Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00050/22.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/15/2023
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:ACÇÃO PARA A CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ACTO DEVIDO;
IMPROPRIEDADE DO MEIO PROCESSUAL;
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO;
Sumário:
1. Não é necessário que haja a prática de um acto para que se peça a condenação à prática do acto devido porque, precisamente, não ter sido decidida a pretensão do particular é uma das hipóteses em que é permitida a dedução deste pedido – alínea a) e segunda parte da alínea b) do n.º1 do artigo 67º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

2. E se é certo que, como regra, deve o particular apresentar previamente requerimento que constitua o órgão competente no dever legal de decidir – n.º1 deste preceito – também se prevê que a condenação à prática do acto devido pode ser pedida sem ter sido apresentado previamente requerimento quando, numa de duas hipóteses, não tenha sido cumprido o dever de emitir acto administrativo que resultava directamente da lei – n.º 2 alínea a) do mesmo preceito.

3. Como é o caso da continuidade da inscrição do Autor na Caixa Geral de Aposentações.

4. Para que os actos de processamento de vencimentos se consolidem na ordem jurídica, devem preencher dois requisitos: 1º - devem constituir uma definição inovatória e voluntária relativamente ao processamento do vencimento, "em determinado sentido e com determinado conteúdo"; 2º - o acto de processamento inovatório deve ser notificado ao interessado, tal como os demais actos administrativos, ou seja, em obediência ao disposto nos artigos 68º do Código de Procedimento Administrativo.

5. Não se tendo verificado qualquer descontinuidade na situação vínculo de emprego público que permitia ao autor a sua inscrição na Caixa Geral de Aposentações, descontinuidade que impusesse, consequentemente, a sua inscrição no regime geral da segurança social, não se coloca a questão de saber se devia ou não manter a sua inscrição neste regime geral.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Ministério da Educação veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 30.09.2022. pela qual foi julgada procedente a acção que «AA» intentou contra o Recorrente, a Caixa Geral de Aposentações e o Instituto de Segurança Social, I.P. para condenação das Entidades Demandadas a reconhecerem o direito do Autor à manutenção da inscrição e do vínculo na Caixa Geral de Aposentações e da qualidade de subscritor com efeitos desde o início do ano lectivo 2008/2009, e para condenação à prática dos actos devidos em consequência desse reconhecimento.

Invocou para tanto, em síntese, que: a decisão recorrida deveria ter julgado procedentes as excepções da intempestividade da acção, da impropriedade do meio processual, da caducidade do direito de acção ou, ao menos, de abuso de direito; quanto ao mérito sustenta que a decisão recorrida procedeu a uma errada interpretação, consagrando uma tese que não tem cobertura na letra do preceito e que determinou a procedência da acção ao invés de, como deveria, ter julgado a acção totalmente improcedente, no essencial porque tendo o Autor interrompido o vínculo de emprego público que lhe permitia a inscrição/manutenção na Caixa Geral de Aposentações, em Maio de 2009, perdeu a qualidade de subscritor desta Caixa.

O Recorrido contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

A - O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que julgou procedente a presente acção, condenando os Réus a reconhecer o direito do Autor à reinscrição na CGA bem como à prática dos actos materiais conducentes à reinscrição como subscritor da CGA a partir de 01.06.2009.

B - A sentença proferida faz errada interpretação e aplicação do direito aplicável, incorrendo em erro de julgamento.

C - A decisão recorrida errou ao decidir pela não verificação da excepção de intempestividade do direito de acção.

D - A presente acção é intempestiva porque, visando a autora o reconhecimento do direito à manutenção da inscrição e do vínculo na Caixa Geral de Aposentações e ainda a condenação dos Réus à prática dos atos materiais conducentes à reposição da situação legalmente devida, nomeadamente a manutenção/reinscrição do Autor na CGA, com efeitos desde 01.06.2009, não há qualquer acto (ou qualquer omissão) por parte da administração que justifique a tempestividade do recurso à presente via judicial. Ora, atento o pedido deduzido, a presente ação não pode deixar de ser configurada como uma ação administrativa de condenação à prática de acto devido.

E - Sempre que um interessado seja titular do poder de exigir a prática de um acto administrativo, a propositura da acção de condenação à prática desse acto pressupõe, portanto, nos termos do n.° 1 do artigo 67.° do CPTA, a prévia apresentação, junto da autoridade administrativa competente, de um requerimento dirigido à prática desse acto. O artigo 67.°, n.° 1, do CPTA, para que o processo possa ser utilizado, começa por exigir um procedimento prévio, de iniciativa do interessado, em regra, um requerimento dirigido ao órgão competente, com a pretensão de obter a prática de um ato administrativo. Deveria, assim, proceder a exceção da impropriedade do meio processual.

F - Considerando que “os actos de processamento de vencimentos e outros abonos constituem verdadeiros actos administrativos, e não meras operações materiais, susceptíveis de se consolidarem na ordem jurídica como «casos decididos» se não forem objecto de atempada impugnação, na medida em que contenham uma definição voluntária e inovatória, por parte da Administração, da situação jurídica do funcionário abonado, relativamente ao processamento em determinado sentido e com determinado conteúdo (...), [verificando-se] a caducidade do direito de acção relativamente a actos de processamento de vencimentos (...) se, não sendo os mesmos nulos, decorreu período superior a três meses entre a data da propositura da acção impugnatória e o conhecimento de tais descontos veiculado pelos atinentes recibos de vencimento, deveria, outrossim ter sido julgada procedente a excepção de caducidade invocada (ou, quando menos, a excepção de abuso de direito).

G - O reconhecimento, por parte do Tribunal, de que o Autor teria, eventualmente, direito à manutenção da sua inscrição na Caixa Geral de Aposentações, insere-se na apreciação do mérito da acção no quadro dos argumentos expendidos pelas partes, desaguando, a final essa apreciação, se a favor do Autor, na condenação dos Réus à prática dos actos necessários à reconstituição da situação contributiva do Autor, caso se concluísse que desde 2009 as contribuições que lhe foram descontadas deveriam ter sido entregues à CGA e não à Segurança Social. Tudo isto porque a pretensão do Autor não se materializa directamente apenas com a aplicação da lei, necessitando da prática de actos administrativos para o efeito, como o demonstra, também, o direito circulatório invocado pelas entidades demandadas, com esclarecimentos sobre os procedimentos a seguir no caso da sucessão de contratos dos professores contratados.

H - Não se põe a hipótese de existir omissão de um acto que materializasse o direito a que o Autor se arroga, pelo contrário, existiu um acto administrativo que determinou a sua inscrição na Segurança Social que o mesmo, como se alegou, nunca colocou em causa, até à presente acção.

I - Como refere M. «BB», in Manual de Processo Administrativo, Almedina, 4ª edição, 2020, páginas 119-120: “Como é natural, só uma parcela reduzida das prestações que aqui se enquadram é dirigida à emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. Com efeito, estas sentenças proporcionam apenas o reconhecimento da existência ou inexistência de direitos ou factos, o que, tal como sucede em processo civil, por regra, só em situações excepcionais se justifica, do ponto de vista da existência do necessário interesse processual. São, na verdade, as pretensões dirigidas à emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação que o nº 1 do artigo 39º tem directamente em vista, ao impor-lhes a exigência de um interesse processual específico, que se pode fundar na existência de situações graves de incerteza objectiva, na conveniência em pôr coberto a afirmações ilegítimas por parte da Administração ou mesmo na necessidade de evitar futuras condutas lesivas da sua parte, perante ameaças de lesão, resultantes do fundado receio da verificação de condutas lesivas num futuro próximo, determinas por uma incorrecta avaliação da situação existente. (...) ”.

J - Tendo a Autora interrompido o vínculo de emprego público que lhe permitia a inscrição/manutenção na CGA, em maio de 2009 perdeu a qualidade de subscritor.

K - Resultando, assim, quebra da sucessibilidade do vínculo laboral jurídico-administrativo, como resulta dos factos provados, inexistindo qualquer continuidade do exercício de funções públicas, como preconizado no artigo 11.° da LTFP.

L - O artigo 2.° da Lei 60/2005, de 29 de Dezembro, veio determinar que a partir de 01-01-2006 a CGA deixava de proceder à inscrição de subscritores, sendo obrigatoriamente inscrito no regime da segurança social quem iniciasse funções a partir dessa data e a que fosse aplicável o regime da proteção social da função pública.

M - O Provedor de Justiça defendeu junto da CGA, e também do Governo, que “a alteração da relação jurídica de emprego público, independentemente da forma de recrutamento, não determinava a perda da qualidade de beneficiário do RPSC sempre que o exercício de funções fosse ininterrupto, ou seja, sem qualquer dilação temporal entre ambos os contratos, com fundamento quer na regra da continuidade do exercício de funções públicas, hoje consagrada no artigo 11° da Lei n° 35/2014, de 20/06 (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas - LTFP), quer no artigo 15° da Lei n° 4/2009, de 29/01, que determina que os trabalhadores integrados no regime de proteção social convergente não perdem a qualidade de beneficiários deste regime quando vejam alterada a sua relação jurídica de emprego público, designadamente por mudança de vinculação ou por aplicação de instrumentos de mobilidade”. (sublinhado nosso)

N - Donde, existindo quebra ou interrupção entre contratos, tal implica a perda da qualidade de beneficiário.

O - A interpretação extraída da sentença recorrida do segmento “inicie funções” não tem acolhimento na lei, indo muito para além do inciso legal.

P - Estabelece o artigo 53.° da Lei de Bases da Segurança Social aprovada pela Lei n.° 4/2007, de 16 de janeiro que “O sistema previdencial abrange o regime geral de segurança social aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem e aos trabalhadores independentes, os regimes especiais, bem como os regimes de inscrição facultativa abrangidos pelo n.º 2 do artigo 51.º”, definindo, por seu turno o artigo 55.º da mencionada lei que “são condições gerais de acesso à proteção social garantida pelos regimes do sistema previdencial a inscrição e o cumprimento da obrigação contributiva dos trabalhadores e, quando for caso disso, das respectivas entidades empregadoras”.

Termos em que e nos melhores de direito que os Venerandos Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso proceder, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra que, nos termos melhor alegados, fará a acostumada Justiça.


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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) O Autor é habilitado com a Licenciatura em Filosofia - documento ... junto com a petição inicial.

2) Iniciou funções em Setembro de 1994 na Escola EB 2, 3/S de ..., e foi subscritor da Caixa Geral de Aposentações desde essa data - documentos ... e ... juntos com a petição inicial; processos administrativo, fls. 1.

3) Até 28.05.2009 contribuiu para o regime da Caixa Geral de Aposentações - documento ... junto com a petição inicial.

4) A partir de Junho de 2009 o Autor passou a ser beneficiário e a contribuir para o regime da Segurança Social - documento ... junto com a petição inicial.

5) A partir de 12.05.2009 o Autor exerceu funções docentes nos seguintes agrupamentos – documento ... junto com a petição inicial:

- 2008/2009, Agrupamento de Escolas ...;
- 2008/2009, Agrupamento Vertical de Escolas de Fiães;
- 2009/2010, Agrupamento de Escolas ... de ... -...;
- 2010/2011, Agrupamento de Escolas ... de ... -...;
- 2011/2012, Agrupamento de Escolas ... de ... -...;
- 2014/2015, Agrupamento de Escolas ...;
- 2015/2016, Agrupamento de Escolas ...;
- 2016/2017, Agrupamento de Escolas ...;
- 2016/2017, Escola Secundária ...;
- 2017/2018, Agrupamento de Escolas ... - ...;
- 2018/2019, Agrupamento de Escolas ...;
- 2019/2020, Agrupamento de Escolas ..., ...;
- 2020/2021, Escola Secundária ..., entre 01/09 a 31/08;
- 2021/2022, Agrupamento de Escolas ....

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III - Enquadramento jurídico.

1. Excepção de intempestividade da acção; impropriedade do meio processual (alíneas D), E) e G) das conclusões).

Sob a denominação da intempestividade da acção e impropriedade do meio processual, o Ministério da Educação veio suscitar uma questão nova em recurso, não suscitada na contestação e que, como tal, não deveria ser conhecida na presente instância.

Em todo o caso, atenta a manifesta simplicidade da questão, e à cautela, sempre se dirá o que segue, a este propósito.

O invocado artigo 67º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não estabelece qualquer prazo para interposição da presente acção.

Estabelece, isso sim, os pressupostos para a condenação à prática do acto devido.

Desde logo não é necessário que haja a prática de um acto para que se peça a condenação à prática do acto devido porque, precisamente, não ter sido decidida a pretensão do particular é uma das hipóteses em que é permitida a dedução deste pedido – alínea a) e segunda parte da alínea b) do n.º1 do artigo 67º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

E se é certo que, como regra, deve o particular apresentar previamente requerimento que constitua o órgão competente no dever legal de decidir – n.º1 deste preceito – também se prevê que a condenação à prática do acto devido pode ser pedida sem ter sido apresentado previamente requerimento quando, numa de duas hipóteses, não tenha sido cumprido o dever de emitir acto administrativo que resultava directamente da lei, como é o caso da continuidade da inscrição do Autor na Caixa Geral de Aposentações – n.º 2 alínea a) do mesmo preceito.

A esta conclusão não obsta a necessidade da prática de actos materiais que são consequentes dessa definição (pedido formulado sob a alínea b) da petição inicial) precisamente por serem actos materiais e, com tal, não conterem qualquer definição jurídica distinta ou para além da que é pedida a título principal.

Improcede, pois, esta excepção.

2 - Caducidade do direito de acção; o abuso de direito (alínea F) das conclusões).

No que diz respeito aos actos de processamento de vencimento, sempre foi entendimento maioritário o de que tais actos, para se consolidarem na ordem jurídica, devem preencher dois requisitos (ver neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3.12.2002, no recurso 042/02): 1º - devem constituir uma definição inovatória e voluntária relativamente ao processamento do vencimento, "em determinado sentido e com determinado conteúdo"; 2º - o acto de processamento inovatório deve ser notificado ao interessado tal como os demais actos administrativos, ou seja, em obediência ao disposto nos artigos 68º do Código de Procedimento Administrativo.

Posição subscrita no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24.11.2005, no processo 07158/03, com o mesmo relator.

Ora, como se refere na decisão recorrida, nem do presente processo judicial nem do processo administrativo resulta a prática de qualquer acto que se possa configurar como uma definição da situação jurídica do Autor, feita de forma unilateral por qualquer das Entidades Demandadas.

Nem, consequentemente, resulta que o Autor tenha sido notificado de uma qualquer decisão sobre a sua inscrição e descontos a parir de 01.06.2009.

Existem, isso sim, as simples operações materiais de inscrição do Autor no regime geral da Segurança Social a partir de 01.06.2009 e de efectivação de descontos no vencimento neste regime.

Não tendo sido praticado qualquer acto administrativo, não se aplica ao caso o prazo geral de impugnação de três meses, previsto no artigo 58.°, n.° 2, b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ou qualquer outro.

Não se vislumbra, a este propósito, como se pode falar em abuso de direito quando está em causa, não exercício de um direito substantivo ou adjectivo, em si mesmo ou só por si, mas um ónus, o de intentar uma acção num determinado prazo.

Nem o Recorrente o esclarece.

Improcede, pois, também esta excepção.

3 - A interpretação do artigo 2.° da Lei 60/2005, de 29 de Dezembro, e do artigo 11.° da Lei do Trabalho em Funções Públicas.

Não se tendo verificado, ao contrário do pretendido pelo Recorrente, qualquer descontinuidade na situação vínculo de emprego público que permitia ao Autor a sua inscrição na Caixa Geral de Aposentações, descontinuidade que impusesse, consequentemente, a sua inscrição no regime geral da segurança social, não se coloca a questão de saber se devia ou não manter a sua inscrição neste regime geral.

Termos em que se impõe, tal como decidido, julgar a acção totalmente procedente.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO A RECURSO, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

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Porto, 15.12.2023

Rogério Martins
Nuno Coutinho
Isabel Costa