Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00020/10.7BECBR-A
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/13/2014
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:SIGILO BANCÁRIO
INCIDENTE
Sumário:I) Tendo-se decidido, no tribunal a quo, pela legitimidade e pela justificação da recusa da identificada instituição bancária, uma eventual quebra do sigilo bancário a decidir por este TCAN, a justificar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário, passaria pelo entendimento de que os elementos bancários, em causa, se mostrariam indispensáveis à descoberta material dos factos em questão na Impugnação judicial deduzida, e nessa medida interessariam à realização da justiça, devendo sobrepor-se ao interesse particular do cliente da instituição bancária, tais como a reserva à vida privada bem como das relações de confiança que se estabelecem entre as entidades bancárias e os respectivos clientes, de acordo com o princípio da prevalência dos interesses preponderantes.
II) Considerando que, nos presentes autos de impugnação de liquidações de IRC, em que a fiscalização tributária concluiu que a maior parte da facturação se configurava como fictícia por não corresponder a efectivas operações comerciais e tendo a Impugnante solicitado a remessa de cópias de cheques bancários de que possa depreender-se, eventualmente, pela realidade dessas operações materiais, os elementos bancários, em questão, mostram-se indispensáveis à descoberta material dos factos, objecto da impugnação judicial, e nessa medida interessarem à realização da justiça, devendo sobrepor-se aos interesses particulares assinalados.
III) Estabelecendo-se uma ponderação de interesses, ente os interesses públicos e privados, em presença, segundo critérios de proporcionalidade, decidindo-se no sentido da prevalência dos primeiros em detrimentos dos segundos, em consequência, deve determinar-se uma quebra ou o levantamento do sigilo bancário.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:L...
Recorrido 1:Banco... e Fazenda Pública
Decisão:Determinado o levantamento do sigilo bancário
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

No processo de impugnação judicial supra identificado, intentado por L... (na qualidade de responsável subsidiária) contra os actos de liquidação de IRC dos exercícios de 2003, 2004, 2005 e 2006, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra solicitou a diversas instituições bancárias a entrega de documentos e a prestação de informações bancárias, designadamente extractos bancários e cópias de cheques, a requerimento da Impugnante.
Na sequência da escusa de uma dessas instituições [Banco ..., S.A.], fundamentada no dever de sigilo a que estão obrigadas, o Tribunal a quo decidiu, após acórdão deste tribunal, que a escusa era legítima, pelo que o Juiz determinou a remessa dos autos a este Tribunal Central Administrativo Norte, pedindo a sua superior ponderação na resolução do incidente, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 2 e 3 do 135.º do Código de Processo Penal.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o parecer de fls. 33 e 34 dos autos, no sentido do deferimento da pretendida quebra do sigilo bancário.
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Sem novos vistos aos actuais meritíssimos juízes adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.



II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO PROCESSSO - QUESTÕES A APRECIAR

A questão suscitada nos autos prende-se com a intervenção deste Tribunal Superior no sentido de emitir pronúncia quanto à quebra do sigilo bancário, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal, ou seja, saber se para a realização da justiça será realmente necessário, em concreto, determinar o levantamento do segredo profissional (bancário) e o banco ser obrigado a enviar as informações pretendidas.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Com interesse para a decisão do presente Incidente, considera-se apurada a seguinte factualidade:
A – Na Impugnação judicial em causa instaurada contra os actos de liquidação de IRC referentes aos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006, no montante global €25.760,52, vem peticionada a anulação dos actos tributários impugnados, com todas as consequências legais, com fundamento em: (i) falta de demonstração de factos susceptíveis de ilidir a presunção da veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e respectivos documentos de suporte, quanto às correcções técnicas (ii) falta de idoneidade do método de quantificação utilizado pela administração fiscal, na parte das correcções técnicas efectuadas; (iii) inobservância do dever de fundamentação; (iv) erro nos pressupostos de facto e de direito dos actos tributários, quanto às correcções feitas através métodos indirectos.
B - As liquidações impugnadas tiveram origem na acção de inspecção levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Coimbra, cujo relatório final se encontra a fls. 65 a 83 dos presentes autos e no qual se concluiu pela existência de indícios de que a maior parte da facturação dos anos (2003 a 2006) era fictícia, não correspondendo a efectivas operações comerciais, mas antes a operações simuladas.
C - Na parte referente à prova, além da indicação de testemunhas, a impugnante requereu ainda que, com referência à devedora originária M... - Comércio de Sucatas, Lda, fossem oficiadas: (i) a CCAM de Coimbra para remeter os extractos bancários daquela sociedade, com a referência a todas as contas de que a mesma era titular entre as datas de 1.4.2003 a 31.12.2005; (ii) o Millenium BCP para remeter os extractos bancários da referida sociedade, com a referência a todas as contas de que a mesma era titular entre as datas de 1.4.2003 a 31.12.2005; (iii) as entidades bancárias identificadas no documento A junto à impugnação, para remeterem cópias dos cheques aí identificados (cf. fls. 1 a 33 e 110 a 112 dos autos);
D - Dando provimento ao pedido, por despacho datado de 30.04.2013, foram solicitados os elementos referidos na alínea anterior, sendo endereçados ofícios datados de 03.05.2013, entre outros, ao Banco ..., S.A. indicado na lista referida no documento da alínea anterior (cf. fls. 188, 190 a 193 dos autos);
E - Por ofício datado de 15.05.2013 veio o banco referido na alínea anterior dar conta que não poderia prestar as informações solicitadas ao abrigo do disposto nos artigos 78.º e 79º do RGICSF, excepto se houvesse consentimento dos titulares da respectiva conta (cf. fls. 202 dos autos);
F - Em 27.05.2013 veio a Impugnante, através do seu Advogado, pedir que a entidade bancária supra referida fosse dispensada do sigilo bancário (cf. fls. 269 a 275 dos autos).
G - Notificada a Impugnada do requerimento precedente, nada veio dizer (cf. fls. 277 e 278 dos autos).
H - Por despacho de 21.03.2014, o TAF de Coimbra julgou legítima a escusa referida, por considerar que os elementos pedidos dizem respeito a movimentos de conta de terceiro, que não é sequer parte nos autos, inexistindo conhecida autorização para aceder à informação solicitada. Esta diz respeito a documentos que titulam operações da citada conta, tendo o referido tribunal entendido poder bulir com o regime do dever de segredo constante dos artigos 78.º e 79.º do RGICSF, pois o cheque, enquanto título de crédito relativo a movimento bancário e sujeito a desconto, constitui um documento que titula uma operação bancária e, nos termos do n.º 2 do artigo 78.º do RGICSF, está sujeito a sigilo (cf. fls. 26 e 27 do presente incidente).

2. O Direito

No presente incidente está em causa a escusa do Banco ..., S.A. em fornecer cópias de cheques emitidos pela M…– Comércio de Metais, Lda. à M... – Comércio de Sucatas, Lda., solicitados pelo Tribunal a quo (a requerimento da impugnante), invocando para o efeito o dever de segredo profissional.

Já numa fase prévia, em apreciação deste mesmo incidente, se efectuou o enquadramento jurídico da questão como segue:
«Em matéria de sigilo bancário dispõem os art.s 519° e 618° do C. Proc. Civil e 182° e 135° do CPP, o seguinte:
“Art. 519.º
(Dever de cooperação para a descoberta da verdade)
1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2. Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n° 2 do art. 344.° do Código Civil.
3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n° 4.
4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Art. 618º
(Recusa legítima a depor)
3. Devem escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se neste caso o disposto no n°4 do artigo 519.°.
Art. 182.°
(Segredo profissional ou de funcionário e segredo de Estado)
1 - As pessoas indicadas nos artigos 135.° a 137. ° apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
2 - Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 135. °, n.º 2 e 3, e 136. °, n.º 2. 3 - Se a recusa se fundar em segredo de Estado, é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 137. °, n.º 3.
Art. 135.°
(Segredo profissional)
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de Instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso.
5 - Nos casos previstos nos n. °s 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.”»

Ora, sobre esta matéria, e por referência a factualidade essencialmente idêntica, este Tribunal tomou já posição nos termos dos Acórdãos de 18-04-2012, Proc. n.º 77/10.0BECBR-A, de 19-05-2011, Proc. n.º 69/10.0BECBR-A e de 13/03/2014, Proc. n.º 39/10.8BECBR-A, aqui se acompanhando a sua fundamentação e segmento decisório:

«O segredo profissional invocado nestes autos pelas instituições bancárias a quem foram solicitados os elementos referidos vem regulado nos artigos 78º e 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGISSF), aprovado pelo DL nº 298/92 de 31/12 (com alterações introduzidas pelo DL nº 246/95 de 14/9, DL nº 232/96 de 5/12, DL nº 229/99 de 22/7, DL nº 250/2000 de 13/10, DL nº 285/2001 de 3/11, DL nº 201/2002 de 26/9, DL nº 319/2002 de 28/12, DL nº 252/2003 de 17/10, DL nº 145/2006, de 31/7, DL nº 104/2007, de 3/4, DL nº 357-A/2007, de 31/10, DL nº 1/2008 de 3/1, DL nº 126/2008, de 21/7, DL nº 211-A/2008, de 3/11, Lei nº 28/2009, de 19/6, DL nº 162/2009, de 20/7, Lei nº 94/2009, de 1/9, DL nº 317/2009, de 30/10, DL nº 52/2010, de 26/5, DL nº 71/2010, de 18/6, Lei nº 36/2010, de 2/9, DL nº 140-A/2010, de 30/12 e Lei nº 46/2011, de 24/6 e DL nº 88/2011, de 20/7).
Os referidos artigos 78º e 79º do RGISSF contêm as regras que definem o dever de segredo, os seus destinatários, as excepções e as sanções pela sua violação, estando abrangidos pelo segredo bancário os factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações destas com os seus clientes (artigo 78º, nº 1), designadamente, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias (artigo 78º, nº 2).
O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: (i) por um lado, um interesse de ordem pública, o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança; (ii) por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma a que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa - cfr. acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 2/2008, de 13/2/2008, publicado no DR 1ª Série, n.º 63, de 31/3/2008, páginas 1879 e seguintes.
Porém, dado o segredo bancário não constituir um fim em si mesmo, nem sequer um valor absoluto, a lei prevê diversas situações em que o mesmo pode ser derrogado em face de outros interesses públicos ou privados. Por isso, no artigo 79º do RGICSF, estão previstas excepções ao dever de sigilo: (i) autorização do cliente (nº 1); (ii) no âmbito dos poderes de supervisão e de controlo dos riscos [alíneas a) a c) do nº 2]; (iii) nos termos da lei penal e de processo penal [alínea d) do nº 2]; (iv) quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo [alínea e) do nº 2].

Daí que, embora o nº 1 do artigo 519º do CPC imponha a todas as pessoas (sejam ou não partes na causa) o dever de cooperação com o Tribunal para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que lhes for requisitado e praticando os actos que lhe forem determinados, segundo a alínea c) do nº 3 desse normativo seja legítima a recusa de colaboração com o tribunal se a obediência importar violação do sigilo profissional - o segredo bancário constitui uma modalidade de sigilo profissional - ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado. Isto, sem prejuízo do disposto no nº 4, que preceitua que uma vez deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
À escusa em processo penal com o fundamento de segredo profissional, aplicável in casu, reporta-se o artigo 135º do Código de Processo Penal. Ora, de acordo com o disposto neste normativo (aplicável por força do disposto neste artigo 519º, nº 4 do Código de Processo Civil), tendo sido invocada escusa pela entidade bancária para fornecer os elementos solicitados, colocam-se duas hipóteses: (a) a autoridade judiciária tem dúvidas quanto à legitimidade da escusa e, neste caso, procede às averiguações necessárias e se, depois dessas averiguações e de ultrapassadas as dúvidas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ouvido o organismo representativo da profissão, decide, ordenando a prestação da informação; (b) a autoridade judiciária aceita a validade da escusa e, no caso de entender, apesar da legitimidade da escusa, serem indispensáveis os elementos recusados, pede ao tribunal superior (o competente para o efeito) que determine que sejam fornecidos os elementos pretendidos, com quebra do segredo profissional.
No presente caso, perante a escusa das entidades bancárias em apreço em fornecer os elementos solicitados, o Tribunal de 1ª Instância entendeu que havia o dever de segredo profissional das entidades bancárias às quais tinham sido pedidos elementos e, por isso, considerou legítima tal escusa. Todavia, como resulta do despacho proferido e junto a fls. 172 a 177 do presente incidente, entendeu ainda que o segredo bancário não deveria prevalecer sobre o interesse preponderante da realização da justiça, por os elementos em causa serem indispensáveis à descoberta da verdade material. (…)»
No caso de uma instituição de crédito (rectius, dos funcionários ou administradores dessa instituição) se escusar a prestar uma informação que lhe foi solicitada pelo tribunal administrativo e fiscal no âmbito de um processo de impugnação judicial com fundamento no segredo bancário a que está obrigada (cf. art. 78.º, n.º 2, do RGICSF) - o segredo bancário constitui uma modalidade de sigilo profissional - deve o juiz desse tribunal, antes do mais, decidir se tal escusa é ou não legítima, ou seja, se estão ou não verificados os pressupostos que permitem àquela instituição escusar-se legalmente a prestar tal informação sendo que, somente, no caso de decidir que a escusa é legítima e está justificada deverá suscitar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário (cfr. artºs 135.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, 519º, nº 4 do CPC ex vi do art. 2.º, alínea e) do CPPT).
Inicialmente, o tribunal a quo não havia tomado posição acerca da legitimidade da escusa, pelo que este tribunal, por acórdão prolatado em 13/12/2013, não conheceu o incidente suscitado, ressalvando o facto de o mesmo poder voltar a ser promovido, em cumprimento das condições nele identificadas – cfr. fls. 8 a 17 do presente incidente.
Contudo, neste momento, regularizada a situação, como ficou delimitado, a questão que se nos coloca e que importa decidir é a de saber se para a realização da justiça será realmente necessário, em concreto, determinar o levantamento do segredo profissional (bancário) e o banco ser obrigado a enviar as cópias dos cheques pretendidas – cfr. artigo 135º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal e artigo 519º, nº 4 do Código de Processo Civil [ex vi artigo 2º, alínea e) do CPPT].
Efectivamente, tendo sido proferida decisão pelo tribunal a quo, nos termos da qual julgou a recusa da instituição bancária legítima e justificada, ao abrigo do dever de sigilo bancário, cumpre ao Tribunal Superior decidir da quebra do sigilo bancário, de acordo com a prevalência dos interesses preponderantes.
Tendo-se decidido, no tribunal a quo, pela legitimidade e pela justificação da recusa da identificada instituição bancária, uma eventual quebra do sigilo bancário a decidir por este TCAN, a justificar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário, passaria pelo entendimento de que os elementos bancários, em causa, se mostrariam indispensáveis à descoberta material dos factos em questão na Impugnação judicial deduzida, e nessa medida interessariam à realização da justiça, devendo sobrepor-se ao interesse particular dos clientes das instituições bancárias, tais como a reserva à vida privada bem como das relações de confiança que se estabelecem entre as entidades bancárias e os respectivos clientes, de acordo com o princípio da prevalência dos interesses preponderantes.
Reproduzindo uma “breve nota quanto aos interesses tutelados”, o segredo bancário visa tutelar:
«-interesses públicos, que têm a ver com o regular funcionamento da actividade bancária, sendo que o segredo contribui para a criação de um clima de confiança fundamental para o correcto e regular funcionamento da actividade creditícia, em especial, no domínio do incentivo ao aforro e
- interesses privados, sendo estes dos clientes, que têm interesse na reserva ou discrição relativamente às relações com a banca, quer no domínio dos negócios, quer dos actos pessoais, mas também das instituições financeiras, surgindo aqui como manifestação da liberdade da iniciativa económica privada e do direito ao bom nome e à reputação das instituições».
Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95, de 31 de Maio.
Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135º, 181º e 182º do Código de Processo Penal.
Assim, este TCAN não tem, portanto, que indagar sobre a relevância dos elementos bancários solicitados no contexto da causa principal, nem sobre a legitimidade do Banco ..., S.A. ao escusar-se, em nome do sigilo bancário, a fornecer essa informação, questões que o Tribunal de 1ª instância já decidiu no exercício normal das suas competências no processo principal. Mas apenas ponderar e decidir se em face dos interesses públicos e privados contrapostos (“segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante” como preceitua o artigo 135º/3 CPP) se justifica no caso a derrogação do dever de sigilo bancário – cfr. Acórdão do TCAN, de 10/10/2014, proferido no âmbito do processo n.º 1026/12.7BEBRG-A.
Como resulta da factualidade supra referida, os actos de liquidação de IRC dos exercícios respeitantes aos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006 (que foram objecto da Impugnação judicial em causa e no âmbito da qual foi deduzido o presente incidente), tiveram origem no apuramento de imposto em falta no âmbito de uma acção de inspecção levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária e cujos fundamentos constam do relatório de inspecção junto a fls. 65 a 83 verso do processo físico. Na impugnação judicial, o pedido formulado foi o de anulação dos actos tributários impugnados, tendo como causa de pedir, entre outras, a falta de demonstração de factos susceptíveis de ilidir a presunção de verdade das operações constantes da escrita do contribuinte e respectivos documentos de suporte, quanto às correcções técnicas e a falta de idoneidade do método de quantificação utilizado pela Administração Fiscal.
Ora, da leitura do relatório de inspecção que está subjacente às liquidações impugnadas, resulta que o apuramento do imposto em falta assentou, essencialmente, no facto de a administração tributária ter concluído que a maior parte da facturação desses anos (2003, 2004, 2005 e 2006) era fictícia, não correspondendo a efectivas operações comerciais, mas antes a operações simuladas. A administração tributária alicerçou tal conclusão, além do mais, em indícios relacionados com os meios de pagamento utilizados (cheques e numerário) e em irregularidades detectadas na imputação contabilística de tais pagamentos (referindo não haver, em muitos casos, correspondência entre os valores depositados e os valores dos recibos e entre os cheques e os valores dos talões de depósitos imputados a pagamento), bem como na utilização de cheques emitidos para terceiros ou levantados pelos responsáveis da devedora originária e que foram imputados ao pagamento de facturas cujos emissores nunca receberam esses cheques e ainda na emissão de cheques em branco em nome de determinado operador.
Tendo a Impugnante solicitado a remessa dos elementos bancários (cópia de cheques) reportados aos exercícios em questão com vista à demonstração da realidade das operações materiais, afigura-se-nos que tais elementos se mostram indispensáveis à descoberta material dos factos em causa na impugnação judicial, e nessa medida, poderem contribuir para a realização da justiça.

Assim, na ponderação dos interesses aqui em confronto - entre o interesse público de uma boa administração da justiça e o interesse privado tutelado pelo sigilo bancário -, o primeiro deve sobrepor-se ao segundo e, em consequência, deve ser determinado o levantamento do sigilo bancário.

Conclusão/Sumário

I) Tendo-se decidido, no tribunal a quo, pela legitimidade e pela justificação da recusa da identificada instituição bancária, uma eventual quebra do sigilo bancário a decidir por este TCAN, a justificar a intervenção do tribunal superior no incidente de dispensa do segredo bancário, passaria pelo entendimento de que os elementos bancários, em causa, se mostrariam indispensáveis à descoberta material dos factos em questão na Impugnação judicial deduzida, e nessa medida interessariam à realização da justiça, devendo sobrepor-se ao interesse particular do cliente da instituição bancária, tais como a reserva à vida privada bem como das relações de confiança que se estabelecem entre as entidades bancárias e os respectivos clientes, de acordo com o princípio da prevalência dos interesses preponderantes.
II) Considerando que, nos presentes autos de impugnação de liquidações de IRC, em que a fiscalização tributária concluiu que a maior parte da facturação se configurava como fictícia por não corresponder a efectivas operações comerciais e tendo a Impugnante solicitado a remessa de cópias de cheques bancários de que possa depreender-se, eventualmente, pela realidade dessas operações materiais, os elementos bancários, em questão, mostram-se indispensáveis à descoberta material dos factos, objecto da impugnação judicial, e nessa medida interessarem à realização da justiça, devendo sobrepor-se aos interesses particulares assinalados.
III) Estabelecendo-se uma ponderação de interesses, ente os interesses públicos e privados, em presença, segundo critérios de proporcionalidade, decidindo-se no sentido da prevalência dos primeiros em detrimentos dos segundos, em consequência, deve determinar-se uma quebra ou o levantamento do sigilo bancário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em determinar o levantamento do sigilo bancário nos termos supra referidos e, consequentemente, deverá o Banco ..., S.A. fornecer as cópias dos cheques indicados pela impugnante na petição inicial (na parte referente à prova) e que, oportunamente, lhe foram solicitados nos autos de impugnação judicial.

Sem custas.

D.N.


Porto, 13 de Novembro de 2014
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Fernanda Esteves