Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01261/23.2BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/11/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rosário Pais
Descritores:RAC;
VENDA;
INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA QUE DETERMINA A APLICAÇÃO DO FIM DO PRAZO DE CADUCIDADE DO REGISTO DE PENHORA AOS REGISTOS JÁ EM VIGOR;
Sumário:
I – O princípio constitucional da proibição da retroatividade das leis fiscais aplica-se apenas aos impostos, com exclusão das outras figuras tributárias (taxas e contribuições financeiras).

II – Uma vez que o artigo 32º do Decreto-Lei nº 116/2008 não versa sobre impostos, não cabe na previsão dos artigos 103º, nº 3, da CRP e 12º, nº 1 da LGT.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:


1. RELATÓRIO
1.1. «AA», devidamente identificado nos autos, vem recorrer da sentença proferida em 12.10.2023 no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pela qual foi julgada improcedente a reclamação apresentada contra o ato de marcação da venda judicial nº ......3.18, praticado no âmbito do processo de execução fiscal nº ...85 instaurado pelo Serviço de Finanças ....

1.2. O Recorrente terminou as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
«a) Inconformado com a respeitável decisão judicial que julgou improcedente a reclamação de ato do órgão de execução fiscal apresentada contra a decisão de marcação de venda judicial de imóvel identificado pelo sito na Rua ..., ..., ..., ..., artigo matricial ...49..., penhorado no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...85, no valor de 98.349,69 €, faz o Recorrente subir à esclarecida apreciação e decisão de V. Exas. os motivos da sua não conformação com o sentenciado.
b) O presente recurso da decisão de reclamação de ato do órgão de execução fiscal é relativo aos vícios de inconstitucionalidade da norma que determina a aplicação do fim do prazo de caducidade do registo de penhora aos registos já em vigor.
c) Entende o Tribunal a quo que o registo de penhora n.º 2..., de 26/01/2007, não caducou, uma vez que, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, o fim da aplicação às penhoras do prazo de caducidade do registo foi positivado, sendo essa alteração aplicável aos registos de penhora em curso, pelo que, no caso do Recorrente, dado que à penhora deixou de se aplicar o prazo de caducidade do registo previsto no artigo 12.º, n.º 1, do Código do Registo Predial.
d) Nos termos do artigo 1.º, do Código do Registo Predial, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, pelo que o registo predial de um determinado facto tem efeito declarativo.
e) O princípio constitucional da segurança jurídica, enquanto corolário do princípio do Estado de Direito previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.
f) Nesse sentido, o princípio da retroatividade fiscal, enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, encontra-se materializado tanto no art.º 103, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, como no art.º 12, n.º 1 da Lei Geral Tributária, que estabelece que “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer tributos retroativos.”
g) Encontra consagração constitucional expressa a proteção dos contribuintes contra a retroatividade da lei fiscal, que é, consequentemente, materializada em legislação ordinária.
h) No caso em apreço, o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, que veio alterar a redação do artigo 12.º, do Código do Registo Predial, aplicando a exclusão do ato de penhora da lista de atos cujo registo esteja sujeito a prazo de caducidade aos atos de penhora já em vigor, é notoriamente, uma norma com fortes implicações fiscais, como é patente no caso concreto.
i) A penhora constituída na vigência da redação anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 116/2008, cujo regime previa um prazo de caducidade de 10 anos para o seu registo, passou a estar abrangida pelo novo regime, mais gravoso para o sujeito passivo, no qual o registo de penhora deixou de poder caducar.
j) Esta norma fere o princípio da retroatividade fiscal e da segurança jurídica, revelando-se inconstitucional.
k) A norma prevista artigo 32.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 116/2008, é antagónica aos pilares da aplicação da lei no tempo do direito fiscal, uma vez que dispõe que, relativamente a factos que ocorreram durante a vigência de um determinado regime legal, se aplica um regime diferente, e, neste caso, mais gravoso, do que aquele que se encontrava em vigor, pelo que, não sendo a norma em si de natureza eminentemente tributária, a mesma tem fortes implicações no ordenamento jurídico-tributário.
l) Se a norma em questão implica que, em vez de o registo de penhora caducar no prazo de 10 anos, o registo deixar de estar sujeito a qualquer prazo de caducidade, tal significa que a Autoridade Tributária pode penhorar o imóvel e negligenciar por completo o processo de venda do judicial, ao invés de ter um prazo dentro do qual deverá diligenciar no sentido de alienar o imóvel penhorado, sob pena de o registo de penhora caducar, o que obrigaria a Autoridade Tributária a proceder a novo registo; o que aconteceu no caso sob apreço.
m) Sem a “urgência” de cumprimento de um prazo para a venda do imóvel penhorado, a Autoridade Tributária beneficia de uma espécie de eternização no tempo do registo da penhora, o que lhe permite negligenciar o processo de venda judicial do imóvel, fruto da ausência da pressão associada à existência de um prazo para realizar novo registo da penhora.
n) Enquanto tal sucede, é o sujeito passivo, neste caso o ora Recorrente, que se vê confrontado com o arrastar dessa situação, nada podendo fazer para o contrariar, pois não caducando o registo, a Autoridade Tributária pode “dar-se ao luxo” de negligenciar o processo de venda judicial do imóvel penhorado, limitando-se o sujeito passivo, ora executado, a ter de aguardar pelo momento em que a Autoridade Tributária decidisse que estaria interessada em alienar o imóvel penhorado.
o) Este perdurar no tempo do registo da penhora, removendo por completo do panorama dos processos de vendas judiciais de imóveis o fator de pressão temporal para a Autoridade Tributária proceder à venda do imóvel, sob pena de ter de proceder a novo registo de penhora, tem um efeito persecutório no sujeito passivo, neste caso o Recorrente, que vê como constantemente iminente e de conclusão incerta todo o procedimento de venda do imóvel.
p) Fica evidente que a presente alteração legislativa que introduziu o artigo 32.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 116/2008, introduziu um regime mais gravoso que o regime aplicável à data dos factos.
q) A introdução no ordenamento jurídico de uma norma que comporta a aplicação de um regime legal de impacto tributário mais gravoso do que aquele que vigorava à data em vigor do facto constitui uma violação do princípio da retroatividade fiscal.
r) Constituindo esta alteração legislativa uma violação do princípio da retroatividade fiscal, materializado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, é evidente que o artigo 32.º n.º 3, do Decreto-Lei n.º 116/2008, se encontra ferido de inconstitucionalidade.
s) O presente recurso deve ser julgado procedente, com a consequente anulação da decisão a quo e a anulação do despacho de marcação da venda judicial do imóvel.
Nestes termos e com o Douto suprimento de V. Exas. impõe-se o provimento do recurso da decisão judicial recorrida, com vista à anulação da mesma, por padecer do vício de inconstitucionalidade da aplicação do artigo 32.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 116/2008.
Assim julgando farão V. Exas., como sempre aliás, boa e inteira Justiça.».

1.3. A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.4. O DMMP junto deste TCAN teve vista dos autos e emitiu parecer no sentido da improcedência deste recurso, aderindo na integra à fundamentação da sentença recorrida.
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Dispensados os vistos legais, nos termos do artigo 36º, nº 2, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.

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2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Uma vez que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, cumpre apreciar e decidir se a sentença enferma de erro de julgamento ao considerar que não ocorreu a caducidade do registo da penhora efetuado pela apresentação nº 2..., de 26/01/2007.

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
3.1.1. Factualidade assente em 1ª instância
A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
«Com relevo para a decisão a proferir nos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Em 17/11/2004 o Serviço de Finanças ... instaurou contra «AA», NIF ...52, aqui reclamante, o processo de execução fiscal n.º ...40, para cobrança coerciva de dívidas provenientes de IRS do ano de 2003 e respetivos juros compensatórios, no montante global de 24.890,83 € e acrescido legal - cfr. fls. 448/453 (SITAF).
B) Em 22/05/2005 o Serviço de Finanças ... instaurou contra o aqui reclamante, o processo de execução fiscal n.º ...85, para cobrança coerciva de dívidas provenientes de IRS do ano de 2002 e respetivos juros compensatórios, no montante global de 98.349,69 € e acrescido legal - cfr. fls. 454/460 (SITAF).
C) Em 14/06/2005 o Serviço de Finanças ... instaurou contra o aqui reclamante, o processo de execução fiscal n.º ...99, para cobrança coerciva de dívidas provenientes de IVA do 3.º trimestre de 2001 e do ano de 2002 e respetivos juros compensatórios, no montante global de 466.969,14 € e acrescido legal - cfr. fls. 461/467 (SITAF).
D) Em 28/07/2005 o Serviço de Finanças ... instaurou contra o aqui reclamante, o processo de execução fiscal n.º ...65, para cobrança coerciva de dívidas provenientes de IRS do ano de 2000 e respetivos juros compensatórios, no montante global de 15.682,32 € e acrescido legal - cfr. fls. 468/474 (SITAF).
E) Pelo ofício n.º ...81, datado de 17/04/2006, expedido por correio registado com aviso de receção assinado o aqui reclamante foi citado para o processo de execução fiscal n.º ...85, a que se alude na alínea B) supra - cfr. fls. 22/23 (SITAF).
F) Em 26/01/2007, pela apresentação n.º 2..., foi registada na Conservatória do Registo Predial, a favor da Fazenda Nacional, penhora sobre a fração autónoma designada pelas letras ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de sob o n.º ...42/20010622-.., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...49, para garantia da quantia exequenda de 118.819,42 € - cfr. fls. 26/32 (SITAF).
G) Em 04/12/2008 pela apresentação n.º 7..., foi registada na Conservatória do Registo Predial, a favor da Fazenda Nacional, penhora sobre a fração autónoma designada pelas letras ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de sob o n.º ...42/20010622-.., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...49, para garantia da quantia de 921.259,11 € sob cobrança coerciva no processo de execução fiscal n.º ...40 - cfr. fls. 26/32 (SITAF).
H) O processo de execução fiscal n.º ...99 encontra-se extinto, por prescrição, desde 12/03/2014 - cfr. fls. 461/467 (SITAF).
I) O processo de execução fiscal n.º ...40 encontra-se extinto, por prescrição, desde 06/03/2014 - cfr. fls. 448/453 (SITAF).
J) O processo de execução fiscal n.º ...65 encontra-se extinto, por prescrição, desde 11/05/2023 - cfr. fls. 468/474 (SITAF).
K) Em 22/05/2023, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...85, o Chefe do Serviço de Finanças determinou a marcação para o dia 04/07/2023, da venda judicial (n.º ......3.18) da fração autónoma designada pelas letras ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de sob o n.º ...42/20010622-.., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...49 - cfr. fls. 35/37 (SITAF).
L) Pelo ofício n.º ..., expedido por correio registado com aviso de receção assinado em 29/05/2011, o aqui reclamante foi notificado do despacho mencionado na alínea anterior - cfr. fls. 38/40 (SITAF).
M) Em 12/06/2023 foi remetida ao Serviço de Finanças ..., por correio registado, a petição inicial que deu origem aos presentes autos de reclamação judicial - cfr. fls. 1/19 (SITAF).
N) A fração autónoma designada pelas letras ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de sob o n.º ...42/20010622-.., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...49, tem o valor patrimonial tributário de 152.861,17 € - cfr. fls. 26/27 (SITAF).
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada resultou do exame crítico dos documentos e informações constantes dos autos, os quais não foram impugnados, tudo conforme se encontra especificado em cada uma das alíneas do probatório.».


3.2. DE DIREITO
O Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo, por entender, em síntese resumida, ser inconstitucional a norma segundo a qual a não caducidade do registo de penhora é aplicável aos registos já existentes.
Vejamos, antes do mais, a fundamentação jurídica que sustenta a sentença sob escrutínio:
«Como emerge do probatório, na ... Conservatória de Registo Predial de encontram-se pendentes, entre outras inscrições que para aqui não relevam, duas penhoras registadas a favor da Fazenda Pública sobre a fração autónoma designada pelas letras ... do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de sob o n.º ...42/20010622-.. e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...49.
Com efeito, pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2007 foi registada uma penhora para garantia da quantia exequenda no valor de 118.819,42 € (cfr. alínea F) dos factos provados) e pela apresentação n.º 7..., de 04/12/2008, foi registada uma penhora para garantia da quantia de 921.259,11 € (cfr. alínea H) dos factos provados).
A Fazenda Pública sustenta que a penhora que deu origem à venda agora contestada foi a penhora registada pela apresentação n.º 7..., de 14/12/2008, e não a penhora que foi registada pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2007, a qual já foi levantada por despacho de 31/12/2014.
Ora, face à factualidade vertida no probatório, temos dúvidas de que assim seja, não só porque o registo da penhora efetuado pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2007 continua pendente, mas também porque de acordo com o registo predial a penhora registada pela apresentação n.º 7..., de 14/12/2008 foi efetuada apenas no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...40 (extinto, por prescrição desde 06/03/2014), não existindo qualquer evidência de que o processo n.º ...85, a que os presentes autos se reportam, em algum momento tivesse sido apensado àquele, nem sendo feita qualquer menção no respetivo registo ao processo de execução fiscal n.º ...85.
Seja como for, assumindo-se que a penhora que deu origem à venda determinada pelo despacho reclamado é a que se encontra registada na ... Conservatória do Registo Predial de pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2007, como acima enunciado, a questão essencial a decidir e onde radica a controvérsia entre as partes, prende-se com os efeitos da alegada caducidade do registo da penhora no prosseguimento do processo de execução fiscal, designadamente para efeitos de venda judicial do imóvel penhorado.
De acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, na redação anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho, “Caducam decorridos 10 anos sobre a data dos registos de hipoteca judicial, arresto ou penhora, de qualquer valor, os registos de hipoteca voluntária ou legal, de penhor legal, de penhor e de consignação de rendimentos, de valor não superior a (euro) 2493,99, e os registos de apreensão, arrolamento e outras providências cautelares” (sublinhado e destacado nossos).
Com a entrada em vigor do citado Decreto-Lei n.º 116/2008, em 21/07/2008 (cfr. n.º 1 do artigo 36.º deste diploma), o n.º 1 do artigo 12.º do Código do Registo Predial passou a ter a seguinte redação: “Caducam decorridos 10 anos sobre a sua data os registos de hipoteca judicial de qualquer valor e os registos de hipoteca voluntária ou legal, de penhor e de consignação de rendimentos, de valor não superior a (euro) 5000.” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho, preceitua o seguinte:
1 - As normas aprovadas pelo presente decreto-lei que alterem prazos previstos no Código do Registo Predial são apenas aplicáveis aos registos ou procedimentos requeridos a partir da data da sua entrada em vigor.
2 - As normas que ampliem prazos de caducidade aplicam-se imediatamente aos prazos em curso.
3 - O disposto no número anterior aplica-se aos registos em que deixe de haver prazo de caducidade.”.
Ora, face à nova redação do n.º 1 do artigo 12.º do Código de Registo Predial, os registos de penhoras deixaram de estar sujeitos a qualquer prazo de caducidade. De facto, não houve qualquer alteração (ampliação ou redução) do prazo de caducidade do registo da penhora, pois tal ato simplesmente deixou de estar sujeito a prazo de caducidade, como claramente resulta do teor da norma que deixou de fazer qualquer referência à penhora.
Tal significa que as alterações introduzidas pelo aludido Decreto-Lei n.º 116/2008 quanto aos prazos de caducidade aplicam-se imediatamente aos prazos em curso, por força do n.º 3 do artigo 32.º deste Decreto-Lei n.º 116/2008, que remete para o n.º 2 do mesmo diploma.
Por essa razão, não acompanhamos a argumentação do reclamante quanto à aplicação do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de julho, segundo a qual a nova redação do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Registo Predial apenas se aplica aos registos ou procedimentos requeridos a partir da data da sua entrada em vigor, pois o legislador consagrou disposições específicas quanto aos prazos de caducidade dos registos, prevendo expressamente que as alterações introduzidas se aplicam imediatamente aos registos em que deixe de haver prazo de caducidade, o que se verifica relativamente aos registos de penhora.
Assim, considerando o disposto no n.º 3 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, aplicando-se imediatamente a nova redação dada ao n.º 1 do artigo 12.º do Código do Registo Predial, da qual resulta que o registo da penhora deixou de estar sujeito a qualquer prazo de caducidade, é imperioso concluir que o registo da penhora efetuado pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2017 não caducou.
De qualquer modo, ainda que, por mera hipótese, se entendesse que tal registo caducou em 26/01/2017, como defende o reclamante, não se pode confundir o registo da penhora com o próprio ato de penhora.
Com efeito, no processo de execução fiscal, em consonância com o princípio da indisponibilidade do crédito tributário vertido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 36.º da LGT, o levantamento da penhora e cancelamento do registo apenas resultam do pagamento voluntário, do pagamento coercivo ou da anulação da dívida de que resultará a extinção da execução (cfr. artigos 235.º, n.º 1, 260.º e 271.º, todos do CPPT).
Nesse sentido, veja-se o acórdão do TCAS de 11/02/2021, processo n.º 1099/12.2BELRA, cujo sumário se passa a transcrever:
I - O ato ofensivo que constitui o objeto do processo de embargos de terceiro é o ato de penhora do imóvel e não o seu registo predial, já que este não tem efeito constitutivo.
II – O ato de penhora de imóveis implica uma efetiva apreensão do bem que se tira da posse do executado.
III - A caducidade do registo não levanta automaticamente a penhora, mantendo-se essa efetiva apreensão ainda que sem registo válido que a suporte.
IV – No processo tributário, o levantamento da penhora e o cancelamento do registo apenas resultam do pagamento voluntário, do pagamento coercivo ou da anulação da dívida de que resultará a extinção da execução, nos termos dos artigos 235.º, n.º 1, 260.º e 271.º do C.P.P.T. como corolário do princípio da indisponibilidade do crédito tributário consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 36.º da LGT.”.
Portanto, na senda do entendimento vertido no citado acórdão, que aqui se acolhe, ainda que se considerasse que o registo da penhora efetuado pela apresentação n.º 2..., de 26/01/2007, caducou em 26/01/2017, o ato de penhora, cuja validade não é posta em causa, subsiste, mesmo sem registo válido que a sustente, não obstando a alegada caducidade do registo (e não da penhora) ao normal prosseguimento do processo de execução fiscal.
Pelas razões explanadas, impõe-se concluir pela improcedência da presente reclamação judicial, mantendo-se o ato reclamado na ordem jurídica.».
Vem agora o Recorrente arguir a inconstitucionalidade da norma que determina a aplicação do fim do prazo de caducidade do registo de penhora aos registos já em vigor, constante do artigo 32º, do Decreto-Lei nº 116/2008, sustentada no entendimento de que, por ter implicações na penhora realizada no processo de execução fiscal contra si instaurado, está abrangida pelo princípio da irretroatividade das normas tributárias.
Efetivamente, o artigo 12º, nº 1, da Lei Geral Tributária estatui que que “[a]s normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos”.
Cabe, então, definir o conceito de “norma tributária” para efeito de aplicação deste normativo, tendo presente que este visa sagrar na legislação ordinária o princípio que ficou plasmado no artigo 103º, nº 3, da CRP, na redação decorrente da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro.
Assim, há que ter presente a interpretação que o Tribunal Constitucional faz desta última norma, para o que, desde logo, releva a distinção entre retroatividade própria ou autêntica e retroatividade inautêntica.
A primeira traduz-se na aplicação da lei nova a factos tributários verificados antes do início da sua vigência; a segunda consiste na aplicação da lei nova a factos tributários duradouros, em curso quando a lei nova inicia a sua vigência.
Em jurisprudência consolidada, o Tribunal Constitucional tem interpretado o princípio com o sentido de que:
- a proibição constitucional apenas abrange a retroatividade autêntica, sendo os casos de retroatividade inautêntica tutelados à luz do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático — artigo 2° CRP;
- o princípio constitucional aplica-se apenas aos impostos, com exclusão das outras figuras tributárias (taxas e contribuições financeiras); para estas, mesmo perante uma situação de retroatividade autêntica, a apreciação da conformidade constitucional das normas deverá ter como parâmetro o princípio da tutela da confiança e da segurança jurídica (acórdãos Tribunal Constitucional nºs 287/90, 30 outubro 1990; 128/2009, 12 março 2009; 399/10, 27 outubro 2010 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Resulta, portanto, claro que o princípio da proibição da retroatividade das leis fiscais abrange, tão somente, os impostos, excluindo outras figuras tributárias e, por maioria de razão, quaisquer normas com “implicações tributárias”.
Nesta senda, cai por terra a tese do Recorrente, porquanto, desde logo, a norma cuja conformidade à nossa Lei Fundamental aqui se discute (artigo 32º do Decreto-Lei nº 116/2008) não está abrangida pelo princípio consagrado nos artigos 103º, nº 3 da CRP e 12º, nº 1, da LGT.

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Assim, preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I – O princípio constitucional da proibição da retroatividade das leis fiscais aplica-se apenas aos impostos, com exclusão das outras figuras tributárias (taxas e contribuições financeiras).
II – Uma vez que o artigo 32º do Decreto-Lei nº 116/2008 não versa sobre impostos, não cabe na previsão dos artigos 103º, nº 3, da CRP e 12º, nº 1 da LGT.

5. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, que aqui sai vencido, nos termos do artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Porto, 11 de janeiro de 2024

Maria do Rosário Pais – Relatora
Ana Cristina Gomes Marques Goinhas Patrocínio – 1ª Adjunta
Cláudia Almeida – 2ª Adjunta