Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00370/19.7BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/10/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:SERVIÇOS MUNICIPALIZADOS DE TRANSPORTES URBANOS DE ... (SMTU...); REGULAMENTO DO PROCEDIMENTO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DOS TRIPULANTES; SANÇÃO DISCIPLINAR;
PRÉVIO PARECER ESCRITO DA COMISSÃO DE TRABALHADORES; ALÍNEA C) DO ARTIGO 327º DA LEI GERAL DO TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS;
NORMA IMEDIATAMENTE OPERATIVA; IMPUGNAÇÃO INCIDENTAL DE NORMAS; N.º 3 DO ARTIGO 73º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:1. A norma constante do regulamento do procedimento de prestação de contas dos tripulantes em vigor nos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de ... (SMTU...) que estabelece o prazo de 8 dias para os motoristas prestarem contas dos bilhetes vendidos a bordo, cominando o incumprimento com a possibilidade de sanção disciplinar, é uma norma com eficácia externa porque se repercute na esfera jurídica, laboral e disciplinar, do funcionário.

2. Não se trata de uma norma com o fim, apenas, de regular a organização e funcionamento do serviço.

3. Daí impor-se, na elaboração da norma em causa, o prévio parecer escrito da comissão de trabalhadores, a que alude a alínea c) do artigo 327º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, tal como decidido.

4. E se é certo que na primeira vertente, de impor o dever de o motorista prestar contas em 8 dias, é uma norma imediatamente operativa, o que afastaria a possibilidade de aplicação do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na segunda vertente, de prever a aplicação de uma sanção disciplinar para o incumprimento deste dever, não é imediatamente operativa pois exige precisamente a aplicação a cada caso concreto.

5. Estas duas vertentes da norma são incindíveis, pois a aplicação de uma sanção disciplinar funda-se quer no incumprimento do referido dever, de prestar contas em 8 dias, quer na previsão de aplicação de uma sanção disciplinar para esse incumprimento, daí justificar-se no caso a aplicação do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de conhecimento a título incidental da ilegalidade de normas para avaliar a validade do acto punitivo.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Município ... veio recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 26.05.2022, pela qual foi julgada (parcialmente) procedente a acção que lhe foi movida por AA na qual foram deduzidos os seguintes pedidos:

a) Ser declarada a nulidade do ato administrativo consubstanciado na Deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... de 10/07/2017, registo sgd n.º 6124, que aprovou o regulamento dos procedimentos básicos de Agente Único, Edição/Revisão 03, de 03/01/2013 – Imp. ..-..-A1, e o regulamento do procedimento de prestação de contas dos tripulantes em vigor nos SMTU...,

b) Ser anulada a decisão disciplinar ínsita nos atos administrativos consubstanciados na Deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... (1.ª ré) datada de 27/11/2018, com o n.º de registo 13687, notificada em 07/12/2018, confirmada pela Deliberação da Câmara Municipal ... (2.ª ré), de 11/03/2019, exarada na informação 04/03/2019, com o registo ...86 (doc. ...), que aplicou ao autor a sanção disciplinar de suspensão por 35 dias, e cuja execução ficou suspensa por 13 meses, condenando-se as rés a realizar as operações necessárias para reconstruir a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado.

Caso assim não se entenda:

c) Ser julgada verificada a exceção de caducidade do procedimento disciplinar e revogada a decisão que se impugna, condenando-se as rés a realizar as operações necessárias para reconstruir a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado.

Caso ainda assim não se entenda:

d) Ser revogada a decisão disciplinar por insuficiência da matéria de facto provada e inexistência de infração, condenando-se as rés a realizar as operações necessárias para reconstruir a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado.

Ainda assim não se entendenda:

e) Ser revogada a decisão disciplinar em causa e substituída por outra que determine a aplicação da sanção repreensão escrita por ser a mais adequada ao caso.

Invocou para tanto, em síntese, que: a decisão recorrida incorreu em erro de interpretação e aplicação ao caso concreto do disposto na alínea c) do artigo 327.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, pois os regulamentos internos a que este preceito se refere, impondo a precedência de parecer prévio da comissão de trabalhadores, são apenas regulamentos globais dos comportamentos no âmbito do funcionamento do órgão ou serviços, o que não é o caso; não há aqui margem para lançar mão do artigo 73.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que tem em vista a impugnação de normas com eficácia externa.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

CONCLUSÕES:

I – Decorre da alínea c) do 327.º da LTFP que é obrigatoriamente precedida de parecer escrito da comissão de trabalhadores a elaboração de regulamentos internos do órgão ou serviço, sendo que esses regulamentos estão inseridos no âmbito do poder regulamentar do empregador público, tal como previsto no artigo 75.º da LTFP;

II – O artigo 75.º da LTFP artigo tem o mesmo sentido e alcance do artigo 99.º do Código do Trabalho (tendo, aliás, redacção quase idêntica) e, ainda que se possa abarcar no âmbito do sobredito poder regulamentar não só os regulamentos globais dos comportamentos no âmbito do funcionamento da empresa, mas também as “ordens de serviço”, “comunicações” ou “instruções” emitidas com carácter genérico e abstracto, o certo é que o procedimento a que se refere o n.º 2 do artigo 75.º e a alínea c) do artigo 327.º da LTFP é apenas aplicável àqueles primeiros;

III – O parecer prévio da comissão de trabalhadores a que aludem os artigos 75.º, n.º 2 e a alínea c) do artigo 327.º da LTFP respeita apenas à hipótese de regulamento interno propriamente dito, ou seja, de um documento em que, de modo mais ou menos exaustivo, se compendiem as regras respeitantes aos vários aspectos do funcionamento dos serviços;

IV - A aplicação dos aludidos preceitos normativos só se impõe no caso dos regulamentos internos do órgão ou serviço, verdadeiros códigos de conduta pormenorizados, com não raras implicações contratuais, e que incorporam o propósito de consagrar uma espécie de “ordenamento privativo” da empresa e não deve, portanto, ter-se por globalmente aplicável a todos os tipos de instrumentos regulamentares produzidos pelo empregador;

V - A necessidade de audição da comissão de trabalhadores deve ser parametrizada pelo conteúdo do direito de consulta a que se refere o art. 327.º da LTFP, uma vez que a mesma não tem como razão de ser o controlo da legalidade dos actos regulamentares do empregador, mas a possibilidade de estes produzirem efeitos negativos, directos ou indirectos, sobre os interesses dos trabalhadores;

VI - Só os actos regulamentares que tenham esta potencialidade – aqueles que tenham por objecto temas abrangidos pelo art. 327.º - devem considerar-se no âmbito da exigência de prévia apreciação pela estrutura que representa aqueles interesses;

VII - Os Procedimentos Básicos de Agente Único dos SMTU... e o Procedimento de Prestação de Contas dos Tripulantes, traduzem-se num conjunto de instruções que fixam os termos em que deve ser prestada a tarefa de prestação de contas, instruções essas dirigidas a um grupo de trabalhadores delimitado pelas características do seu específico conteúdo funcional.

VIII - Tais procedimentos compreendem, entre o mais, o dever de esses trabalhadores prestarem contas das receitas que arrecadam na actividade de transporte coletivo urbano de passageiros com a venda dos bilhetes de bordo, mas não têm o alcance de Regulamento Interno do órgão ou serviço nem colidem com nenhuma das matérias a que se refere o artigo 327.º da LTFP.

IX – A sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao considerar que, no caso, a aprovação do procedimento de prestação de contas dos SMTU... estava sujeita a parecer obrigatório da Comissão de Trabalhadores, fazendo, mais concretamente, errada interpretação e aplicação da alínea c) do artigo 327.º da LTFP, violando, consequentemente, esse preceito normativo;

X – Por outro lado, os procedimentos aqui em crise traduzem-se num conjunto de instruções de serviço que, ainda que susceptíveis de ser reconduzidas ao poder regulamentar do empregador, são emitidas no exercício de um poder de direção hierárquica, visando conformar a conduta dos funcionários e agentes administrativos, no âmbito de um mesmo departamento ou serviço, e têm em vista ditar regras de procedimento ou uniformizar a interpretação das normas legais ou regulamentares;

XI – Esses procedimentos dirigem-se aos trabalhadores abrangidos no âmbito da organização e funcionamento do concreto serviço em que prestam funções, pelo que, a terem-se como reconduzíveis ao conceito de regulamento, devem considerar-se regulamentos internos, não havendo aqui, portanto, margem para lançar mão do artigo 73.º, n.º 3, do CPTA, que tem em vista a impugnação de normas com eficácia externa.

XII - De todo o modo, e mesmo que assim não se considerasse, sempre haveria que tomar em conta que aquele preceito normativo se reporta à impugnação, a título incidental, de normas mediatamente operativas, ou sejam aquelas que só são susceptíveis de operar os seus efeitos através de actos administrativos de aplicação a situações individualizada;

XIII – As instruções de serviço contidas nos procedimentos aqui visados não carecem de qualquer acto administrativo de aplicação, pelo que não existe fundamento legal para a sua desaplicação;

XIV - A norma que impõe aos motoristas dos SMTU... o prazo de 8 dias para prestarem contas dos bilhetes vendidos a bordo é imediatamente operativa – impõe-lhes a prestação de contas dentro desse prazo – e a cominação de eventual sanção disciplinar em caso de incumprimento é uma consequência desse mesmo incumprimento e não uma condição de operatividade da instrução que ali é dada;

XV - A sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação do artigo 73.º, n.º 3, do CPTA, violando-o.

*
II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. O autor desempenha funções de Agente Único de Transportes Coletivos nos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de ... (SMTU...) – acordo.

2. Por deliberação de 06.12.2016 o Conselho de Administração dos SMTU... aprovou proposta da Divisão de Serviços de Produção da qual consta designadamente o seguinte:

"(...) em 11 de Setembro desse mesmo ano [2012] a Comissão de Trabalhadores realiza uma reunião de trabalhadores reivindicando
. A atribuição de 30 minutos para prestação de contas, contabilizado como tempo de serviço;
. A instalação de uma máquina para prestação de contas, conforme proposta do Banco 1... até ao dia 18 desse mês.
A primeira questão foi enquadrada no âmbito de elaboração de novas escalas de serviço (em resultado do alargamento do horário de trabalho para as 40 horas) e dos novos parâmetros entretanto aprovados pelo Conselho de Administração.
(...)
Considerando
(...)
Propõe-se:
1. Alteração ao atual procedimento de prestação de contas, nomeadamente ao nível dos prazos nele previstos, passando a ter a seguinte redação
(...)
(...)
f) A prestação de contas processa-se através das Máquinas Automáticas de Prestação de Contas (MAPC) ou, em alternativa, nos locais disponíveis para esse fim, durante o horário estabelecido;
g) As MAPC permitem efetuar os pagamentos correspondentes às vendas de bordo através de pagamento por cartão bancário atribuído pelos SMTU...;
h) O Tripulante terá um prazo máximo de 8 dias para prestação de contas, a contar do dia seguinte à prestação do serviço (...)”
- cf. fls. 54 e 55 do processo administrativo.

3. Em 13.07.2017 foi aprovado pelo Conselho de Administração dos SMTU... o Procedimento de Prestação de Contas que impõe aos motoristas dos SMTU... o prazo máximo 8 dias para efetuarem a prestação de contas dos bilhetes que vendem a bordo dos autocarros e comina o incumprimento do prazo com a possibilidade de aplicação de sanção disciplinar - cf. deliberação e anexo de fls. 470-497 do processo administrativo.

4. A aprovação do regulamento de prestação de contas referido nos pontos anteriores não foi precedida de consulta à Comissão de Trabalhadores do R. para que produzisse parecer escrito acerca do mesmo – acordo.

5. Em 15.05.2018 o Conselho de Administração dos SMTU... proferiu deliberação pela qual determinou a instauração de procedimentos disciplinares a nove trabalhadores dos SMTU..., entre os quais o autor, nomeando instrutor dos procedimentos BB - cf. Deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... constante de fls. 2-4 do processo administrativo.

6. Em 18.06.2018 foi instaurado ao ora autor, na sequência da deliberação referida no ponto anterior, o procedimento disciplinar n.° 13/2018 - cf. autuação constante de fls. 1 do processo administrativo apenso aos autos.

7. Em 26.06.2018 foi comunicado ao ora autor, de forma pessoal, que contra si fora instaurado o procedimento disciplinar n.° 5/2018 e de que a respetiva instrução tivera início a 18.06.2018 - cf. Documento intitulado “Notificação do início da instrução”, assinado pelo ora autor, constante de fls. 68 do processo administrativo.

8. Em 29.06.2018 o ora autor foi inquirido no âmbito da instrução do visado procedimento disciplinar, tendo sido lavrado auto dessa inquirição, do qual consta designadamente o seguinte:

Perguntado ao declarante se conhece o procedimento interno de prestação de contas, respondeu que sim.
No entanto, acrescentou que durante o seu horário de trabalho não existe qualquer referência ou disponibilidade para prestação de contas. Por outro lado, as máquinas por vezes não funcionam.
O declarante afirmou que o seu horário de trabalho é quase sempre entre as 08,30 horas e as 18,00 horas, tendo prescindido do subsídio de turno para ter esta estabilidade de horário, com o objectivo de prestar assistência à família, designadamente às suas duas filhas menores, de quem tem a responsabilidade parental, uma vez que se encontra divorciado e a ex mulher tem pouca disponibilidade para se organizar na ajuda das tarefas diárias das filhas, em face da sua profissão.
Acrescentou que às vezes passa-se mais de um mês que não entra nas instalações dos SMTU..., deixando o seu carro estacionado na ...
Perguntado ao declarante se o prazo máximo de 8 dias para prestar contas é suficiente para o efeito, respondeu que não, face à necessidade de ir buscar as suas filhas diariamente à escola.
Perguntado ao declarante se as máquinas da Portagem não lhe dão possibilidade de prestar contas, respondeu que não é sempre, mas às vezes quando quer pagar com o seu cartão multibanco nas referidas máquinas, estas não permitem, dando informação de "erro de chip”.
Perguntado ao declarante qual o prazo que considera adequado para prestar contas, respondeu que não consegue responder, pois tal depende do horário que pratica.
Perguntado ao declarante porque razão esteve desde 22/03/2018 até 26/06/2018 sem prestar contas, respondeu primeiro corrigindo que não é desde 22, mas sim desde 26/03. Respondeu ainda que nesse período esteve 3 semanas de baixa e os horários praticados associados ao local onde faz rendição e é rendido, não lhe permitiram prestar contas nesse período.
Perguntado ao declarante quais as soluções que aponta para poder prestar contas atempadamente, respondeu que facilitaria imenso a tarefa dos motoristas poderem prestar contas nas lojas SMTU... que existem na cidade, bem como uma máquina de depósito de dinheiro na sala de motoristas na Portagem e na .... Adiantou que o próprio bilheteiro que presta funções no parque ..., poderia receber a prestação de contas, pois há muitos motoristas que estacionam o carro nesse parque, para depois irem trabalhar.
Perguntado ao declarante se costuma frequentar a sala de motoristas na portagem, respondeu que sim, durante a sua hora de almoço.
O declarante quis frisar que quando está de reserva à hora em que as bilheteiras estão abertas, tem possibilidade de prestar contas. Foi o que fez no dia 26/06/2018, ainda antes de saber que tinha sido instaurado o processo.
- cf. auto de declarações a fls. 105-106 do processo administrativo.

9. Em 23.07.2018 foi inquirida no âmbito da instrução do visado procedimento disciplinar CC, Chefe da Divisão Administrativa e Financeira dos SMTU..., tendo sido lavrado auto da inquirição do qual consta designadamente o seguinte teor:

“A declarante afirmou que o procedimento de prestação de contas pode ser efetuado de forma automática através do pagamento em máquinas automáticas. Para o efeito, o tripulante é o único responsável para concretização do pagamento.
Disse que o sistema de bilhética foi concebido para funcionar desta forma, tendo sido entregue a cada tripulante um cartão bancário emitido pelo Banco 1... - "cartão já Ká Konta" com 30 euros de plafond que constitui um fundo para trocos do tripulante.
Este sistema, ainda em funcionamento, implica que o tripulante com a receita diária se dirija a um Banco 1..., no seu horário de expediente, efetue o depósito na conta associada ao cartão. Efetuado o depósito, o tripulante, à data atual, tem oito dias para efetuar o pagamento nas máquinas existentes na ... e na Portagem. Acrescentou que o pagamento só pode ser efetuado a partir do momento em que a sessão diária esteja disponível no sistema central.
Perguntado à declarante se o tripulante pode depositar o dinheiro da receita diária no cartão, mesmo que a sessão não esteja ainda integrada no sistema? Respondeu que sim, que o dinheiro pode ser depositado independentemente de estar ou não no sistema.
Perguntado à declarante se tem efeito semelhante efetuar o depósito no "cartão já Ká Konta" e o depósito na tesouraria, segundo o novo procedimento aprovado pelo Conselho de Administração de procedimento de entrega / recebimento de valores na tesouraria? Respondeu que sim, que tem efeito semelhante, pois quem fizer o depósito num local ou em noutro deixa de ter o dinheiro físico na sua posse. Não obstante, afirmou que este novo procedimento foi criado para impedir que os tripulantes tivessem o dinheiro na sua posse, por contas que ainda não integraram o sistema. Isto porque grande parte dos tripulantes não utiliza o referido cartão. Portanto, é um procedimento alternativo para que o tripulante não fique com o dinheiro na sua posse. Perguntado à declarante se o cartão "já Ká Konta” tem a sua utilização restrita aos depósitos de valores nos balcões do Banco 1... e na prestação de contas através dele nas máquinas de pagamento automático existentes na sala dos motoristas, sitas na ... e Portagem, bem como no SVT? Respondeu que a sua utilização para prestação de contas é restrita nesses locais.
Perguntado à declarante se essa é a única utilização possível do referido cartão, ou seja, para prestação de contas? Respondeu que não, pois o referido cartão funciona como um cartão multibanco normal.
A declarante afirmou que os tripulantes ainda têm a possibilidade de prestar as contas manualmente no SVT de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 19h30.
Disse ainda que os tripulantes podem pagar a prestação de contas nas máquinas automáticas e no SVT, utilizando também o seu cartão multibanco pessoal. Adiantou que este procedimento nunca foi aprovado, mas existe essa prática.
Perguntado à declarante se existe alguma máquina de home deposit nos SMTU...? Respondeu que sim, que se encontra no SVT e destina-se apenas ao depósito de valores que vão ser depositados na conta que os SMTU... têm no Banco 1.... Com isto pretende-se apenas evitar que o SVT vá depositar os valores no Banco 1....
Perguntado à declarante se considera viável e útil instalar uma máquina de home deposit na sala dos motoristas para uso dos tripulantes na prestação de contas? Respondeu que não é viável, porque não permite que os valores nela depositados integrem o valor do cartão, impedindo assim que o tripulante possa prestar contas com o cartão.
Explicou que no SVT é possível e funcional porque é depositada a receita recebida no SVT no final do dia e permite saber quem foram os tripulantes que prestaram contas e as sessões que respetivamente pagaram. - Por último afirmou que o prazo de oito dias para prestação de contas só inicia a partir da data que as sessões integram o sistema central (...)”.
- cf. auto de declarações a fls. 147-148 do processo administrativo.

10. Em 20.07.2018 foi inquirido no âmbito da instrução do visado procedimento disciplinar DD, assistente técnico dos SMTU..., tendo sido lavrado auto da inquirição, do qual consta, designadamente, o seguinte:

“Perguntado ao declarante a razão de ser da discrepância entre as informações do encarregado Silva constantes das fls. 4, 22 e 44 dos autos e a informação do sistema constante das fls. 126 e 127 dos autos, uma vez que a primeira indica que o trabalhador não paga desde 22/03/2018 e a segunda indica uma prestação de contas em 28/03/2018?
O declarante explicou que os mapas que envia para o encarregado Silva (sector de tráfego) são referentes às sessões por pagar, da qual a mais antiga é de 22/03/2018, conforme se pode constatar nas fls. 129 dos autos, em que quando o trabalhador prestou contas passado 3 meses, ainda estava por pagar uma sessão de 22/03/2018.
O declarante explicou ainda que isto acontece porque o trabalhador quando prestou contas em 28/03/2018 às 09,11 horas, a única sessão do dia 22/03/2018 que tinha integrado o sistema, foi a relativa às 09,51 horas. A sessão do dia 22/03/2018 das 15,23 horas integrou o sistema mais tarde e só foi paga em 26/06/2018.
O declarante disse que o sistema neste aspeto é recorrente em falhas cronológicas. Todavia, adiantou que para o trabalhador o prazo para prestação de contas só inicia após a integração da sessão no sistema. Isto faz com que as ditas falhas não sejam da responsabilidade do trabalhador e este só incumpre se após 8 dias sobre a integração no sistema da sessão, ele não prestar contas.
E mais não disse. (...)”
- cf. auto de declarações a fls. 145 do processo administrativo.

11. Em 05.09.2018 foi dada por concluída a instrução do visado processo disciplinar - cf. Termo de conclusão da instrução a fls. 196 do processo administrativo.

12. Em 19.09.2018 foi deduzida Acusação no visado procedimento disciplinar, da qual consta designadamente o seguinte teor:

“(...)
ARTIGO 3.°
Ao trabalhador compete, no exercício das suas funções, entre outras tarefas, cobrar bilhetes e verificar que os passageiros que transporta estão credenciados para o efeito, conforme vem estabelecido nos procedimentos básicos de Agente Único, Edição/Revisão 03, de 03/01/2013 - Imp. ..-..-A1, página 11, e ponto 1 do procedimento de prestação de contas dos tripulantes em vigor nos SMTU..., aprovado por deliberação do Conselho de Administração de 13/07/2017, registo sgd n.° 6124, publicitada através da Comunicação Interna n.° 1/DSP/2017, de 17/07/2017 (cfr. fls. 79, 119 e 120).
ARTIGO 4.°
Consequentemente, também no exercício das funções inerentes à sua categoria profissional, por força do referido procedimento interno de prestações de contas, em vigor desde 1 de agosto de 2017, o trabalhador deve, no prazo máximo de oito dias, efetuar o pagamento do valor da receita dos SMTU... na sua posse, resultante das vendas dos bilhetes de bordo, desde que o mesmo já esteja integrado no sistema central de bilhética (cfr. fls. 119 e 120).
ARTIGO 5.°
O trabalhador pode executar essa tarefa de prestação de contas através das máquinas automáticas de prestação de contas (MAPC) existentes nas salas dos motoristas, sitas na Portagem e na ..., bem como, de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 19h30, no Setor de Venda de Títulos - SVT - (cfr. fls. 119,120,146 e 147).
ARTIGO 6.°
Porém, o trabalhador não tem cumprido com aquela obrigação profissional, decorrente do referido procedimento interno de prestação de contas.
ARTIGO 7.°
Com efeito, o trabalhador esteve sem efetuar a prestação de contas no período de 05 de abril de 2018 a 26 de junho de 2018, relativamente aos bilhetes de bordo que vendeu no exercício das suas funções, nos dias em que esteve presente ao serviço (cfr. fls. 1 a 37, 41 a 66, 68 a 73, 104 e 105, 126 a 130).
ARTIGO 8.°
Ora, o trabalhador não cumpriu, assim, durante o referido período, cerca de 3 meses, o prazo estipulado no procedimento interno de prestação de contas, que integra uma das suas funções, isto é, prestar contas dos bilhetes de bordo que vende.
ARTIGO 9.°
O trabalhador agiu sempre livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida pelo estabelecido no supracitado procedimento, que integra o conteúdo das funções que lhe estão atribuídas enquanto assistente operacional a desempenhar funções de agente único de transportes coletivos, conforme resulta da deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... acima mencionada no artigo 3.°, bem como do que consta dos procedimentos básicos de Agente Único, Edição/Revisão 03, de 15/05/2017 - Imp. ..-..- A1, páginas 9, 11,47 e 48, mormente do estabelecido na alínea h), do procedimento de prestação de contas.
ARTIGO 10.°
Procedendo como procedeu, o trabalhador não deu execução à prossecução do interesse público, revelando outrossim falta de zelo, por não aplicar a diligência devida ao correto e eficiente desempenho das suas funções de assistente operacional a desempenhar funções de agente único de transportes coletivos, evidenciando grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais.
ARTIGO 11º
Com tal conduta o trabalhador violou os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo, previstos no n.° 2, alíneas a e e), n.°s 3 e 7, do art.0 73, da LTFP.
ARTIGO 12.°
O que constitui infração disciplinar subsumível no artigo 186.°, e punível, nos termos da mesma disposição, em conjugação com os artigos 183°, 73°, n.°s 1, 2, alíneas a) e e), 3 e 7, 76°, 176.°, 180.°, n.° 1, alínea c), 181 °, n.° 3 e 4, todos da LTFP, com a sanção disciplinar de suspensão.
ARTIGO 13.°
Compulsado o processo individual do trabalhador, verifica-se que do mesmo não consta qualquer registo de sanções disciplinar (SIC) aplicadas (cf. fls. 90).
ARTIGO 14.°
Contra o trabalhador aqui identificado não milita qualquer circunstância agravante especial da responsabilidade disciplinar, nos termos do art.° 191.°, da LTFP.
ARTIGO 15.°
Também não beneficia de qualquer circunstância atenuante especial, nos termos do art.° 190, n.° 2, da LTFP (...)
– cf. acusação a fls. 198-199 do processo administrativo.

13. Em 25.09.2018 foi comunicada pessoalmente ao ora autor a dedução de Acusação no procedimento disciplinar em que é visado, tendo-lhe sido entregue cópia da mesma e informado do prazo de 20 dias de que dispunha para apresentar defesa por escrito e da possibilidade de consultar o processo e requerer diligências ordenadas à sua defesa dentro desse mesmo prazo – cf. documento intitulado “Notificação pessoal e termo de entrega”, assinado pelo ora autor, a fls. 197 do processo administrativo.

14. A atividade de condução de um motorista dos SMTU... não tem, todos os dias, a duração de 7 horas, tendo por vezes, consoante o turno do trabalhador, a duração de entre 6 horas e 25 minutos e 6 horas e 59 minutos - cf. Mapas de turnos de condução constantes de fls. 107 a 118 do processo administrativo.

15. Em 30.11.2018 foi elaborado Relatório Final do visado Procedimento disciplinar, sobre o qual recaiu despacho de aprovação do Conselho de Administração dos SMTU... datado de 26.11.2018 e do qual consta, designadamente, o seguinte:

“(...)
4. Conclusões
41 - Atenta a prova carreada para os autos antes da Acusação e o facto de o arguido não a ter contestado, temos como provado que:
4.1.1 - O trabalhador esteve sem efetuar a prestação de contas no período de 18 de maio de 2018 a 19 de julho de 2018, relativamente aos bilhetes de bordo que vendeu no exercício das suas funções, nos dias em que esteve presente ao serviço (cfr. fls. 1 a 37, 41 a 66, 68 a 73, 104 e 105, 126 a 130).
4.1.2 - O trabalhador não cumpriu, assim, durante o referido período, cerca de 2 meses, o prazo estipulado no procedimento interno de prestação de contas, que integra uma das suas funções, isto é, prestar contas dos bilhetes de bordo que vende.
5. Culpabilidade do trabalhador e enquadramento jurídico
51 - Tendo como padrão um trabalhador com um mediano sentido de responsabilidade não podemos deixar de considerar censurável a conduta do trabalhador EE.
5.2 - E que, em virtude da relação jurídica de emprego público que mantém com os SMTU..., é exigido ao trabalhador que conheça e aplique as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como determine a sua atuação na defesa e prossecução do interesse público, abstendo-se de toda e qualquer atuação que comprometa a realização deste.
5.3 - E, nomeadamente, ao trabalhador compete, no exercício das suas funções, entre outras tarefas, cobrar bilhetes e verificar que os passageiros que transporta estão credenciados para o efeito, conforme vem estabelecido nos procedimentos básicos de Agente Único, Edição/Revisão 03, de 03/01/2013 - Imp. ..-..-A1, página 11, e ponto 1 do procedimento de prestação de contas dos tripulantes em vigor nos SMTU..., aprovado por deliberação do Conselho de Administração de 13/07/2017, registo sgd n.° 6124, publicitada através da Comunicação Interna n.° l/DSP/2017, de 17/07/2017 (cfr. fls. 79, 119 e 120).
5.4 - Consequentemente, também no exercício das funções inerentes à sua categoria profissional, por força do referido procedimento interno de prestações de contas, em vigor desde 1 de agosto de 2017, o trabalhador deve, no prazo máximo de oito dias, efetuar o pagamento do valor da receita dos SMTU... na sua posse, resultante das vendas dos bilhetes de bordo, desde que o mesmo já esteja integrado no sistema central de bilhética (cfr. fls. 119 e 120).
5.5 - O trabalhador à data dos factos podia executar essa tarefa de prestação de contas através das máquinas automáticas de prestação de contas (MAPC) existentes nas salas dos motoristas, sitas na Portagem e na ..., bem como, de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 19h30, no Setor de Venda de Títulos - SVT - (cfr. fls. 72 e 73, 92, 101 e 102) - a mero título informativo: hoje já o pode fazer também nas 5 Lojas SMTU... existentes na cidade, cujo horário de funcionamento é das 7h30 às 19h30, sendo que o horário da ... é das 7h00 às 19h00 e o do Posto de Atendimento na Loja do Cidadão é das 8h30 às 19h30 (cfr. fls. 199).
5.6 Porém, o trabalhador não tem cumprido com aquela obrigação profissional, decorrente do referido procedimento interno de prestação de contas.
5.7 - Com efeito, o trabalhador esteve sem efetuar a prestação de contas no período de 05 de abril de 2018 a 26 de junho de 2018, relativamente aos bilhetes de bordo que vendeu no exercício das suas funções, nos dias em que esteve presente ao serviço (cfr. fls. 1 a 37, 41 a 66, 68 a 73, 104 e 105, 126 a 130).
5.8 - Ou seja, não cumpriu, assim, durante o referido período, cerca de 2 meses, o prazo estipulado no procedimento interno de prestação de contas, que integra uma das suas funções, isto é, prestar contas dos bilhetes de bordo que vende.
5.9 - A este propósito coloca-se a questão de saber se estamos perante uma acumulação de infrações [artigo 191.°, n ° 1/ alínea g) e 4, da LTFP], enquanto circunstância agravante especial da responsabilidade disciplinar, dado que no prazo de um mês houve certamente o incumprimento do referido prazo para prestação de contas mais do que uma vez, sendo certo que apenas pode ser aplicada uma sanção disciplinar, mesmo que em acumulação de infrações (artigo 180.°, n.° 3, da LTFP)?
5.10 - Na nossa opinião não se verifica essa acumulação de infrações, porquanto, na esteira de jurisprudência consolidada (vide, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 0604/02, de 16/01/2003), consideramos que se pode aplicar analogicamente o artigo 30.°, n.° 2, do Código Penal, configurando o presente caso a prática de uma infração continuada, pois as infrações verificadas integram os elementos típicos de um crime continuado, inserindo-se num quadro de continuação infracional, assente numa conduta prolongada, continuada e sucessiva na violação de algum dos deveres do trabalhador, previstos nos termos do artigo 73°, da LTFP.
5.11 - O crime continuado define-se como a realização plúrima do mesmo do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado deforma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
5.12 - Ora, o comportamento do trabalhador, que no período de 12 de maio de 2018 a 22 de junho de 2018 não cumpriu reiterada e continuamente a instrução ínsita no procedimento de prestações de contas que o obriga, a pelo menos de 8 em 8 dias realizar essa tarefa, preenche o tipo descrito da infração continuada.
5.13 - Por outro lado, o trabalhador agiu sempre livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida pelo estabelecido no supracitado procedimento, que integra o conteúdo das funções que lhe estão atribuídas enquanto assistente operacional a desempenhar funções de agente único de transportes - coletivos, conforme resulta da deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... acima mencionada no artigo 3.°, bem como do que consta dos procedimentos básicos de Agente Único, Edição/Revisão 03, de 15/05/2017 - Imp. ..-..-A1, páginas 9, 11, 47 e 48, mormente do estabelecido na alínea h), do procedimento de prestação de contas.
5.14 - Procedendo como procedeu, o trabalhador não deu execução à prossecução do interesse público, revelando outrossim falta de zelo, por não aplicar a diligência devida ao correcto e eficiente desempenho das suas funções de assistente operacional a desempenhar funções de agente único de transportes coletivos, evidenciando grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres funcionais.
5.15 - Com tal conduta o trabalhador violou os deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo, previstos no n.° 2, alíneas a) e e), n.°s 3 e 7, do art.° 73, da LTFP.
5.16 O que configura a prática de infracção disciplinar subsumível no artigo 186.°, e punível, nos termos da mesma disposição, em conjugação com os artigos 183.°, 73.°, n.°s 1, 2, alíneas a) e e), 3 e 7, 76.°, 176.°, 180.°, n.° 1, alínea c), 181.°, n.° 3 e 4, todos da LTFP, com a sanção disciplinar de suspensão.
5.17- In casu, Contra o trabalhador aqui identificado não milita qualquer circunstância agravante especial da responsabilidade disciplinar, nos termos do art.° 191. °, da LTFP.
5.18- Como também não beneficia de qualquer circunstância atenuante especial, nos termos do art.º190, n.° 2, da LTFP.
5.19 - Contudo, na escolha e determinação da medida da pena há que atender ao conjunto de critérios fixados no art. 189.° da LTFP, do qual destacamos, para além do grau de culpa do trabalhador e de todas as circunstâncias em que a infração foi cometida, a sua personalidade. Esta surge, assim, como índice a ter em conta no estabelecimento e graduação da medida da pena.
5.20 - Ora, compulsada a nota biográfica e registo disciplinar do trabalhador (cfr. fls. 88), verificamos que o mesmo ingressou no, à época, quadro de pessoal dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de ... em 3 de janeiro de 2000, na Categoria de Agente Único de Transportes Colectivos, constatando-se também que tem apenas uma pena de multa de repreensão escrita, aplicada por deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... de 06/06/2004. Ainda de referir que nos anos de 2013 a 2016 obteve menção qualitativa de adequado, na avaliação do seu desempenho, o que demonstra tratar-se de um trabalhador cumpridor dos seus deveres e com qualidade profissional.
5.21 - De salientar que não é despiciendo referir nesta sede que as medidas disciplinares visam, para além de reprovar e corrigir, prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. Tendo em conta esta última asserção e dando o devido relevo aos aspectos de prevenção geral e especial, que estão sempre subjacentes a qualquer acto sancionatório, há que ponderar, neste caso concreto, o efeito pedagógico que a aplicação da medida disciplinar deve ter sobre o trabalhador visado. Daí que consideramos eficaz, adequada e proporcional a aplicação de medida com o escopo de reabilitar e de motivar, tendo sempre em atenção as particulares circunstâncias em que se verificou a infracção, mormente, a redução substancial da culpa do trabalhador, por efeito da infração continuada.
5.22 - Redução da culpa justificada por uma certa disposição exterior das coisas para o facto, pela existência de uma relação, que de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade ilícita (...)- transcrição do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27/09/2000 (rec. 20.399).
5.22 - Razão pela qual consideramos ter, in casu, pleno enquadramento a aplicação do regime previsto no artigo no artigo 192.°, da LTFP, suspensão da sanção disciplinar.
6. Proposta
6.1 - Assim, salvo melhor opinião, em face de tudo quanto se deixa exposto e atendendo, por um lado, à natureza, missão e atribuições dos SMTU... e ponderando, por outro, a personalidade do trabalhador, o grau da culpa, a sua categoria profissional e as circunstâncias da infracção, não olvidando as necessidades de prevenção que com a sanção disciplinar se visam satisfazer, propomos que relativamente ao trabalhador EE:
a) Por ter cometido uma infracção disciplinar, consubstanciada na violação dos deveres gerais de prossecução do interesse público e de zelo, prevista e punida pela conjugação dos com os artigos 73.°, n.°s 1, 2, alíneas a), e), 3, 7, 76.°, 176.°, 180.°, n.° 1, al. c), 181.°, n.°s 3 e 4,183.° e 186.°, todos da LTFP, seja aplicada a Sanção Disciplinar de Suspensão pelo período 45 dias.
b) Que, nos termos do art.° 192.°, n.° 1 e 2, da LTFP e por considerarmos que a simples censura do comportamento e a ameaça de sanção disciplinar realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a referida pena seja SUSPENSA pelo período de 1 ano.
– cf. Relatório Final a fls. 201-206 e Despacho a fls. 208 do processo administrativo.

16. Em 07.12.2018 foi dado conhecimento ao ora autor da decisão de aplicação da sanção disciplinar referida no ponto anterior, tendo este recebido uma de cópia da mesma – cf. “Notificação de Sanção Disciplinar” de fls. 209 do processo administrativo.

*

III - Enquadramento jurídico.

Na decisão recorrida discorre-se do seguinte modo, na parte relevante:

“Da inimpugnabilidade dos regulamentos de procedimentos básicos de Agente único (Edição/Revisão 03 de 03.01.2013) e de prestação de contas dos tripulantes em vigor nos SMTU....

Alega o R. que o que o A. surge a impugnar configura o procedimento de prestação de contas dos SMTU..., que é, no fundo, um conjunto de instruções que fixam os termos em que deve ser prestada a tarefa de prestação de contas, emanadas do poder de direção do empregador público (artigo 74.º, da LGTFP), dirigidas a um grupo de trabalhadores delimitado pelas características do seu específico conteúdo funcional, refletido no contrato celebrado com os SMTU..., que comporta o dever de prestar contas das receitas que arrecadam na atividade de transporte coletivo urbano de passageiros com a venda dos bilhetes de bordo.

Defende que tais instruções não são um regulamento e que, mesmo que se entenda que o são, sempre se estará perante um regulamento interno, pelo que o mesmo não é impugnável.

Vejamos, começando por fazer uma curta incursão pela doutrina reportada à teoria dos regulamentos administrativos.

VIEIRA DE ANDRADE salienta que o «(…) nível inferior do ordenamento jurídico administrativo é formado pelas normas jurídicas editadas pela própria Administração, no exercício da função administrativa. A estas normas dá-se tradicionalmente a designação de regulamentos, embora elas não esgotem o nível administrativo, a atender à cautela com que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais se refere a ¯normas regulamentares ou outras normas emitidas no desempenho da função administrativa‖.»

Debruçando-se, depois, sobre a distinção entre regulamentos externos e internos, acrescenta o Autor: «Os regulamentos internos contêm (...) igualmente, regras jurídicas, distinguindo-se dos externos porque se dirigem aos órgãos e serviços da Administração, esgotando a sua eficácia no âmbito da organização administrativa, enquanto estes regulam relações entre entes públicos ou entre estes e os particulares.» (cf. Ordenamento Jurídico Administrativo Português, in “Contencioso Administrativo”, Livraria Cruz, Braga, 1986, págs. 48 e 58 e ss.).

A propósito da classificação dos regulamentos quanto ao objeto ensina também MARCELLO CAETANO:

«Os regulamentos de organização têm por objeto a distribuição das funções pelos diversos agentes de um serviço e a fixação das normas do processo de expediente do serviço ou das suas relações com o público.

Nos regulamentos de organização há ainda a distinguir entre regulamentos processuais e regulamentos internos. Os primeiros contêm normas relativas às relações entre os serviços e o público, regulando o modo como os particulares podem fazer valer os seus direitos perante a Administração ou obter desta as prestações que lhes são devidas. Os regulamentos internos limitam-se a traçar o âmbito de cada sub-unidade dentro de um serviço e as tarefas de cada agente, e a regular as relações entre agentes, dos agentes com os órgãos de que dependem ou até o funcionamento de um órgão colegial. (...). Notar-se-á, porém, que com muita frequência os regulamentos são mistos: contêm normas processuais, juntamente com outras meramente internas (...).» (salientados nossos) (in Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª edição (6.ª reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 1997, pág. 100).

AFONSO QUEIRÓ sublinhando que os regulamentos não têm uma natureza homogénea, distingue, nomeadamente, entre regulamentos externos e internos, «conforme o círculo daqueles a que se dirigem e que por eles são obrigados».

«Os primeiros analisam-se em preceitos que se dirigem não só ao órgão da Administração que os edita ou faz, ou a outros órgãos da Administração, mas também a terceiras pessoas, a particulares ou administrados que se encontrem em face dela numa relação geral de poder; têm, como é uso dizer, eficácia jurídica bilateral. Esses particulares são definidos por características genéricas e encontram-se, (...), em relação à entidade de que os regulamentos dimanam, numa relação de subordinação geral.

Os segundos, por seu turno, têm uma eficácia jurídica unilateral, uma eficácia que se esgota no âmbito da própria Administração, dirigindo-se exclusivamente para o interior da organização administrativa, sem repercussão direta nas relações entre esta e os particulares. Falta-lhes, portanto, rigorosamente, alteridade.

Os agentes administrativos (…), enquanto destinatários únicos destes regulamentos, encontram-se necessariamente imersos numa situação de subordinação especial em relação aos agentes e órgãos que detêm competência para os fazer.

O que sucede, com alguma frequência, é que, em ¯regulamentos deste género [regulamentos internos], aparecem misturadas normas regulamentares externas - normas respeitantes ao estatuto do pessoal administrativo, ao processo administrativo, à competência externa dos agentes, aos direitos e deveres dos particulares em relação aos serviços, etc. - (...).» (Teoria dos Regulamentos, in “Revista de Direito e de Estudos Sociais”, Atlântida Editora, Coimbra, Ano XXVII, janeiro-dezembro 1980, págs. 5 e 6).

FREITAS DO AMARAL, abordando as espécies de regulamentos administrativos, escreve: «Quanto ao objeto, há que referir fundamentalmente os regulamentos de organização, os regulamentos de funcionamento, e os regulamentos de polícia.

Os regulamentos de organização são aqueles que procedem à distribuição das funções pelos vários departamentos e unidades de uma pessoa coletiva pública, bem como à repartição de tarefas pelos diversos agentes que aí trabalham. Versam, pois, sobre a organização da ¯máquina administrativa‖.

Quanto aos regulamentos de funcionamento, tantas vezes misturados num mesmo diploma com os anteriores, são aqueles que disciplinam a vida quotidiana dos serviços públicos. Os regulamentos que procedem em particular à fixação das regras de expediente denominam-se regulamentos procedimentais.

Por último, os regulamentos dividem-se, quanto à projeção da sua eficácia, em regulamentos internos e externos.

São regulamentos internos os que produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interior da esfera jurídica da pessoa coletiva pública de que emanam.

São regulamentos externos aqueles que produzem efeitos jurídicos em relação a outros sujeitos de direito diferentes, isto é, em relação a outras pessoas coletivas públicas ou em relação a particulares.» (in Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2.ª edição, (5.ª reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 2001, págs. 158 e ss.).

Por fim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA salientam que os regulamentos «(…) só s[ão] impugnáveis se possuírem eficácia externa», defendendo que o «contencioso das normas não abrange, por conseguinte, os regulamentos internos, que se dirigem para o interior da própria organização administrativa, sem repercussão direta nas relações entre esta e os particulares.»

Entre estes incluem os chamados regulamentos de organização e os regulamentos de direção. «Os primeiros destinam-se a disciplinar a estrutura interna dos órgãos e o funcionamento dos serviços, neles podendo englobar-se os regimentos dos órgãos colegiais. Os segundos, emitidos no exercício de um poder de direção hierárquica, visando conformar a conduta dos funcionários e agentes administrativos, no âmbito de um mesmo departamento ou serviço, têm em vista ditar regras de procedimento ou uniformizar a interpretação das normas legais ou regulamentares (instruções de serviço, circulares).»

Todavia, chamam à atenção para o seguinte: «Pode suceder, no entanto, que regulamentos desse tipo extravasem o seu caráter funcional e prescrevam certas disposições respeitantes ao estatuto do pessoal, ao procedimento administrativo, à competência externa dos agentes ou aos direitos e deveres dos particulares em relação aos serviços. Na medida em que se não confinem à estrita relação orgânica ou relação de funcionamento e sejam antes suscetíveis de interferir na relação de serviço ou relação fundamental existente entre a Administração e os funcionários (…) essas disposições possuem eficácia externa, pelo que podem ser objeto de impugnação contenciosa.» (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2021, 5.ª Edição, págs. 537 e 538)

Ora, no caso que nos ocupa, verifica-se que o “procedimento de prestação de contas dos tripulantes” (cf. págs. 468-469 do processo administrativo) estabelece determinadas obrigações laborais para os motoristas dos SMTU... e prescreve, designadamente, um prazo dentro do qual a tarefa de prestação de contas da venda dos bilhetes de bordo deve ser cumprida, sob pena de, não sendo, poder gerar responsabilidade disciplinar. Deste modo, e como se conclui na decisão proferida no processo n.º 606/19.4BECBR, as normas em causa manifestam claramente a sua capacidade para afetar a esfera jurídica pessoal dos funcionários seus destinatários –e, portanto, a sua eficácia externa - na medida em que o seu incumprimento conduziu à aplicação de uma sanção disciplinar a um trabalhador. Com efeito, não podem existir quaisquer dúvidas quanto ao facto de que uma sanção disciplinar afeta a esfera jurídica pessoal do trabalhador a quem se aplica.

Uma vez que o incumprimento das normas insertas no “procedimento de prestação de contas dos tripulantes” pode ser determinante, como foi neste caso, da aplicação de uma sanção disciplinar (à qual, se não fosse a existência de um tal regulamento, faltariam os pressupostos normativos), impõe-se concluir, à luz dos entendimentos doutrinais supra expostos, que as normas aqui em causa interferem na relação de serviço ou relação fundamental existente entre a Administração e os funcionários, assumindo carácter externo, pelo que não podem restar dúvidas acerca da sua impugnabilidade, impondo-se, por isso, julgar improcedente a exceção arguida pela entidade demandada.

*

Da caducidade do direito de impugnar as normas regulamentares.

Por fim, invoca o R. que tendo em conta os vícios invocados, teria o A. o prazo de seis meses, contados da data da publicação, para pedir a anulação do regulamento, prazo esse que se mostra ultrapassado, considerando que logo após a sua aprovação, em 13.07.2017, as instruções foram publicadas através de comunicação interna da respetiva unidade orgânica, também divulgada no Boletim de Informação Diária, e que a presente ação apenas deu entrada em 22.05.2019.

Vejamos, mais uma vez recorrendo ao que se decidiu no processo n.º 606/19.4BECBR:

«Antes de mais, importa notar que, além da possibilidade de impugnação de normas pedindo a declaração da sua ilegalidade com força obrigatória geral, prevista somente para as normas “imediatamente operativas”, prevista no art.º 73.º n.º 1 a) do CPTA, existe também a possibilidade de sindicar a legalidade das normas administrativas por via incidental, através da impugnação de ato administrativo de aplicação da norma, prevista no nº 3 do mesmo artigo, quando a norma não é imediatamente operativa, sendo que, nesse caso, a declaração de ilegalidade terá efeitos circunscritos ao caso concreto.

Ora, se o pedido de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral está, com efeito, sujeito ao prazo de 6 meses contados da data da sua publicação, nos termos do art.º 74.º n.º 2 do CPTA, já não pode dizer-se o mesmo do pedido de declaração de ilegalidade da norma com efeitos circunscritos ao caso concreto feito ao abrigo do art.º 73º nº3 do CPTA, uma vez que, neste caso, só a partir do momento em que foi praticado o ato administrativo de aplicação da norma é que esta produziu os seus efeitos face ao autor, fazendo surgir o interesse na propositura da ação. O único prazo de impugnação que, nesta situação, deve ser considerado é, pois, o prazo para impugnação do ato administrativo de aplicação da norma em causa, não obstando à anulação desse ato com fundamento em ilegalidade dessa norma o facto de esta ter sido publicitada há mais de 6 meses.

Chegados a este ponto constata-se, pois, que, para apreciar adequadamente a exceção de intempestividade do pedido de declaração de ilegalidade de normas há que esclarecer se estamos perante um pedido de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral, ou de um pedido impugnatório de um ato administrativo fundado na ilegalidade de uma norma, cuja desaplicação ao caso concreto se pretende.»

Na petição inicial dos presentes autos o autor formula, por um lado, um pedido de “declaração de nulidade” da deliberação que aprovou o regulamento – que, como vimos, não é impugnável – e, por outro, formula o pedido de anulação de um ato administrativo com fundamento na ilegalidade das normas nas quais o mesmo se baseia.

Assim sendo, a circunstância de a petição inicial ser, eventualmente, intempestiva para a apreciação de um pedido de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral (pedido esse que, como vimos, não vem formulado), tal não implica que a mesma petição inicial seja intempestiva para conhecer da ilegalidade das normas em causa a título incidental, nos termos do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

E, no caso que nos ocupa, é indubitável que, para esse efeito, a petição inicial é tempestiva, pois a ação foi posta dentro do prazo de 3 meses previsto no artigo 58.º n.º 1, al. b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e o ato administrativo que aplicou a sanção disciplinar ao autor tem, indiscutivelmente, as visadas normas como pressuposto normativo.

Com também se consignou na decisão proferida no processo n.º 606/19.4BECBR «Poderia, é certo, colocar-se a questão da admissibilidade desse pedido, na medida em que o n.º 3 do art.º 73.º refere que o pedido de desaplicação da norma ao caso concreto está previsto para as situações em que “os efeitos de uma norma não se produzem imediatamente, mas só através de um ato administrativo de aplicação”, e considerando que as normas aqui em causa produzem efeitos imediatos, independentes de qualquer ato administrativo de aplicação, ao estabelecerem determinados procedimentos obrigatórios para os trabalhadores cominando o seu incumprimento com a possibilidade de sanção disciplinar.

Note-se, porém, que embora a estatuição de determinados procedimentos obrigatórios, cominada com a possibilidade de sanção disciplinar seja, só por si, suscetível de vir a prejudicar os destinatários no futuro, esse prejuízo futuro só pode efetivar-se através de ato administrativo que aplique a um trabalhador uma sanção disciplinar com fundamento nessa estatuição.»

Regressando ao caso presente, forçoso é concluir que a legalidade da norma que prevê a aplicação de uma sanção com fundamento no incumprimento dos procedimentos de prestação de contas pode ser apreciada incidentalmente, no âmbito da ação em que seja apreciado o ato que a aplique.
Com efeito, ainda que as normas que estabelecem o procedimento a observar seja imediatamente operativas, a norma que prevê a sanção do seu incumprimento não pode ser classificada como imediatamente operativa (do que decorre que o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral nunca poderia ser apreciado, por falta desse pressuposto processual, ainda que fosse tempestivo).

Por outro lado, embora o artigo 73.º, n.º 3, al. a) preveja a possibilidade de suscitar a ilegalidade, a título incidental, de normas mediatamente operativas, não exclui a possibilidade de o fazer relativamente a normas imediatamente operativas, desde que as mesmas tenham sido convocadas no ato impugnado (cf. neste sentido as intervenções do Conselheiro Vítor Gomes e da Prof.ª Dr.ª Ana Raquel Moniz na ação “A impugnação de normas em contencioso administrativo”, de dia 25.05.2022, disponível na Justiça TV).

Em rigor, e como concluem os supra indicados autores, as normas imediatamente operativas não ficam excluídas da apreciação incidental.

Integra, pois, o objeto da presente ação a apreciação da legalidade, a título incidental, das normas constantes dos regulamentos de Procedimentos Básicos de Agente Único e de Prestação de Contas dos SMTU... que estabelecem o prazo de 8 dias para os motoristas prestarem contas dos bilhetes vendidos a bordo, cominando o incumprimento com a possibilidade de sanção disciplinar, na medida em que o ato administrativo cuja anulação se pretende procede à aplicação de tais normas.

De tudo o que vem de se expor resulta que a presente ação é tempestiva para apreciar a legalidade das normas do regulamento, ainda que a título incidental, nos termos do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não se verificando, quanto ao concreto pedido formulado pelo A., a exceção de caducidade do direito de ação que vem arguida.

(…)

(i) Da ilegalidade das normas que regulam o procedimento de prestação de contas pelos motoristas dos SMTU....

Alega o autor que o ato impugnado, que lhe aplicou sanção disciplinar, é anulável na medida em que as normas dos Procedimentos Básicos de Agente Único e do Procedimento de Prestação de contas em que se fundamenta foram aprovadas sem que tenha sido previamente emitido acerca da matéria de que tratam Parecer da Comissão de Trabalhadores, conforme exige o artigo 327.º, alínea c) da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.

A questão aqui em causa, embora por referência a outro A. – processo n.º 606/19.4BECBR – já foi objeto de decisão por este Tribunal.

Sem prejuízo de estarmos perante autores diversos, certo é que, no que se refere à causa de pedir, o aqui alegado se reconduz exatamente ao que ali foi invocado pelo A..

Ora, ainda que a jurisprudência, no seu sentido mais lato, não constitua fonte imediata do Direito, não poderá deixar de se ponderar também a necessidade de contribuir para a aplicação uniforme do direito, ponderando o valor da segurança jurídica que só se consegue quando se respeita o fator da previsibilidade.

É o que decorre do art.º 8.º, n.º 3, do CC, segundo o qual “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, norma que visa, fundamentalmente, evitar interpretações casuísticas.

O princípio plasmado no art.º 8.º, n.º 3 do CC, supra transcrito, conjugado com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, que consagra o direito a uma decisão num prazo razoável, impõe mesmo que a fundamentação de direito da presente decisão se deva “resumir”, “ater”, quando tal seja o caso (isto é, obtenha a nossa integral concordância), àquela que ali foi sendo adotada na decisão a que aludimos supra, ainda que com as devidas e necessárias adaptações impostas pela especificidade do caso concreto.

Deste modo, e uma vez que sufragamos in totum o entendimento plasmado na sentença proferida no âmbito do processo n.º 606/19.4BECBR, passamos a transcrever tal fundamentação, fazendo-a aqui nossa, por facilidade de exposição:

«(…) dispõe o artº 327º da LGTFP que têm de ser obrigatoriamente precedidos de parecer escrito da comissão de trabalhadores os seguintes atos do empregador público: (…) c) Elaboração de Regulamentos Internos.

A definição das tarefas a cargo de funcionários e das regras de acordo com as quais aquelas devem ser realizadas consubstancia, na verdade, a elaboração de norma regulamentar interna – isto é, uma norma destinada a regular o funcionamento de um órgão ou serviço da Administração. É, pois, aplicável à alteração dos Procedimentos Básicos de Agente Único aprovada pela deliberação do Conselho de Administração dos SMTU... de 06.12.2016 e do Procedimento de Prestação de Contas dos Tripulantes aprovada por deliberação de 13.07.2017 (Cfr. factos provados 2 e 3) o disposto no citado artº 327º.

Esta norma é inequívoca no sentido de ser obrigatório o Parecer escrito da Comissão de Trabalhadores, que o autor alega não ter existido e que não se provou, com efeito, ter existido. Nessa medida, as alterações aos Procedimentos de Agente Único e ao Procedimento de Prestação de Contas levadas a cabo pelas deliberações do Conselho de Administração dos SMTU... em 06.12.2016 e 13.07.2017 estão feridas de ilegalidade, pois foram operadas em desconformidade com lei imperativa – o artº 327º c) da LGTFP.

A decisão que aplicou a sanção disciplinar o autor funda-se, expressamente, no incumprimento do prazo de 8 dias para prestação de contas dos bilhetes vendidos a bordo dos autocarros, prazo esse que, conforme decorre dos factos provados 2 e 3, foi estabelecido através dessas alterações. Assim sendo, as normas dos Procedimentos Básicos de Agente Único e do Procedimento de Prestação de Contas que definem o prazo para prestação de contas pelos motoristas constituem um pressuposto normativo do acto administrativo impugnado, pelo que, sendo as mesmas ilegais, está aquele acto ferido de anulabilidade, por falta de pressupostos de direito.

Impõe-se, pois, concluir que devem ser declaradas ilegais, com efeitos circunscritos ao caso concreto do autor as normas constantes da alínea h) dos Procedimentos Básicos de Agente Único Edição/Revisão 03, operada pela deliberação do Conselho de Administração de 06.12.2016, e do ponto 8 do Procedimento de Prestação de Contas dos Tripulantes, operada pela deliberação do Conselho de Administração de 13.07.2017, o que se efectiva, concretamente, através da anulação do acto impugnado, com fundamento na falta de pressupostos de direito que decorre dessa ilegalidade.»

Como decorre do que vem de se transcrever, é inequívoca a procedência do vício invocado pelo A., o que implica a procedência do pedido de anulação do ato que lhe aplicou a sanção disciplinar.

(…)”.

Com total acerto.

Defende o Recorrente:

“Assim, a necessidade de audição da comissão de trabalhadores (ou de outra estrutura interna de representação do pessoal da empresa) deve ser parametrizada pelo conteúdo do direito de consulta a que se refere o art. 425.º CT. Nem outra coisa faria sentido. Na verdade, aquela audição não tem como razão de ser o controlo da legalidade dos actos regulamentares do empregador, mas a possibilidade de eles produzirem efeitos negativos, directos ou indirectos, sobre os interesses dos trabalhadores. Só os actos regulamentares que tenham esta potencialidade – aqueles que tenham por objecto temas abrangidos pelo art. 425.º devem considerar-se no âmbito da exigência de prévia apreciação pela estrutura que representa aqueles interesses” .

E tem razão.

Sucede que, ao contrário do que sustenta, é precisamente o caso.

A norma em apreço é a que estabelece o prazo de 8 dias para os motoristas prestarem contas dos bilhetes vendidos a bordo, cominando o incumprimento com a possibilidade de sanção disciplinar.

Tem, portanto, esta norma, duas vertentes que se reflectem, ambas, na esfera jurídica dos motoristas: uma a impor o dever laboral de prestarem contas em 8 dias; a outra a prever a sanção disciplinar para o incumprimento deste dever.

Forçoso é concluir que se trata de uma norma com eficácia externa porque se repercute na esfera jurídica, laboral e disciplinar, do funcionário.

Não se trata de uma norma com o fim, apenas, de regular a organização e funcionamento do serviço.

E não se diga, como faz o Recorrente para afastar esta conclusão, que:
“… a violação das instruções ali contidas sempre poderia, à luz do dever de zelo que impende sobre os trabalhadores em funções públicas, levar à aplicação de sanções disciplinares, não carecendo, para o efeito, de qualquer previsão expressa que não a que a esse respeito resulta da LTFP.”

Em primeiro lugar porque não interessa conjecturar se a norma poderia levar de igual modo à aplicação de sanções ainda que não contivesse essa previsão. O certo é que contém a previsão de aplicação de sanção disciplinar e foi essa previsão que serviu de fundamento ao acto impugnado.

Depois porque essa possibilidade, mera conjectura, apenas confirmaria a eficácia externa da norma e a necessidade, na vertente disciplinar, de uma aplicação da norma ao caso concreto.

Daí impor-se, na elaboração da norma em causa, o prévio parecer escrito da comissão de trabalhadores, a que alude a alínea c) do artigo 327º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, tal como decidido.

E se é certo que na primeira vertente é uma norma imediatamente operativa, o que afastaria a possibilidade de aplicação do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na segunda vertente não é imediatamente operativa pois exige precisamente a aplicação a cada caso concreto.

Ora as duas vertentes da norma são incindíveis, pois a aplicação de uma sanção disciplinar, neste caso ao Autor, funda-se quer no incumprimento do referido dever, de prestar contas em 8 dias, quer na previsão de aplicação de uma sanção disciplinar para esse incumprimento.

Não está aqui em causa apenas o dever de prestar contas em 8 dias, e o seu incumprimento, está em causa, de forma incindível, a aplicação de uma sanção a um caso concreto tendo por fundamento esse incumprimento.

Daí justificar-se aqui a aplicação do n.º 3 do artigo 73º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como também foi sustentado na decisão recorrida.

Impõe-se, pois, manter a decisão recorrida, de procedência do pedido de anulação do acto que aplicou ao Autor uma sanção disciplinar, improcedendo o recurso.

Como se decidiu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.01.2023, no processo 369/19.3 CBR, com o mesmo Colectivo.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

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Porto, 10.03.2023

Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre