Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00728/20.9BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/19/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS; DIREITO DE ASILO; AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA POR PROTECÇÃO SUBSIDIÁRIA; PROVA; DEPOIMENTO DE PARTE;
DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA;
NOS N.ºS 1 E 2 DO ARTIGO 3.º, O N.º 1 E A AL. B), DO N.º 2 DO ARTIGO 7.º E O N.º 3 DO ARTIGO 18.º, TODOS DA LEI 27/2008,
DE 30 DE JUNHO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 26/2014 DE 05 DE MAIO (LEI DO ASILO).
Sumário:1. Os factos e elementos de prova não colhidos no procedimento não podiam ter sido tidos em conta pelo acto impugnado, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, pelo que não se pode aferir a validade do mesmo por fundamentos e elementos de prova que não podia ter em conta.

2. Isto sendo certo que o tribunal não é uma segunda instância administrativa, nem tem condições, designadamente de recursos humanos, para o ser, mas uma instância jurisdicional que averigua, no caso concreto da acção de impugnação judicial, a validade do acto de acordo com os pressupostos de facto e de direito que, no momento da prática do acto, poderiam e deveriam ser tidos em conta, bem como avalia a razoabilidade dos juízos emitidos com base nos elementos colhidos em sede administrativa, salvo omissão ou preterição de formalidades essenciais.

3. Acresce que, no caso, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras é um órgão de polícia criminal que tem como um dos “objectivos fundamentais controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e actividades de estrangeiros em território nacional” – artigo 1º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16.10.

4. No exercício das funções que a lei lhe atribui, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras averigua a situação de facto que invocam os pretendentes, como é aqui o caso, à concessão de asilo ou de residência por protecção subsidiária. Essa averiguação de facto, enquanto órgão de polícia criminal, faz parte daquilo a que se costuma designar por “discricionariedade técnica”.

5. E no campo da “discricionariedade técnica” é entendimento pacífico o de que a conduta da Administração é insindicável, salvaguardados os casos de erro grosseiro, uso de critérios manifestamente desajustados ou desvio de poder.

6. Este entendimento em nada fere o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, nem os artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2.º e 5.º, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil. Pois apenas circunscreve a função jurisdicional ao que a Lei, incluindo a Constitucional, define como função jurisdicional, distinguindo-a da actividade administrativa, com respeito pelo princípio da separação de poderes – artigos 212º, n.º 3, e 268º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa).

7. Pelo que o depoimento de parte, no que vai para além do que a requerente quis declarar, em sede administrativa, mostra-se alheio à apreciação da validade do acto, sendo, portanto, inadmissível tal prova.

8. Não se justifica conceder o direito de asilo ou, alternativamente, uma autorização de residência por protecção subsidiária, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, o n.º 1 e a al. b), do n.º 2 do artigo 7.º e o n.º 3 do artigo 18.º, todos da Lei 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 05 de Maio (Lei do Asilo), no caso de não ter sido feita a prova de que a requerente tenha sido alvo de perseguição em consequência de actividade por ela exercida em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou de que tenha o fundado receio de ser perseguida ou morta em resultando de um clima de perseguição sistemática contra um grupo de pessoas a que a requerente pertença ou de violação sistemática dos direitos humanos contra os cidadãos da Serra Leoa, de onde é natural, ou, finalmente, de que tenha fundado receio de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:T.
Recorrido 1:Ministério da Administração Interna.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Intimação Protecção Direitos, Liberdades e Garantias (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

T. veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 04.04.2020, pela qual foi julgada improcedente a impugnação judicial intentada pela ora Recorrente contra o Ministério da Administração Interna, para anulação da decisão proferida pela Directora-Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que, em 8 de Janeiro de 2020, indeferiu o seu pedido de protecção internacional e, bem assim, a sua condenação a proceder à abertura de um procedimento de instrução, nos termos dos artigos 27.º e seguintes da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho.

Invocou para tanto, em síntese, que: a decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente os artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2.º e 5.º, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, na parte em que indeferiu a produção de prova testemunhal e depoimento de parte; e interpretou e aplicou erradamente os n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º, o n.º 1 e a al. b), do n.º 2 do artigo 7.º e o n.º 3 do artigo 18.º, todos da Lei 27/2008, de 30 de Junho com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 05 de Maio (Lei do Asilo), na parte em que julgou a acção improcedente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal apresentou douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

I. É às partes que cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e é ao Tribunal e ao Mmo. Juiz titular do processo que compete conhecer de factos instrumentais ou de factos que sejam complemento ou concretização daqueles que resultem da instrução da causa.

II. O indeferimento de produção de prova testemunhal e de prestação de declarações de parte da Autora, aqui Recorrente, constituiu uma violação ao princípio, constitucionalmente garantido de acesso ao direito e aos tribunais na medida em que impediu a Recorrente de efectiva e eficazmente pugnar e defender os seus direitos e interesses legítimos pelo que a douta decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente os artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2.º a as cfr. als. a)- e b)- do n.º 2 do art. 5.º do Código de Processo Civil.

III. São internacionalmente consagradas e aceites como boas práticas nesta matéria os princípios da credibilidade, do benefício da dúvida e de unidade familiar de que devem gozar as declarações e as situações dos requerentes de asilo ou de autorização de residência por protecção subsidiária.

IV. As declarações que a Recorrente prestou ao SEF são sérias e credíveis e a mesma no seu país de origem estava integrada num determinado grupo social de partilha de crenças, grupo de onde provem a ameaça à sua integridade física e de seus filhos.

V. O douto saneador-sentença que julgou não serem sérias e credíveis as declarações da Recorrente e que a mesma não se encontrava enquadrada em determinado grupo social interpretou e aplicou erradamente os n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º e o n.º 3 do artigo 18.º da Lei 27/2008, de 30 de Junho com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 05 de Maio (Lei do Asilo).

VI. O douto saneador-sentença que julgou inexistir um sério risco de um dos filhos da Recorrente vir a sofrer uma ofensa grave, caso volte para o seu país de origem, julgando assim totalmente improcedente a presente acção interpretou e aplicou erradamente os n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º, o n.º 1 e a al. b)- do n.º 2 do artigo 7.º e o n.º 3 do artigo 18.º, todos da Lei 27/2008, de 30 de Junho com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 05 de Maio (Lei do Asilo).
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II –Matéria de facto.

1. A não produção de prova requerida: testemunhal e depoimento de parte.

É o seguinte o teor do despacho prévio:

“Vistos os autos, considera-se que os mesmos se encontram dotados de todos os elementos probatórios necessários para que seja proferida uma decisão conscienciosa sobre o mérito dos autos no despacho saneador [art.º 88.º, n.º 1, alínea b), do CPTA aqui aplicável por via do disposto no artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho].

Com efeito, pese embora a Autora arrole duas testemunhas e requeira a prestação de declarações de parte, a verdade é que toda a factualidade que vem alegada se encontra demonstrada através de elementos documentais, sendo que tudo o mais, nomeadamente, os artigos 13.º e seguintes da sua petição inicial, se trata, em bom rigor, de matéria de exclusiva aplicação e interpretação de normas jurídicas, nomeadamente, quanto à questão de saber se, em face do bloco normativo aplicável e das declarações daquela, o SEF deveria ou não ter produzido prova adicional em sede de procedimento administrativo.

Assim sendo, torna-se manifestamente desnecessário, por inútil, a realização de quaisquer diligências probatórias adicionais, as quais, por isso, se indeferem [artigo 90.º, n.º 3, parte final, do CPTA e artigo 25.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho]”.

Mostra-se acertada esta decisão.

Os factos que foram invocados em sede administrativa foram tidos em conta na decisão recorrida.

Quanto aos factos e elementos de prova não colhidos no procedimento não podiam ter sido tidos em conta pelo acto impugnado, pelo que não se pode aferir a validade do mesmo por fundamentos e elementos de prova que não podia ter em conta.

Isto sendo certo que o Tribunal não é uma segunda instância administrativa, nem tem condições, designadamente de recursos humanos, para o ser, mas uma instância jurisdicional que averigua, no caso concreto da acção de impugnação judicial, a validade do acto de acordo com os pressupostos de facto e de direito que, no momento da prática do acto, poderiam e deveriam ser tidos em conta, bem como avalia a razoabilidade dos juízos emitidos com base nos elementos colhidos em sede administrativa, salvo omissão ou preterição de formalidades essenciais.

Acresce que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras é um órgão de polícia criminal que tem como um dos “objectivos fundamentais controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e actividades de estrangeiros em território nacional” – artigo 1º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16.10.

No exercício das funções que a lei lhe atribui, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras averigua a situação de facto que invocam os pretendentes, como é aqui o caso, à concessão de asilo ou de residência por protecção subsidiária.

Essa averiguação de facto, enquanto órgão de polícia criminal, faz parte daquilo a que se costuma designar por “discricionariedade técnica”.

E no campo da “discricionariedade técnica” é entendimento pacífico o de que a conduta da Administração é insindicável, salvaguardados os casos de erro grosseiro, uso de critérios manifestamente desajustados ou desvio de poder (ver, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 06.06.1995, processo 032225, de 11.02.1998, processo 032073,de 24.11.2000, processo 038707 (Pleno); de 0.04.2003, processo 042197; de 29.04.2003, processo 01505/02; e de 21-09-2006, processo: 0305/06).

Neste sentido o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 04.10.2017, no processo 205/17.5 BRG, com o mesmo Relator.

Este entendimento em nada fere o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, nem os artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2.º e 5.º, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil. Pois apenas circunscreve a função jurisdicional ao que a Lei, incluindo a Constitucional, define como função jurisdicional, distinguindo-a da actividade administrativa, com respeito pelo princípio da separação de poderes – artigos 212º, n.º 3, e 268º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa).

Pelo que, desde logo, o depoimento de parte, no que vai para além do que a Requerente quis declarar, em sede administrativa, mostra-se alheio à apreciação da validade do acto, sendo, portanto, inadmissível tal prova.

Por outro lado, quanto às testemunhas arroladas, para além de a sua inquirição não ter sido requerida ou ilegalmente omitida em sede administrativa, as mesmas nada sabem sobre a vida da requerente na Serra Leoa, a não ser aquilo o que a própria lhes terá contado, como bem se refere no parecer do Ministério Público neste Tribunal.

Mostra-se, portanto, acertada a decisão de indeferimento de demais provas, para além das constantes dos autos.

Deveremos assim dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida.

A. A Autora nasceu em 30.06.1975, é nacional da Serra Leoa e é mãe de quatro filhos, todos do sexo masculino (cf. capa em fls. 1 e 45 do processo administrativo).

B. Em 29.12.2019, depois de lhe ter sido recusada a si e aos seus filhos menores a entrada em território nacional, a Autora apresentou um pedido de protecção internacional perante as autoridades portuguesas no Aeroporto do Porto, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 27/2008, de 30.06 (cf. pedido de fls. 3-4 e 30 do processo administrativo).

C. Nessa sequência, a Autora foi ouvida quanto aos fundamentos do seu pedido de protecção internacional, tendo prestado declarações, além do mais, no seguinte sentido (cf. auto de declarações de fls. 42-48 do processo administrativo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):

“(…) P. Esta primeira parte da entrevista serve para a conhecer melhor, perceber os seus antecedentes, e a forma como chegou até aqui. Tem algum documento que comprove a sua identidade?
R. Certidões de nascimento minha e dos meus filhos. Os passaportes ficaram com a pessoa que nos acompanhou e ajudou a viajar, já em Lisboa.
P. Qual é a sua nacionalidade?
R. Serra Leoa.
P. Antes desta viagem que a trouxe a Portugal, já tinha deixado a Serra Leoa?
R. Nunca, primeira vez.
P. Frequentou a escola na Serra Leoa?
R. Em Susan Bay, Freetown.
P. Sempre viveu aí?
R. Não, desde há cerca de cinco anos.
P. E antes vivia onde?
R. Sempre vivi na zona de Freetown.
P. Com quem vivia?
R. O meu marido e filhos, e irmãs minhas que visitavam.
P. É casada então? Quantos filhos tem?
R. Sim, com G., desde 2013. Temos três filhos, K., 16 anos, N., de 11 anos e A., de sete anos. Depois tenho o D., de nove anos, que perfilhei. É do meu marido, a mãe não sei quem é, criei-o desde bebé.
P. Trabalha na Serra Leoa?
R. Trabalhava em pequenos negócios, comprando e vendendo coisas.
P. Desde que casou, sempre viveu com o seu marido?
R. Sim, sempre.
P. Tem mais família na Serra Leoa?
R. Irmãos, irmãs, a maioria em Freetown. Os meus pais já morreram.
P. Pratica alguma religião?
R. Sou cristã.
P. Tem família ou amigos em Portugal ou na Europa?
R. Não, está toda a gente na Serra Leoa.
P. Alguma vez pediu asilo noutro país que não em Portugal?
R. Não.
P. Alguma vez solicitou um visto para viajar para um qualquer país da Europa?
R. Nunca.
P. Quando deixou a Serra Leoa pela última vez?
R. Em dezembro de 2019, não me lembro da data.
P. Como e para onde viajara?
R. De carro para Conacri, depois de autocarro para o Senegal, e daí apanhámos um avião para o Brasil, onde fiquei dois dias, e depois para Portugal.
P. Disse que alguém a ajudou a viajar, quem foi?
R. Falei com um senhor, o senhor S., que me pediu dinheiro. Eu dei-lhe tudo o que tinha, mas ele disse que não era suficiente. Vendi dois terrenos do meu marido, tudo o que tinha. Depois tratei dos nossos passaportes e ele tratou dos bilhetes de avião, do autocarro, da viagem até cá.
P. O seu marido ficou em Serra Leoa?
R. Não sei dele há já três meses.
P. Tem agora a oportunidade de nos contar, sem interrupções, o que a levou a abandonar (…)
R. Em Setembro de 2019 o meu marido disse que ia para a aldeia. Ligava-lhe e o telefone estava desligado. Continuei a fazer a minha vida sem saber dele. Depois o K. teve um inchaço no pescoço. O médico disse que tinha que ser operado. Vendi a minha televisão, levei-o ao hospital, fiz a operação. Um amigo do meu marido visitou-me no hospital. Perguntei se ele sabia do meu marido. Ele disse que sim, que ele estava numa sociedade secreta, e que tinha que sacrificar um dos filhos para sociedade secreta. Eu fui pedi ajuda ao senhor S., que é da coordenação de uma associação chamada Crianças SOS, que me ajudou, disse que me punha na Europa e depois eu pedia asilo. (…)”
P. Não voltou a falar com o seu marido desde Setembro?
R. Não.
P. Para além desse amigo do seu marido, mais alguém a abordou sobre o seu marido estar numa sociedade secreta e quer sacrificar um seu filho?
R. Não.
P. Quando é que o esse amigo do seu marido falou consigo?
R. No dia 15 de dezembro foi admitido o meu filho, ele apareceu lá uns dois dias depois da cirurgia.
P. Alguém a ameaçou, ou aos seus filhos, na serra Leoa?
R. Não, ninguém, fugi por ter medo do meu marido.
P. Antes de setembro de 2019, do seu marido desaparecer, como era a sua vida?
R. Não era perfeita, mas nada me levava a suspeitar. Ele queixava-se com as contas, com a falta de dinheiro, as contas da escola dos miúdos, mas eu dizia sempre que nos iríamos orientar.
P. Qual seria o objetivo de sacrificar um dos seus filhos?
R. Quando se quer ter dinheiro, naquela sociedade, temos que dar algo para ter outra coisa. Seria a vida de um dos meus filhos.
P. Pensou ir às autoridades dizer que temia pela vida das suas crianças?
R. Não. Eles não fariam nada, porque o meu marido estava na sociedade porque queria. Só fariam algo depois de o meu filho estar morto. Nunca pensei em ir à polícia.
P. Não haveria alguém que a pudesse ajudar, a Crianças SOS não a poderia ter ajudado dentro da Serra Leoa?
R. Não.
P. Porque não se mudou para outro local dentro da Serra Leoa, ou na República da Guiné, Senegal, ou até Brasil, locais onde estaria afastada do seu problema?
R. Porque o senhor Smith só me disse que iria para a Europa, seria refugiada, salvaria a vida do meu filho.
P. Quanto tempo ficou o seu filho K. no hospital?
R. Três dias.
P. Depois disso quanto tempo levou para deixar o país?
R. Cerca de uma semana.
P. Numa semana tratou da venda das suas terras, dos passaportes e das viagens?
R. Sim, Os passaportes já tinha.
(…)
P. Teme regressar à Serra Leoa?
R. Sim, por temer o que o meu marido possa fazer. Para além do mais vendi os dois terrenos que ele tinha, também me pode querer mal por isso.
P. O único indício de que o seu marido lhe quer mal é o que lhe disse o amigo dele, correto?
R. Sim.
P. Porque confia tanto na sua opinião?
R. Porque antes o meu marido só falava em dinheiro, por isso faz sentido.
P. É, ou alguma vez foi, membro de alguma organização política, religiosa, militar, étnica ou social, na Serra Leoa?
R. Não.
P. Alguma vez foi alvo de perseguição por motivos de raça, credo religioso ou pertença étnica, na Serra Leoa?
R. Não.
P. Alguma vez desenvolveu na Serra Leoa em favor da democracia, libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana?
R. Não.
P. Alguma vez foi detida ou cumpriu pena de prisão?
R. Não.
P. Já alguma vez foi acusada ou condenada por um crime?
R. Não.
P. Tem algum problema com as autoridades judiciais, policiais, com o governo ou Estado da Serra Leoa?
R. Não.
P. De todos os factos que referiu, tem alguma prova?
R. Não.
P. Tem algo que deseje acrescentar ao seu relato?
R. Nada. (…)”

D. Com data de 08.01.2020, a Chefe do Núcleo de Instrução do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF elaborou a informação n.º 20/GAR/20 no âmbito do processo de protecção internacional n.º 2267W/19, da qual consta, além do mais, o seguinte (cf. cópia em fls. 67-74 do processo administrativo, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido):

“(…)
7. Da apreciação da admissibilidade do pedido (…)

6. A requerente declarou, em suma, ser nacional da Serra Leoa, casada com quatro filhos, um dos quais perfilhado, sendo que abandonou o país de origem depois de um amigo do marido lhe dizer que este pretendia sacrificar um dos filhos num ritual de uma sociedade secreta à qual aquele teria aderido.

7. Em setembro de 2019 o marido disse-lhe que ia até à aldeia, e desde então não mais teve contato com ele, encontrando-se o telefone deste desligado. Em 15 de dezembro de 2019 um dos seus filhos foi hospitalizado, durante três dias, até 18 de Dezembro, para cirurgia, sendo então visitada por um amigo do marido que lhe contou que aquele havia aderido a uma sociedade secreta e pretendia sacrificar um dos seus filhos para assim resolver os seus problemas de dinheiro.

8. Face a tal informação, a requerente pediu ajuda a um S., coordenador de uma organização de nome Crianças SOS, que lhe pediu dinheiro para a ajudar a viajar para a Europa e pedir asilo.

9. Em cerca de uma semana vendeu dois terrenos do marido, entregou todo o seu dinheiro ao referido senhor Smith e viajou para a República da Guiné e Senegal, de onde partiu para o Brasil, onde permaneceu dois dias antes de viajar até Portugal, a 28.12.2019.

10. O único perigo que acredita correr na Serra Leoa prende-se com o marido pretender sacrificar um dos seus filhos, sendo que o único indicador de tal ameaça é o testemunho do amigo do marido, em quem acredita pois antes de desaparecer o marido se queixava muito da falta de dinheiro. Teme igualmente o marido caso regresse à Serra Leoa por ter vendido duas terras dele para financiar a sua viagem para a Europa.

11. Não ponderou mudar-se para outro local dentro da Serra Leoa para fugir à ameaça nem tão pouco permanecer ou pedir a proteção num dos vários países por onde transitou por o senhor S. lhe dizer que iria para a Europa pedir asilo.

12. Nunca foi membro de qualquer tipo de organização política, religiosa, militar, étnica ou social no seu país, nem foi alvo de perseguição por motivos relacionados com a raça, nacionalidade, credo religioso, opinião política ou pertença étnica ou a qualquer grupo social. Tão pouco desenvolveu qualquer atividade em favor da democracia, libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana. Declarou ainda não ter quaisquer problemas com as autoridades policiais, judiciais ou com o Estado da Serra Leoa.

13. Analisando as declarações e antes de qualquer outra consideração, sublinhe-se que o relato da requerente ofereceu ao examinador um cenário sem relevância para a matéria de asilo, apenas indica questões não pertinentes ou de relevância mínima para a análise do cumprimento das condições para o reconhecimento do estatuto de refugiado, verificando-se que a requerente fundamenta o seu pedido de proteção numa mera suposição, como se explica adiante.

14. Com efeito, a requerente não indicou ser membro de qualquer tipo de organização política, religiosa, militar, étnica ou social no seu país, nem ter sido alvo de perseguição por motivos relacionados com a raça, nacionalidade, credo religioso, opinião política ou pertença étnica ou a qualquer grupo social. Tão pouco declarou desenvolver ou ter desenvolvido qualquer atividade em favor da democracia, libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana. Declarou ainda não ter quaisquer problemas com as autoridades policiais, judiciais ou com o Estado da Serra Leoa.

15. Das declarações da requerente resulta não se poder considerar fundado o seu temor de perseguição, uma vez que todos os indícios sobre a existência desta se resumirem ao testemunho de uma terceira parte, não tendo sido quaisquer factos directamente percecionados pela requerente. De facto, a requerente não entra em contato com o suposto agente de perseguição, o marido, desde setembro do ano de 2019, desconhecendo por completo o seu paradeiro. Questionada, a cidadã disse ter aceite o testemunho do amigo do marido como verosímil por o seu companheiro ter desaparecido numa altura em que tanto se queixava da falta de dinheiro. Considera-se assim que agiu a cidadã, tendo por base a fundamentação alegada pela mesma, com base numa suposição.

16. Por outro lado, constata-se que a requerente não procurou em ponto algum as autoridades do seu país de nacionalidade, acreditando que estas só agiriam depois do facto consumado, ou seja, quando um dos seus filhos tivesse já sofrido às mãos do progenitor. A requerente não alega a existência de qualquer circunstância alheia à sua vontade que a impossibilitasse de se valer da proteção do seu país de nacionalidade ou que a mesma lhe tenha sido negada. Assim quando a proteção do país da nacionalidade está disponível e não existe nenhum fundamento (fundado receio) para recusá-la, um requerente não necessita de proteção internacional nem é considerado um refugiado.

17. Não obstante, tendo em consideração as orientações do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo - EASO Country of Origin lnformotion Report Methodology, procedeu-se à recolha de informação atual respeitante à situação invocada, mormente quanto à prática de rituais de sacrifício humano na Serra Leoa.

18. Dos relatórios disponíveis e consultados constata-se não surgir, em ponto algum, referência a uma qualquer prática de sacrifício humano naquele país, sendo que a preocupação em torno da atuação das sociedades secretas e cultos tradicionais se mantém sobre a mutilação de genital feminina.

19. De consulta em motor de busca na internet sobre sacrifícios humanos na Serra Leoa surgem vários apontamentos noticiosos sobre indícios de tais práticas, porém, tais estórias mais ou menos alarmistas não são corroboradas, seja por órgãos estatais do país em causa seja por organizações internacionais presentes ou não no terreno.

20. Por outro lado, considera-se ainda pouco credível o processo de fuga do país encetado pela requerente e realizado em menos de uma semana, perante uma tão ténue ameaça, sendo certo que quando fora do seu país de nacionalidade e, presumivelmente, afastada da ameaça alegada, a cidadã não buscou a proteção de qualquer um dos vários países por onde circulou, optando por viajar até à Europa.

21. Afigura-se-nos assim que a requerente se esteja a fazer valer de factos mediatizados sobre o seu país de nacionalidade para justificar a apresentação do seu pedido de protecção internacional, levando a crer que, subjacente a este pedido, estejam outros motivos que não se enquadram nas disposições que regulam o direito de asilo em Portugal. (…)

22. Face ao exposto, constata-se no caso em apreço, não ser notória qualquer medida individual de natureza persecutória, de que tenha sido vítima em consequência de actividade por ela exercida em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

23. De igual modo, também não foi pela requerente invocado receio de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em determinado grupo social, nem foi exercida qualquer atividade individual suscetível de provocar um fundado receio de perseguição, na aceção do artigo 3.2 da Lei n.2 27 /08, de 30/06 com as alterações introduzidas pela Lei n.2 26/2014 de 05.05.

24. Perante o exposto, entende-se que a requerente não apresentou quaisquer factos relacionados com a análise do cumprimento das condições para beneficiar de protecção internacional, pelo que se julga o presente pedido infundado por incorrer na alínea e) do n.º 1, do artigo 19.2, da Lei 27/08, de 30.06, alterada pela Lei n.º 26/14 de 05.05.

8. Da apreciação da admissibilidade da Autorização de Residência por Proteção Subsidiária

(…)

26. Face ao alegado no número anterior, também aqui em sede de análise da autorização de residência por proteção subsidiária, não é de admitir que a requerente, atento o seu caso individual, sinta algum constrangimento na sua esfera pessoal pelas razões que possam levar à concessão de proteção, prevista no regime subsidiário na Lei de Asilo.

27. Das declarações da requerente não se pode concluir que esteve ou pode vir a estar exposto a uma violação grave e sistemática dos seus direitos fundamentais, tornando a sua vida intolerável no seu país de origem. Não indicou qualquer ato persecutório ou ameaças que configurem terem existido situações sistemáticas de violação dos direitos humanos ou de se encontrar em risco de sofrer ofensa grave.

28. Assim pelo exposto, afigura-se que o presente caso não é elegível para a protecção subsidiária, por incorrer na alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27 /08, de 30.06, alterada pela Lei n.2 26/14 de 05.05. (…)”

E. Por despacho de 08.01.2020, exarado sobre a informação melhor identificada na alínea antecedente, a Directora Nacional do SEF determinou o seguinte (cf. cópia do despacho de fls. 75 do processo administrativo):

“(…) De acordo com o disposto na alínea e) do n.º 1, do artigo 19º, e no n.º 4 do art. 24º, ambos da Lei n.º 27 /2008, de 30.06 alterada pela Lei nº 26/2014 de 05.05, com base na informação n.º 1676/GAR/19 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de proteção internacional apresentado pela cidadã que se identificou como T., nacional da Serra Leoa, nascida aos 30.06.1975, infundado. Com base na mesma informação e nos termos das disposições legais acima citadas, considero o pedido de autorização de residência por protecção subsidiária apresentado pela cidadã acima identificada, infundado. A presente decisão é extensiva aos filhos da requerente, todos eles nacionais da Serra Leoa: K., nascido a 17.08.2003, PPI 2268/19; N., nascido a 21.11.2008, PPI 2269/19; D., nascido a 24.07.2010, PPI 2270/19; A., nascido a 03.06.2012, PPI 2271/19 (…)”
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III - Enquadramento jurídico.

Face a estes factos outra solução jurídica não restava para o caso que não fosse a do acto impugnado e da sentença recorrida que o declarou válido e legal.

Importa, antes de mais, transcrever os preceitos legais aqui mais relevantes:

Artigo 3º da Lei nº 27/2008, de 30.06:

“1- É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, em virtude desse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.”

Definindo o n.º 1 do artigo 5.º, da Lei n.º 27/2008, de 30.06, como “actos de perseguição susceptíveis de fundamentar o direito de asilo” os que constituam “pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais” ou se traduzam “num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afectem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.»

Artigo 7º da Lei 27/08:

“1 – É concedida autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.

2 – Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu país de origem, ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.”

No caso, tal como consta da decisão recorrida, o Requerente, ora Recorrente, não provou que tenha sido alvo de perseguição em consequência de actividade por ela exercida em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

Assim como não logrou provar que tenha o fundado receio de ser perseguida ou morta em resultando de um clima de perseguição sistemática contra um grupo de pessoas a que a Requerente pertença ou de violação sistemática dos direitos humanos contra os cidadãos da Serra Leoa.

Também não logrou provar qualquer fundado receio de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas.

Como se refere no acto impugnado, o “único perigo que acredita correr na Serra Leoa prende-se com o marido pretender sacrificar um dos seus filhos, sendo que o único indicador de tal ameaça é o testemunho do amigo do marido, em quem acredita pois antes de desaparecer o marido se queixava muito da falta de dinheiro. Teme igualmente o marido caso regresse à Serra Leoa por ter vendido duas terras dele para financiar a sua viagem para a Europa”.

A que acresce o facto, também mencionado no acto impugnado, de não ter ponderado “mudar-se para outro local dentro da Serra Leoa para fugir à ameaça nem tão pouco permanecer ou pedir a proteção num dos vários países por onde transitou por o senhor Smith lhe dizer que iria para a Europa pedir asilo”.

Termos em que se impõe manter a decisão recorrida e, com ela, o acto impugnado, a negar ao Recorrente o direito de asilo ou, alternativamente, uma autorização de residência por protecção subsidiária, dado não terem incorrido na violação de lei que a ora Recorrente aponta, do disposto nos n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º, o n.º 1 e a al. b), do n.º 2 do artigo 7.º e o n.º 3 do artigo 18.º, todos da Lei 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 05 de Maio (Lei do Asilo), ou qualquer outra norma legal aplicável.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.

Não é devida tributação - artigo 84º da Lei nº 27/08, 30.06.
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Porto, 19.06.2020



Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Frederico Branco