Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
| Processo: | 00094/09.3BEPRT |
| Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
| Data do Acordão: | 01/17/2020 |
| Tribunal: | TAF de Coimbra |
| Relator: | Ricardo de Oliveira e Sousa |
| Descritores: | DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA; PARECER PRÉVIO VINCULATIVO; DESADEQUAÇÃO TEMPORAL; NULIDADE; APROVEITAMENTO DO ATO ADMINISTRAÇÃO; ARTIGO 9º, Nº. 1 DO REGIME JURÍDICO DA RAN [DECRETO-LEI Nº196/98, DE 14/06]. |
| Sumário: | I- A prolação de Parecer Vinculativo da Comissão Regional Comissão Regional da Reserva Agrícola apenas após a prolação do ato administrativo que determina a declaração de utilidade pública de parcela inserida em RAN faz convocar o regime de nulidade previsto no artigo 34º do Decreto-Lei nº196/98, de 14/06; II- Porém, verificando-se que o apontado parecer vinculativo foi emitido, ainda que temporalmente desadequado, em sentido favorável, e que a obra foi integralmente executada, sempre a eventual repetição do ato levaria à prolação do ato de teor idêntico, o que, manifestamente, constituiria um ato inútil, já que a realidade material sempre permaneceria inalterada. III- E se assim é, então não existe justificação racional para, nestas condições de inoperância, conferir eficácia invalidante ao ato impugnado nos autos, tendo aqui plena operância o princípio do aproveitamento dos atos administrativos . IV- Fora do conceito de “ilicitude” a que se reporta o artigo 9º da Lei nº. 67/2007, de 31.12, ficam todas as ilegalidades não invalidantes, como é o caso dos vícios que não implicam a anulação contenciosa por efeito da aplicação, pelo Tribunal, do princípio do aproveitamento do ato administrativo..* * Sumário elaborado pelo relator |
| Recorrente: | M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S. |
| Recorrido 1: | MINISTÉRIO DA HABITAÇÃO, OBRAS PÚBLICAS, TRANSPORTES E COMUNICAÇÕES |
| Votação: | Unanimidade |
| Meio Processual: | Acção Administrativa Especial |
| Decisão: | Negar provimento ao recurso dos recorridos, Conceder provimento ao recurso do recorrente. |
| Aditamento: |
| Parecer Ministério Publico: | Não emitiu parecer. |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: * * I – RELATÓRIO M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S., devidamente identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a presente Ação Administrativa Especial contra o MINISTÉRIO DA HABITAÇÃO, OBRAS PÚBLICAS, TRANSPORTES E COMUNICAÇÕES, também identificado nos autos, peticionando o provimento do presente meio processual por forma a ser (i) declarada a nulidade da “(…) declaração de utilidade pública, proferida por despacho do Secretário de Estado dos Transportes, n.° 472/2006, de 14 de dezembro de 2005, publicado no Diário da República, II Série, n.° 6, de 09 de janeiro de 2006, necessária à realização do projeto “Duplicação da Linha P, respeitante ao Troço do Sistema do Metro Ligeiro do Porto, Senhora da Hora, Vila do Conde, Póvoa de Varzim (…)”, e (ii) o Réu condenado no “(…) pagamento duma compensação adequada desde a ocupação até à aquisição pela via do direito privado à parcela ou sua devolução no estado em que se encontrava no valor de € 0,25 m2/mês, deduzindo-se a indemnização já recebida pelos Autores no processo de expropriação da parcela supra referida (…)”. * Notificados que foram para o efeito, os Recorridos produziram contra-alegações, que concluíram da seguinte forma: “(…)1. O Metro do Porto, S.A. é responsável pelo pagamento dos terrenos necessários à implementação do sistema de Metro a que se refere o despacho impugnado; daí ser parte legitima também no cumulado pedido indemnizatório. 2. Daí ser a única entidade com legitimidade para em primeira mão como primeira responsável, custear o pagamento do valor decorrente da perda da propriedade por parte dos AA com o seu desaparecimento da mesma pela integração; 3. E o Réu por ter proferido o ato ilegal é corresponsável pelo pagamento como decorre da natureza das coisas. 4. O pagamento do contra valor há de ser encontrado pelo valor do bem perdido o qual não poderá ser inferior ao que decorrer do correspondente ao que dele retira ocupante, no mínimo proporcional á obra implantada; 5. A legalidade do ato deve ser apreciada pelos dois fundamentos invocados na petição inicial - a violação do regime jurídico da RAN e a violação do regime jurídico dos planos de ordenamento. 6. No âmbito do primeiro o parecer favorável à utilização não agrícola do solo tem de ser prévio ao ato e é fulminada, a violação desta regra, com nulidade. 7. A ilegalidade de que enferma o ato impugnado é causadora de prejuízos para os AA já que impede que seja obtida a justa indemnização. 8. No âmbito do regime jurídico da RAN é necessária a autorização prévia ao ato da utilização não agrícola do solo. 9. No âmbito do regime jurídico dos planos é necessária a desanexação definitiva prévia da RAN e a compatibilização do solo em área compatível com a execução da obra. 10. Esta incompatibilidade com o plano é geradora de nulidade do ato tendo ambas as ilegalidades, in casu, adequação para causar prejuízo importante aos ex-proprietários. 11. Se o solo estivesse Inserido em área compatível com a ocupação prevista pelo PDM estaria preenchido o requisito c) do n.° 2 do artigo 25 do CE e o solo seria avaliado no mínimo pelo potencial implantado. 12. A repetição do ato é inviável por várias razões, a saber: a) A obra já esta executada. b) A parcela desapareceu por incorporada na obra que constitui realidade jurídica diferente e mais ampla; c) A parcela sempre estaria - se tivesse autonomia - fora do comércio jurídico (e por isso insuscetível de qualquer negócio jurídico ou de ser objeto de qualquer ato administrativo) por estar integrada no domínio público do Estado. d) Um novo ato não teria objeto pelo desaparecimento da parcela e, se tivesse, não teria sentido por a obra já estar executada para além de que violaria o regime jurídico do património imobiliário público do estado pois tais estão fora do comércio jurídico. e) E por a legalidade não poder ser reposta já que a obtenção prévia do parecer da Comissão da RAN e a compatibilidade prévia com o PDM não serão mais possíveis. f) E prejudicaria os AA quanto ao valor da parcela e ao modo de a calcular para alem de impedir que a indemnização produzisse efeitos à data de privação de dispor que ocorreu de facto com base no ato nulo (a expropriação reporta-se sempre á data da DUP que sendo atual seria sempre muito posterior á privação do bem). 13. Está em causa definir nestes autos a indemnização pela perda definitiva da propriedade devida por esta expropriação de facto a pagar pela contra - interessada por impossibilidade da sua devolução (…)” * Quanto ao seu recurso, concluíram os Recorrentes M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S. nos seguintes termos: “(…)1° Resulta notório que a privação duma propriedade gera prejuízos ao seu proprietário despossado. 2° A concretização da obra pública efetuada nas parcelas levou á sua Integração no domínio público do Estado o que Implicou a perda do direito de propriedade dos Autores e consequente saída do comércio Jurídico. 3° O direito de propriedade perdido converte-se no valor Indemnizatório a liquidar como seria se tivesse sido cumprida a lei. Assim... 4º A execução da obra alterou definitivamente a possibilidade de devolução do terreno aos autores 5º No valor Indemnizatório deve atender-se não só ao valor do solo de acordo com a finalidade a que o mesmo foi afetado mas também ao valor que dele retira a ocupante. 6° O ato impugnado enferma do vicio de violação do PDM fulminado com nulidade nos termos do disposto no artigo 103° do Dl.380/99 vigente á data da prática do ato nulo (…)”. * A Recorrida Metro do Porto, S.A., quanto a este recurso, contra-alegou, concluindo nestes termos: “(…) I. O recurso de apelação interposto pelos Autores Recorrentes carece de qualquer fundamento, de facto ou de direito, pelo que deve improceder. IV. Dos elementos carreados para os autos, não resulta qualquer prova de que os Autores Recorrentes sofreram um prejuízo efetivo em consequência da alegada invalidade do ato administrativo impugnado. * O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão destes recursos [contrariamente ao recurso interposto pelo Ministério do Ambiente, que foi ordenado desentranhar dos autos], fixando os seus efeitos e o modo de subida. * O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu o parecer a que alude o nº.1 do artigo 146º do CPTA. * * Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta. * * O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA. Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir são as seguintes: (i) Recurso interposto pela Contrainteressada Metro do Porto, S.A – erro de julgamento de direito quanto à decidida nulidade do ato impugnado, por violação do nº.1 do artigo 9º do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional em vigor à data dos factos, e, bem assim, por ofensa do princípio do aproveitamento dos atos administrativos; (ii) Recurso interposto pelos Autores – erro de julgamento de direito quanto à decidida improcedência do pedido condenatório dos Réus no pagamento de compensação adequada pela ocupação da parcela dos Autores. Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir. * * III – FUNDAMENTAÇÃO III.1 – DE FACTO Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte: “(…) 1 - A Secretária de Estado dos Transportes, por seu despacho - ato sob impugnação - datado de 14 de dezembro de 2005, publicado no DR II série, n.° 6, de 09 de janeiro de 2006, decidiu conforme, por facilidade, para aqui se extrai como segue: Considerando que, nos termos da base XI do anexo I do citado diploma legal, compete à mesma sociedade proceder, na qualidade de entidade expropriante, às expropriações necessárias à referida construção; Considerando que, nos prédios discriminados no mapa anexo, se prevê a construção da via dupla, que é de manifesto interesse público, a qual se insere no troço Senhora da Hora-Vila do Conde-Póvoa de Varzim; Considerando o despacho conjunto nº. 288/2003, de 11 de março, que aprovou a realização do projeto «Duplicação da linha P», respeitante ao troço do sistema do metro ligeiro do Porto Senhora da Hora-Vila do Conde-Póvoa de Varzim; Considerando, ainda, que no programa de trabalhos previsto se estipula que as obras se iniciem já em dezembro de 2005 e que tais obras pressupõem a posse dos bens a expropriar: Assim, a requerimento da sociedade Metro do Porto, S. A., considerando que para a materialização da referida obra é indispensável a expropriação de tais bens, nos termos previstos nos artigos 1.°, 3.°, 13.°, 14.° e 15.° do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.° 168/99, de 18 de setembro, e na base XI, n.º 3, do anexo I do Decreto-Lei n..° 394-A/98, de 15 de dezembro, e ao abrigo da delegação de competências constante do despacho n.° 16 347/2005 (2.a série), publicado no Diário da República, 2ª série, nº 143, de 27 de julho, de 2005, tendo em vista o início imediato das obras, determino o seguinte: 1- A declaração de utilidade pública, com caráter de urgência, da expropriação dos bens imóveis e direitos a eles inerentes correspondente às parcelas PE-NM-311R, PE-NM-317R, PE-NM-370BR e PE-NM-374R, devidamente identificadas nas plantas cadastrais e mapa de identificação, cuja publicação se promove em anexo. 2 - Autorizar a sociedade Metro do Porto, S. A., a tomar posse administrativa dos mesmos prédios, ao abrigo dos artigos 15.° e 10.° do supra referido Código. 3 - Os encargos financeiros com as expropriações são da responsabilidade da sociedade Metro do Porto, S. A., para os quais dispõe de cobertura financeira, tendo prestado caução para garantir o pagamento dos mesmos. 14 de dezembro de 2005. - A Secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Mendes Vitorino.” 2 - Para a decidida expropriação em causa, foi afetada uma parcela, denominada por PE-NM-374-R, com a área de 175,33 m2, a destacar de um prédio rústico, denominado por (…), com 2.970 m2, sito no lugar do (...), freguesia de (...), concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz rústica sob o artigo 429 e descrito na Conservatória do Registo Predial da (…) sob o n.° 00400/950620, do livro B- 64, propriedade da Autora - Facto admitido por acordo; * III.2 - DO DIREITO Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas nos recursos jurisdicionais em análise. Os pedidos nucleares da presente ação são o (i) da declaração de nulidade da “(…) declaração de utilidade pública, proferida por despacho do Secretário de Estado dos Transportes, n.° 472/2006, de 14 de dezembro de 2005, publicado no Diário da República, II Série, n.° 6, de 09 de janeiro de 2006, necessária à realização do projeto “Duplicação da Linha P, respeitante ao Troço do Sistema do Metro Ligeiro do Porto, Senhora da Hora, Vila do Conde, Póvoa de Varzim (…)” e o (ii) da condenação no “(…) pagamento duma compensação adequada desde a ocupação até à aquisição pela via do direito privado à parcela ou sua devolução no estado em que se encontrava no valor de € 0,25 m2/mês, deduzindo-se a indemnização já recebida pelos Autores no processo de expropriação da parcela supra referida (…)”. A sentença recorrida, como sabemos, julgou a presente ação parcialmente procedente, tendo (i) declarado a nulidade do ato impugnado e (ii) julgado improcedente o pedido condenatório formulado nos autos. Fê-lo, sobretudo, por entender, por um lado, que o ato impugnado, “(…) pelo qual foi declarada a utilidade pública, com caráter de urgência, da parcela de terreno que era propriedade dos Autores [374 R] é nulo, porquanto essa decisão ablativa do património dos Autores não foi precedida de Parecer prévio emitido por aquela Comissão (…)”, e, por outro, que os Autores não lograram alegar os prejuízos, concretizando-os, que sofreram na sua esfera jurídica patrimonial com a prolação do ato impugnado, sendo certo que, por situar o pedido condenatório formulado nos autos no domínio da responsabilidade extracontratual, sempre o Réu seria parte ilegítima, pelo que o pedido em causa não poderia ser apreciado nos autos. Do assim decidido discordam tanto os Recorrentes (i) Metro do Porto, S.A e (ii) M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S., que lhe imputam diversos erros de julgamentos de direito. Efetivamente, a Contra-interessada Metro do Porto, S.A. impetra à sentença recorrida erro de julgamento de direito, por violação do artigo 9º do Regime Jurídico da RAN, já que este não especifica o momento temporal em que deve ser solicitado o parecer às Comissões Regionais de Reserva Agrícola, impondo apenas que o mesmo seja solicitado em tempo útil, o que sucedeu nos autos, porquanto a Recorrente tomou posse da parcela quatro meses depois da emissão deste parecer. Aduz ainda que a adequação ou desadequação temporal da emissão do parecer das Comissões Regionais de Reserva Agrícola não deve servir para fazer funcionar o regime vertido no artigo 34º do regime jurídico do RAN [nulidade], mas tão só o regime de geral da anulabilidade, mostrando-se, por isso, o direito da presente ação já caducado, sendo certo que, ainda que não se entenda, deve ser aplicado o principio de aproveitamento dos atos administrativos, pois que os valores protegidos no citado artigo 9º foram assegurados no caso sub judice, com a emissão efetiva e favorável do mesmo, não tendo a ilegalidade cometida qualquer efeito sobre a substância da decisão. Já os Recorrentes M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S. invocam, brevitatis causae, que não estamos perante responsabilidade civil extracontratual, mas antes no domínio da reintegração do seu património, sendo notório que a privação de uma propriedade gera prejuízos ao despossado, convertendo-se o direito de propriedade perdido no valor indemnizatório a liquidar se tivesse sido cumprida a lei, em cuja definição ter-se-á de atender não só ao valor do solo de acordo com a finalidade, mas também ao valor que dele retira o impugnante, enfermando o ato impugnado de vicio de violação do PDM fulminado com nulidade, nos termos do artigo 103º do D.L. nº. 380/99, vigente à prática do ato nulo. Vejamos, sublinhando, desde já, que os presentes recursos jurisdicionais, com o alcance e fundamentação supra explicitados, serão objeto de análise conjunta, por serem indissociáveis em relação à matéria neles versada na decisão recorrida, como veremos pormenorizadamente de seguida. Assim, tendo em conta a motivação aduzida pela Recorrente Metro do Porto, S.A., importa que se comece por sublinhar, e como tal foi dado como provado, que a parcela expropriada dos Autores estava classificada no PDM de Vila do Conde, como em zona de “Espaços Não Urbanizáveis - Áreas de Salvaguarda - Reserva Agrícola Nacional” [cfr. ponto 3) do probatório coligido nos autos] Ora, é condição necessária para o efetivo e pleno aproveitamento agrícola dos solos de maiores potencialidades a sua inserção em explorações agrícolas bem dimensionadas. Para atingir este fim, o Decreto-Lei nº196/89, de 14/6, criou um regime jurídico da “Reserva Agrícola Nacional” - RAN - destinado a defender e proteger as áreas de maior aptidão agrícola, garantindo a sua afetação à agricultura, dificultando, por um lado, o seu fracionamento e, por outro, criando um direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos existentes na mesma área de reserva agrícola nacional. No sentido de evitar o fracionamento de tais prédios rústicos, estatui-se no artº8º nº1, alínea a) daquele diploma legal que “(…) os solos da RAN devem ser exclusivamente afetos à agricultura, sendo proibidas todas as ações que diminuam ou destruam as suas potencialidades agrícolas, designadamente, obras hidráulicas, vias de comunicação e acessos, construção de edifícios, aterros e escavações (…)”. Porém, esta regra geral, da exclusiva afetação dos solos da RAN à agricultura, sofre exceções, como nos casos de utilização não agrícolas [artº9º] ou nas hipóteses de utilizações não estritamente agrícolas de tais solos [artº10º]. No caso dos autos, estamos perante uma utilização não agrícola de tais solos, a construção do projeto «Duplicação da linha P», respeitante ao troço do sistema do metro ligeiro do Porto Senhora da Hora-Vila do Conde-Póvoa de Varzim. Ora, estando em causa a construção de vias de comunicação, tal operação estava sujeita a parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola. E, efetivamente, esta comissão emitiu parecer favorável à construção daquela linha do metro, só que o fez quando o ato contenciosamente impugnado já tinha sido praticado. Na verdade, percorrido o probatório, dimana do mesmo que o despacho do Sr. Secretário de Estado dos Transportes impugnado nos autos foi praticado em 14 de dezembro de 2005 e o parecer foi emitido pela Comissão Regional de Reserva Agrícola em 29 de setembro de 2006. Assim, aquele parecer, embora favorável, não é prévio à prática do ato, como a lei o exige, mas sim muito posterior à sua prática. Quer isto tanto significar que o autor do ato contenciosamente impugnado preteriu, ao omitir aquele parecer favorável, uma formalidade legal. Podemos definir formalidade como o rito destinado a garantir a correta formação ou execução da vontade administrativa ou o respeito pelos direitos e interesses dos particulares [Prof. João Caupers, Direito Administrativo, págs. 53 e 172), ou todo o ato ou facto, ainda que meramente ritual, inserido no processo administrativo gracioso (Prof. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. 1º, pág. 382]. A formalidade tem-se como simples quando a lei a prescreve sem estatuir em pormenor o modo como deverá ser concretizada [Prof. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. 1º, pág. 387]; será solene quando a lei prescreve os requisitos a que o escrito há de obedecer ou a fórmula que deverá reproduzir [Prof. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. 1º, pág. 389]. O parecer favorável da comissão Regional da Reserva Agrícola para a ocupação do parcela dos Autores para a construção da uma nova linha do metro configura-se como uma formalidade legal simples, mas como formalidade legalmente prevista tem de qualificar-se como essencial, como é jurisprudência reiterada e uniforme do Supremo Tribunal [i.a.: Acs. do STA (TP) de 19/3/1964-AD35º, 1446 e de 14/6/84-in AD277º,6]. A falta de um parecer, regra geral, implica a preterição de uma formalidade essencial que faz enfermar o processo de ilegalidade e torna o ato administrativo anulável por vício de forma [Ac. do STA de 2/11/1978, in AD 204º, 1461]. Acontece, porém, que o artigo 34º do mesmo Decreto-Lei nº196/98 diz que “são nulos todos os atos administrativos praticados em violação do disposto no nº1 do artº 9º”. Em que ficamos? A questão em apreço já foi equacionada pelo colendo S.T.A., tendo este decidido, por Acórdão de 22.06.2006 [rec. nº805/2000], ser nulo o ato praticado sem a emissão prévia daquele parecer favorável nos seguintes termos: «Vejamos, pois, como o referido acórdão do Tribunal Pleno resolveu a aparente dificuldade resultante de o ato de expropriação não encontrar acolhimento expresso no texto do art. 9° n°1. “É certo que o n°1 do art. 9°, contrariamente ao que acontece com o n°1 do precedente art. 8° (este ao enunciar as ações que são proibidas em solos da RAN), não utiliza o advérbio “nomeadamente” quando se refere aos atos administrativos que devem ser precedidos do referido parecer favorável. Daí o ser-se tentado, prima facie, a ver-se na enunciação dos tipos de atos administrativos constante do n°1 do art. 9°, diferentemente do que se dispõe expressamente no art. 8° n°1, um quadro fechado, ou seja, taxativo. Mas não é assim. Aquilo que substancialmente une ou liga os vários atos administrativos enunciados no n°1 do art. 9° é o de através deles se abrir caminho a utilizações não agrícolas de solos integrados na RAN. Este critério finalístico é que permite identificar todas as decisões da Administração relativas a solos da RAN que exigem parecer prévio favorável da respetiva comissão regional. Isto independentemente da tipologia classificatória que porventura possa caber a um concreto ato administrativo. Aliás o caso dos autos é paradigmático, pois que por virtude da declaração de utilidade pública de expropriação das parcelas de terreno em causa, estas ficam adstritas à satisfação do fim (de utilidade pública) (...) cessando para os respetivos proprietários o direito de livre disposição, abrindo-se a utilização das mesmas parcelas àquele fim não agrícola.” Subscrevendo por inteiro as considerações de direito que precedem, entendemos que elas são igualmente aplicáveis à hipótese dos autos, já que, como se referiu, nos encontramos face a uma situação fáctico-jurídica que, nos seus traços essenciais, é idêntica àquela. Temos aqui, também, um despacho expropriativo que atinge uma parcela de terreno integrada na RAN, com parecer favorável requerido e obtido posteriormente a esse ato. É, pois, de concluir que o parecer em causa, sendo, nos termos expostos, necessário por imperativo do art. 9° n°1 do DL. n°. 196/89, e não tendo sido emitido no momento próprio, acarretou, tal como decidiu o acórdão sob recurso, a nulidade do despacho de expropriação. Todavia, esta conclusão, ainda que solidamente ancorada no texto da lei, terá de ser confrontada com uma dúvida quanto ao seguinte ponto: saber se a nulidade que, deste modo, caberia declarar não deverá ser afastada ou limitada nos seus efeitos pela circunstância de o parecer da Comissão Regional ter sido de facto emitido em sentido favorável, ainda que em momento posterior ao despacho expropriativo. Dúvida essa que se legitima pelo apelo ao conhecido princípio do aproveitamento do ato administrativo ou teoria dos vícios inoperantes, que a jurisprudência do Supremo Tribunal tem aceitado, ainda que sob certas condições [cfr., a título de exemplo, os Acs. do Tribunal Pleno de 12.07.90 in proc. n°22 906 e de 20.03.97 in proc. n°27 930], segundo o qual a anulação de um ato viciado não será pronunciada quando seja seguro que o novo ato a emitir, isento desse vício, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o ato impugnado. Seria este o caso presente, uma vez que, renovado o procedimento, iríamos obter um novo parecer favorável, agora prévio, mas que, afinal, já fazia parte, com esse preciso conteúdo, do procedimento destruído. O ato final expropriativo, objeto do ataque contencioso, resultaria, assim, inexoravelmente incólume. A favor desta tese, cujo poder de sedução é inegável, são invocáveis duas ordens de razões, uma de natureza prática, outra de natureza teórica. A primeira promana dos princípios da economia dos atos públicos e da eficiência da Administração que repelem a produção de atos inúteis. Para quê, pois, repetir um procedimento, ainda que isento do vício anterior, se o conteúdo, tanto do ato interlocutório como do ato final, se encontra totalmente predeterminado? Como se lê no acórdão de 7.02.02 (in proc. n°46 611) do Supremo Tribunal, “a economia de meios é também em si um valor jurídico, correspondendo a uma das dimensões indispensáveis do interesse público”, podendo-se acrescentar que ele constitui também, e em primeira linha, um dos princípios vectores que a CRP (art.267° n°5) impõe à atuação administrativa. A segunda ordem de considerações tem a ver com a estrutura e o sentido das normas que disciplinam o procedimento. Costuma dizer-se que estas regras de trâmite não têm valor autónomo, não constituem “um fim em si mesmo” [Selbstzweck] mas apenas um “meio” [Mittel] para conseguir uma decisão substantivamente correta ou justa, encontrando-se, nesta precisa medida, finalisticamente comprometidas. O procedimento teria uma função meramente instrumental ou ancilar servindo, acima de tudo, a correção e a racionalidade da decisão substantiva bem como a completude dos fundamentos dessa mesma decisão. Relegadas para um plano meramente técnico, seria, pois, legítimo dispensar o acatamento de qualquer das suas normas sempre que estivesse seguramente alcançado esse escopo material. O que, por outro lado, implicava ou pressupunha uma nítida dicotomia entre normas procedimentais e normas substantivas dada a sua diferente natureza. Só que esta maneira de ver as coisas não pode ser aceite sem severas restrições. Modernamente tem-se posto em crise essa distinção antinómica, acentuando-se, em contraponto, a relação de polaridade [ou seja, de interdependência e de recíproca complementaridade] entre essas duas categorias de normas [cfr., por todos, RAINER WAHL e JOST PIETZKER, Verwaltungsverfahren zwischen Verwaltungseffizienz und Rechtsschutzauftrag in VVDSt (41) Berlin New York 1983 passim e HERMANN HILL, Das fehlerhafte Verfahren und seine Folgen im Verwaltungsrecht, Heidelberg 1986, pp. 201 e ss.] A lei, por via de regra, não define com precisão o direito material nem, muitas vezes, este existe a priori. Oferece-nos, antes, de forma mais ou menos abstrata, a moldura daquilo que é realizável, ou seja, o se, sob que pressupostos e com que conteúdo podem nascer direitos e deveres. Para sair desse quadro abstrato, escreve o último daqueles autores [op. e loc. cit.], é necessária uma atividade de transposição e de concretização do conteúdo normativo para o caso singular [Rechtsgewinnung], a qual tem lugar no procedimento e através do procedimento. É este sistema de normas que, em simbiose com o direito substantivo, determina a forma da realização concreta da previsão material daqueles direitos e deveres. Deste novo entendimento do problema derivam consequências importantes. Por um lado, o reconhecimento de que as normas deste tipo, para além daquela vertente ancilar, têm também uma função própria: uma função de tutela dos direitos subjetivos dos cidadãos na medida em que estabelecem parâmetros precisos de aferição jurisdicional da legalidade. E, também, uma função de controlo objetivo da Administração, ou seja, uma função pedagógica e disciplinadora do seu comportamento e de garantia da realização das suas atribuições globais (Gesamtauftrag) constitucionais. Por isso é que, historicamente, a tutela jurisdicional e as normas de processo foram sempre, pelo menos, tão importantes como o próprio direito material. Por outro lado, esta reabilitação do procedimento tem chamado a atenção da doutrina para a variedade dos vícios que o podem inquinar, nem todos, naturalmente, merecedores do mesmo tratamento, levando, por isso, os autores a definir várias categorias de vícios segundo um critério funcional (tipo de sanção cominada pela lei, natureza da norma violada, contexto procedimental, etc.) Deixando de lado esses esquemas classificatórios, importa reter que, relativamente à categoria de infrações mais graves, a dos chamados “vícios absolutos” (que incluem, entre outros, os casos que implicam nulidade), se aceita sem reticências, que a sua ocorrência conduz irremediavelmente à sanção primária prevista na lei. Isto com desprezo total pela correção jurídica da decisão substantiva. O fundamento desta posição reside, não só na apontada autonomia das normas de procedimento que não consente que os efeitos da ilegalidade cometida sejam sacrificados ao acerto daquela decisão, mas também, e principalmente, no radical desvalor que o ordenamento jurídico liga a este tipo de violação de lei. Na verdade, entende-se que nos casos de nulidade (aos quais se associam, por via interpretativa, os de anulabilidade especialmente grave, p. ex. aqueles em que a norma de procedimento está ao serviço de um direito substantivo particularmente relevante) são os próprios fundamentos do sistema que são postos em crise por esse “vício absoluto.” A atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, ainda que colaterais, ao ato nulo representaria um entorse intolerável na estrutura normativa do Estado de Direito. Recordemos que os atos nulos - e é justamente com um ato deste tipo que aqui nos confrontamos - não produzem quaisquer efeitos jurídicos (art. 134º n°1 do CPA), não há, quanto a eles, sanação possível por ratificação, reforma ou conversão (art. 137º do CPA), não podendo, por isso, ainda que na qualidade de ato interlocutório mas condicionante da decisão final, ser objeto de qualquer aproveitamento. E a circunstância de ter sido emitido parecer favorável, embora a posteriori, não altera os dados da questão. É que o “fim procedimental singular da norma” (HILL), o seu “escopo de proteção”, não é tanto o interesse geral, que sempre existe, de uma correta decisão de fundo, mas a exigência expressamente afirmada no texto da lei, de um certo momento para a emissão daquele ato. Podemos, pois, dizer que o legislador, na arquitetura desta nulidade, atribuiu ao elemento temporal importância essencial e que, por outro lado, é este elemento qualificador que confere autonomia funcional ao vício. Acresce ainda, numa perspetiva complementar, que a análise dos valores ou interesses, de raiz constitucional, que essa norma de procedimento e a sanção de nulidade visam proteger confirmam inteiramente as considerações precedentes. Como se escreveu no acórdão do Tribunal Pleno acima transcrito, “o DL n°196/89, cuja cominação no seu art. 34º está em causa nos autos, é um diploma que, a par de outros, constitui emanação da política de ordenamento do território, a qual, com a do urbanismo, passou a ter, com a 4ª revisão, assento na Constituição [cfr. arts. 65° n°4, 165° n°1 al. z) e 228° al. g)]. Ora, em tal matéria é frequente o legislador ordinário - atenta a preeminência dos interesses coletivos em jogo - cominar com a nulidade atos administrativos que nas aludidas matérias se não conformem com certas regras nesse mesmo âmbito definidas. De modo exemplificativo, mas longe de ser exaustivo, basta lembrar o artº103º do DL n°380/99, de 22/9 (regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial), relativo à nulidade dos atos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável; art. 15° do DL n°93/90 de 19/3 (regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional), nulidade dos atos administrativos que violem o disposto nos arts. 4°,17º e 25° n°7 da Lei n°54/2005, de 15/11 (titularidade dos recursos hídricos), nulidade dos atos ou licenciamentos que desrespeitem as restrições de utilidade pública nas zonas adjacentes às águas públicas previstas nos nºs 1 a 6 do mesmo diploma; art. 1º nº7 do DL n°327/90 de 22/10 (ocupação do solo objeto de um incêndio florestal), nulidade dos atos que violem o disposto nos nºs 1 a 6 do seu art. 1°; e art. 68º do DL n°555/99 de 16/12 (regime jurídico da urbanização e edificação), nulidade das licenças ou autorizações previstas no mesmo diploma, quando preencham a previsão de qualquer das als. a), b) e c) daquele art. 68°” Trata-se de nulidades ligadas à infração de interesses comunitários de grande alcance, como o ordenamento do território ou o aproveitamento racional dos recursos naturais, com expresso assento constitucional [arts. 65° nº4 e 66° n°2 al. d) da CRP], portanto de nulidades em que podemos entrever um “valor reforçado”, o que acentua a irrelevância, teórica e prática, dos atos por elas afetados. Por conseguinte, vindo o despacho impugnado apoiado por parecer favorável mas não prévio da competente comissão regional, o mesmo é irremediavelmente nulo por força do disposto nos arts. 9º n°1 e 34° do DL. n°169/89, improcedendo, assim, as conclusões e), f) e g) da alegação da recorrente. (…)”. Temos, pois, assim, que o Órgão cúpula desta Jurisdição, no mais essencial e para o que ora nos interessa, entendeu que a desadequação temporal da emissão do parecer vinculativo da Comissão Regional da Reserva Agrícola em face [da data de prolação] da DUP faz convocar o regime [de nulidade] previsto no artigo 34º da Lei nº. 168/99, não alterando os dados da questão a circunstância de ter sido emitido parecer favorável, embora a posteriori. “(…) VOTO DE VENCIDO 1. A Recorrente queixa-se, ainda, que o Acórdão recorrido fez errado julgamento quando sentenciou que o DL 196/89 impunha que a expropriação de terrenos destinados à construção de auto estradas só podia ser declarada depois de obtido um parecer favorável das Comissões Regionais de Reserva Agrícola e que, não tendo tal acontecido, o ato recorrido era nulo. Litigará com razão? Vejamos. O citado DL 196/89 teve em vista a proteção das “áreas de maior aptidão agrícola e garantir a sua afetação à agricultura, de forma a contribuir para o pleno desenvolvimento da agricultura portuguesa e para o correto ordenamento do território” — seu art.° 1.º - e tendo em vista o cumprimento desse objetivo, dispôs: Artigo 9.° Utilização de solos da RAN condicionados pela lei geral 1 - Carecem de prévio parecer favorável das comissões regionais da reserva agrícola todas as licenças, concessões, aprovações e autorizações administrativas relativas a utilizações não agrícolas de solos integrados na RAN. 2 - Os pareceres favoráveis das comissões regionais da reserva agrícola só podem ser concedidos quando estejam em causa: a) ...... b) ...... c) ...... d) Vias de comunicação, seus acessos e outros empreendimentos ou construções de interesse público, desde que não haja alternativa técnica economicamente aceitável para o seu traçado ou localização; e)...... f) ...... 3 - Os pareceres favoráveis a que se referem os números anteriores só podem incidir sobre solos das classes A e B quando não existir alternativa idónea para a localização das obras e construções em causa em aforamentos de outra categoria. Artigo 34.° Nulidades São nulos todos os atos administrativos praticados em violação do disposto no n.° 1 do artigo 9° (sublinhados nossos) Nesta conformidade, é inquestionável que a utilização dos solos integrados na RAN para vias de comunicação e seus acessos carece de parecer favorável das Comissões Regionais da Reserva Agrícola, o qual tem de ser prestado previamente à declaração expropriativa, e que o incumprimento desta formalidade determina a nulidade do ato de expropriação. Por outro lado, também é pacífico que o prédio dos autos se encontrava integrado na RAN e que o ato impugnado determinou a sua desafetação do património das Recorrentes e o seu aproveitamento na construção do sublanço da autoestrada Salvaterra de Magos/A10/Santo Estêvão. Ou seja, a declaração de expropriação determinou a utilização não agrícola da parcela das Recorrentes. E, finalmente, ninguém questiona que a legalidade dessa expropriação dependia da obtenção do parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola do Ribatejo e Oeste. Todavia, e apesar disso, o parecer ora em causa só foi solicitado cerca de sete meses depois da prolação do ato expropriativo impugnado e só foi entregue cerca de dez meses após essa prolação - aquele ato foi proferido em 13.01.2003, a A… só solicitou aquele parecer 05.08.2003 e só em 10.11.2003 é que o mesmo foi prestado. É, assim, indubitável que aquele parecer, apesar de favorável, foi posterior à prática do ato impugnado o que, por si só, integra a violação do disposto do transcrito n.° 1 do art. 9.°, do DL n° 196/89, pois que, como se disse, este exige que esse parecer seja prévio à prolação do ato. Como também se não duvida que - nos termos do art. 34.° do mesmo diploma - o incumprimento desta formalidade é determinante da sua nulidade. E, nesta conformidade, o Acórdão recorrido considerou que a tardia obtenção desse parecer determinava a nulidade do ato impugnado, justificando esta decisão dizendo não que não era indiferente, do ponto de vista dos objetivos legalmente prosseguidos, ser o mesmo prestado antes ou depois da sua prolação E isto porque a lei pretendia que “a emissão de parecer favorável à utilização não agrícola de solos integrados na RAN (que, aliás, só podem ser concedidos em casos taxativamente indicados no n.° 2 do citado art. 9°, o que revela a excecionalidade de tal concessão, e, por via disso, o rigor do regime instituído) passe pela ponderação e valoração objetiva das circunstâncias de facto e dos elementos de ordem técnica existentes anteriormente à decisão administrativa, que podem ser substancialmente diferentes daqueles com que a entidade que emite o parecer se confronta posteriormente a tal decisão. De outro modo, não faria qualquer sentido que a lei aludisse a “prévio parecer favorável”, e fulminasse a violação dessa exigência, ou, melhor dizendo, a ilegalidade daí decorrente, com a sanção mais gravosa, declarando “nulos” os atos administrativos praticados á sua revelia.” E esta argumentação é, aparentemente, irrefutável. Só que este Supremo Tribunal tem vindo a aplicar frequentemente o princípio geral de direito que se exprime pela fórmula latina utile per mutile non vitiatur - vulgarmente, designado como o princípio do aproveitamento do ato administrativo — segundo qual não se justifica a anulação de um ato, mesmo que enferme de um vício de violação de lei ou de forma, sempre que, estando em causa um comportamento vinculado, o ato que haja de proferir não possa ter outro conteúdo senão aquele que lhe foi dado ou não possa ser menos lesivo do que o ato que se pretende anular. Ou seja, tem sido entendido que nos casos em que a anulação do ato seria inútil por a subsequente execução do julgado determinar a prática de ato igual ao anulado, se justifica manter o ato impugnado mesmo que inquinado de irregularidade formal ou vício de violação de lei. E isto em razão da economia dos atos públicos, uma vez que o novo ato - expurgado do vício invalidante - teria o mesmo conteúdo do ato anulado e, portanto, não iria alterar a realidade existente. Para quê anular um ato se o novo ato não iria introduzir nenhuma modificação na situação existente e se tudo ficaria na mesma? - Vd., entre muitos outros, Acórdãos de 27/9/00 (rec. 41.191), de 2/3/00, (rec. 43.390), de 23/1/01 (rec. 45967), de 7/11/01 (rec. 38983), de 13/2/02 (rec. 48.403), de 215/02 (rec. n.º 48.403), de 12/3/03 (rec. 349/03), de 1/4/03 (rec. 42.197), de 14/5/03 (rec. 495/02) e de 2/02/2005 (rec. 784/04). A problemática do aproveitamento do ato coloca-nos, assim, “ante dois movimentos de sentido contrário que obedecem a preocupações, à partida, inconciliáveis. De um lado, uma preocupação de pendor economicista, que privilegia o resultado jurídico, que deverá ser aproveitado se for inequívoca a sua correção substantiva; do outro, uma preocupação mais legalista e aparentemente garantística, que sacrifica a eficiência (necessária, designadamente, à realização do interesse público) à disciplina (obediência à lei) a fim de prevenir uma normatividade incompleta, porque desprovida de sanção.” — Margarida Cortez, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.° 37, pg. 38. Todavia, e porque a manutenção na ordem jurídica de um ato inválido traduz sempre um entorse ao formalismo legal, a mesma Autora, mais à frente, acrescenta que o recurso a este princípio só pode ter lugar “quando estiver em causa (1) um ato inválido, (2) de conteúdo positivo, (3) desfavorável para o Recorrente, (4) na medida em que restringe a sua esfera jurídica” e que o Tribunal só pode abster-se da sua anulação “(1) se esse ato for renovável, (2) se for certa a sua efetiva renovação em caso de anulação e (3) se na prática se mostrar indiferente para o particular o momento da eficácia temporal do eventual ato renovador.” O que significa que se o Tribunal, perante a análise concreta do caso, concluir que o novo ato - substitutivo do ato que seria removido em razão da sua invalidade – tiver de ter o mesmo conteúdo do ato inválido e que a manutenção na ordem jurídica deste ato não se irá revelar prejudicial para o Recorrente, pode - e, este Tribunal tem acrescentado, deve - aproveitá-lo, pois que ao fazê-lo irá evitar a prática de atos inúteis. Será que, in casu, se justifica o recurso a este princípio e, consequentemente, será que, apesar da sua ilegalidade, se justifica a manutenção do ato recorrido? 2. O ato impugnado, como sabemos, foi declarado nulo por uma única razão: ter sido entendido que - nos termos das transcritas normas - a declaração de utilidade pública da expropriação de uma parcela de terreno integrada na RAN para ser utilizada na construção de um troço da autoestrada dependia da obtenção de prévio parecer favorável da Comissão Regional da Reserva Agrícola e deste parecer só ter sido solicitado - e, portanto, só ter sido obtido - vários meses depois daquele ter sido praticado. No entanto, encontra-se também assente que, apesar de tardio, esse parecer prestado e foi favorável à pretensão das Recorrentes, o que significa que não seria ele que iria inviabilizar a construção da referida infraestrutura. E, se assim é, pode afirmar-se que a prática do ato recorrido não violou do ponto de vista substancial as finalidades prosseguidas pelo o citado DL 196/89 pois que, por um lado, a Comissão Regional da Reserva Agrícola pronunciou-se, como lhe cumpria, sobre a viabilidade da utilização não agrícola do prédio das Recorrentes e, por outro, porque ao fazê-lo não se lhe opôs. Ou seja, do ponto de vista das finalidades que o citado diploma pretendia acautelar nenhuma violação ocorreu. E, neste ponto, importa recordar, por ser relevante, que o DL 196/89 teve em vista a defesa do interesse público e não a proteção do interesse privado, pois que, como se lê no seu art.° 1.º, o mesmo destinou-se a proteger as “áreas de maior aptidão agrícola e garantir a sua afetação à agricultura, de forma a contribuir para o pleno desenvolvimento da agricultura portuguesa e para o correto ordenamento do território”. Ou seja, é visível que a preocupação central do legislador daquele diploma não foi a defesa dos interesses das pessoas por ele atingidas, mas sim a defesa de um correto aproveitamento das áreas agrícolas em ordem a contribuir para a melhoria da agricultura e para a harmonia do território nacional e, porque assim, deverá ser este interesse público a merecer primacial proteção. Sendo assim, e sendo que o parecer favorável que o mesmo exige como condição do aproveitamento não agrícola da parcela das Recorrentes foi prestado, é forçoso concluir que o interesse primordial visado pelo citado Decreto-lei foi acautelado e, consequentemente, que o mesmo, do ponto de vista substancial, não foi violado. Violação que só ocorreria se a desafetação daquele prédio para fim não agrícola fosse desaconselhada pelo citado parecer e este fosse ignorado ou se a mesma fosse aproveitada em fins não legalmente previstos. O que, como é sabido, não aconteceu. O que houve, de facto, foi apenas prática de uma ilegalidade formal, na medida em que o dito parecer deveria ter sido obtido previamente à prolação do ato impugnado e só o foi posteriormente. Só que esta irregularidade formal não deverá tornar inoperante o ato impugnado, apesar desta sua invalidade. E isto porque, e desde logo, essa irregularidade não determinou a violação do interesse público. Depois, porque não prejudicou os direitos ou os interesses legalmente protegidos das Recorrentes, pois que não se vê como a tardia prestação do referido parecer os possa ter afetado, tanto mais quanto é certo que, atento o seu conteúdo, o mesmo não poderia favorecer nem, de algum modo, potenciar o deferimento da sua pretensão, que era a de que a parcela expropriada fosse mantida no seu património. Acresce que, a declarar-se a nulidade do ato recorrido, a execução do julgado não importaria a prestação de um novo parecer - não faria sentido que se solicitasse um parecer que já foi prestado - e, porque assim, o ato cuja declaração de nulidade se pretende iria ser repetido nos mesmos moldes. Em suma, a declaração de nulidade do ato impugnado com o fundamento naquela irregularidade formal não só não iria provocar uma alteração da realidade existente como, tão pouco, não aportaria qualquer vantagem quer para o interesse público quer para o interesse das Recorrentes e, porque assim, a mesma seria um ato inútil que revelaria, apenas, um apego exagerado, e paralisante, ao formalismo legal. Ao que fica dito poderá, ainda, acrescentar-se que, tendo-se em conta o aproveitamento dado à parcela expropriada - a sua integração num troço de auto estrada - não é imaginável que, na eventual execução do julgado, esta infra estrutura pudesse vir a ser destruída para aquela parcela ser devolvida às Recorrentes. Ou, dito de outro modo, a execução do julgado nunca conduziria à reconstituição da situação atual hipotética, isto é, à situação que existiria se o ato inválido não tivesse sido praticado. E, porque assim, também nesta perspetiva, justificar-se-ia salvar o ato impugnado. Dir-se-á, mas o ato impugnado é nulo e os atos nulos não produzem quaisquer efeitos, nem são suscetíveis de ratificação, reforma ou conversão — art.°s 134°, n.° 1, e 137.°, n°1, do CPA - e, por isso, o mesmo não poderá ser objeto de aproveitamento. E é verdade que no rigor dogmático é assim, mas também o é que este rigor não tem “total correspondência na realidade em virtude da posição de supremacia da Administração face ao destinatário dos seus atos o que lhe permite ir procedendo, muitas vezes, na prática, como se o ato não fosse nulo. Por outro lado, - para além dos seus possíveis efeitos putativos — há que considerar ainda os efeitos projetam no seio da própria Administração, entre os órgãos que os praticam e aqueles que são chamados, subordinadamente, a dar-lhe sequência (publicitária ou) executiva.” - E. Oliveira e outros, in CPA Anotado, 2.ª ed., pg. 652. Ou seja, em muitas situações a afirmação de que o ato nulo não produz efeitos é meramente teórica sem qualquer tradução na realidade. È o caso sub judice onde o vício que determina a invalidade do ato impugnado foi incapaz de paralisar a sua eficácia e, tanto assim, que as Recorrentes foram desapropriadas da parcela em causa e esta foi integrada na infraestrutura que justificou a sua expropriação. Acresce que a ratificação, sanação ou conversão dos atos inválidos visam a sanação ou supressão da ilegalidade do próprio ato e, como atos secundários que são, não se destinam a manter a ilegalidade do ato sanado, ratificado ou convertido e a retirar-lhes a sua força invalidante, mas sim a substitui-los por um novo ato desta vez validamente praticado. - Vd. E. Oliveira e outros, in CPA Anotado, 2. ed., pg. 663. Ora, o princípio do aproveitamento do ato não visa essa sanação ou supressão da ilegalidade já que a sua finalidade é, unicamente, a de, mantendo o ato ilegal, tornar inoperante a força invalidante do vício que o afeta. Aliás, o legislador do novo CPTA pôs em letra de lei o princípio que ora se defende ao prever, no n.° 1 do seu art.° 45.°, a hipótese do aproveitamento do ato inválido em certas e determinadas circunstâncias, não curando de saber se essa invalidade determina a sua nulidade ou anulabilidade. O que significa que na génese deste princípio estão sobretudo razões de economia dos atos públicos e não preocupações relacionadas com o rigor processual ou legal e, se assim é, serão aquelas que, em primeira linha, deverão ser defendidas. No caso sub judicio, pelas razões acima expostas, a repetição do ato que ora se declararia nulo conduziria a que se praticasse um novo ato de igual teor ao declarado nulo, repetição essa que nenhuma vantagem traria quer ao interesse público quer ao interesse das Recorrentes. A realidade existente iria ser mantida sem alteração. E se assim é pode afirmar-se que, por um lado, se encontram reunidas as condições que justificam o recurso ao aproveitamento do ato e, por outro, que não obsta à aplicação deste princípio o facto de o ato impugnado ser nulo. (…)”. O voto vencido ora transcrito centrou a sua abordagem nas eventuais repercussões da declaração judicial de nulidade de um ato administrativo, tendo concluído, no caso em apreço, que estavam reunidas as condições para operar o princípio de aproveitamento do ato administrativo. Salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento no aresto do S.T.A. em análise, julgamos convictamente ser a posição assumida no voto de vencido que se vem de transcrever a que corresponde à solução mais certeira tendo em conta o caso recursivo em análise. * * IV – DISPOSITIVONestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em: (i) NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelos Recorrentes M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S.. (ii) CONCEDER PROVIMENTO ao recurso interposto pela Recorrente Metro do Porto, S.A, revogar a sentença recorrida, e julgar a presente ação integralmente improcedente, absolvendo o Réu dos pedidos. Custas de ambos os recursos interpostos por M.J.A.D.L.S. e J.F.S.L.S.. Registe e Notifique-se. * * Porto, 17 de janeiro de 2020,Ricardo de Oliveira e Sousa Fernanda Brandão Helder Vieira |