deficiente cumprimento de deveres funcionais, já que os funcionários e agentes administrativos encontram-se sujeitos a normas que os obrigam a possuir os conhecimentos jurídicos, técnicos ou outros, necessários ao exercício da sua profissão. E, a fronteira entre o ilícito e a culpa é de tal forma baça, que a nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que uma vez provada a omissão do dever funcional, sem que o Estado e demais entes públicos tenham provado qualquer facto justificativo dessa omissão (ou que esta não se verificou), provada se deve ter a culpa da entidade lesante.
Daí que, nas ações de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por factos ilícitos, funcione a presunção de culpa in vigilando estabelecida no n.º 1, do art. 493.º do Código Civil. Cfr. Ac. do STA, de 25.03.1999, Proc. n.º 041297.
Um aspeto inovador do novo regime legal que convém também realçar, traduz-se na previsão de uma presunção de culpa leve para a prática de atos jurídicos ilícitos (artigo 10º, n.º 2) e para o incumprimento de deveres de vigilância (artigo 10º, n.º 3).
Assim, por força do disposto no n.º3 do art.º 10.º, a existência de uma conduta ilícita dos Réus por violação de deveres de manutenção, vigilância ou fiscalização, determina, por si só, a existência de uma presunção de culpa leve- uma presunção iuris tantum.
A respeito da presunção de culpa leve prevista neste n.º3 do art.º 10.º, CARLOS CADILHA Cfr. In “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado” cit., pp. 168-169., defende que com tal previsão, o que se pretendeu foi consagrar a orientação jurisprudencial já firmada no domínio do Decreto-Lei n.º 48051 quanto à culpa in vigilando, remetendo para um regime similar ao dos artigos 491º e 493º, n.º 1, do Código Civil.
De acordo com o regime de presunção de culpa do art.º 493.º, n.º1 do Cód. Civil «para ilidir a presunção de culpa constante do indicado normativo, cabe ao Réu alegar e provar que, face à situação concreta, actuou como seria lícito esperar, no caso, no exercício das suas funções e em função dos meios que tinha ao seu dispor, e que, não obstante a sua actuação dentro destes parâmetros, sempre e em todo o caso o acidente se teria verificado». (vide Ac. do STA de 15/3/2005)
No que respeita ao dano, o mesmo pode definir-se como a diminuição ou extinção de uma vantagem que é objeto de tutela jurídica. Configura um conceito polissémico que envolve toda uma pluralidade de situações, a saber: (i) danos emergentes ou imediatos que respeitam à privação de vantagens que já existiam na esfera jurídica do lesado no momento da lesão; (ii) lucros cessantes que se reportam aos benefícios que o lesado deixou de auferir por causa da lesão (mas devendo ser certos e não apenas meramente possíveis) [cf. art. 564.º, n.º 1, do CC]; (iii) danos presentes são aqueles que já ocorreram no momento da fixação da indemnização; (iv) danos futuros são aqueles que ainda não ocorreram no momento da fixação da indemnização [cf. art. 564.º, n.º 2, do CC]; (v) danos patrimoniais denominam-se todos os danos suscetíveis de avaliação pecuniária; e, (vi) danos morais ou não patrimoniais designam-se todos os outros danos que são insuscetíveis de uma tal avaliação. Cfr. Ob. Cit., pág.. 495-496;
Finalmente, quanto ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, explicita-se que a existência de um tal nexo de causalidade implica que o comportamento do funcionário ou agente deva ser causa adequada do dano, isto é, dos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão [cf. art. 563.º do CC]. Como tal, o facto será causa adequada do dano, sempre que este constitua sua consequência normal ou típica (ou, noutra formulação da teoria da causalidade adequada: o comportamento só deixa de ser causa adequada do dano se, dada a sua natureza geral, for indiferente para a verificação do dano, tendo-o causado por virtude de circunstâncias excepcionais que ocorreram no caso concreto). Cfr. Ac. STA, de 18.05.1993, Rec. n.º 31.867, in ACD, n.º 390, p. 629. Ante o exposto, dever-se-ão considerar abrangidos, no âmbito da causa adequada, os comportamentos que não produzindo, eles mesmos, o dano, desencadeiam outro(s) que leva(m) à sua existência.
Por conseguinte, subsiste o nexo de causalidade adequada quando o facto ilícito não produz ele mesmo o dano, mas é causa adequada de outro facto que o produz, na medida em que este facto posterior tiver sido especialmente favorecido por aquele primeiro facto ou seja provável, segundo o curso normal dos acontecimentos. Ficam, assim, excluídos os danos que só se produziram em virtude de circunstâncias extraordinárias, bem como os provenientes de conduta que, tendo em conta a sua natureza geral e o seu curso normal, não seria apta a produzi-los.


Aqui chegados, lembre-se que é jurisprudência firme e reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no Código Civil. Assim, no caso, há, então que se indagar se ocorre a verificação cumulativa dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquilina, a saber, o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nesse sentido, tome-se em consideração, a título meramente exemplificativo, a jurisprudência promanada pelo Ac. do STA, de 3/07/2007, processo nº 0443/07, no qual se enuncia que «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto»

Conforme se refere na sentença recorrida « A Autora fundamenta o pedido indemnizatório dos danos que resultaram para a sinistrada da queda no passeio da Av. (...) junto ao nº 365, onde existiam duas caixas que refere ser de saneamento, partindo do pressuposto que a queda da sinistrada ocorreu exclusivamente por causa do desnível das caixas e que incumbia aos RR. enquanto entidades responsáveis pela construção e manutenção das ditas caixas ter procedido à sinalização do perigo que representavam para os peões que aí passavam».
Da matéria de facto assente, resultou provado, como pode ler-se na fundamentação da sentença recorrida, que no dia 4 de Dezembro de 2010, pelas l5h00m, ocorreu um acidente na Avenida do (...), no (...), em frente ao prédio com o número de polícia 365, na qual foi interveniente L., que, ao passar por duas caixas que se encontravam no pavimento do passeio, a uma quota inferior à do resto desse pavimento, sem vedação ou sinalização, não se apercebeu da sua existência e enfiou o pé na cavidade por elas formada, tropeçou e caiu abruptamente para a frente, sobre ambas as mãos, fracturando, com essa queda, ambos os pulsos.
Mais se mostra provado que, após a queda, a sinistrada foi auxiliada por funcionários e clientes de um estabelecimento comercial situado junto ao local da queda, tendo sido levantada do local onde caiu e transportada para o interior daquele estabelecimento tendo sido chamado o INEM, que ali compareceu e conduziu a sinistrada ao Hospital de (...), no (...), onde lhe foi prestada assistência de urgência.
Provado ficou, também, que a sinistrada, L., era, à data do acidente, funcionária da Santa Casa da Misericórdia (...), exercendo as funções de chefe de secção no ¯Lar (...), com a retribuição mensal de € 1.789,81 e subsídio de alimentação de € 93,94 e, que, por força do contrato de seguro existente entre a entidade patronal da sinistrada e a ora A. pagou à sinistrada € 22.231,48 mais as despesas do processo, no montante de € 397,80, que correu termos no Tribunal de Trabalho do Porto, juízo único, 3ª secção, no qual foi condenada a ora A. por sentença de 24/9/2012,
E provado está, também, que a A. pagou ao Centro Hospitalar (...), RP.E. — Unidade de (...) a quantia de €2.817,80; ao Hospital da (...) a quantia de € 145,11; a I. — Consultadoria Clínica Médica, Lda. a quantia de € 4,31; ao Instituto de Saúde (...) a quantia de € 1.700,00; a T., Lda. a quantia de €585,00.
Por último, resultou apurado que a sinistrada ficou afectada de uma incapacidade temporária absoluta de 05.12.2010 a 22.06.2011; uma incapacidade temporária parcial dc 50% entre 23.06.2011 e 06.07.2011 e uma incapacidade temporária parcial de 10% entre 07.07.2011 e 07.09.2011, pelas quais a autora pagou à sinistrada a quantia global dc € 10.663,83.».
Partindo desta factualidade, corretamente enunciada, entendeu o Tribunal a quo que «No caso presente, o facto ilícito na base do qual a A. construiu a presente acção foi o alegado incumprimento do dever de manter o passeio em bom estado de conservação, sem a existência de desníveis no pavimento, nomeadamente, decorrentes da instalação de caixas no passeio bem assim como do dever de sinalização de obstáculos ocasionais, mais concretamente, do desnivelamento existente em redor das ditas caixas, desnivelamento que, alegadamente, terá sido a causa que levou a sinistrada a tropeçar e a cair no solo.
O que os autos mostram, em síntese, é que a sinistrada, efectivamente, tropeçou no passeio e sofreu danos que a A. reparou por força do contrato de seguro que havia celebrado com a entidade patronal da sinistrada e que, no dito passeio, se encontram instaladas duas caixas que se destacam ligeiramente do nível do pavimento do passeio.
Pode ler-se na sentença recorrida que « (…)No caso em apreço, provou-se que no passeio da Av. (...), junto ao nº 365, existiam duas caixas a uma quota inferior à do resto do pavimento e que a sinistrada não se apercebeu delas, tendo enfiado o pé na cavidade por elas formada, tropeçado e caído para a frente sobre as mãos, fracturando os pulsos.
Sucede que, é nossa convicção, o diminuto desnível das caixas existentes no dito passeio (bem visível nas fotografias juntas aos autos com a p.i. – fls. 28 e 29 do processo físico e a que o Senhor Engenheiro J. se referiu como tratando-se de um desnível de 1,5cm) não se revelou como determinante da queda sofrida pela sinistrada, não constituindo, por si, um factor de risco para a segurança das pessoas que por lá normalmente passassem, mesmo sem tomar especial cautela e que exigisse das entidades responsáveis, uma pronta actuação, reparando ou até sinalizando a anomalia, de forma a alertar o cidadão comum para a possível ocorrência de situações anómalas e causadoras de danos, com as quais não era exigível que contasse.
Podemos, assim, dizer que os RR. não omitiram o cumprimento dos seus deveres, não lhe sendo exigível, atentas as circunstâncias do caso, que tivesse actuado de forma diferente e, portanto, não ficou demonstrado que, por acção ou por omissão, tenha sido praticado qualquer facto ilícito, isto é, um acto violador de direitos de terceiro.
Cremos, pois, que a queda sofrida pela sinistrada não é imputável a desleixo dos RR, afigurando-se da prova produzida que tal queda não ocorreu em virtude da falta de actuação dos RR. ao nível da conservação do pavimento do passeio e da sinalização de obstáculos ocasionais lá existentes.
Do exposto resulta, pois, não estar provado qualquer facto ilícito imputável aos RR. e da matéria de facto também dada como assente resulta que não era exigível aos RR. que tivessem tomado outras cautelas perante o desnível que apresentavam as caixas relativamente ao restante pavimento do passeio, isto é, a factualidade provada nos autos não permite afirmar que motivadora do acidente em causa nos autos.
Não há dúvida que essa ilicitude e culpa teriam de resultar da certeza de que houve uma violação dos deveres de vigiar as caixas e de sinalizar o perigo inerente à sua presença no passeio. Todavia, para que esses deveres existissem, não bastava provar que as caixas se encontravam no passeio e alteadas em relação ao restante pavimento, sendo exigível que resultasse apurado que as mesmas representavam um perigo que os RR. estavam obrigados a conhecer e a prevenir, nomeadamente, através de adequada sinalização, o que, no caso em apreço, não ocorreu.
Nesta medida, não pode ser assacada aos RR. a responsabilidade na produção do evento gerador dos danos, cuja indemnização vem peticionada, visto que se afigura que a queda ocorrida terá sido provocada por circunstâncias fortuitas que escapam ao domínio dos RR. Assim sendo, considerando que os requisitos da responsabilidade civil são de verificação cumulativa, perante a inverificação de facto ilícito e culposo, é forçoso concluir que não estão reunidos os pressupostos para a responsabilização dos RR.».

Entende a apelante que a 1.ª Instância errou ao julgar não se verificarem os pressupostos da ilicitude e da culpa por parte dos apelados, que ao decidir conforme consta da sentença recorrida, violou o art.º 9.º da Lei n.º 67/007 e o disposto no art.º 493.º, n.º1 do Cód.Civil.
Cremos que sem razão.
É inegável que sobre os RR., atentas as suas atribuições, incumbe o dever de manterem em bom estado de conservação, os equipamento públicos, onde se incluem os passeios públicos por onde circulam peões, e o dever de vigilância desses equipamentos de modo a assegurar que os mesmos não ofereçam perigo para a segurança das pessoas e bens, pelo que, devem velar pela inexistência de equipamentos que constituam perigo de queda para os peões, como será seguramente o caso da existência de caixas de saneamento sem tampa ou esburacadas, ou seja, com deficiências não expectáveis a quem habitualmente circule em passeios públicos.
Já cremos que não configurará uma situação de perigo, com a qual quem circule pelos passeios públicos não possa contar, o surgimento de caixas de saneamento com algum desnível em relação à superfície do passeio ou da via pública. Diz-nos a experiência de vida, que situações de caixas de saneamento desniveladas relativamente ao pavimento onde se encontram implantadas são muito frequentes, sem que essa situação configure a violação de normas de segurança ou possa traduzir uma atitude demissionária dos poderes públicos para com os deveres de vigilância relativamente a tais equipamentos.
Contrariamente ao que a apelante alega, não se provou a existência de um buraco junto das referidas caixas mas apenas que a sua implantação era a uma cota inferior à do nível do pavimento do passeio. Antes pelo contrário, deu-se como não provado que:
«D) O sinistro em causa nos autos ficou a dever-se, de forma única e exclusiva, ao desnível de caixas de saneamento existentes no passeio.
E) As referidas caixas saneamento formavam um buraco aberto no pavimento, que representavam um perigo evidente para o trânsito de peões, por nele poderem cair ou tropeçar.
F) Tendo sido ali construído, deixado e mantido pelos Réus.
G) Criando, para quem circulasse a pé pelo passeio público, o perigo de nelas cair ou tropeçar.»
Assim sendo, subscrevemos a sentença recorrida, quando nela se considera que a causa do acidente não se encontra nesse desnível ligeiro das caixas de saneamento, conquanto o mesmo não configura perigo para a circulação dos peões, nem a sua existência traduz a omissão de qualquer dever de conservação, ou omissão dos deveres de vigilância que impendem sobre as Rés.
São frequentes as situações em que se verifica a colocação das caixas de saneamento nos pavimentos dos passeios destinados à circulação de peões, a um nível inferior em relação ao passeio, sem que daí se possa automaticamente concluir que essa situação constitua um perigo em termos de segurança para os peões. Existirem caixas de saneamento colocadas a uma quota inferior ao passeio é uma situação recorrente, com a qual todos nos deparamos quando circulamos pelos passeios públicos, sem que daí decorra perigo para a segurança de quem circule sobre os mesmos. Não é despiciendo referir que também impende sobre quem circula na via pública ou nos passeios públicos adotar o cuidado necessário para evitar quedas e tropeçar, uma vez que é previsível que os passeios apresentem declives, subidas e descidas, conforme a morfologia do terreno onde se encontrem implantados, possam estar ou não escorregadios em função da ocorrência de chuvas. O pavimento dos passeios nem sempre é regular, apresentando altos e baixos e por vezes, obstáculos que carecem de ser contornados, como postes de iluminação, recipientes para a colocação de lixo, canteiros com flores, etc…
No caso, do que se tratava era de apurar se aquelas concretas caixas de saneamento estavam colocadas sobre o passeio por onde transitava a sinistrada em condições objetivamente perigosas, o que no caso passava pela prova de que as mesmas apresentavam buracos cuja dimensão constituísse um real perigo, e essa prova não foi realizada, antes pelo contrário, apenas se apurou a sua colocação a uma cota inferior ao pavimento do passeio.
Ora, do facto da sinistrada ter tropeçado e caído nessas caixas, por muito impressivo que possa ser, não prova que aquelas caixas de saneamento estivessem colocadas de forma a causar perigo para quem por ali circulasse, ou seja, que a sua colocação traduzisse o incumprimento por parte das RR. de alguma regra técnica ou a violação dos deveres de manutenção e de sinalização que sobre si impendessem.
Assim sendo, forçoso é concluir pela improcedência dos fundamentos de recurso avançados pela Recorrente, impondo-se, ao invés, confirmar a sentença recorrida.
**
IV- DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e, confirmar a decisão recorrida.

*
Custas pelo Apelante, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

*
Notifique.

*
Porto, 13 de novembro de 2020.



Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro)