Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03598/15.5BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/13/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:LEGITIMIDADE PROCESSUAL;
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA;
Sumário:
1-O pressuposto processual da legitimidade exprime-se pela relação que, segundo a lei adjetiva, tem de existir entre as partes (sujeitos) que figuram no processo e o objeto desse processo (pedido e causa de pedir), sem o que não poderá o juiz entrar na apreciação do mérito dessa relação material que lhe é submetida pelo autor a fim de a dirimir naquele concreto processo, por nele não figurar como autor quem tem o poder de dirigir contra o aí réu aquele concreto pedido, atenta a respetiva causa de pedir que o suporta e que fora alegada pelo mesmo na petição inicial (ilegitimidade ativa) e/ou por não figurar, nesse processo, como réu a pessoa a quem assiste o direito de defesa em relação a esse pedido e causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial (ilegitimidade passiva).

2- A legitimidade processual, enquanto “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” não se confunde com a denominada “ legitimidade substantiva”, que configura uma exceção perentória inominada e que é consabidamente um requisito da procedência do pedido.

3- Para que possa afirmar-se a legitimidade processual ativa da Autora na presente ação, não se exige que a mesma seja titular efetiva do direito de propriedade sobre os prédios que identifica na p.i., e que seja a efetiva lesada desse direito de propriedade sobre tais prédios de que emergiram os alegados e concretos danos que invoca, bastando, para se concluir pela sua legitimidade processual ativa, a mera alegação, na p.i., em como é titular do direito de propriedade sobre esses prédios e a pessoa que sofreu os concretos danos que alega por via da lesão desse direito de propriedade.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I.RELATÓRIO
1.1. “[SCom01...], SA”, com os demais sinais nos autos, moveu a presente ação administrativa comum, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, contra a “[SCom02...], SA” pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização, nos seguintes termos: a) €750.000,00 relativos a investimento efetuado na “Casa ...” ao longo dos últimos 15 anos, acrescida de juros de mora legais até integral pagamento; b) € 150.000,00 a título de honorários, projetos de arquitetura, engenharia civil e alguns arranjos paisagísticos, desde 2006 até 2014; c) € 575.000,00 corresponde a 25% da totalidade do investimento no Eco-Parque denominado “...”; d) € 4.500.000,00 correspondente à compensação pelos lucros cessantes; e) €300.000,00 a título de desvalorização imobiliária dos imóveis atravessados pela linha de alta tensão.
Como fundamento da sua pretensão, alega, em síntese, que é proprietária: a) da ..., descrita na Conservatória do Registo Predial como parte do número 565, sita no Lugar ..., artigo matricial ...03; b)Segunda ..., descrita na Conservatória do Registo Predial como parte restante do número 565, sita no Lugar ..., artigo matricial ...04; c) ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ...13, sita no Lugar ..., artigo matricial urbano ...35; d) ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ...59, omissa na matriz;
Na área dos referidos prédios, existe uma habitação e prédios anexos, cuja construção remonta a 1135 e que segundo a tradição foi residência Real de D. Afonso Henrique, imóvel que foi considerado pelo Município ... de interesse turístico;
Em 2012 foi apresentado ao Município ... um projeto para o licenciamento do imóvel para fins de “ Agro-Turismo”, que foi aprovado e foi também elaborado um estudo para um projeto de divertimentos que está em curso;
O projeto prevê a reconstrução da Casa ... e o investimento num Eco Parque de Diversões;
Mais alega que as obras de conservação do empreendimento turístico denominado por “...” iniciaram-se em 1999 e pertence atualmente à Autora « [SCom01...]…», sendo que numa 1.ª fase, até 2013, foram realizadas obras que impediram a sua ruina, cujos gastos ascenderam a €750.000,00;
Posteriormente, foi apresentado o projeto “...”, tendo até finais de 2014, sido encetados inúmeros contactos, reuniões com arquitetos, advogados, entidades, solicitados orçamentos, prevendo-se um investimento de €2.300.000,00;
Refere que foi contactada pela Ré, em 2014, na pessoa do seu administrador, responsável pelos referidos projetos, informando que a zona de fundo da vinha iria ser atravessada até finais desse ano por uma linha de alta tensão;
Acontece em dezembro de 2014 a Ré concluiu a implantação de uma Linha de Alta Tensão, que atravessou os vários terrenos da Autora, sem que fossem salvaguardados os seus interesses empresariais, tendo sido violados o princípio da boa-fé, da proporcionalidade, da colaboração com os particulares, da participação, do direito de propriedade privada e da iniciativa privada, em consequência do que sofreu danos na sua esfera jurídica, pelos quais pretende ser indemnizada;
A instalação dessa linha de alta tensão compromete investimentos que a Autora previa realizar na área agro-turística e os que realizou no passado, tendo gasto, numa primeira fase, entre 1999 e 2103, a quantia de €750.000,00 com restauro e conservação e, em honorários com projetos, entre 2006 até 2014, a quantia de €150.000,00.
1.2. Citada, a Ré contestou a ação, defendeu-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção, invocou a ilegitimidade ativa da Autora, alegando, em suma, não ser a Autora proprietária de nenhum dos referidos terrenos na data em que ocorreu a construção alegadamente ilícita da linha de muito alta tensão.
Defendeu-se também por impugnação.
1.3.A Autora replicou, pugnando pela sua legitimidade ativa, alegando que « é à data da entrada da presente ação proprietária de vários dos terrenos em causa, nomeadamente da ...»; que o sócio-gerente e administrador das sociedades proprietárias dos terrenos está na posse dos referidos terrenos há pelo menos três gerações ( mais de 100 anos); que à data da celebração do acordo de indemnização com a Ré ( 20/08/2015) sobre a perda de produção florestal em relação ao artigo 1203 esse terreno já era sua propriedade desde 30/06/2015; o gerente das duas empresas sempre foi o mesmo, pelo que, a Autora, «na pessoa do gerente é parte da relação material», uma vez que «têm em comum o mesmo gerente/administrador», para além de que «o mesmo gerente detém a posse e a propriedade dos terrenos do Lugar ...…»; « que em 30 de julho de 2015 e em 17 de fevereiro de 2016 foram celebradas as competentes escrituras públicas de transação…».
Requereu também a intervenção principal provocada da sociedade comercial “[SCom03...], Lda” para ocupar o lugar de co-autora da presente ação, em coligação”.
1.4. Por despacho de 08/01/2020, o Tribunal a quo não admitiu o incidente de intervenção principal provocada.
1.5. Em 22/03/2023, o TAF de Braga proferiu saneador-sentença, que julgou procedente a exceção da ilegitimidade ativa da Autora, constando da mesma o seguinte dispositivo:
« Pelas razões supra aduzidas:
(i) Julga-se procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da [SCom01...], SA, absolvendo-se o Réu da instância;
(ii) Custas da responsabilidade da Autora;
(iii) Fixo o valor da causa em €6.575.000,00 (seis milhões quinhentos e setenta e cinco mil euros). (iv) Registe e Notifique. »
1.6. Inconformada com o saneador-sentença que julgou procedente a exceção da sua ilegitimidade ativa, absolvendo a Ré da instância, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, que encerra com a formulação das seguintes CONCLUSÕES:
« 1-A legitimidade processual é aferida unicamente em função da relação controvertida, tal como esta é configurada pelo autor (na p.i.) e independentemente da prova que venha a ser feita acerca da relação alegada e dos seus efetivos sujeitos;
2- A Autora é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação (artigo 30º, nºs 1 e 2 do CPC), in casu, traduzida na salvaguarda dos seus interesses empresariais, sendo ainda que, no silêncio da lei, são considerados como titulares relevantes para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como a ação é configurada pela autora (artigo 30º, nº3 do CPC).
3-Assim, e na medida em que legitimidade é determinada em função da titularidade da relação material controvertida, esta deverá ser atendida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, consagrando deste modo o nosso legislador a tese que era defendida pelo Professor Barbosa de Magalhães.
4- O preenchimento do requisito da legitimidade processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa, e não como uma condição de procedência da ação) não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo demandante, bastando a alegação dessa mesma titularidade, elegendo-se a titularidade da “relação material controvertida” tal como a mesma foi alegada no articulado inicial, como critério definidor do referido pressuposto processual.
5- Os factos invocados na decisão proferida, analisando apenas parte da prova já constante, configuram uma hipótese, uma perspetiva do mérito da ação e não uma regularização processual da mesma, tal como delineada pela autora.
6- A decisão recorrida enferma de confusão na delimitação entre os dois tipos de legitimidade: “A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade. Já a ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa”.
7- A Sra. Juíza atentou à matéria probatória baseada em documentos, fazendo constar da motivação de facto que a convicção assentou “no teor dos documentos integrantes do processo judicial, que se dão como integralmente reproduzidos e, bem assim, no confronto das posições assumidas pelas partes nos seus articulados”.
8- Uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória dando lugar à absolvição do Réu da instância. Outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem a ver com a efetividade da relação material, interessando já o mérito da causa”.
9- Nesta fase de saneamento apenas se mostrava lícito conhecer da exceção de ilegitimidade ativa invocada enquanto exceção dilatória.
10- Os factos invocados na decisão proferida, analisando apenas parte da prova já constante, configuram uma hipótese, uma perspetiva do mérito da ação e não uma regularização processual da mesma, tal como delineada pela Autora.
11- Este tipo de juízo probatório apenas poderá ser feito na sentença de mérito e, quando muito, conduzir à eventual ilegitimidade substancial ou substantiva.
12- Tal como resulta expressamente da Petição Inicial e não foi sequer aflorado na decisão proferida as obras de conservação do empreendimento turístico denominado por “Casa ...”, de cariz agro-turístico, iniciaram-se em 1999, pertencendo tal empreendimento atualmente à Autora, através da realização de duas escrituras de compra e venda.
13- Um empreendimento turístico com tais características – agro-pecuárias, numa habitação considerada património Nacional de grande valor cultural – deve ser visto como uma “entidade autónoma”, uma universalidade composta por bens, direitos e deveres dirigidos a um escopo e tendo em vista proventos económicos, assim se mostrando um verdadeiro estabelecimento comercial ou industrial, tal como sempre foi interpretado e definido.
14- Enquanto universalidade, o estabelecimento comercial não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes, mas pode existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros.
15- É pressuposto da existência de trespasse a existência de um estabelecimento comercial ou industrial, ou seja, de uma empresa, isto é, de uma estrutura, de um complexo organizado de meios ou fatores com um mínimo de autonomia funcional e financeira tal que lhe permita assegurar um processo produtivo (concebida a produção em sentido amplo, de modo a abranger a produção, não só de bens ou de serviços, mas de qualquer valor acrescentado em termos de circuito económico) e emergir no mercado enquanto organização técnica e económica autónoma.
16- A propriedade do estabelecimento comercial, enquanto universalidade de direito, não se afere em função de um ou outro elemento integrativo, mas por referência ao conjunto organizado, tanto mais que podem alguns desses elementos não pertencer em propriedade ao titular do mesmo estabelecimento, bastando que ele os possa utilizar ou ter a respetiva disponibilidade para os fins da empresa.
17- A transmissão operada coincidiu com a transmissão das obrigações e dos direitos do anterior proprietário do estabelecimento, como um todo, no que obviamente se inclui a indemnização por danos emergentes e lucros cessantes; “o trespasse do estabelecimento comercial, sem incluir a transmissão da posição que o trespassante tinha noutro contrato, durante a sua vigência e sem consentimento ou conhecimento do contraente cedido, constitui fundamento de resolução por este nos termos convencionados.
18- Se dúvidas houvesse quanto à relação material controvertida, ficam aqui bem dissipadas, pois a autora é parte legítima, não só processual, como substantiva e, por isso, a manter-se a decisão, negar-se-ia justiça material quanto ao objeto e conduta da ré.
19- Sempre a ré reconheceu isto mesmo e o direito pertencente à Autora, como alegado foi; solicitou, através do Eng.º «AA», responsável pelo Departamento de Património e Servidões da REN, que o Sr. «BB» formulasse por escrito as indemnizações pretendidas por danos «indiretos» que a Autora reclama na Petição Inicial e que não foram comtemplados na indemnização por danos «diretos» da perda florestal, que foi entretanto recebida.
20- Nuca pôs em causa a ré e afirmou aceitar pagar uma indemnização, por perda de produção florestal, decorrente da servidão administrativa imposta, à [SCom03...], Lda., quando os terrenos já eram na verdade da Autora.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência o douto despacho-saneador sentença recorrida, com as legais consequências. Assim se decidindo farão V.as Ex.as Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA! »
1.7.A Ré contra-alegou, e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
« A. Do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, que determina que são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade processual os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, não resulta (nem poderia resultar) que basta que ao Autor alegar na petição inicial uma qualquer qualidade que o tornaria parte legítima para que essa legitimidade seja reconhecida.
B. Não basta que a Recorrente tenha alegado que era proprietária dos prédios em questão para que seja considerado preenchido o requisito da legitimidade processual: no caso dos presentes autos, e tal como a ação foi configurada pela Autora – enquanto ação de responsabilidade extracontratual por facto ilícito – a Recorrente tinha de ser efetivamente proprietária dos prédios, à data da construção da linha elétrica.
C. Não sendo proprietária dos prédios à data da construção da linha elétrica, andou bem o tribunal a quo ao decidir que a Recorrente não é parte legítima na presente ação e qualificou corretamente essa falta de legitimidade ao dar por verificada uma situação de ilegitimidade processual, que constitui uma exceção dilatória e determina a absolvição do réu da instância.
D. Construiu a ora Recorrente, apenas em fase de recurso, a tese de que houve transmissão de estabelecimento que levaria a que tivesse sucedido ao antigo proprietário em todos os seus direitos e obrigações, mas tal tese deve pura e simplesmente ser desconsiderada porque se baseia em factos que não foram alegados (e muito menos provados) até agora no presente processo.
E. Aliás, todos os elementos constantes do processo indicam precisamente o contrário: que se tratou de uma transmissão de terrenos, através de uma escritura de compra e venda dos mesmos, e não qualquer transmissão de estabelecimento.
F. Deve dizer-se ainda neste âmbito, e a beneficio de raciocínio, que a Autora não alegou nunca (e muito menos provou) um acordo de transmissão de estabelecimento que incluísse transmissão de direitos a indemnização. Ora, teriam de ser as partes a incluir tais direitos na suposta transmissão (que não se concede que tenha existido), o que aliás não poderia ter ocorrido no que aos factos aqui em causa diz respeito, porquanto a [SCom03...] obteve, através do acordo de indemnização, e expressamente o declarou, o ressarcimento de todos os prejuízos que a implantação da linha nos seus terrenos poderia, eventualmente, causar.
15. O presente recurso ser julgado improcedente, na medida em que andou bem o tribunal a quo ao dar por verificada uma exceção de ilegitimidade ativa processual, conducente à absolvição da Ré da instância, como previsto no artigo 89.º, n.º 4, alínea e) do CPTA e 278.º, n.º 1 alínea d) e 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, alínea e) todos do CPC, ex vi o artigo 1.º do CPTA.
NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA.»
1.9. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso.
1.8. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos senhores juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, a questão que se encontra submetida à apreciação deste TCAN reconduz-se a saber se o saneador-sentença recorrido enferma de erro de julgamento em matéria de direito, decorrente de ter julgado verificada a exceção da ilegitimidade ativa da Autora em ação comum para efetivação de responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito, com fundamento no facto de a mesma, pese embora tenha alegado ser proprietária dos prédios que foram atravessados pela Linha de Alta Tensão colocada pela Ré em dezembro de 2014, data em que essa obra foi concluída, não ser, a essa data, a proprietária dos mesmos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu como provada a seguinte factualidade:
«A. Em 14.02.2014, a Câmara Municipal ... emitiu certidão atestando que em nome da [SCom03...], Lda, foi reconhecido o interesse público municipal respeitante à intervenção a realizar na [SCom03...] (cf. documento n.º ... junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
B. Em 03.03.2014, a Câmara Municipal ... emitiu certidão atestando que em nome da [SCom03...], Lda, foi reconhecido o interesse público municipal respeitante à intervenção a realizar na [SCom03...] (cf. documento n.º ... junto aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
C. Por ofício datado de 09.07.2014, a [SCom03...], SA, foi notificada pela Câmara Municipal ... da aprovação do projeto de arquitetura no Lugar ..., em ..., relativamente ao estabelecimento de “Agro Turismo” (cf. documento n.º... junto aos autos, com o teor que se dá aqui por integralmente reproduzido).
D. Em 2015, a [SCom02...], SA e a [SCom03...], Lda celebraram um acordo de indemnização, no qual consta que a [SCom03...] se declara possuidora do prédio rústico sito em Lugar ..., inscrito na matriz sob o artigo ...03, da freguesia ..., no concelho ..., e que a primeira outorgante se obriga a pagar determinado valor indemnizatório pela implantação de linha de transporte de elétricidade ... – ..., e pela constituição de uma servidão sobre o prédio (cf. documento junto aos autos com a réplica, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
E. Em 07.12.2015, deu entrada de petição inicial que originou os presentes autos (cf. fls. do SITAF, cujo teor se dão aqui por integralmente reproduzidos).
F. Em 18.06.2003, a [SCom03...], Lda adquiriu à [SCom04...], SA os prédios registados na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...65, da freguesia ..., denominado de “Nova Vinha de ...” e situado no Lugar ... (cf. documento junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
G. Em 03.02.2016, encontrava-se registado na Caderneta Predial Rústica, do Serviço de Finanças ..., o prédio inscrito sob o n.º ...03, da freguesia ... em ..., no Lugar ..., em nome da [SCom03...], LDA, identificado fiscalmente com o n.º ...62 (cf. documento junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
H. Em 03.02.2016, encontrava-se registado na Caderneta Predial Rústica, do Serviço de Finanças ..., o prédio inscrito sob o n.º ...04, da freguesia ... em ..., no Lugar ..., em nome da [SCom03...], LDA (cf. documento junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
I. Em 30.07.2015, a [SCom01...], SA, com o NIPC ..., adquiriu à [SCom03...], Lda 10 prédios e 1 fracção registados na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...13, da freguesia ..., situado no Lugar ... (cf. documento junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
J. Em 30.07.2015, a [SCom01...], SA, com o NIPC ..., adquiriu à [SCom03...], Lda 10 prédios e 1 fracção registados na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59, da freguesia ..., denominado de “...” e situado no Lugar ... (cf. documento junto aos autos com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
K. Em 16.02.2016, a [SCom03...], Lda vendeu à [SCom01...], SA, ambas representadas por «BB», o imóvel rústico denominado de Segunda ..., sito no Lugar ..., da freguesia ..., ..., e inscrito na matriz predial sob o n.º ...04 e o imóvel rústico denominado ..., sito no Lugar ..., da freguesia ..., ..., e inscrito na matriz predial sob o n.º ...03 (cf. documento junto aos autos com a réplica, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
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a) Factos não provados: inexistem, com relevância para a questão a decidir. »
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III.B.DE DIREITO
A presente apelação vem interposta do saneador- sentença recorrido em que o Tribunal a quo julgou verificada a exceção da ilegitimidade ativa da Autora/ Apelante, suscitada pela Ré/Apelada na respetiva contestação e absolveu a Ré/Apelada da instância.
O Tribunal a quo decidiu a exceção da ilegitimidade ativa em moldes que consideramos útil transcrever para a plena perceção dos fundamentos em que se estribou para assim decidir, embora essa decisão não mereça a nossa aquiescência, como desde já assinalamos, e que foi a seguinte:
« (…)Quanto à legitimidade ativa consagra o artigo 9.º, n.º 1, do CPTA que o Autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida. De igual modo, estabelece o artigo 30.º do CPC, que o Autor é parte legítima quando tem interesse direito em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, considerando-se titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como configurada pelo Autor. Decorrendo do quadro legal enunciado que o critério para aferir da legitimidade ativa corresponde ao “interesse direto em demandar”, traduzido na utilidade derivada da procedência da ação, constituindo o Autor sujeito da relação material controvertida, tal como por si configurada.
Descendo ao caso dos autos, verifica-se que na petição inicial, a Autora fundamentou a sua legitimidade na qualidade de propriedade dos prédios, para os quais foram apresentados em 2012, projetos para licenciamento para fins de Agro Turismo, que mereceu a aprovação da autarquia e projetos de divertimento – o eco-parque de diversões «...» -, nos quais a Autora já efetuara avultados investimentos, e que até finais de 2014 efetuara inúmeros contactos para avançar com a concretização dos projetos. Mais alegando que em 31.12.2014, foi concluída a implantação de uma linha de alta tensão, que atravessou vários dos seus terrenos, não salvaguardando os seus interesses empresariais.
Constituindo, o caso em análise, um ação administrativa comum, com vista à efetivação de responsabilidade civil extracontratual do Réu, a legitimidade da Autora afere-se pela titularidade do direito de propriedade à data da consumação do invocado facto ilícito, que se relaciona com a conclusão da instalação da linha de alta tensão, que segundo o alegado pela Autora, ocorrera a 31.12.2014. Ou seja, a Autora funda a sua pretensão no direito de propriedade dos ditos prédios, e respetivos interesses empresariais, que terão sido defraudados com a finalização da instalação da linha de alta tensão em 31.12.2014. Porém, resulta evidente do probatório, que os prédios que a Autora reputa de seus, à data dos factos que alicerçam o pedido indemnizatório e que quando muito se reportam a 31.12.2014 com a finalização da instalação da linha de alta tensão, eram propriedade da sociedade [SCom03...], Lda e não da Autora. Da análise dos documentos juntos aos autos ressalta que os artigos 1203 e 1204 foram vendidos pela [SCom03...] à aqui Autora apenas em 16.02.2016 e que o prédio correspondente aos artigos 1513 e 559, também só fora adquirido pela Autora à sociedade [SCom03...] em 30.07.2015. Como tal, não sendo a Autora proprietária dos prédios à data a que se reportam dos factos alegados para efeito do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, não possui a mesma interesse direto em demandar o Réu, exigindo o pagamento de uma indemnização, inexistindo, por isso, qualquer utilidade para a mesma derivada da eventual procedência da presente ação. Nesses termos, pela forma como a Autora, na petição inicial, configura a ação, isto é, tendo em conta o pedido e a causa de pedir, se conclui que a Autora não detém legitimidade processual. Donde, será de julgar verificada, a exceção dilatória da ilegitimidade ativa da Autora, como previsto no artigo 89.º, n.º 4, alínea e) do CPTA e 278.º, n.º1 alínea d) e 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea e) todos do CPC, ex vi o artigo 1.º do CPTA, circunstância que obsta ao conhecimento do mérito da causa. »- negrito da nossa autoria.
A Apelante insurge-se contra a decisão, assim fundamentada, sustentando que tendo em conta que a legitimidade é determinada em função da titularidade da relação material controvertida, esta deverá ser atendida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial.
A seu ver, a decisão recorrida confundiu a legitimidade processual enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, que não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade, coma a ilegitimidade substantiva, que configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa”.
Advoga que nesta fase de saneamento apenas se mostrava lícito conhecer da exceção de ilegitimidade ativa invocada enquanto exceção dilatória, e que os factos invocados na decisão proferida, analisando apenas parte da prova já constante, configuram uma perspetiva do mérito da ação e não uma regularização processual da mesma, tal como delineada pela Autora-ver conclusões 1.ª a 11.ª das alegações de recurso.
Pretende que se revogue a decisão, com as legais consequências, ou seja, que se declare que a Apelante possui legitimidade para formular os pedidos contra a apelada.
Assiste inteira razão à Apelante. Vejamos.
A legitimidade constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende que o tribunal conheça do mérito da causa, e profira, acerca dos pedidos deduzidos, uma decisão de fundo.
Os pressupostos processuais “são precisamente os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa. Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, a capacidade judiciária de uma delas ou de ambas, o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto essencial para o efeito”- cfr.Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manuel de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
A ausência de um pressuposto processual impõe ao juiz que profira uma decisão meramente processual, sem entrar na discussão do mérito, isto é, nos bens discutidos no processo, absolvendo o réu da instância.
Atendendo ao fim almejado com os pressupostos processuais, compreende-se que estes tenham, em princípio, de ser aferidos por referência à relação material controvertida tal como esta é delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial.
Mediante o pressuposto processual da legitimidade- artigo 30º do CPC e artigo 9.º do CPTA- exige-se que para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica que lhe é submetida, julgando a ação procedente ou improcedente, que naquele concreto processo figurem como autor e como réu as “partes exatas” dessa relação jurídica controvertida submetida pelo autor ao tribunal.
“Ser parte exata no processo”, ou parte legítima neste, significa que nele tem de figurar como autor a pessoa que tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo, e como réu aquele que tem o poder de dirigir a defesa contra essa pretensão. “A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da ação, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não puder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida ausentes da lide”- cfr.
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 127.
Deste modo, é mandatório que entre quem figure na ação como autor e como réu e o objeto dessa ação interceda uma certa relação, de forma a que se possa afirmar que esses sujeitos são as partes certas dessa relação- cfr. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 74, onde postula que “A questão da legitimidade é essencialmente uma questão de posição das partes em relação à lide”.
Ora, o pressuposto processual da legitimidade exprime-se precisamente pela relação que, segundo a lei adjetiva, tem de existir entre as partes (sujeitos) que figuram no processo e o objeto desse processo (pedido e causa de pedir), sem o que não poderá o juiz entrar na apreciação do mérito dessa relação material que lhe é submetida pelo autor a fim de a dirimir naquele concreto processo, por nele não figurar como autor quem tem o poder de dirigir contra o aí réu aquele concreto pedido, atenta a respetiva causa de pedir que o suporta e que fora alegada pelo mesmo na petição inicial (ilegitimidade ativa) e/ou por não figurar, nesse processo, como réu a pessoa a quem assiste o direito de defesa em relação a esse pedido e causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial (ilegitimidade passiva).
Note-se que uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada para efeitos do pressuposto processual da legitimidade, em que apenas se impõe, em regra, atender à relação material controvertida desenhada pelo autor em sede de petição inicial, e outra, bem diversa, é apurar se a pretensão que o autor vem exercer nos autos existe efetivamente, ou seja, se o autor é o efetivo titular do direito que pretende exercer contra o réu e se a violação do mesmo lhe confere efetivamente a pretensão que formula contra o último, o que já nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade, isto é, com a exceção dilatória da legitimidade ativa ou passiva, mas única e exclusivamente, com o mérito da ação, isto é, com a legitimidade substantiva, por estar dependente da verificação dos requisitos de facto e de direito que condicionam o nascimento dessa obrigação, o seu objeto e a sua perduração - cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 134.
Ao apuramento da legitimidade apenas interessa, por regra, a relação jurídica controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram- cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, onde se lê: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redacção que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.
Assim, a "parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente seu titular- cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1963, págs. 260, 261, 262.(…).
Logo, como bem alega a Apelante, a legitimidade processual, enquanto “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” não se confunde com a denominada “ legitimidade substantiva”, que é consabidamente um requisito da procedência do pedido.
Como bem referem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 104, “a falta do pressuposto processual não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da ação, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo, sustando nomeadamente a produção de prova sobre os fundamentos do pedido".
"Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto processual para o efeito"- cfr. Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, disponível in base de dados da dgsi.
De forma muito acutilante, o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015, proferido no processo n.º 505/07.2TVLSB.L1.S1, julgou nos seguintes moldes: “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objeto da ação, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objeto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.
Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas ações que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da ação, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da ação ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva”.
Em suma, a legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade- cfr. Ac. TRG de 11/1/2018, processo 2366/16.1T8VCT.G1. Já a ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa.
Como vimos, uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância e outra, a
legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa[
Assente nestas premissas, revertendo ao caso em análise, dir-se-á assistir inteira razão à Apelante quando sustenta que a 1ª Instância errou ao dar por verificada a sua ilegitimidade processual ativa.
Compulsada a p.i., constata-se que a Autora alegou que era proprietária dos terrenos que foram atravessados pela Linha de Alta Tensão instalada pela Ré em dezembro de 2014 e que, em consequência dessa obra, sofreu prejuízos, assumindo-se, a mesma, ao logo de toda a p.i., como sendo a proprietária dos prédios em causa, e como tendo sido quem, designadamente, desde o ano de 1999, tem vindo a realizar obras de conservação, tendentes a impedir a ruína da “ Casa ...”, e quem suportou as inerentes despesas com os alegados projetos de investimento gizados para aqueles prédios e com o pagamento de honorários, e, bem assim, quem sofreu na respetiva esfera jurídica os alegados prejuízos nos prédios em causa decorrentes do atravessamento da Linha de Alta Tensão colocada pela Ré.
Ora, considerando a relação material controvertida tal como a mesma vem delineada pela Autora na p.i., tanto basta para que a mesma seja considerada como parte legitima na presente ação, uma vez que, a legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pela Autora/Apelante. Ou seja, no caso, não se exige à Autora, para que possa afirmar-se a sua legitimidade processual ativa, que a mesma seja titular efetiva do direito de propriedade sobre os prédios que identifica na p.i., e que seja a efetiva lesada desse direito de propriedade sobre tais prédios de que emergiram os alegados e concretos danos que invoca na p.i., bastando, para se concluir pela sua legitimidade processual ativa, a mera alegação, na p.i., em como é titular do direito de propriedade sobre esses prédios e a pessoa que sofreu os concretos danos que alega por via da lesão desse direito de propriedade.
Daí que, salvo melhor opinião, se imponha revogar a decisão recorrida em que o Tribunal a quo, confundindo legitimidade processual com legitimidade substantiva, julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa e, em consequência, absolveu a Apelada da instância, por erro de direito e, consequentemente, ordenar o prosseguimento dos autos.
Contudo, porque conforme antedito, uma coisa é a legitimidade processual e outra bem diferente é a legitimidade substantiva, fundando a Autora a sua pretensão indemnizatória na lesão do direito de propriedade sobre os prédios que identifica na p.i., em consequência do atravessamento dos mesmos pela Linha de Alta Tensão colocada pela Ré em dezembro de 2014, por força do princípio da estabilidade da instância- o qual nos termos do disposto no artigo 260.º, uma vez citado o Réu a instância terá que manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, as quais quanto ao aspeto subjetivo constam dos artigos 262.º e 263.º do CPC, e quanto aos aspetos objetivos ( alteração do pedido e da causa de pedir) se limitam aos casos enunciados no artigo 264.º ( acordo das partes) e 265.º do CPC ( alteração ou ampliação em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor ou se a ampliação for a consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo)-, confessando a Autora que à data da colocação da Linha de Alta Tensão que atravessou os prédios identificados na p.i., contrariamente ao por si aí alegado na p.i., que em boa verdade, não era a efetiva proprietária dos mesmos, posto que apenas veio a adquirir a propriedade sobre tais prédios por escrituras de transação celebradas em «30 de julho de 2015 e 17 de fevereiro de 2016» - cfr. artigo 207.º da réplica- fundando-se o direito indemnizatório da Autora no direito de propriedade da sociedade Apelante sobre os prédios daquela e na consequente lesão desse direito de propriedade de que terão decorrido os danos que pretende ver ressarcidos e que alega na p.i., impõe-se, salvo melhor opinião, que a 1.ª Instância, ante aquela confissão da Apelante de que não era efetiva proprietária de tais prédios aquando do atravessamento dos mesmos pela Linha de Alta Tensão, facto esse que alega como causa dos danos que pretende ver indemnizados, após observância do contraditório, verifique se estão recolhidos, nos autos, os factos que permitam conhecer do mérito da presente ação, nomeadamente, que permitam, logo em sede de saneador-sentença, conhecer de mérito da ação, absolvendo a Ré dos pedidos.
Por fim, dir-se-á ainda, e salvo melhor opinião, que não procede a alegação da Apelante segundo a qual, a posse e a propriedade dos prédios em análise, independentemente da sociedade comercial que encabeça, pertencem na verdade ao seu gerente- cfr. artigos 205 e 206 da replica- o que, na sua perspetiva tanto bastaria para que estivesse garantido o direito de propriedade da Apelante sobre esses prédios. É que, esquece a Apelante que a mesma é uma pessoa coletiva com personalidade e capacidade jurídica próprias, distinta das pessoas singulares que integram os seus órgãos.
Termos em que se impõe julgar procedente o presente recurso, revogar a decisão recorrida e, em substituição julgar a Autora parte legitima.
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IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência: () revogam a decisão recorrida em que a 1.ª Instância julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, e em substituição, declaram a Autora como detendo legitimidade processual ativa para a presente ação;(ii) sem prejuízo, após observância do contraditório, deverá a 1.ª Instância verificar se estão recolhidos ou não, nos autos, os elementos fáticos que lhe permitam, em sede de saneador sentença, conhecer de mérito, perante o que supra se explanou.
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Custas pela Apelada (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 13 de setembro de 2023

Helena Ribeiro
Ricardo de Oliveira e Sousa
Nuno Coutinho