Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00673/12.1BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/02/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:EMBARGO DE OBRA; ORDEM DE DEMOLIÇÃO; ARTIGOS 102º, N.º1 E 2, ALÍNEA E), E 104º DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E EDIFICAÇÃO,:
APROVADO PELO DECRETO-LEI Nº 555/99, DE 16.12; PRINCÍPIOS DA NECESSIDADE, PROPORCIONALIDADE E ADEQUAÇÃO - N.º2 DO ARTIGO 266º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E ARTIGO 6º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (1991).
Sumário:1. A ordem de embargo é uma decisão administrativa cautelar e, portanto, instrumental, provisória e baseada numa primeira análise do processo, de forma a manter o prédio no estado em que estava na data em que foi constatada pelos serviços a construção de uma obra ilegal; não determina, pela sua própria natureza, uma decisão definitiva sobre a ilegalidade e impossibilidade de legalização, como resulta claramente do disposto no artigo 104º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16.12.

2. O disposto no artigo 102º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização, invocado pelos Recorrentes, estabelece para o município apenas a vinculação legal quanto à tutela e restauração da legalidade urbanística – n.º1.

3. Quanto aos meios para alcançar esse desiderato, da reposição da legalidade, o legislador conferiu ao município uma ampla margem de discricionariedade, como claramente resulta do termo “pode” e do leque de alternativas legais, sendo a demolição apenas uma delas – n.º 2 alínea e).

4. Alternativa que, de resto, o legislador, tendo naturalmente presentes os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação que devem reger a conduta da Administração - n.º2 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º do Código de Procedimento Administrativo (1991) – deixou para último lugar, apenas se e quando a obra for insusceptível de ser licenciada A partícula disjuntiva alternativa “ou” utilizada neste último preceito legal indica inequivocamente que mesmo na hipótese de as obras serem insusceptíveis de serem licenciadas (primeira parte) não se impõe ordenar a demolição, antes surge a alternativa de assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe sejam aplicáveis (segunda parte).

5. As disposições legais e regulamentares aplicáveis são, como é entendimento pacífico, as que estão em vigor quando a Administração exerce o poder discricionário de avaliar se deve ou não optar pela demolição.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:M. e Outros
Recorrido 1:Município (...) e Outros
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

L. e M., vieram interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, de 11.07.2017 pela qual foi julgada parcialmente procedente a acção administrativa especial intentada contra o Município (...), C. e L. e Z. e M., em que pedem, essencialmente, a condenação do Réu Município a: 1. declarar que o edifício construído pelos segundos Réus, composto por casa de habitação, não se encontra legalizado nem é suscetível de legalização; 2. ordenar a demolição de tal edifício, no prazo de 30 dias; e 3. condenar os demais Réus a reconhecerem os pedidos efetuados.

Invocaram para tanto, em síntese, que a decisão recorrida errou de facto e de direito, pelo que deveria, ao contrário do decidido, ter declarado que o prédio em causa não se encontra legalizado nem é suscetível de legalização e, portanto, deveria ter ordenado, tal como pedido, a demolição do edifício, no prazo de 30 dias.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1. Os Autores pediram fundamentadamente na sua petição inicial a condenação do Réu Município a (1) declarar que o edifício construído pelos segundos Réus, composto por casa de habitação, não se encontra legalizado nem é suscetível de legalização e a (2) ordenar a demolição de tal edifício, no prazo de 30 dias.

2. O Tribunal a quo concluiu que em conformidade com o art. 102º do RJUE, perante operações urbanísticas ilegais, a entidade administrativa será efetivamente obrigada a adotar medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística.

3. Mas que, no entanto, ao Réu Município assiste a possibilidade de adotar umas das diversas medidas elencadas no nº 2, correspondendo a opção por uma delas, bem como o tempo da respetiva aplicação, a uma opção discricionária, própria do exercício da atividade administrativa.

4. Acrescentando ainda que a demolição é uma medida de tutela da legalidade urbanística que apenas deve ser utilizada na impossibilidade de recurso a outras medidas, como seja a da legalização da construção, em conformidade com o nº 2 do art. 106º do RJUE.

5. O Tribunal a quo veio assim concluir na sentença que, não obstante nos presentes autos vir pedida a condenação à determinação da demolição de uma construção ilegal, a Administração apenas se encontra vinculada a adotar medidas de tutela urbanística, sem que o respetivo conteúdo se encontre legalmente pré-determinado.

6. Atendendo à ampla margem de decisão de que dispõe o Réu Município face ao disposto nos arts. 102º e ss do RJUE, não seria possível condená-lo à emissão de um ato prédeterminado, ainda que sem especificação do respetivo conteúdo, nos termos previstos pelo art. 71º, nº2, do CPTA.

7. Nesse sentido, ao Tribunal restaria apenas condenador o Réu a diligenciar no sentido de apreciar a pretensão formulada.

8. Com base nestes fundamentos, o Tribunal a quo considerou improcedentes os pedidos de condenação concretamente formulados, por estar em causa uma atuação em que o Réu Município dispõe de uma ampla margem de atuação, mas condenou este Réu a apreciar a pretensão dos Autores, proferindo decisão sobre a medida de tutela urbanística a adotar.

9. Em bom rigor, na sequência do início da construção clandestina, foi efetuada uma queixa no Município contra a dita construção, tendo sido em 17.01.2001 elaborado Auto de Notícia de Contraordenação, ao Réu C., pela construção de uma moradia de rés-do-chão e 1º andar.

10. Em 28.02.2001, foi elaborado Auto de Embargo, para o qual não foi estipulado prazo para o embargo e nunca foi elaborado qualquer auto ou comunicação de desobediência do referido Auto.

11. Na sequência desse embargo, o proprietário da construção, aqui segundo Réu, foi notificado pelo Município na pessoa do seu vereador, no dia 16 de Fevereiro de 2001 de que “em virtude de a construção se situar no quintal de uma habitação antiga e não confrontar com arruamento público, não poderá ser licenciada”.

12. Porém, apesar de ter sido ordenada a suspensão das obras, as mesmas foram reiniciadas e concluídas!

13. O Presidente da Câmara, uma vez confrontado com a edificação não licenciada, além de acionar um procedimento sancionatório, de acordo com o nº 10 do art. 98º do RJUE e de embargar a obra, deveria ter desencadeado um procedimento de legalização da mesma!

14. Em nome do princípio da prossecução das boas práticas administrativas, entendemos que deverão ser respeitados os prazos para decisão estatuídos para o procedimento de licenciamento.

15. Se o cumprimento destes prazos se revelar obstaculizado por omissão do construtor clandestino na apresentação dos elementos pedidos, ou por manobras meramente dilatórias da sua parte, parece-nos que, a fim de se evitar a eternização da ilegalidade, deveria a autoridade administrativa, em nome da proteção da legalidade urbanística, decidir pela insusceptibilidade de legalização.

16. No entanto, neste caso, houve uma completa inércia por parte da Administração e consequentemente, por parte do particular.

17. O embargo não foi comunicado aos respetivos Serviços de Fornecimento de água e luz, em plena violação do nº3 do art. 103º do RJUE.

18. Também não foi participado ao Ministério Público o crime de desobediência previsto no art. 100º do RJUE e art. 348º do Código Penal.

19. Os segundos Réus fizeram ainda constar da inscrição matricial que o prédio urbano identificado nos autos se situava na Rua Professor Francisco Corujo, o que não corresponde à verdade.

20. Fizeram ainda os Réus afixar no acesso à habitação e na própria, um número toponímico (140-A), que estranhamente dizem haver sido atribuído pela EDP!

21. Perante tantas incongruências, a verdade é que ninguém avançou com o processo de legalização da obra.

22. Nos termos do Art. 106º do RJUE, se o Município praticou ato administrativo, endereçado ao contra-interessado, notificando-o para proceder à demolição, o que se pede ao Tribunal é que faça cumprir o Princípio da Legalidade.

23. Perante tal inércia/omissão ilegal, podia e devia o Tribunal a quo, condenar o Município a repor, ainda que coercivamente, a legalidade urbanística.

24. Não obstante a sentença remeter para o Município, a escolha da solução ideal para o caso concreto, simultaneamente, fá-lo, erigindo e positivando os limites a observar por aquele no ato a praticar (exigências do nº2 do art. 71º do CPTA).

25. Não há ilegalidade ou invasão no controlo feito pelo Tribunal relativamente aos atos administrativos praticados pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização da discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.

26. Nem sequer se coloca em causa o princípio da proporcionalidade, uma vez que o mesmo não é configurável no uso de poderes vinculados.

27. Face à existência de anteriores atos administrativos consolidados a determinar a demolição e do seu incumprimento voluntário impunha-se o prosseguimento do procedimento camarário para reposição e tutela da legalidade administrativa urbanística.

28. Em conformidade com o Princípio da Legalidade (nos termos do nº1 do art. 3º do CPA e art. 2º e o nº2 do art. 266º da CRP) deve cumprir-se a lei e, por conseguinte, ser ordenada a demolição daquilo que é insuscetível de ser legalizado.

29. Nos termos do disposto do art. 106º do RJUE a demolição de obra de construção não pode ser ordenada se for suscetível de ser licenciada ou autorizada ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração, o que constitui uma manifestação dos princípios da necessidade, adequação, indispensabilidade ou melhor ingerência possível, decorrentes do princípio da proporcionalidade – cfr. Ac. de 7/10/2009 do STA.

30. A demolição das obras ilegais deve ser precedida de um juízo relativo à possibilidade de as mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.

31. Ora, ficou provado no decorrer do processo que a construção dos presentes autos, em virtude de estar implantada para além dos 30 metros do eixo da via, em clara violação do disposto no art. 7º do Regulamento do Plano do Diretor Municipal de (...) nem pode estar licenciada, nem pode vir a ser licenciada!

32. Enquanto construção clandestina, está destinada à demolição em conformidade com o disposto no art. 106º do RJUE, aprovado pelo DL 555/99, de 16 de Dezembro, na redação que lhe foi dada pelo DL nº 26/2010, de 30 de Março.

33. Trata-se de um prédio urbano destinado à habitação, que tendo sido construído em 2005, em plena vigência do Regime Geral da Edificação Urbana e do Plano Diretor de (...), não confronta com o arruamento público de lado nenhum – em plena violação da alínea b) do nº2 do art. 24º do RGEU.

34. Em momento algum o Município considerou que tal edificação observava ou era compatível com o PDM, para dessa forma se mostrar como legítima uma possível construção.

35. Foi determinado, por despacho do Senhor Vereador responsável pelas obras particulares em 16.02.2001 que se notificasse o segundo Réu de que “em virtude de a construção se situar no quintal de uma habitação antiga e não confrontar com arruamento público, não poderá ser licenciada”.

36. Em 04.11.2003, o Senhor Vereador veio decidir que os segundos Réus construíram uma obra “(…) sem que para o efeito tivessem apresentado projeto ou requerido licença”.

37. No despacho em que considerou que os factos descritos e dados como provados integram o ilícito de mera ordenação social, previsto na alínea a), do nº1, do artigo 54º, do Decreto Lei nº 445/91, de 20/11, o Senhor Vereador concluiu ainda que “(…) neste caso concreto, não há possibilidade de licenciamento da obra efetuada, tendo sido, aliás, o arguido notificado nesse sentido, visto que a construção se situa no quintal de uma habitação antiga e não confronta com arruamento público”.

38. No art. 8º da contestação, os segundos Réus admitem que “É verdade que o projeto da casa de habitação edificada pelos contestantes não foi aprovado pela Câmara Municipal (...), não tendo a construção sido licenciada”.

39. E no artigo 10º da mesma contestação referem ainda que “o projeto não chegou a ser apresentado à CM e não foi por isso emitida licença”.

40. Ainda assim, mesmo que a obra fosse suscetível de legalização, o interessado deveria ter dado início ao procedimento que conduzisse à futura legalização.

41. Mas a verdade é que passados 7 anos, não foi iniciado nenhum procedimento de legalização.

42. Não resta à Administração outra alternativa senão a de mandar demolir a construção ilegal nos termos do art. 106º do RJUE.

43. Tal como se conclui no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-03-2011, proc. 090/10, relativamente à atuação da Administração, “pautando-se a sua atividade pelo princípio da legalidade (art. 3º do CPA), cumpre-lhe reparar a ordem jurídica violada ordenando, se necessário, a demolição da obra ilegal, o que deverá acontecer sempre que constatar que o interessado, pela sua passividade, não irá contribuir para a reposição da legalidade ou que a irá mesmo dificultar”.

44. Partilhando do mesmo entendimento, foi também acordado pelos Juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão de 11-06-2015, proc. 06459/10 que “deve o Tribunal atender ao facto de os mesmos, na pendência da ação, terem desistido do procedimento de legalização das obras”.

45. Quanto ao juízo que deve ser feito, já houve oportunidade de se ponderar essa questão posteriormente ao embargo realizado e aos trâmites que deveriam ter sido seguidos.

46. Neste caso concreto nem sequer se vislumbra que tal juízo venha a ser realizado pelo Município, pois tal como refere o Ministério Público no seu Parecer de 5 de Dezembro de 2012: “E não se percebendo bem, e nisso a A. tem toda a razão, que a CM esteja, ao que parece, nessa ponderação/juízo prévio, a aguardar pelo desfecho de um processo, que nem é identificado…”.

47. Não é necessário reponderar a questão da suscetibilidade da legalização, uma vez que a mesma já foi suficientemente escrutinada.

48. Podemos concluir que a construção em causa nos presentes autos não pode ser legalizada!

49. Se, in casu, a decisão de implementação da execução da ordem de demolição era a ÚNICA MEDIDA POSSÍVEL, então a mesma é necessariamente adequada e não se pode ter como desrespeitadora ou ilegal por infração ao Princípio da Proporcionalidade.

50. Isto porque, no momento atual a construção não é legalmente viável uma vez que a construção se encontra fora dos limites impostos pelo PDM e foi construída em zona RAN (conforme previsto nos artigos 20º, 21º e 23º do DL nº 73/2009 de 31 de Março).

51. A liberdade de escolha do Município será praticamente inexistente uma vez que a decisão tecnicamente correta só pode ser uma: “ou a obra pode subsistir (com ou sem alterações ditadas em função da avaliação técnica…), ou deve ser demolida. Tertium non datur”. (Carla Amado Gomes, em anotação ao acórdão de 19.05.1998, nos CJA, nº 19, p´qgs. 37 e ss).

52. Se no caso dos presentes autos a obra não pode subsistir, resta-nos a segunda opção: a demolição!

53. Acresce que, apesar de terem sido apensos aos autos o registo dos processos camarários, dos factos provados, nada foi apurado acerca do eventual processo de licenciamento que pudesse ter decorrido relativamente à construção clandestinamente edificada.

54. Esses factos têm interesse para a decisão e ajudariam na consideração da causa de pedir que fundamentou os pedidos formulados pelos Autores.

55. O Digníssimo Tribunal considerou provado no art. 2º da matéria de facto o auto de embargo, mas não teve em consideração o que o motivou: o facto de os segundos Réus estarem a levar a efeito sem projeto obras clandestinas.

56. No art. 3º consideraram-se provadas a certidão de mandado e certidão de notificação, mas o Tribunal ignorou o facto de ambas admitirem a impossibilidade de licenciamento da construção.

57. O Tribunal considerou ainda provado no art. 6º da matéria de facto provada, o requerimento enviado pelos Autores em 28.03.2012 ao Presidente da Câmara Municipal, bem como a resposta do Município no art. 8º em que conclui que a demolição da construção será a última solução a aplicar mas não teve em conta na decisão final essa insusceptibilidade de legalização!

58. Urge por isso que seja anulada a sentença ora recorrida por vício de julgamento quanto à fixação da matéria de facto!

59. Devem assim os Juízes que compõem este digníssimo Tribunal dar provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que não condenou o Réu Município a declarar que o edifício construído pelos segundos Réus, composto por casa de habitação, não se encontra legalizado nem é suscetível de legalização e a ordenar a demolição de tal edifício, no prazo de 30 dias.
*

II –Matéria de facto.

Os Recorrentes começam por afirmar que apesar de terem sido apensos aos autos o registo dos processos camarários, dos factos provados, nada foi apurado acerca do eventual processo de licenciamento que pudesse ter decorrido relativamente à construção clandestinamente edificada; esses factos, defendem, têm interesse para a decisão e ajudariam na consideração da causa de pedir que fundamentou os pedidos formulados pelos Autores (conclusões 53 e 54).

Simplesmente não referem em concreto que factos deveriam ter sido dado como provados e não foram, como lhes era imposto pelo artigo 640º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto nos artigos 1º e 140º, ambos do Código de Processo Civil.

Nem se vislumbra que factos sejam esses que tenham sido articulados na petição inicial ou que sejam de conhecimento oficioso e que não constem já da decisão recorrida.

Pelo que nesta parte não pode ser considerada a impugnação da matéria de facto.

Depois, nas conclusões 55, 56 e 57, em bom rigor, não atacam a matéria de facto, mas antes consideram que o Tribunal deveria ter tirado determinadas ilações dos factos dados como provados nos artigos 2º, 3º e 6º da matéria de facto.

Pelo que deveremos dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida:

1. Em 2001, os Réus C. e L. iniciaram a construção de uma casa no prédio inscrito na matriz sob o artigo n.º 1103 e descrito na Conservatória do Registo Predial (...) sob o n.º 793/19880511, do qual a Autora é comproprietária (acordo e certidão do registo predial a folhas 107 e seguintes dos autos físicos).

2. Em 28.02.2001, na sequência de auto de notícia levantado em 17.01.2001, foi elaborado “auto de embargo de obras de construção civil clandestinas de uma moradia de rés-do-chão e primeiro andar”, de que consta, entre outros, o seguinte:

“Aos vinte e oito dias do mês de Fevereiro de dois mil e um (…) dei execução, em cumprimento do Despacho do Ex.mo Vereador em regime de permanência, datado de treze de Fevereiro de dois mil e um, ao embargo das obras de construção civil clandestinas de uma moradia de rés-do-chão e primeiro andar, que C., solteiro, operário, nascido a cinco de Julho de mil novecentos e setenta e oito, filho de Z. e de M. (…) estava a levar a efeito sem projecto, porquanto verifiquei que as mesmas obras eram clandestinas, pelo que foi elaborado Auto de Notícia de Contra-Ordenação em dezassete de Janeiro de dois mil e um, o que tudo é infracção prevista e punida pelos artigos 54.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto-lei 445/91, de vinte de Novembro, com a nova redacção dada pelo Decreto-lei 250/94, de quinze de Outubro.

Nestes termos e de acordo com as disposições legais aplicáveis e para que possam ser comprovadas futuras alterações à presente situação da obra, regista-se que o estado actual dos trabalhos em causa é exactamente o seguinte: rés-do-chão com fundações em blocos de cimento, elevações em tijolo e laje em betão armado, composto por quatro divisões, com a área de noventa e três vírgula oitenta metros quadrados, primeiro andar amplo, com elevações sem tijolo e cobertura em telha cerâmica assente sobre laje em betão armado, com a área de noventa e três vírgula oitenta metros quadrados, com carpintarias, com rebocos interiores, sem rebocos exteriores ou pintura. (…)”

- Cfr. auto de notícia e auto de embargo a folhas16 e seguintes dos autos físicos e a folhas 36 a 37 do Registo n.º 22185/11 [10.º] do processo administrativo).

3. Em 28.02.2001, na sequência de mandado para o efeito, o Réu C. foi notificado de que, em virtude de a construção se situar no quintal de uma habitação antiga e de não confrontar com arruamento público, não poderia ser licenciada (cfr. certidão de mandado e certidão de notificação a folhas 20 e 21 dos presentes autos físicos).

4. Na sequência do auto de notícia acima referido, foi aplicada uma coima no valor de 1.745,79 EUR (cfr. informação a folhas 2 do Registo n.º 5990/12 [14.º] do processo administrativo).

5. Em 07.12.2011, por despacho do Vereador do Pelouro de Obras Particulares do Réu Município, foi indeferido definitivamente o projecto que havia sido apresentado pelo Autor no âmbito de pretensão urbanística, o que lhe foi notificado através de ofício não datado, com o seguinte teor parcial:

“(…)
1. Encontra-se a decorrer um processo judicial que envolve o proprietário dos prédios correspondentes aos artigos nº 1002, 1108 e nº 5045-P, M., que confrontam a poente com estrada, cuja decisão poderá condicionar a tipologia de implantação definida para o local através da informação prévia correspondente ao registo nº 23663/10 de 2010/05/19.

2. Assim, não poderá ser concedida a prorrogação solicitada, devendo aguardar a decisão que viera ser tomada pelo tribunal, comunicando-nos tal facto de forma a ser reavaliada a viabilidade de construção concedida para o local.

Nesta sequência, considera-se indeferido definitivamente o Projecto apresentado sob o Registo n.º 14307/11 de 2011/07/15, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do Artigo 24.º do Dec.-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 26/2010, de 30 de Março.
(…)”
- Cfr. ofício a folhas 15 dos autos físicos e ofício e despacho a folhas 2 e 3 do Registo n.º 22710/11 [11.º] do processo administrativo.

6. Em 28.03.2012, os Autores apresentaram requerimento junto do Réu Município, dirigido ao respetivo Presidente da Câmara Municipal, com o seguinte teor parcial:

“1. – Os Requerentes são comproprietários, na proporção de 4/5, do prédio rústico sito na freguesia da (...), composto de terra lavradia, confinante do norte com J. e do sul, nascente e poente com os próprios, inscrito na matriz predial rústica sob o artº nº 1103;

2. – Sucedeu que, no ano de 2001, no dito prédio foi iniciada a construção de uma moradia de rés do chão e primeiro andar, pelo comproprietário do restante 1/5 indiviso do mesmo prédio, C., que fez sem projecto de arquitectura e de especialidades, e, naturalmente, sem o necessário licenciamento;

3. – Por isso, logo nessa altura, foi a mesma objecto de embargo camarário que, pelos vistos, não foi respeitado, pois, a construção continuou e ficou concluída no ano de 2006.

4. – Sabem os Requerentes que a mesma construção não é passível de licenciamento e que até já foi proferido despacho nesse sentido, devidamente notificado ao dito proprietário da moradia.

5. – Sabem também que, além de outros motivos, a construção não pode ser licenciada, porque o seu licenciamento seria violador da regra do PDM de (...), porquanto está implantado a muito mais de 30 metros do eixo da via pública mais próxima, que é a Rua (...).

6. – Acresce que a construção está feita em terreno que se pode dizer alheio, uma vez que o prédio da implantação não pertence em exclusivo ao proprietário da moradia, e nem os ora Requerentes nem os antecessores comproprietários das suas quotas-partes o autorizaram.

Atento o exposto, vêm, respeitosamente, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 106º do DL. 555/99, de 16 de Dezembro, na sua actual redacção, requerer a V. Exa. que, com a urgência possível, se digne determinar a demolição da mencionada construção, sendo este acto precedido de notificação do interessado, proprietária da moradia, para se pronunciar sobre a situação.”.

- Cfr. requerimento a fls. 1 do Registo n.º 5990/12 [14.º] do processo administrativo.

7. Em 11.05.2012, os Autores apresentaram requerimento junto do Réu Município, dirigido ao respetivo Presidente da Câmara Municipal, com o seguinte teor:

“1. Relativamente ao requerimento datado do dia 28.03.2012 com o registo 5990/12 solicitamos a V. exa. que nos informe sobre em que que ponto se encontra o procedimento no qual pedimos a demolição de casa ilegal.

2. Tal indecisão por parte de V. Exa. está a afectar a nossa vida familiar pessoal e financeira.

3. Agradecemos portanto a resposta mais rápida possível tendo em vista a solucionar esta situação.”

- Cfr. requerimento a folhas 22 dos autos físicos e a folhas 1 do Registo n.º 8490/12 [16.º] do processo administrativo.

8. Em 20.06.2012, o Réu Município enviou ao Autor correio eletrónico com o seguinte teor:

“Em cumprimento do disposto no Artigo 66º do Código do Procedimento Administrativo e relativamente ao requerimento com o registo n.º 5990/12, datado de 2012/03/28, Processo n.º 179/09, sobre o qual recaiu o despacho de 2012/05/11 do Exmo. Sr. Vereador do pelouro de Obras Particulares, Eng. M., fica V. Exa. notificada que tendo em conta que está a decorrer no tribunal um processo sobre uma servidão de passagem para a edificação erigida ilegalmente, foi o presente registo enviado ao Gabinete de Apoio Jurídico, Notariado e Execuções Fiscais, tendo em vista o apoio à decisão a tomar, na certeza porém de que a demolição da construção visada, quanto mais não seja pelo facto de esta servir de habitação do seu respetivo proprietário é, nos termos do definido no articulado invocado por V. Ex.ª, a última solução a aplicar e que por isso mesmo, exige de todos nós a devida ponderação.

É essa ponderação que se procura com a análise e enquadramento jurídico pretendido, de forma a melhor sustentar a decisão no caso presente, e que oportunamente lhe será comunicada.”

- Cfr. correio eletrónico a fls. 3 do Registo n.º 5990/12 [14.º] do processo administrativo).

9. Em 09.07.2012, o Réu Município enviou ao Autor correio eletrónico com o seguinte teor:

“Em cumprimento do disposto no Artigo 66º do Código do Procedimento Administrativo e relativamente ao requerimento com o registo n.º 8490/12, datado de 2012/05/11, Processo n.º 179/09, sobre o qual recaiu o despacho de 2012/06/27 do Ex.mo Sr. Vereador do pelouro de Obras Particulares, Eng. M., fica V. Exª notificada relativamente à solicitação de informação sobre o pedido formulado através do registo nº 5990/12 datado de 2012/03/28, dado que à data de apresentação deste requerimento ainda não tinha sido emitida qualquer resposta, que a mesma foi enviada através de correio eletrónico, a 20 de Junho de 2012, 9:53, em resposta ao pedido de demolição de construção ilegal.”

- Cfr. correio eletrónico a folhas 3 do Registo n.º 8490/12 [16.º] do processo administrativo).
*
III - Enquadramento jurídico.

É o seguinte o teor do enquadramento jurídico e dispositivo decisório da sentença recorrida:

“(…)

Como vimos, os Autores vêm, através da presente ação, pedir fundamentalmente a condenação do Réu Município a (1) declarar que o edifício construído pelos segundos Réus, composto por casa de habitação, não se encontra legalizado nem é suscetível de legalização e a (2) a ordenar a demolição de tal edifício, no prazo de 30 dias.

Resultou demonstrado nos presentes autos que o segundo Réu, C., executou uma obra de construção de uma casa de habitação em terreno de que a Autora é comproprietária, sem obter licenciamento camarário para o efeito (cfr. pontos 1 e 2 do probatório).

Em fevereiro desse mesmo ano, o Réu Município decretou o embargo da obra em causa e instaurou um processo de contraordenação que culminou na aplicação de uma coima (cfr. pontos 2 e 4 do probatório), tendo ainda sido o Réu C. notificado de que a construção não poderia ser licenciada (cfr. ponto 3 do probatório).

Mais de 10 anos depois, em 28.03.2012 e novamente em 11.05.2012, os Autores apresentaram dois requerimentos junto do primeiro Réu, em que requereram que fosse ordenada a demolição da construção ilegal (cfr. pontos 6 e 7 do probatório).

Perante tais requerimentos, o Réu Município veio invocar que havia sido informado de que estava em curso um processo judicial relativo a uma servidão de passagem para a edificação ilegal e que por esse motivo seria efetuada uma maior ponderação da questão pelo “Gabinete de Apoio Jurídico, Notariado e Execuções Fiscais” (cfr. pontos 8 e 9 do probatório).

Nada mais consta dos autos ou do processo administrativo quanto à atuação do
Réu Município na sequência dos requerimentos apresentados pelos Autores. Para se aferir da procedência da presente ação, cumpre, antes do mais, saber se sobre o Réu Município se impunha o dever de agir e, em caso afirmativo, determinar qual o conteúdo de um tal dever de ação.

É que, nos termos do art. 66.º, n.º 1, do CPTA, “A ação administrativa especial pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado.”

E estabelece mais adiante o art. 71.º deste diploma, quanto aos poderes de pronúncia do tribunal, o seguinte:

“1 - Ainda que o requerimento apresentado não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual ato de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido.

2 - Quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do ato a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.”

Na verdade, recorrendo às palavras do autor Mário Aroso de Almeida, na ação de condenação à prática de atos administrativos, “(…) estamos num dos domínios em que de forma mais delicada se coloca a questão da fronteira entre o domínio do administrar, que não se pretende dos tribunais, sobrepondo os seus próprios juízos subjectivos aos daqueles que exercem a função administrativa, e o domínio do julgar, em que do que se trata é de verificar a conformidade da actuação dos poderes públicos com as regras e os princípios de Direito a que eles se encontram obrigados e, por isso, de determinar, no exercício da função jurisdicional, em que moldes se deve processar o exercício legítimo dos poderes públicos.” (in AROSO DE ALMEIDA, Mário, in Manual de Processo Administrativo. Coimbra: Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 95).

Vejamos então.
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Para a presente análise, há que ter em conta desde logo as normas do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), tal como aprovado pelo Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com as subsequentes alterações. Atendendo a que inexiste, até à data, uma decisão concreta quanto à pretensão dos Autores, no sentido da demolição do edifício ilegalmente construído, deve ser atendida a lei atualmente em vigor, por aplicação do princípio “tempus regit actum”, que vigora no direito administrativo por força do art. 12.º do Código Civil (CC).

Dispõe o art. 102.º do RJUE o seguinte, sob a epígrafe “Reposição da legalidade urbanística”:

“1 - Os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística quando sejam realizadas operações urbanísticas:

a) Sem os necessários atos administrativos de controlo prévio;

b) Em desconformidade com os respetivos atos administrativos de controlo prévio;

c) Ao abrigo de ato administrativo de controlo prévio revogado ou declarado nulo;

d) Em desconformidade com as condições da comunicação prévia;

e) Em desconformidade com as normas legais ou regulamentares aplicáveis.

2 - As medidas a que se refere o número anterior podem consistir:

a) No embargo de obras ou de trabalhos de remodelação de terrenos;

b) Na suspensão administrativa da eficácia de ato de controlo prévio;

c) Na determinação da realização de trabalhos de correção ou alteração, sempre que possível;

d) Na legalização das operações urbanísticas;

e) Na determinação da demolição total ou parcial de obras;

f) Na reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos;

g) Na determinação da cessação da utilização de edifícios ou suas frações autónomas.

3 - Independentemente das situações previstas no n.º 1, a câmara municipal pode:

a) Determinar a execução de obras de conservação necessárias à correção de más condições de segurança ou salubridade ou à melhoria do arranjo estético;

b) Determinar a demolição, total ou parcial, das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e segurança das pessoas.”

Pode retirar-se deste preceito que, perante operações urbanísticas ilegais, a entidade administrativa está efetivamente obrigada a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística.

Contudo, ao Réu Município assiste a possibilidade de adotar uma das diversas medidas elencadas no n.º 2, correspondendo a opção por uma delas, bem como o tempo da respetiva aplicação, a uma opção discricionária, própria do exercício da atividade administrativa.

Ao que acresce que o ato administrativo cuja prática vem peticionada é a determinação da demolição.

Tal medida de tutela da legalidade urbanística é uma medida que apenas deve ser utilizada na impossibilidade do recurso a outras medidas, como seja a da legalização da construção, como bem salienta a Digna Magistrada do Ministério Público, no parecer emitido nos presentes autos.

Na verdade, o n.º 2 do art. 106.º do RJUE prevê que “A demolição pode ser evitada se a obra for suscetível de ser licenciada ou objeto de comunicação prévia ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração.”

Recorrendo às doutas palavras do Supremo Tribunal Administrativo:

“A demolição de obras não licenciadas só deve ser ordenada como última e indeclinável medida sancionatória da ilegalidade cometida, por força dos princípios da necessidade, adequação e indispensabilidade ou menor ingerência possível, decorrentes do princípio da proporcionalidade, e o poder de opção entre a demolição e a legalização de obras ilegais, não licenciadas, é discricionário quanto ao tempo da decisão, pois que esta pode ser tomada a todo o tempo.” (cfr. Ac. do STA de 07.04.2011, proc. n.º 0601/10, in www.dgsi.pt).

Ora, ainda que, em 2001, os segundos Réus tenham sido notificados da impossibilidade do licenciamento da construção em questão (ponto 3 do probatório), tal não significa necessariamente que a legalização ou qualquer outra medida de reposição da legalidade não sejam atualmente viáveis, ao contrário do que pretendem os Autores.

É que, por um lado, tal notificação não surgiu no âmbito da ponderação, por parte do Município, das medidas de tutela urbanística a aplicar. Por outro lado, uma eventual legalização há que ter em conta, não apenas o quadro legal vigente, como alterações da situação de facto que possam ter entretanto ocorrido.

Recorrendo novamente às palavras do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do aresto supra citado:

“(…) o referido “juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada”, pressuposto vinculado de que falam os arestos deste STA atrás citados, e que deve anteceder a opção demolição/legalização, terá naturalmente que reportar-se ao quadro normativo legal e regulamentar actual, existente à data da emissão de tal juízo.

Não faria, na verdade, qualquer sentido que a Administração reportasse esse juízo de possibilidade de legalização a diplomas legais ou regulamentares já erradicados da ordem jurídica. Seria um perfeito e completo absurdo.

O juízo de viabilidade de legalização, a empreender obrigatoriamente pela Administração, só é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística actual. Dito de outro modo, esse juízo de viabilidade será positivo se positiva for a resposta à pergunta seguinte: no momento actual a construção era legalmente viável?

E importa referir que o juízo a empreender é um juízo de viabilidade, não consubstanciando qualquer decisão definitiva sobre o licenciamento que, obviamente, poderá vir a ser recusado. Como se afirma no Ac. do Pleno do STA de 29.11.2006 – Rec. 633/04, “para obstar à demolição não se exige uma decisão definitiva sobre a legalização, bastando que se possa concluir que as obras são susceptíveis de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização”.

Ou seja, embora nos presentes autos venha pedida a condenação à determinação da demolição de uma construção ilegal, a administração apenas se encontra vinculada a adotar medidas de tutela urbanística, sem que o respetivo conteúdo se encontre legalmente pré-determinado. A adoção de medidas de tutela constituirá uma opção discricionária da administração, naturalmente que balizada por momentos vinculados.
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Como bem realça o autor José Carlos Vieira de Andrade, «Parece-nos que a obrigação “legal” [abrangida pelo art. 66.º do CPTA] deve aqui ser entendida em sentido amplo, abrangendo a generalidade dos casos em que a omissão ou recusa sejam contrárias à ordem jurídica, excluindo apenas as situações em que a prática do acto pretendido corresponda a um mero “dever de boa administração”.» (VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, in A Justiça Administrativa - Lições. Coimbra: Almedina, 2014, 13ª Edição, p. 206).

Ora, face à obrigação de adoção das medidas de tutela e restauração da legalidade urbanística prevista no art. 102.º, n.º 1, do RJUE, há que concluir pela existência de um dever legal de agir, neste sentido amplo.

Contudo, atendendo à ampla margem de decisão de que dispõe o Réu Município face ao disposto nos arts. 102.º e ss do RJUE, não é possível condená-lo à emissão de um ato pré-determinado, ainda que sem especificação do respetivo conteúdo, nos termos previstos pelo art. 71.º, n.º 2, do CPTA.

Assim sendo, ao tribunal resta apenas condenar o Réu a diligenciar no sentido de apreciar a pretensão formulada.

Recorrendo às palavras do autor Mário Aroso de Almeida “Em último caso, a sentença pode ter, no entanto, de limitar-se apenas à condenação da Administração a praticar um qualquer acto administrativo, sem conter quaisquer especificações quanto ao conteúdo do acto a praticar. Neste caso, o tribunal limita-se a condenar a Administração a (re)apreciar a pretensão do interessado, proferindo nova decisão sobre ela (…) mas sem determinar o conteúdo do acto a praticar a final.” (assinalado nosso).

Segundo este autor, citando a autora Esperança Mealha, «em situações em que “a Administração detém uma ampla margem de decisão no âmbito de procedimentos que ainda estão numa fase preambular” e em que a Administração não tenha “apreciado a pretensão do autor, nem instruído o respectivo procedimento, cabendo-lhe, antes de decidir o pedido do interessado, realizar uma série de actos e operações pertencentes ao múnus da função administrativa”, mais não resta do que a condenação da Administração no dever de decidir a pretensão do autor, “desenvolvendo a actividade procedimental necessária para a emissão do acto administrativo”.» (in AROSO DE ALMEIDA, Mário, in Manual de Processo Administrativo. Coimbra: Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 101).

É esta, precisamente, a situação dos presentes autos, em que inexiste uma decisão por parte do Réu Município, nem foram realizadas as operações e os atos necessários para a prática do ato devido, cujo conteúdo ou sentido também não é possível determinar.

Assim sendo, consideram-se improcedentes os pedidos de condenação concretamente formulados, por estar em causa uma atuação em que o Réu Município dispõe de uma ampla margem de atuação, mas condena-se este Réu a apreciar a pretensão dos Autores, proferindo decisão sobre a medida de tutela urbanística a adotar.
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Custas pelos Réus, por um lado, e pelos Autores, por outro, na proporção dos respetivos decaimentos, que desde já se fixam em 60% e 40%, respetivamente, nos termos do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA.

IV. DECISÃO

Em face do exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação, em que são Autores L. e M. e Réus o Município (...), C. e L. e Z. e M., e, em consequência:

a) Considero improcedentes os pedidos de condenação concretamente formulados pelos Autores; e

b) Condeno o Réu Município a apreciar a pretensão dos Autores, desenvolvendo as diligências procedimentais adequadas por forma a tomar uma decisão quanto à medida de tutela da legalidade urbanística a adotar.

(…)”

Mostra-se acertada a decisão.

Ao contrário do que defendem os Recorrentes, a ordem de embargo e o indeferimento do pedido de licenciamento na consideração de que, à data, as obras não eram legalizáveis, não impõe ao Réu Município que ordene a demolição do prédio dos restantes Réus.

A ordem de embargo é uma decisão administrativa cautelar e, portanto, instrumental, provisória e baseada numa primeira análise do processo, de forma a manter o prédio no estado em que estava na data em que foi constatada pelos serviços a construção de uma obra ilegal.

Não determina, pela sua própria natureza, uma decisão definitiva sobre a ilegalidade e impossibilidade de legalização.

Como resulta claramente do disposto no artigo 104º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16.12:

“1 - A ordem de embargo caduca logo que for proferida uma decisão que defina a situação jurídica da obra com carácter definitivo ou no termo do prazo que tiver sido fixado para o efeito.

2 - Na falta de fixação de prazo para o efeito, a ordem de embargo caduca se não for proferida uma decisão definitiva no prazo de seis meses, prorrogável uma única vez por igual período.”

Por outro lado, a decisão de indeferimento, sendo um acto válido, é livremente revogável, salvo se (artigo140º, n.º1, do Código de Procedimento Administrativo de 1991, aplicável ao caso):

“a) Quando a sua irrevogabilidade resultar de vinculação legal;

b) Quando forem constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos;

c) Quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.”

No caso, não resulta de qualquer norma legal que a decisão de indeferimento de um determinado pedido de licenciamento, por as obras serem ilegalizáveis, no quadro jurídico de um momento, seja impeditivo de posterior acto de licenciamento, mediante diverso pedido e mediante alteração dos pressupostos de facto e ou de direito.

Não se trata também, o acto de indeferimento, de um acto constitutivos de direito para terceiros dado que tem apenas como destinatários os requerentes do pedido de licenciamento.

Também não resultam no caso para a Administração qualquer obrigação legal.

Em concreto o disposto no artigo 102º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização, invocado pelos Recorrentes, estabelece para o Município, como se disse na decisão recorrida, apenas a vinculação legal quanto à tutela e restauração da legalidade urbanística – n.º1.

Quanto aos meios para alcançar esse desiderato, da reposição da legalidade, o legislador conferiu ao município uma ampla margem de discricionariedade, como claramente resulta do termo “pode” e do leque de alternativas legais, sendo a demolição apenas uma delas – n.º 2 alínea e).

Alternativa que, de resto, o legislador, tendo naturalmente presentes os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação que devem reger a conduta da Administração - n.º2 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º do Código de Procedimento Administrativo (1991) – deixou para último lugar, apenas se e quando a obra for insusceptível de ser licenciada ou for impossível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe sejam aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correcção ou de alteração – n.º2 do artigo 106º do regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

A partícula disjuntiva alternativa “ou” utilizada neste último preceito legal indica inequivocamente que mesmo na hipótese de as obras serem insusceptíveis de serem licenciadas (primeira parte) não se impõe ordenar a demolição, antes surge a alternativa de assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe sejam aplicáveis (segunda parte).

As disposições legais e regulamentares aplicáveis são, como é entendimento pacífico, as que estão em vigor quando a Administração exerce o poder discricionário de avaliar se deve ou não optar pela demolição.

Mostra-se, portanto, acertada a decisão recorrida nos precisos termos em que foi tomada.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.
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Custas pelo Recorrente.
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Porto, 02.06.2021

Rogério Martins
Luís Garcia
Frederico Branco