Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00075/14.5BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/15/2014
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL PARA PERDA DE MANDATO
Sumário:I - A perda de mandato de um membro de um órgão autárquico só pode ser decretada quando ele, entre outras, estiver envolvido nesta situação: ter intervindo em procedimento administrativo, estando legalmente impedido de o fazer, e fazê-lo para obter vantagem patrimonial para si ou para outrem.
II - No caso sub judice, tendo sido deliberado pelo executivo da Junta de Freguesia efectuar adjudicações de fornecimento de materiais à empresa V..., cujo sócio gerente é marido da Tesoureira e filho do Presidente da Junta, teria de haver um especial cuidado de justificar o porquê de se adjudicar a essa empresa e não a outra;
II.1- estes, ao intervirem, por seis vezes, nos procedimentos e deliberações que determinaram a adjudicação dos fornecimentos à empresa do seu filho e marido, atribuíram aquele e à própria demandada um benefício que naquele contexto sabiam ser ilícito e violador dos princípios a que manda atender o artº 266º/2 da CRP e artº 4º b) -i), ii), iii) e vi), da Lei 29/87, de 30/06 e que se traduziu nos pagamentos efectuados pela demandada na qualidade de tesoureira;
II.2 - e tiveram o cuidado de não formalizar, isto é, de não publicitar tais deliberações uma vez que não foi lavrada acta relativamente a tais assuntos;
II.3 - o facto de os montantes em causa não serem objectivamente elevados é irrelevante, pois, tão ou mais importante que os valores, é a atitude/a postura dos mesmos;
II.4 - num círculo absolutamente fechado como este (pai-presidente/nora-tesoureira/empresa pertencente ao filho e marido daqueles), tendo sido deliberado pelo executivo da Junta de Freguesia efectuar adjudicações de fornecimento de materiais à empresa cujo sócio gerente é marido da Tesoureira e filho do Presidente da Junta, teria de haver um especial cuidado de justificação e explicação das opções tomadas;
II.5 - todas as cautelas, em sede de transparência, se impunham, não bastando alegar, posteriormente, que era a empresa que apresentava um preço mais baixo e que tudo se deveu à situação de urgência e à necessidade de bem servir o interesse público;
II.6 - o apelo ao desconhecimento dos impedimentos já soa a argumentação gasta; além disso a legislação portuguesa consagra o princípio iluminista de que a ignorância da lei não aproveita a ninguém (artº 6º do Código Civil). Pressupõe-se que existe um dever de conhecer a lei do Estado, que é pública, não se aplica retroactivamente e até consagra soluções próximas da racionalidade comum.
III - De acordo com as regras da experiência comum, cremos que não podia, face à prova produzida, deixar de se concluir que foram feitas as adjudicações em causa à empresa V... com a intenção de os Réus obterem vantagem patrimonial para si ou para outrem.
IV - Com a legislação aplicável ao caso, invocada pelo MP/Recorrente e não questionada pelos Recorridos, quis o legislador proteger a defesa do interesse público e penalizar o aproveitamento do poder e influência inerentes à titularidade de um cargo público para se obter ilegalmente vantagem patrimonial;
IV.1 - contrariamente ao decidido, os actos relatados atestam a presença do falado elemento subjectivo e, encontrando acolhimento nos aventados normativos, impõe-se o êxito da acção.*
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Ministério Público
Recorrido 1:MGJJ... e FJ...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Perda de Mandato (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
O Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro propôs acção para declaração de perda de mandato contra FJ..., Presidente da Junta de Freguesia de V... e Sto.A..., residente … em Sto. A... de V..., e MGJJ..., Secretária da Junta de Freguesia de V... e Sto. A..., residente …, em Sto. A... de V..., peticionando a “perda do actual mandato de FJ... e de MGJJ..., ambos membros do executivo da união da Junta de Freguesia de V... e Sto. A....”
Por sentença proferida pelo TAF de Aveiro foi julgada improcedente a acção.
Desta decisão vem interposto recurso pelo Ministério Público.
Em alegação concluiu assim:
I - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 14/03/2014, pela Senhora Juiz, em que se julgou improcedente o pedido de declaração de perda de mandato dos RR FJ... e MGJJ..., na qualidade de Presidente e Tesoureira, respectivamente, da Junta de Freguesia de V... e Sto. A....
II – Entendemos, contudo, face à prova produzida, documental e testemunhal, que a Senhora Juiz deveria ter dado como provados todos os factos alegados pelo Ministério Público na p.i.
III - Sucede que, analisada a decisão recorrida não foi dado como provado ter o executivo da Junta de Freguesia, do qual faziam e fazem parte ambos os RR. deliberado verbalmente adjudicarem à V... os fornecimentos de betão e de pavê em causa nos autos sendo que tal factualidade é relevante para a correcta decisão da causa nomeadamente para, em conjugação com outros elementos, concluir pela verificação do elemento subjectivo alegado pelo Autor.
IV - Acresce que, apreciada a fundamentação da decisão recorrida, em termos de matéria de facto, verificamos que a Senhora juiz não deu como provado tal elemento subjectivo de que depende a perda de mandato isto é:
-que os demandados tomaram parte nas deliberações supra indicadas em que foram adjudicados da forma descrita os fornecimentos de betão e de pavê à empresa V..., que pertence a PSFJ... o qual é filho do demandado FJ... e cônjuge da demandada MGJJ..., pretendendo claramente que a efectivação das mencionadas adjudicações fossem efectuadas àquela empresa visando, assim, proporcionar-lhe, e a si próprios, uma vantagem patrimonial que sabiam não ser permitida por lei agindo, com claros intuitos de favorecer a empresa do seu filho e cônjuge, respectivamente, criando, assim, um privilégio gerador de desigualdades, violando os princípios do exercício isento, desinteressado e imparcial, próprio dos cargos autárquicos.
V – Logo, o Tribunal a quo incorreu, em erro de julgamento ao não dar como provada aquela factualidade alegada pelo A. e relevante para a apreciação da causa.
VI – O erro de julgamento (ou erro de facto ou erro de direito) ocorre quando o Tribunal decide mal, decide contra lei expressa ou contra os factos apurados, apenas podendo ser sanado por via do recurso.
VII – Tal alteração cabe nos poderes desse Tribunal de recurso, nos termos do art. 662º, do CPC uma vez que as provas produzidas impõem decisão diversa.
VIII – Pelo que o Tribunal Central Administrativo Norte deve alterar a matéria de facto dada por provada na 1ª instância.
IX - Efectivamente, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida afigura-se-nos que a conduta dos RR violou princípios e normas legais imperativas que lhes competia respeitar, e, por via disso, incorreram na sanção de perda de mandato.
X - Segundo o art. 266º, 2 da CRP, “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.”
XI - A Lei 27/96, de 1 de Agosto, aprovou o Regime Jurídico da Tutela Administrativa.
XII – Segundo decorre do nº 2 do art. 8º referida lei “Incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem.”
XIII - Sendo que nos termos do nº 3 da mesma norma legal “Constitui ainda causa de perda de mandato a verificação em momento posterior ao da eleição, de prática, por acção ou omissão, em mandato imediatamente anterior, dos factos referidos na alínea d) do nº 1 e no nº 2 do presente artigo.”
XIV – Como decorre do art. 44º, 1, do CPA, estava claramente vedado aos RR. Intervir em qualquer acto ou procedimento administrativo em que tivessem interesse.
XV – Acresce que sendo os RR FJ... e MJ... respectivamente Presidente e Tesoureira da Junta de Freguesia de Sto. A... de V..., impendia sobre eles o especial dever de se absterem de intervirem em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado, nem participar na discussão ou votação de assuntos em que tivessem interesse ou intervenção – art. 4º al. B) iv do Estatuto dos Eleitos Locais.
XVI – Ora, dúvidas não há que os RR tomaram parte nas deliberações supra indicadas em que foram adjudicados da forma descrita os fornecimentos de betão e de pavê à empresa V..., que pertence a PSFJ... o qual é filho do demandado FJ... e cônjuge da demandada MGJJ....
XVII - E tiveram o cuidado de não formalizar, isto é, não publicitar tais deliberações uma vez que não foi lavrada acta relativamente a tais assuntos.
XVIII - No caso subjudice, tendo sido deliberado pelo executivo da Junta de Freguesia efectuar adjudicações de fornecimento de matérias à empresa V... cujo sócio gerente é marido da Tesoureira e filho do Presidente da Junta teria de haver um especial cuidado de justificar cuidadosamente o porquê de se adjudicar a essa empresa e não a outra.
XIX – Só assim se poderá garantir a transparência e evitar que comodamente a posteriori se venha alegar, como aconteceu no caso dos autos, que afinal era a empresa que fazia mais barato.
XX - Ora, da conjugação da prova documental com a prova testemunhal, dúvidas não restam, em nosso entender, que foram efectuadas seis adjudicações à empresa pertencente ao filho do demandado e marido da demandada sem que tivesse sido dada a mesma possibilidade a outras empresas que não tivessem qualquer ligação com a Junta de Freguesia.
XXI – Sobre as adjudicações em causa pronunciou-se a testemunha MF... que, na altura, em conjunto com os RR, fazia parte do executivo da Junta de Freguesia e que espontaneamente declarou que decidiram adjudicar os fornecimentos em causa à V... na sequência de uma informação do Sr. Presidente e que não foram pedidos orçamentos a outras empresas.
XXII - Para a decisão a proferir tal depoimento, como aliás todos os restantes, terão de ser analisados de acordo com as regras da experiência, de acordo com o normal acontecer.
XXIII - E nesses termos teremos de concluir que o facto de a empresa V... ter celebrado um contrato com o Município de V... (datado de 18 de Julho de 2011) de aquisição de betão, não foi relevante nem poderia ser, para a efectivação das adjudicações em causa nos autos principalmente porque em causa não está apenas o fornecimento de betão mas também o fornecimento de pavê.
XXIV – E depois porque tal como referiu aquela testemunha, já no mandato anterior – 2005/2009 - em que o demandado FJ... também exerceu as funções de Presidente da Junta de Freguesia, ou seja, muito antes da outorga daquele contrato, o Executivo da Junta deliberou adjudicar o fornecimento de betão à V....
XXV – Finalmente resultando provado que não foram pedidos orçamentos a outras empresas para os fornecimentos dos materiais em causa, não releva o facto de virem agora algumas testemunhas referir que para as aquisições efectuadas pela Junta faziam um apuramento prévio dos preços mais baixos.
XXVI - Não podia, pois, face à prova produzida, interpretada de acordo com as mais elementares regras da experiência comum, deixar de se concluir que foram feitas as adjudicações em causa à empresa V... com a intenção dos RR obterem vantagem patrimonial para si ou para outrem nos termos supra referidos.
XXVII - Em causa está, pois, garantir a isenção e a independência com que os titulares dos órgãos autárquicos devem exercer os seus cargos e, assim, gerir os negócios públicos.
XXVIII - Em, consonância com este entendimento, foi decidido no Ac. do STA de 30/08/2000, proc. 046540:
“I – (…)
II – É de declarar a perda de mandato se ficou provado que um Presidente da Junta de Freguesia celebrou nesta qualidade com a sua esposa um contrato de prestação de serviços e de fornecimento de bens, tendo recebido as respectivas quantias.”
XXIX - Os RR. ao intervirem, por seis vezes, nos procedimentos e deliberações que determinaram a adjudicação dos fornecimentos à empresa do seu filho e marido atribuíram aquele e à própria demandada um benefício que naquele contexto sabiam ser ilícito e violador dos princípios a que manda atender o art. 266º, nº 2 da CRP e art. 4º b)-i),ii),iii) e vi), da Lei 29/87, de 30/06 e que se traduziu nos pagamentos efectuados pela demandada na qualidade de tesoureira.
XXX – Termos em que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que decrete a requerida perda de mandato dos RR.

O Réu contra-alegou, concluindo nestes termos:

1. A sentença proferida nos presentes autos não merece qualquer reparo pois em face da prova documental e testemunhal produzida, inclusive a determinada por iniciativa da Autora, ora Recorrente, e da falta em absoluto de fundamento e prova das considerações, circunstâncias e fatos imputados ao Réu/Recorrido, outra decisão não podia ser que a de ser julgada improcedente a ação interposta de perda de mandato.

2. Resultando claro que não foi feita prova, nem da existência de dolo direto (artigo 8º, nº 2 da Lei nº 27/96, de 01.08), nem de qualquer ilegalidade grave traduzida na prossecução de fins alheios ao interesse público susceptível de integrar o tipo legal previsto para a sanção de perda de mandato do aqui Recorrido.

3. Nenhum dos factos efetivamente provados são suscepíveis de indiciar sequer uma leve integração na previsão do artigo 8º, nº 2 da Lei nº 27/96, de 01.08. segundo o qual incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem.

4. Na verdade, de nenhum dos factos provados decorre que o aqui Recorrido enquanto Presidente da Junta de Freguesia nas deliberações mencionadas tivesse em vista, ou tivesse de fato obtido, para si ou para outrem (filho ou empresa V...) qualquer vantagem patrimonial.

5. Os alegados ilícitos consubstanciados na participação nas deliberações da Junta de Freguesia não configuram por parte do Recorrido a prossecução dolosa de fins alheios ao interesse público, antes ficou provado que o único fim prosseguido pelo Recorrido foi o de satisfazer as necessidades urgentes e necessárias da população da freguesia através da aquisição de serviços e bens ao melhor preço de mercado.

Termos em que, deverá julgar-se o recurso improcedente, confirmando-se a sentença, com o que farão JUSTIÇA

A co-Ré também contra-alegou, sem conclusões, finalizando assim:
NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO QUE SERÃO SUPRIDOS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO, TOTALMENTE, IMPROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, DEVE SER MANTIDA A DECISÃO RECORRIDA, SÓ ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão sob recurso foi dada como provada a seguinte factualidade:
A). Em 23.10.2009, foi elaborada a «Acta n.º 96», destinada à instalação da Assembleia de Freguesia de Sto. A... de V..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e, da qual consta, que o R. FJ... era Presidente da Junta e, a R. MJ..., vogal da mesma. – cfr. fls. 17 a 19 dos autos;
B). Em 29.10.2009, foi elaborada a «Acta n.º Dez/2009», na qual é dada posse à nova Junta de Freguesia de Sto.A... de V..., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e, da qual consta, que o R. FJ... era Presidente da Junta e, a R. MJ..., assumiu as funções de tesoureira. - cfr. fls. 20 a 22 dos autos;
C). Em 22.10.2013, foi elaborada a «Ata de instalação dos órgãos representativos da Freguesia», cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e, da qual consta que o R. FJ... era o Presidente da Junta eleito e a R. MJ... a secretária . –cfr. fls. 23 dos autos;
D). Em 22.11.2011, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto.A..., a factura n.º 5554, referente a fornecimento de betão, no valor total de 723,24 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta n.º onze/2011», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 28 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
E). Em 30.12.2011, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto.A..., a factura n.º 5675, referente a fornecimento de betão, no valor total de 922,50 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta n.º doze/2011», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 32 a 37 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
F). Em 31.10.2012, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto. A..., a factura n.º 6306, referente a fornecimento de betão, no valor total de 1.698,02 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta n.º onze/2012», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 38 a 41 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
G). Em 3.12.2012, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto .A..., a factura n.º 6430, referente a fornecimento de betão, no valor total de 926,19 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta n.º doze/2012», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 42 a 45 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
H). Em 13.06.2013, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto. A..., a factura n.º 6774, referente a fornecimento de betão, no valor total de 2.469,84 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta n.º seis/2013», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 46 a 49 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
I). Em 28.08.2013, a sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.» emitiu à Freguesia de Sto. A..., a factura n.º 7161, referente a fornecimento de pavê, no valor total de 2.066,56 €, que veio a ser paga, após deliberação na «Acta nº nove/2013», por cheque da CGD.... - cfr. fls. 50 a 54 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
J). O teor da certidão permanente de registo comercial da sociedade «V... – Materiais de Construção, Lda.», que aqui se dá por integralmente reproduzido e, da qual consta, além do mais, serem sócios: PSFJ... e PRMJ.... – cfr. fls 55 e 56 dos autos;
K). O teor do assento de nascimento nº 3380 do ano de 2011, que aqui se dá por integralmente reproduzido e, da qual consta, além do mais, que o R. FJ... é pai de PSFJ... , tendo este último, em 17.08.2002, casado com a R. MJ.... – cfr. fls. 57 (frente e verso), 58 e 59 dos autos;
L). Em 18.07.2011, entre a sociedade «V...» e o Município de V... foi celebrado “contrato – aquisição betão”, constando da proposta apresentada por aquela sociedade, com data de 08.06.2011, cujos teores aqui se dão por reproduzidos integralmente, além do mais, o seguinte: “... fornecimento “aquisição de betão”, ... obriga-se ao fornecimento em conformidade com o exigido no convite-Circular e Caderno de Encargos, pelos seguintes preços/m3:
- C16 F2 D/25 F3 D/16 €50,20
- C20/25 F2 D/25 F3 D/16 €52,50
- C25/30 F2 D/25 F3 D/16 €53,15 (…)” – cfr. 87 a 91 dos autos;
M). As adjudicações feitas pela Junta de Freguesia de V... à sociedade «V...» foram feitas com base na informação de que era a empresa que tinha melhores preços para aqueles produtos, uma vez que aquela tinha feito fornecimentos dos mesmos materiais à Câmara Municipal de V.... – cfr. depoimento da testemunha MF...;
N). O RF. exerceu, em tempos, a actividade de empreiteiro. – cfr. depoimento da testemunha MF...;
O). Para as aquisições efectuadas pela Junta, todos os elementos daquele executivo faziam um apuramento prévio dos preços mais baixos. – cfr. depoimento da testemunha MF...;
P). A Junta de Freguesia de V... recorreu ao auxílio da sociedade «V...» em muitos serviços urgentes, enquanto as outras Freguesias aguardavam pelos meios disponibilizados pelo Município.- cfr. depoimento da JCL...;
Q). No início do mandato a Câmara Municipal de V... fez várias consultas de preços para fornecimento de materiais, informando as freguesias dos resultados obtidos. - cfr. depoimento das testemunhas JCL... e AR...;
R). O presidente da Junta de Freguesia de S..., nos quadriénios de 2005-2009 e 2009-2013, durante os seus mandatos adquiriu materiais à sociedade «V...». – cfr. depoimento da testemunha JCL...;
S). Em reunião realizada na CCDR com o executivo das diversas Juntas do concelho de V..., em que estava presente a R. M… foi prestada a informação de que, desde que fosse respeitado o procedimento legal, era “possível” adquirir /adjudicar a empresa cujos sócios fossem relacionados com os membros da Junta.– cfr. depoimento da testemunha JCL...;
T). A Junta de Freguesia de V... não dispõe de apoio jurídico. – cfr. depoimento da testemunha MAL...;
U). Os RR. gozam do reconhecimento e consideração, em geral, da população da sua freguesia. cfr. depoimento das testemunhas MAL..., JCL..., JR..., AAR..., AC... e AR...;
V). Os materiais adquiridos à sociedade «V...» destinaram-se a obras de melhoramento e reparação, alguns com carácter de urgência, efectuados na Freguesia. - cfr. depoimento das testemunhas MAL..., JCL..., AR... e AC....
Em sede de factualidade não provada o Tribunal consignou o seguinte:
“Com relevância para a decisão a proferir não resultaram provados quaisquer outros factos.”
E no que à convicção do Tribunal diz respeito esclareceu que se fundou “na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e que não foram objecto de impugnação, assim como, nos depoimentos prestados em sede de audiência e julgamento.
Quanto à valoração da prova testemunhal, o Tribunal considerou os depoimentos prestados, em geral, como sinceros, isentos e coerentes. Relevou-se, em particular, os depoimentos supra indicados relativamente a cada facto, porquanto transpareceram um conhecimento directo e pessoal dos factos relatados, mostrando-se, por isso, pertinentes e essenciais à boa decisão da causa.“
DE DIREITO
É objecto de recurso a sentença proferida pelo TAF de Aveiro, em 14/3/2014, que julgou improcedente a acção administrativa especial de declaração de perda de mandato dos Réus FJ... e MGJJ..., na qualidade de Presidente e Tesoureira, respectivamente, da Junta de Freguesia de V... e Sto. A....
A Senhora Procuradora da República junto do Tribunal recorrido imputa à decisão erro de julgamento de facto que, por sua vez, inquina o julgamento de direito.
Cremos que lhe assiste razão.
Antes, porém, deixa-se aqui transcrito o discurso jurídico fundamentador da sentença sob censura:
“…
Dispõe o artigo 8º n.2 da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto que:
“Incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem.”
Por sua vez, preceitua o artigo 44º do Código de Procedimento Administrativo que “Nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública nos seguintes casos: a) Quando nele tenha interesse, por si, como representante ou gestor de negócios de outra pessoa; b) Quando, por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoas com quem viva em economia comum; (…)”
E, também, o artigo 4º nº 2 alínea d) da Lei nº 29/87, de 30 de Junho, prevê ser dever dos eleitos locais “não intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum; (…)”
Feito, assim o enquadramento legal, da questão sub iudice importa apreciar os factos apurados.
Resulta da factualidade assente que ambos os RR. integraram, e integram, o executivo da Junta de Freguesia de V... (actualmente, união de freguesia de V... e Sto. A... desde 2009) [cfr. pontos A). B). e C) do probatório] e que, no exercício de tais funções participaram em deliberações verbais de aquisição de materiais à sociedade «V...» e deliberações de pagamentos de tais materiais à mesma sociedade [cfr. pontos D). a I) do probatório]
Ressuma também da factualidade assente que a sociedade «V...» é constituída por dois sócios – PS... e PR... – sendo que, o PS... é filho do R. F… e marido da R. M… [cfr. pontos J). e K) do probatório].
O Tribunal conclui, por isso, que a descrita conduta dos RR. por constituir intervenção “em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal” preenche o primeiro pressuposto – o elemento objectivo – de que depende a perda de mandato aqui peticionada pelo A..
No entanto, a perda de mandato pressupõe, para além da citada intervenção, que na mesma, os titulares do órgão visem a obtenção de uma vantagem patrimonial para o próprio ou para o terceiro, impondo-se, assim, como elemento subjectivo, uma actuação dolosa de prejuízo do interesse público e/ou de favorecimento de terceiros.
Sobre este pressuposto, a doutrina tem afirmado que “…a ilegalidade grave tem de ter na base acção ou omissão dolosas, isto é, intencionalmente violadoras da Constituição e da Lei, e finalisticamente orientadas para fins alheios ao interesse público.
Assumirão aqui especial relevo e acuidade as situações em que os membros ou os órgãos através dos seus membros desrespeitam deveres legais, com a consciência dessa violação e no alheamento do interesse público e das finalidades adjudicadas a tais deveres.” – (Ac. STA de 16/01/97, rec. 41238, Isabel Jovita), In Ernesto Vaz Pereira, Da Perda de Mandato Autárquico, Da Dissolução de Órgão Autárquico, Legislação, Notas Práticas e Jurisprudência, Almedina, Maio de 2009, pág. 50).
Aliás, tal entendimento tem sido defendido pelo Supremo Tribunal Administrativo, que refere “E é tendo em conta a gravidade da sanção e das suas consequências que a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a afirmar que, exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal. E isto porque a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção visto que, se assim não for, será de questionar a constitucionalidade das normas que permitam declarações de perda de mandato fundadas em lapsos mínimos e, portanto, destituídas de razoabilidade (Acórdão de 20/12/2007 (rec. 908/07).).
Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando "a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, (iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96). Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais”.» (Acórdão de 11/03/99, rec. 44.576, com sublinhados nossos) (No mesmo sentido podem ver-se, ainda, e entre outros, os Acórdãos de 23/04/2003 (rec. 671/03) de 22/08/2007 (rec. 690/07), de 25/09/2007 (rec. 693/07), de 28/11/2007 (rec. 734/07), de
5/12/2007 (rec. 871/07), de 22/06/2008 (proc. 353/08) e de 22/08/2010 (proc.690/07)).
E, porque assim é, este Tribunal tem entendido que, nos casos de violação da norma que proíbe ao autarca de intervir em procedimento onde possa obter vantagem patrimonial, essa violação só é determinante da perda do mandato quando se mostre que ele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse o impedia de actuar de forma rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo. Mas tem acrescentado que essa intervenção tem de estar associada a culpa grave visto que “só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.” (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349,). (…)” – cfr. Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 0859/11, datado de 07.12.2011.
Ora, no caso concreto não se apurou factualidade que permita sustentar uma culpa grave na actuação dos RR. Ao invés, dos depoimentos prestados revelou-se que os RR. actuaram sem consciência de qualquer ilicitude na sua actuação, desconhecendo a existência de qualquer impedimento associado à sua intervenção nas deliberações que constituem a causa de pedir nestes autos [cfr. S). e T). do probatório].
Com efeito, no que às deliberações concerne foi referido que outras Juntas de Freguesia do concelho e o próprio Município de V... adquiriam materiais à sociedade «V...» por considerarem que era esta quem oferecia melhores preços. Aliás, em procedimento concursal lançado pelo Município, foi adjudicado o fornecimento de materiais – betão – àquela «V...» por considerar ser este o concorrente que apresentava melhor preço [cfr. L)., M)., N). O)., Q). e R). do probatório].
Adicionalmente, também, não é despiciendo relevar que os RR. têm desenvolvido um trabalho meritório na Freguesia onde exercem o seu cargo, sendo assim reconhecidos pela generalidade da população ali residente, procedendo a obras de melhoramentos e a reparações urgentes necessárias [cfr. U). e V). do probatório], recorrendo, por vezes e para esse efeito, aos serviços da sociedade «V...» [cfr. ponto P. do probatório].
Em suma, da factualidade apurada não resulta provado que a actuação dos RR. visasse a obtenção de vantagem patrimonial para si próprios ou terceiros, à custa do interesse ou erário público.
Destarte, uma vez que para haja lugar à declaração de perda de mandato os pressupostos enunciados no n.2 do artigo 8º da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto se devem verificar cumulativamente, in casu tendo-se por não demonstrado o elemento subjectivo ali enunciado, impõe-se a improcedência da presente lide.” (os sublinhados são nossos).

X
Vejamos:
Nos termos do artº 7º da Lei 27/96, de 1 de Agosto, que “estabelece o regime jurídico da tutela administrativa a que ficam sujeitas as autarquias locais e entidades equiparadas, bem como respectivo regime sancionatório” - nº 1 do seu artº 1º, “a prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais pode determinar, nos termos previstos na presente lei, a perda do respectivo mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos, ou a dissolução do órgão, se forem o resultado da acção ou omissão deste.” O que nos permite concluir que a perda de mandato só pode ter lugar quando a ilegalidade que a determina esteja relacionada com a gestão daquelas autarquias e que, se assim é, se a ilegalidade tiver origem noutra sede que não a gestão da autarquia a consequência da mesma terá de ser outra que não a perda de mandato.
A indicação dessas ilegalidades encontra-se nos artºs 8º e 9º da citada Lei onde se lê que, entre outras, a referida sanção incide sobre os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, “intervenham em procedimento administrativo relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem” (nº 2 do artº 8º), que “sem causa legítima de inexecução, não dê cumprimento às decisões transitadas em julgado dos tribunais” ou que incorram, por acção ou omissão dolosas, ”em ilegalidade grave traduzida na consecução de fins alheios ao interesse público.” (alíneas a) e i) do artº 9º, aplicável por força do disposto na al. d) do artº 8º).
O que quer dizer que a perda de mandato só pode ser decretada nas situações taxativamente indicadas nas citadas normas – máxime naquelas que se acabam de mencionar - e que fora desses casos inexiste fundamento para decretar tão grave sanção.
E é tendo em conta a gravidade da sanção e das suas consequências que a jurisprudência do STA tem vindo a afirmar que, exceptuados os casos em que o dolo é legalmente exigível na configuração da infracção, a perda do mandato só pode ser decretada quando o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal. E isto porque a perda de mandato de alguém que foi democraticamente eleito só deve ser decretada quando houver uma relação de adequação e proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção- acs. do STA de 20/12/2007, rec. 908/07 e de 07/12/2011 rec. 0859/11, citados na sentença sob recurso.
Neste último refere-se “Deste modo, e muito embora seja certo que a perda de mandato pode ser decretada sem que haja dolo na conduta do agente também é que a aplicação dessa sanção só encontra justificação quando "a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira). Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» - cfr. ac. do STA de 21/03/96.
“Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais” - ac. do STA de 11/03/99, rec. 44.576.
E, porque assim é, a jurisprudência do STA tem entendido que, nos casos de violação da norma que proíbe ao autarca de intervir em procedimento onde possa obter vantagem patrimonial, essa violação só é determinante da perda do mandato quando se mostre que ele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse o impedia de actuar de forma rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo.
Posto isso, vejamos se a conduta dos Recorridos é subsumível à previsão dos mencionados artºs 8º e 9º da Lei 27/96.
Para tal impõe-se apreciar o alegado erro de julgamento de facto assacado à decisão.
Neste particular sustenta o Recorrente, além do mais, que:
-face à prova produzida, documental e testemunhal, deveria a senhora Juiz ter dado como provados todos os factos alegados pelo Ministério Público na p.i.;
-todavia, analisada a sentença constata-se que não foi dado como provado ter o executivo da Junta de Freguesia, do qual faziam e fazem parte ambos os RR. deliberado verbalmente adjudicar à V... os fornecimentos de betão e de pavê em causa nos autos sendo que tal factualidade é relevante para a correcta decisão da causa nomeadamente para em conjugação com outros elementos se concluir pela verificação do elemento subjectivo alegado pelo Autor;
-apreciada a fundamentação da decisão recorrida, em termos de matéria de facto, verificamos que a Senhora Juiz não deu como provado tal elemento subjectivo, isto é:
-que os demandados tomaram parte nas deliberações supra indicadas em que foram adjudicados da forma descrita os fornecimentos de betão e de pavê à empresa V..., que pertence a PSFJ... o qual é filho do demandado FJ... e cônjuge da demandada MGJJ..., violando assim o que expressamente dispõem os arts. 4º, b) - iv) da Lei 29/87 de 30/06 e 44º, 1, b), do CPA;
-ao participar nas mencionadas deliberações, sem que tal lhes fosse permitido por lei, os demandados foram movidos por outros interesses, que não o público que deveriam servir;
-pretendendo claramente que a efectivação das mencionadas adjudicações fossem efectuadas à empresa do filho do demandando e cônjuge da demandada em detrimento de quaisquer outras, visando, assim, proporcionar-lhe, e a si próprios, uma vantagem patrimonial que sabiam não ser permitida por lei.
-agiram com claros intuitos de favorecer a empresa do seu filho e cônjuge, respectivamente, criando, assim, um privilégio gerador de desigualdades, violando os princípios do exercício isento, desinteressado e imparcial, próprio dos cargos autárquicos;
-o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao não dar como provada aquela factualidade alegada pelo A. e relevante para a apreciação da causa.
X
Como é sabido, em relação à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar o que releva para o apuramento da verdade e a correcta decisão da causa - artº 607º do CPC, ex vi artº 1º do CPTA.
Conforme alegado, De acordo com o princípio da livre apreciação da prova o Tribunal baseia a sua decisão, face à prova produzida, à sua convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência comum e o normal acontecer.
No julgamento da impugnação da decisão da matéria de facto deve ser-se cauteloso, atentos os princípios da oralidade, da livre apreciação da prova e da imediação - ac. do STA de 19/10/2005, rec. 0394/05 - “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos”.
Há, pois, que dar a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, sem prejuízo da garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.
Esta situação aparentemente conflitual decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. A imediação na produção da prova tem um peso significativo na livre apreciação da prova, porquanto, presenciando-se a produção da prova, observa-se directamente a espontaneidade dos depoentes e as reacções às questões que lhes vão sendo colocadas, percepcionando-se todo um conjunto de elementos não verbais relevantes para a formação da convicção e para a valoração e apreciação crítica da globalidade da prova.
Como ensina Eurico Lopes Cardoso, os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar - BMJ n.º 80, págs. 220/ 221
Desta feita, só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos - António Abrantes Geraldes em Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 4ª ed., 2004, págs. 266/267.
Ora, cientes de todas estas limitações, decorrentes do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas também conscientes de que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador, ”(…) o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.
A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente (…)” - cfr. M. Teixeira de Sousa em Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348.
Obedecendo a estes ensinamentos, com os quais nos identificamos, temos vindo a decidir, em casos semelhantes, que a sentença deve espelhar e reflectir, em termos de probatório, todos os factos que servem de alicerce à decisão.
Ao tribunal compete justificar os motivos da decisão sobre a matéria de facto, revelando as razões que o levaram a certa conclusão e não a outra perante os meios de prova produzidos e as posições que as partes tomaram nos articulados sobre a factualidade em discussão.
O nº 2 do artigo 653º do CPC estabelece o dever de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, impondo que o julgador especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da sua correcção. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente - acs. deste Tcan de 06/04/2006, rec. 578/03 Porto, de 25/01/2007, rec. 01875/06.5BEPRT, de 14/02/2007, rec. 122/02 Braga e de 20/9/2007, rec 48/03.3BEBRG, entre outros.
A fundamentação tem um valor crucial na delimitação dos poderes de cognição do tribunal ad quem porquanto uma referência detalhada e concreta a elementos apenas perceptíveis com imediação para justificar a convicção formada deixará um reduzido campo de manobra à instância de recurso.
Mas, para além destas coordenadas que devem nortear a apreciação da matéria de facto, outra se impõe, qual seja a de que os constrangimentos do tribunal de 2ª instância não podem equivaler a uma atitude negacionista, que vede um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Dito de outro modo, se é certo que ao tribunal de recurso apenas é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão (posto que fundamentada), não é menos verdade que o controlo do julgamento da matéria de facto não pode ficar reduzido a uma verificação da racionalidade e sustentabilidade da decisão de facto impugnada, atenta tão-só ao texto desta decisão.
Salvo melhor opinião, a necessidade de justificar a decisão, substituindo as respostas secas, dogmáticas, do tribunal por uma fundamentação esclarecedora do raciocínio do juiz só contribui para a melhor compreensão da decisão e prestígio do órgão donde ela emana.
Resumindo, não se deve hipertrofiar o relevo da imediação, ao ponto de na prática se negar o direito à reapreciação da matéria de facto em segunda instância. Apesar da imediação com a prova ser mais reduzida, outros elementos como a audição da gravação são de molde a permitir a percepção de pontos, não facilmente verbalizáveis, e que podem ser decisivos para a formação da convicção do tribunal. A isto acresce que o défice da imediação na produção da prova pessoal pode ser compensado por uma diferente perspectiva crítica e uma diferente experiência de vida do tribunal de recurso.
Postos estes considerandos, há que voltar ao caso em concreto, conhecendo-se da impugnação da decisão da matéria de facto nos pontos postos em causa pelo Recorrente.
E aqui temos que concordar com o MP.
Na verdade, do conjunto da prova produzida nos autos e levada ao probatório resulta ainda demonstrado que:
- “o executivo da Junta de Freguesia, do qual faziam e fazem parte ambos os Réus deliberou verbalmente adjudicar à V... os fornecimentos de betão e de pavê em causa nos autos”.
Atente-se no depoimento da testemunha MF... que foi tesoureiro da Junta no último quadriénio (2009-2013)
A V... pertence a PRJ... e PSJ... sendo este último, filho e cônjuge dos réus, respectivamente. Mais disse ainda que à referida empresa foi adquirido betão e pavê porquanto o presidente da junta informou que esta tinha ganho concurso de fornecimento à Câmara Municipal, pressupondo-se, pois, ser esta a que tinha melhores condições. Concretizando, afirmou que sabendo que aquela era a mais barata para a Câmara, acharam que, também o seria para a Freguesia, não contactando outra empresa.
As adjudicações efectuadas tinham por base as pessoas conhecidas da Junta nas suas relações económicas, “com base na confiança”. Declarou ainda que o Presidente da junta já foi empresário no ramo da construção, motivo pelo qual fundavam as suas escolhas no conhecimento daquele. Referiu, ainda, que próximo da freguesia existiam cerca de 5 empresas com materiais de construção.
Por fim disse que caso os réus não participassem nas deliberações do órgão, este não poderia deliberar.
Assim aquela matéria ampliada e a sublinhado adita-se ao probatório sob a alínea X) - artº 662º do CPC.
E, assim sendo, também nós concluímos pela presença do elemento subjectivo, ou seja, que os demandados, ao tomarem parte nas deliberações supra indicadas em que foram adjudicados da forma descrita os fornecimentos de betão e de pavê à empresa que pertence a PSFJ... o qual é filho do demandado FJ... e marido da demandada MGJJ... foram movidos por outros interesses, que não o público que deveriam servir e prosseguir, pretendendo claramente que a efectivação das mencionadas adjudicações fossem efectuadas à empresa do filho do demandando e cônjuge da demandada em detrimento de quaisquer outras, visando, assim, proporcionar-lhe, e a si próprios, uma vantagem patrimonial que sabiam não ser permitida por lei.
Agiram com claros intuitos de favorecer a empresa do filho e cônjuge, do Presidente e da Tesoureira da Junta, respectivamente, criando um privilégio gerador de desigualdades em violação dos princípios do exercício isento, desinteressado e imparcial, que deve orientar a actuação dos órgãos autárquicos.
Como já se disse, a perda de mandato de um membro de um órgão autárquico só pode ser decretada quando ele, entre outras, estiver envolvido numa das seguintes situações: (1) ter, dolosamente, incorrido em ilegalidade grave traduzida no aproveitamento do seu cargo para a consecução de fins alheios ao interesse público; (2) ter intervido em procedimento administrativo, estando legalmente impedido de o fazer, e fazê-lo para obter vantagem patrimonial para si ou para outrem e (3), sem causa legítima, não ter dado cumprimento a decisões judiciais já transitadas.
Ora, perante toda a factualidade supra relatada, também nós concluímos como o MP, isto é, e em suma, que:
-a conduta dos Réus violou princípios e normas legais imperativas que lhes competia respeitar;
-decorre do artº 44º/1, do CPA, que estava vedado aos RR. intervir em qualquer acto ou procedimento administrativo em que tivessem interesse;
-sendo os RR FJ... e MJ... respectivamente Presidente e Tesoureira da Junta de Freguesia de Sto. A... de V..., impendia sobre eles o especial dever de se absterem de intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado, ou de participarem na discussão ou votação de assuntos em que tivessem interesse ou intervenção - artº 4º al. B) iv do Estatuto dos Eleitos Locais;
-estes, ao intervirem, por seis vezes, nos procedimentos e deliberações que determinaram a adjudicação dos fornecimentos à empresa do seu filho e marido atribuíram aquele e à própria demandada um benefício que naquele contexto sabiam ser ilícito e violador dos princípios a que manda atender o artº 266º/2 da CRP e artº 4º b) i), ii), iii) e vi), da Lei 29/87, de 30/06 e que se traduziu nos pagamentos efectuados pela demandada na qualidade de tesoureira;
-e tiveram o cuidado de não formalizar, isto é, de não publicitar tais deliberações uma vez que não foi lavrada acta relativamente a tais assuntos;
-o facto de os montantes em causa não serem objectivamente elevados é irrelevante, pois tão ou mais importante que os valores é a atitude/a postura dos mesmos;
-no caso sub judice, tendo sido deliberado pelo executivo da Junta de Freguesia efectuar adjudicações de fornecimento de materiais à empresa V..., cujo sócio gerente é marido da Tesoureira e filho do Presidente da Junta, teria de haver um especial cuidado de justificar o porquê de se adjudicar a essa empresa e não a outra;
-só assim se poderia garantir a transparência e evitar que comodamente e a posteriori se visse alegar, como veio a acontecer, que afinal era a empresa que fazia mais barato;
-o certo é que foram efectuadas seis adjudicações à empresa pertencente ao filho do demandado e marido da demandada sem que tivesse sido dada a mesma possibilidade a outras empresas que não tivessem qualquer ligação com a Junta de Freguesia;
-decidiram adjudicar os fornecimentos em causa à V... na sequência de uma informação do Sr. Presidente e sem que tivessem pedido orçamentos a outras empresas;
-está, pois, ferida a garantia de isenção e independência com que os titulares dos órgãos autárquicos devem exercer os seus cargos e, assim, gerir os negócios, bens e dinheiros públicos;
-num círculo absolutamente fechado como este (pai-presidente/nora-tesoureira/empresa pertencente ao filho e marido daqueles), tendo sido deliberado pelo executivo da Junta de Freguesia efectuar adjudicações de fornecimento de materiais à empresa cujo sócio gerente é marido da Tesoureira e filho do Presidente da Junta teria de haver um especial cuidado de justificação e explicação das opções tomadas;
-todas as cautelas, em sede de transparência, se impunham, não bastando alegar que era a empresa que apresentava um preço mais baixo e que tudo se deveu à situação de urgência e à necessidade de bem servir o interesse público;
-o apelo ao desconhecimento dos impedimentos já soa a argumentação gasta; além disso a legislação portuguesa consagra o princípio iluminista de que a ignorância da lei não aproveita a ninguém (artº 6º do Código Civil). Pressupõe-se que existe um dever de conhecer a lei do Estado, que é pública, não se aplica retroactivamente e até consagra soluções próximas da racionalidade comum. Em Kant, aliás, assume-se a máxima de que "se tu deves, podes”;
-de acordo com as regras da experiencia comum, cremos que não podia, face à prova produzida, deixar de se concluir que foram feitas as adjudicações em causa à empresa V... com a intenção dos RR obterem vantagem patrimonial para si ou para outrem nos termos supra referidos;
-com a legislação aplicável ao caso, invocada pelo MP/Recorrente e não questionada pelos Recorridos, quis o legislador proteger a defesa do interesse público e penalizar o aproveitamento do poder e influência inerentes à titularidade de um cargo público para se obter ilegalmente vantagem patrimonial;
-contrariamente ao decidido, os actos relatados atestam a presença do falado elemento subjectivo e, encontrando acolhimento nos aventados normativos, impõe-se o êxito da acção.
Procedem, pois, todas as conclusões da alegação.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida, julga-se a acção procedente e declara-se a perda de mandato dos Réus FJ... e MGJJ... dos cargos que ocupam na União da Junta de Freguesia de V... e Sto. A....
Custas pelos RR/Recorridos.
Notifique e DN.
Porto, 15/05/2014
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Hélder Vieira
Ass.: Ana Paula Portela