Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00140/14.9BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/03/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA;
QUESTÃO PREJUDICIAL;
Sumário:

I – Segundo o disposto no n.°1 do artigo 272.° do Código de Processo Civil “ O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado “.

II- Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão aí proferida possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda, não podendo o tribunal ordenar a suspensão da instância senão nos termos em que a lei a prevê.

III- Detetando-se que as obrigações versadas nos processos em confronto são distintas, sendo que a eventual satisfação de uma não impede o incumprimento da outra, é de concluir pela falta de prejudicialidade entre ambos os processos.

IV- O que serve para atingir a inexistência de motivo justificado para a suspensão da instância decretada nos autos.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:

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I – RELATÓRIO

1. [SCom01...], S.A., Autora nos presentes autos de AÇÃO ADMINISTRATIVA em que é Réu o Município ..., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho promanado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, datado de 30.03.2022, que decretou a suspensão da instância.

2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

1. Vem o presente recurso interposto do despacho, datado de 30/03/2022 (notificada à aqui Recorrente por notificação eletrónica elaborada e certificada em 30/03/2022), que decretou a suspensão da instância, decidindo: “Deste modo, muito embora não exista a tríplice identidade exigida para se vir a formar caso julgado, uma vez que não existe identidade das respetivas causas de pedir e dos pedidos entre o Proc. n° 279/13.8BEMDL e os presentes autos, não há dúvida que as questões jurídicas a resolver são as mesmas em ambos os processos. Neste sentido, há, de facto, um nexo de prejudicialidade entre a primeira ação acima referenciada e os presentes autos, dado que a decisão da mesma, na medida em que poderá impor uma definição da relação jurídica entre as partes, relativamente à exigibilidade dos “valores mínimos”, tem a virtualidade de condicionar a decisão da presente causa, considerando que o seu objeto tem o mesmo enquadramento legal e obrigacional. Com efeito, “a figura da autoridade do caso julgado não se afeiçoa à ideia de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objetos processuais” (cfr. Ac. RL, 27/05/2021, Proc. n° 4171/20.1T8LSB.L1 -2). Face ao exposto, declaro a instância suspensa até ao trânsito em julgado da sentença proferida no Proc. n° 279/13.8BEMDL” - Cfr. páginas 2 e 4 do despacho.

2. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera que a decisão proferida neste despacho (página 2 a 4 do mesmo) padece de manifesto erro de julgamento na aplicação do direito, o que constitui o fundamento do presente Recurso.

3. Neste sentido, considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo comete um manifesto ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO, porquanto não toma em devida consideração a subsunção do presente litígio às normas previstas para a suspensão da instância, concretamente, o disposto no artigo 272.°, n.° 1 e 2 do CPC, na parte em que considera prejudicial à presente causa os autos pendentes em sede de recurso no Tribunal Central Administrativo Norte, que corre termos sob o n.° de processo 279/13.8BEMDL.

4. Em concreto, considera-se que o Tribunal a quo erra no julgamento de direito na medida em que sustenta a prejudicialidade da ação pendente na circunstância de os respetivos objetos terem o mesmo enquadramento legal.

5. As causas respeitam a períodos distintos do contrato de concessão, tendo as bases da concessão estabelecido diferentes pressupostos lógicos para a cobrança destes valores, o que implica que as pretensões destas causas sejam distintas, na medida em que a decisão final que vier a ser proferida nos presentes autos não é suscetível de modificar os fundamentos que estão na base do processo n.° 279/13.8BEMDL.

6. Uma vez que estamos perante períodos distintos do contrato de concessão, com fundamentos distintos para a aplicação dos valores mínimos garantidos é manifesto que não há qualquer relação de prejudicialidade entre o objeto da ação relativa ao processo n.° 279/13.8BEMDL e a ação dos presentes autos.

7. O efeito jurídico pretendido pela ora Recorrente nestes dois processos é distinto, atenta a autonomia dos processos, pelo que a decisão de mérito dos presentes autos não influenciará o mérito da decisão já proferida no processo n.° 279/13.8BEMDL, concluindo-se que no âmbito destas causas não há qualquer relação de prejudicialidade.

8. Os presentes autos devem prosseguir os seus ulteriores termos, não se vislumbrando que a decisão final coloque em causa a segurança e a paz jurídica postas em causa com decisões de mérito que não sejam em si coincidentes, mantendo-se os deveres do juiz, concretamente os previstos nos termos do artigo 6.° do CPC.

9. Considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo comete um manifesto ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO, porquanto decidiu que as causas se encontram numa relação de prejudicialidade, tendo por base um pressuposto que assenta no facto de as ações em questão consubstanciarem o “mesmo enquadramento legal e obrigacional”, contudo, é manifesto que este douto Tribunal incorre num manifesto erro de julgamento, visto que, ao processo n.° 279/13.8BEMDL, e aos presentes autos, são aplicáveis normas jurídicas distintas no âmbito do contrato de concessão.

10. Nestes termos, a decisão viola o disposto no artigo 272.°, n.° 1 e 2 e o artigo 6.° do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1°. do CPTA (…)”.


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3. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município ... produziu contra-alegações, defendendo a manutenção da “(…) decisão do Tribunal a quo no sentido de determinar a suspensão da instância nos presentes autos (…)”.

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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.

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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.

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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do “(…) disposto no artigo 272.º, n.º 1 e 2 e o artigo 6.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º. do CPTA (…)”.

9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.1 – DE FACTO

10. O Tribunal a quo não fixou factos, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:

A. Em 12.03.2014, a [SCom02...], S.A.” intentou a presente ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos -suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].

B. Nela demandou o Município ... [idem];

C. E formulou o seguinte petitório: “(…)

Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente ação ser considerada procedente, por provada e, em consequência, deverá a R. ser condenada a pagar à A. a quantia de 241.592,97€ (Duzentos e quarenta e um mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e sete cêntimos), valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de € 10.563,90 (dez mil, quinhentos e sessenta e três euros e noventa cêntimos), o que perfaz o total de €252.156,87 (duzentos e cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos), bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida. (…)” [idem].

D. No decurso do pleito, o Réu requereu “(…) a suspensão da presente instância, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do CPTA, até ao trânsito em julgado da decisão final que venha a ser proferida no processo n.º 279/13.8BEMDL que correu termos neste mesmo Tribunal e que se encontra presentemente em fase de recurso perante o Tribunal Central Administrativo Norte (…)” [cfr. fls. 792 e seguintes dos autos – suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];

E. Em 30.03.20222, o T.A.F. de Mirandela promanou despacho judicial a decretar a suspensão da instância [cfr. fls. 838 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido];

F. A motivação convocada para arrimar o decretamento da suspensão da instância foi a seguinte:”(…)

Fls. 792-795:

A Entidade Demandada veio requerer a suspensão da instância, alegando, em síntese, que está pendente questão prejudicial (Proc. n° 279/13.8BEMDL), com as mesmas partes e a mesma causa de pedir, na qual foi já proferida sentença, estando a aguardar o desfecho do recurso interposto da mesma, na sequência do qual a autoridade do caso julgado se projetará sobre a presente ação.

Notificada para se pronunciar, a Autora veio opor-se ao requerido, sustentando, em síntese, que não existe identidade da causa de pedir nem do pedido entre o referido processo e a presente ação.

Apreciando e decidindo:

No processo n° 279/13.8BEMDL, a Autora, [SCom01...], S.A., pediu a condenação do Município ... a pagar-lhe a quantia de 169.313,74 €, valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de 15 883,00 €, o que perfaz o total de € 185 196,74, referente às faturas nºs. ...55 e ...69, ambas datadas de 29/04/2012, nos montantes de 84.312,63€ e 85.001,11€, respetivamente, relativas a serviços de saneamento e fornecimento de água, tal como resulta da respetiva petição inicial.

Por sua vez, na presente ação, a mesma Autora veio pedir a condenação do Município ... a pagar-lhe a quantia de 241.592,97€, valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de 10.563,90€, o que perfaz o total de 252.156,87€, bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida, emergente das faturas n.ºs ...46 e ...47, ambas datadas de 31/01/2013, nos montantes de 85.638,74 e 155.954,23€, respetivamente, relativas a serviços de saneamento e fornecimento de água, tal como resulta da petição inicial.

E, paralelamente, no processo apenso a este (Proc. n° 434/15.6BEMDL), a Autora pediu a condenação do Município ... a pagar-lhe a quantia de 420.820,05€, valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de 9.184,83€, o que perfaz o total de 430.004,88€, bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida, emergente das faturas nºs. ...36 e ...45, ambas datadas de 31/01/2015, nos montantes de 327.444,92€ e 93.375,13€, respetivamente, relativas a serviços de saneamento e fornecimento de água, tal como decorre da respetiva petição inicial.

Por seu turno, a defesa da Entidade Demandada assentou, em todos os processos acima referenciados, em argumentos idênticos, que se prendem, em síntese, com a inexigibilidade total ou, ao menos, parcial dos valores que lhe foram debitados pela Autora, por diversos fundamentos.

Ora, na sua pronúncia sobre a requerida suspensão da instância, a Autora assume que todas as faturas em causa nos três processos dizem respeito a valores mínimos contratualmente estabelecidos, se bem que referentes a anos diferentes.

Deste modo, muito embora não exista a tríplice identidade exigida para se vir a formar caso julgado, uma vez que não existe identidade das respetivas causas de pedir e dos pedidos entre o Proc. n° 279/13.8BEMDL e os presentes autos, não há dúvida que as questões jurídicas a resolver são as mesmas em ambos os processos.

Por isso mesmo, foi considerado, no despacho de fls. 263-265, que determinou a apensação a estes autos do Proc. n° 434/15.6BEMDL, que “todas as causas de pedir derivam, direta ou indiretamente, do contrato de concessão estabelecido entre o Estado Português e a antecessora da Autora, bem como do contrato de fornecimento de água e saneamento celebrado entre a mesma e o Município ....

Além disso, não há dúvida que a eventual procedência de cada um dos respetivos pedidos depende essencialmente da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, atendendo à fonte comum das obrigações contratuais em discussão em ambos os processos”.

Ora, o artigo 272°, n° 1 do Código de Processo Civil (CPC) prevê que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

No que diz respeito ao nexo de prejudicialidade, “deve comprovar-se uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui um pressuposto da outra decisão (...). O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial, é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (...)”- (cfr. A. S. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e L. F. PIRES DE SOUSA. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I. Coimbra, Almedina, 2020, pág. 333).

Neste caso, a Entidade Demandada sustenta a prejudicialidade do processo acima referenciado em relação aos presentes autos com base na autoridade do caso julgado.

Como se explica, entre outros, no Acórdão da Relação de Coimbra, de 11/06/2019, proferido no Proc. n° 355/16.5T8PMS.C1, “o caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da exceção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas (...).

O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão).

Ao contrário do que acontece com a exceção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir”.

Explicitando estas ideias, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/02/2019, proferido no Proc. n° 4043/10.8TBVLG.P1.S1, esclarece que “esta distinção tem justamente por pressuposto que, na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.

Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”.

De qualquer modo, “isto não significa, porém, que a autoridade do caso julgado possa valer fora dos limites definidos pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, sendo certo que, conforme resulta do disposto no artigo 619° do CPC, é apenas dentro desses limites que a decisão adquire a força de caso julgado. Aquilo que se impõe por força da autoridade do caso julgado é a definição - feita por decisão transitada em julgado - da concreta relação jurídica que aí foi delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir. Mas a definição dessa concreta relação jurídica - assim delimitada - impõe-se e é vinculativa para os respetivos sujeitos no âmbito de qualquer outro litígio que entre eles venha a ocorrer e que tenha como pressuposto ou condição aquela relação e por isso se afirma que o funcionamento da autoridade do caso julgado não exige a identidade de pedido e causa de pedir; tal autoridade pode, de facto, impor-se no âmbito de ação posterior com pedido e causa de pedir diversas nas circunstâncias supra mencionadas, vinculando as partes e o Tribunal e evitando, dessa forma, que a relação ou situação jurídica já definida por decisão transitada em julgado seja novamente apreciada para o efeito de decidir o objeto da segunda ação” (cfr. Ac. RC, acima citado).

Neste sentido, há, de facto, um nexo de prejudicialidade entre a primeira ação acima referenciada e os presentes autos, dado que a decisão da mesma, na medida em que poderá impor uma definição da relação jurídica entre as partes, relativamente à exigibilidade dos “valores mínimos”, tem a virtualidade de condicionar a decisão da presente causa, considerando que o seu objeto tem o mesmo enquadramento legal e obrigacional.

Com efeito, “a figura da autoridade do caso julgado não se afeiçoa à ideia de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objetos processuais” (cfr. Ac. RL, 27/05/2021, Proc. n° 4171/20.1T8LSB.L1-2).

Face ao exposto, declaro a instância suspensa até ao trânsito em julgado da sentença proferida no Proc. n° 279/13.8BEMDL.

Nessa medida, dou sem efeito a audiência de julgamento marcada para o próximo dia 4 de abril, às 10h, ficando o seu reagendamento a aguardar a cessação da suspensão da instância.

Assim, oportunamente, faça chegar a estes autos informação sobre o trânsito em julgado da sentença proferida no referido Proc. n° 279/13.8BEMDL.

Notifique. (…)” [idem];

G) Sobre esta decisão judicial sobreveio, em 28.04.2022, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 847 e seguintes dos autos – suporte digital – cujo teor se dá por integralmente reproduzido].


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IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

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11. O despacho recorrido decretou a suspensão da instância com fundamento na existência de “(…) um nexo de prejudicialidade entre a primeira ação acima referenciada [processo nº 279/13.8BEMDL], e os presentes autos, dado que a decisão da mesma, na medida em que poderá impor uma definição da relação jurídica entre as partes, relativamente à exigibilidade dos “valores mínimos”, tem a virtualidade de condicionar a decisão da presente causa, considerando que o seu objeto tem o mesmo enquadramento legal e obrigacional (…)”.

12. Com o assim decidido não se conforma a Recorrente, por manter a firme convicção, no mais essencial, de que “(…) o douto Tribunal a quo comete[u] um manifesto ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO, porquanto decidiu que as causas se encontram numa relação de prejudicialidade, tendo por base um pressuposto que assenta no facto de as ações em questão consubstanciarem o “mesmo enquadramento legal e obrigacional”, contudo, é manifesto que este douto Tribunal incorre num manifesto erro de julgamento, visto que, ao processo n.º 279/13.8BEMDL, e aos presentes autos, são aplicáveis normas jurídicas distintas no âmbito do contrato de concessão (…)”.

13. Adiante-se, desde já, que o presente recurso jurisdicional vingará.

14. Segundo o disposto no n.°1 do artigo 272.° do Código de Processo Civil “ O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado “.

15. Ora, uma ação é prejudicial de outra sempre que naquela se ataca um ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário desta [cfr. Alberto dos Reis in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. III, 1946, pág.206].

16. Deste modo, haverá relação de prejudicialidade de uma causa em relação a outra, quando o despacho daquela possa ser suscetível de inutilizar os efeitos pretendidos nesta, não sendo de ordenar a suspensão da instância quando se afigure de todo provável que a questão posta na causa principal venha a ser decidida num sentido sem relevância determinante na causa dependente.

17. No âmbito do contencioso administrativo estabelece o n.°1 do artigo 15.° do C.P.T.A. que ”(…) Quando o conhecimento do objeto da ação dependa, no todo ou em parte, da decisão de uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie (…)”.

18. Nos presentes autos, a Autora formula um pedido: a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 241.592,97€ [duzentos e quarenta e um mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e sete cêntimos], valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de € 10.563,90 [dez mil, quinhentos e sessenta e três euros e noventa cêntimos], o que perfaz o total de €252.156,87 [duzentos e cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos], bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida.

19. Arrima tal pretensão na falta de pagamento das faturas n.ºs ...46 e ...47, no valor global de € 241.592,97, relativas à prestação de serviços de saneamento e fornecimento de água ao Réu durante o mês de janeiro de 2013.

20. No entanto, sabe-se que se encontra a correr os seus termos a ação administrativa registada sob o nº 279/13.8BEMDL, em que a Autora [SCom02...], S.A. peticiona a condenação do Réu Município ... a pagar-lhe a “(…) a quantia de 169. 313,74 € (cento e sessenta e nove mil, trezentos e treze euros e setenta e quatro cêntimos), valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de 15 883,00 € (quinze mil, oitocentos e oitenta e três euros), o que perfaz o total de € 185 196,74 (cento e oitenta e cinco mil, cento e noventa e seis euros e setenta e quatro cêntimos) (…)”.

21. O fundamento invocado é também ele a falta de pagamento de faturas relativas, mas desta feita, das tituladas pelos n.ºs ...55 e ...69, no valor global de € 169,313,74, relativas à prestação de serviços de saneamento e fornecimento de água durante o mês de fevereiro de 2012.

22. Neste enquadramento, não se nos prefigura existir a invocada prejudicialidade, posto que a eventual procedência da ação nº. 279/13.8BEMDL não destruirá o fundamento ou a razão de ser da presente ação.

23. De facto, a eventual procedência da ação nº. 279/13 terá reflexo ao nível da eventual extinção das obrigações do Réu em relação à Autora no período temporal reportado ao mês de fevereiro de 2012.

24. Já a eventual procedência da presente ação terá reflexo ao nível da eventual extinção das obrigações do Réu em relação à Autora no período temporal reportado ao mês de janeiro de 2013.

25. Trata-se de obrigações distintas, sendo que a eventual satisfação e/ou das obrigações reportadas a fevereiro de 2012 não impede o incumprimento das obrigações reportadas a janeiro de 2013.

26. Neste entendimento, a decisão a proferir na ação cível não se enquadra no conceito de causa prejudicial a que alude o art. 272º n.º 1 do CPC.

27. Com efeito, uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão aí proferida possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda, não podendo o tribunal ordenar a suspensão da instância senão nos termos em que a lei a prevê.

28. Conforme ressuma grandemente do que se vem de expor, não se descortina qualquer capacidade destrutiva da razão de ser da presente ação com a prolação da decisão judicial no âmbito do processo nº. ...3, o que nos transporta para evidência da falta de prejudicialidade entre ambos os processos.

29. Não se ignora o eventual “conforto” no tratamento simultâneo de ambos os processos.

30. Porém, tal “conforto” releva[rá] apenas ao nível da eventual apensação de processos e não ao nível da ocorrência de eventual motivo justificado para a suspensão da presente instância.

31. Assim deriva, naturalmente, que se impõe conceder provimento ao presente recurso, devendo ser revogado a decisão judicial recorrida e determinada a baixa dos autos à 1ª instância, para que aí prossigam os seus ulteriores trâmites processuais se nada mais obstar.

32. Ao que se provirá no dispositivo.

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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “ sub judice”, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela para prosseguimento dos mesmos, se a tal nada mais obstar.

Custas pelo Recorrido.

Registe e Notifique-se.


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Porto, 03 de novembro de 2023,

[Ricardo de Oliveira e Sousa]

[Luís Migueis Garcia]

[Helena Maria Mesquita Ribeiro]