Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00240/08.4BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2010
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:POSSE ADMINISTRATIVA
DEMOLIÇÃO
ART. 71.º, N.º 2 CPTA - PODERES TRIBUNAL
NULIDADES SENTENÇA
Sumário:I. O quadro legal definido no art. 106.º do RJUE, tal como acontecia com o regime jurídico fixado nos arts. 165.º e 167.º do RGEU, pauta-se pelo princípio da proporcionalidade, numa lógica de impor ao infractor o menor sacrifício possível, não se podendo ordenar a demolição de obras que, apesar de ilegalmente construídas, cumprem as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis, ou são susceptíveis de os vir a satisfazer.
II. Tal significa que a demolição das obras ilegais tem de ser precedida por um juízo relativo à possibilidade das mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.
III. Este regime não elege, assim, em caso de obra construída ilegalmente, a demolição como a única medida capaz de satisfazer interesse público visto prever o aproveitamento da construção, desde que a Administração reconheça que a mesma é susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares legalmente previstas para aquele local e tipo de edificação, salvaguardando-se, desta forma, não só as obras que, sem mais, cumpram aqueles requisitos, mas também as que, com modificações, possam vir a satisfazê-los.
IV. A Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, for passível de ser legalizada.
V. Consolidados todavia na ordem jurídica actos ordenadores da demolição de construções realizadas, nos quais se conclui pela insusceptibilidade ou inidoneidade de legalização, temos que o poder de ordenar a demolição e da levar a cabo se mostram ou se apresentam como vinculados, pelo que não faz sentido procurar-lhe imputar ilegalidades próprias daquele tipo de actos inseridos na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa”, mormente, a infracção ao princípio da proporcionalidade.
VI. O poder de ordenar a demolição apresenta-se como vinculado logo que se mostre reconhecida a inidoneidade ou impossibilidade da operação de conformação do edificado com o quadro normativo tido por relevante e aplicável ao caso, poder esse que se configura ainda como imprescritível visto do seu não exercício não cria ou confere direitos, nem pode conduzir à extinção dos respectivos poderes funcionais visto estarem em causa interesses públicos irrenunciáveis e indisponíveis.
VII. Os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP.
VIII. Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos, inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado, ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, etc.).
IX. Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.*

* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:02/10/2010
Recorrente:Município de Penafiel e M...
Recorrido 1:J...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Negar provimento ao recurso
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
“MUNICÍPIO DE PENAFIEL” e M…, devidamente identificados nos autos, inconformados, vieram, cada um, interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Penafiel, datada de 18.05.2009, que julgou procedente a acção administrativa especial contra os mesmos deduzida por J… e condenou o R. Município “… a dar executoriedade à demolição, no prazo de 10 (dez) dias úteis a contar do trânsito em julgado deste acórdão, proferindo um acto determinativo da posse administrativa do prédio da Contra-interessada ou qualquer outro acto, desde que, com aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela da legalidade urbanística …”.
Formula o recorrente Município nas respectivas alegações (cfr. fls. 133 e segs. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário), as seguintes conclusões que se reproduzem: “...
A. Ao decidir no sentido indicado, a sentença recorrida violou os princípios gerais de direito administrativo da legalidade e proporcionalidade previstos no artigo 266.º da CRP e 3.º e 5.º do CPA, princípios que pautaram a conduta da Câmara Municipal no caso vertente;
B. Violou também o princípio da precedência de acto administrativo e os artigos 106.º, n.º 4, e 107.º, n.º 1, do RJUE, e 151.º, n.º 1 e 1.º, n.º 2 (legalidade da execução) do CPA;
C. Violou ainda o disposto no artigo 71.º, n.º 2, in fine, do CPTA, em virtude de não ter estabelecido as modalidades de actuação vedadas e apreciado a legalidade das questões prévias que fundamentaram e impediram a execução da demolição, condenando a autarquia à prática de um acto que não é vinculado e se enquadra na sua margem de discricionariedade, e abrindo a porta à discricionariedade onde deveria ter estabelecido vinculações a observar, determinando a prática de qualquer acto, com o único limite deste ter aptidão suficiente para pôr em prática a medida de tutela administrativa …”.
A co-R., aqui também recorrente, apresentou alegações (cfr. fls. 149 e segs.), nas quais termina concluindo do seguinte modo:
...
A) A aqui recorrente, na respectiva contestação, expressamente havia alegado os seguintes factos, e o seguinte Direito aplicável:
«A contra-interessada, como se referiu, levou a efeito, no logradouro da respectiva fracção e que unicamente lhe pertence, a construção de um muro, que é integralmente seu, e um pequeno anexo, também no logradouro da respectiva fracção, e sem ocupar qualquer parte comum do edifício.
… Aliás, conforme pode verificar-se das respectivas descrições prediais, constantes dos documentos juntos com a petição, cada uma das duas únicas fracções do edifício, tem o seu próprio logradouro.
… Sucede que, actualmente, e de acordo com a regra geral de que ‘tempus regit actum’, tais obras se encontram isentas de licenciamento municipal, face ao disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que foi conferida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro».
B) Na douta sentença sob recurso, ocorre não ter sido conhecido qualquer um dos meios de defesa deduzidos pela recorrente, apenas se aludindo, no respectivo relatório, que aquela pugnou pela improcedência da acção, afigurando-se, consequentemente, que na douta sentença se não conheceu de factos articulados e do Direito aplicável, que deviam ter sido conhecidos, com completa e total omissão, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
C) Todos os actos praticados pelo Município de Penafiel, constantes do relatório da sentença recorrida, face aos factos articulados pela recorrente na contestação, e face aos que se consideram provados na sentença, radicam na falta de um licenciamento que não é exigível por lei, face ao … disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea i), do Decreto-Lei n.º 555/99, …, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 60/2007, …, com referência à introdução do artigo 6.º-A, por força do aludido diploma legal.
D) A determinação judicial constante da sentença recorrida, e que consiste na aludida prática de acto destinado a dar executoriedade à demolição, de acordo com a regra geral do «tempus regit actum», implica, na espécie controvertida, a execução de uma medida de tutela urbanística onde, legalmente, nada há hoje a tutelar, nem Lei que o autorize, violando a mesma as disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea i), do Decreto-Lei n.º 555/99, …, na redacção que foi conferida pela Lei n.º 60/2007, …, com referência à introdução do artigo 6.º-A do mesmo diploma legal …”.
Terminam ambos pugnando pela procedência dos recursos jurisdicionais interpostos e pela total improcedência da acção administrativa especial contra os mesmos movida.
O aqui ora recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 163 e segs.), onde conclui nos termos seguintes:
...
A) O Recorrente violou o dever legal de decidir, quando, tendo sido confrontado com o requerimento do Recorrido, em 13 de Dezembro de 2007 (fls. 12 dos autos), mercê do qual foi-lhe requerido que determinasse a posse administrativa do imóvel da Contra-Interessada, «… com vista à demolição de obras ilegais …» (muro e anexo, PA’s 76/02 e 786/01), não se pronunciou - até à prolação do douto Acórdão -, indeferindo-o, ou deferindo-o, determinando a posse administrativa ou qualquer outra medida coerciva, com vista à execução da adoptada medida de tutela da legalidade urbanística (a demolição), pelo que se aplaude, também neste quadrante, o sobredito Acórdão.
B) Na sua douta Decisão, o Lustroso Pretório não fere, pelo contrário, tributa os princípios de legalidade, proporcionalidade e da precedência de acto administrativo, porquanto o Recorrente, no seguimento do já expendido, praticou, em 16 de Agosto de 2007 (ut. Fls. 10 dos autos), acto administrativo, endereçado à Contra-Interessada, notificando-a para, no prazo de 30 dias, proceder À proceder à demolição das mencionadas obras, cuja ilegalidade já tinha sido certificada, pelo Recorrente, nos sobreditos procedimentos administrativos (fls. 47 e 48 do PA 786/01 e fls. 73 do PA 76/02), ordem essa nunca acatada - até à data(!) -, por esta última. Pelo que, até à data do início da instância, todo o procedimento administrativo, que precedeu a dita ordem de demolição, não se encontrava eivado de qualquer vício que concitasse a maculação dos referidos princípios, ao invés do alegado por aquele.
C) Louva-se, por outro lado, o douto Acórdão recorrido, por, (finalmente), condenar o Recorrido a repor a legalidade urbanística, tal-qualmente postulam os artigos 106.º, n.º 4 e 107.º, n.º 1 do RJUE. Na verdade, tendo o Recorrido ordenado, como está assente na fundamentação do Acórdão (fls. 121), em 16 de Agosto de 2007 (fls. 10 dos autos), que a Contra-Interessada demolisse o anexo e muro, no prazo de 30 dias, tal prazo há muito se havia esgotado, sem que tal ordem tivesse sido cumprida pela mesma.
D) É que, como ficou demonstrado, à saciedade, e bem assim confirmado pelo Tribunal a quo, à data da propositura da acção, o Recorrente não havia determinado - apesar de avisado em 19 de Outubro de 2007 pelo Recorrido(!) -, a demolição da obra, por conta daquela Contra-Interessada. Donde, sendo tal “inércia”/omissão ilegal, podia e devia o Tribunal a quo - condenar o Recorrente à fazer cessar tal (sua) “inacção” e, de forma concomitante, condená-lo a repor, ainda que coercivamente, a legalidade urbanística, ou seja, a assegurar o cumprimento, por banda da Contra-Interessada da sobredita ordem de demolição: é isso que impõem os normativos dos sobreditos artigos do RJUE e que (repita-se, finalmente) são agora tributados, pelo douto Acórdão, traduzindo o triunfo da legalidade, o que, também, se aplaude e louva.
E) The last but not the least, com a sua douta Decisão, e que se dá aqui por reproduzida, na íntegra, o Tribunal a quo, determina que o Recorrente ponha em prática a medida de tutela da legalidade urbanística (demolição), explicitando as vinculações a observar por aquele (prazo de 10 dias úteis, a contar do trânsito da decisão) e respeitando o inalienável poder discricionário que este detém, daí que no Acórdão se diga - e bem(!) -, que se condena a proferir um «acto determinativo da posse administrativa do prédio da Contra-Interessada» , sem embargo de «… qualquer outro acto, desde que, com aptidão suficiente …» (o sublinhado é nosso) para assegurar a tutela da legalidade urbanística. Assim, como se diz nesta Decisão (fls. 124), remete-se para o Recorrente a escolha da solução ideal para o caso concreto, mas, simultaneamente, erigindo e positivando os limites a observar por aquele, no acto a praticar (prazo e finalidade do mesmo). São as exigências que decorrem da mens legislatoris e da letra da própria Lei (artigo 71.º, n.º 2 do CPTA), clama-se o Acórdão nesta latitude …”.
O Ministério Público (MºPº) junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA veio apresentar parecer/pronúncia no sentido da total improcedência dos recursos jurisdicionais (cfr. fls. 186 e 187), parecer esse que objecto de contraditório não mereceu qualquer resposta (cfr. fls. 188 e segs.).
Colhidos os vistos legais juntos dos Exmos. Juízes-Adjuntos foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 144.º, n.º 2, 146.º, n.º 4 do CPTA, 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 685.º-A todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar:
A) Quanto ao recurso do co-R. Município, se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento traduzido na incorrecta e ilegal aplicação dos princípios gerais de direito administrativo da legalidade e proporcionalidade (arts. 266.º da CRP, 03.º e 05.º do CPA) e, bem assim, do disposto nos arts. 106.º, n.º 4 e 107.º, n.º 1 ambos do RJUE, 01.º, n.º 2 (legalidade da execução) e 151.º, n.º 1 ambos do CPA e 71.º, n.º 2, “in fine”, do CPTA;
B) Quanto ao recurso da co-R., se a decisão judicial recorrida enferma, por um lado, de nulidade por omissão de pronúncia [art. 668.º, n.º 1, al. d) do CPC] e, por outro, de erro de julgamento traduzido na incorrecta e ilegal aplicação do que se mostra previsto nos arts. 06.º, n.º 1, al. i) e 06.º-A ambos do DL n.º 555/99 (vulgo RJUE) (na redacção que foi dada ao diploma Lei n.º 60/07) [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Da decisão recorrida resultaram provados os seguintes factos:
I) Em 28.12.2001 e em 07.02.2002, respectivamente, a ora Contra-Interessada requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Penafiel o licenciamento de um anexo e de um muro de divisão no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel com o n.º … (cfr. fls. 02 a 07 do PA n.º 786/01 e fls. 02 a 07 do PA n.º 76/02);
II) A construção do anexo foi indeferida pelo despacho de 21.04.2004 do Presidente da Câmara Municipal de Penafiel (cfr. fls. 47 e 48 do PA n.º 786/01);
III) O requerimento da ora Contra-Interessada para a construção do muro de divisão foi rejeitado liminarmente pelo despacho de 16.08.2007 do Vereador do Urbanismo (cfr. fls. 73 do PA n.º 76/02);
IV) Em 16.08.2007, o R. elaborou o ofício n.º 08026, endereçado à ora Contra-Interessada, notificando-a para, no prazo de 30 dias, proceder à demolição do muro e do anexo (cfr. fls. 10 dos autos);
V) Em 19.10.2007, o A. informou o R. de que a Contra-Interessada ainda não havia procedido à demolição do muro e do anexo (cfr. fls. 11 dos autos);
VI) Em 13.12.2007, o A. requereu ao R. a determinação da posse administrativa do imóvel onde se situam os ditos muro e anexo, «com vista a permitir a execução coerciva da dita ordem de demolição …» - (cfr. fls. 12 dos autos);
VII) Na sequência da Informação Jurídica de 11.04.2008, pelo despacho do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Penafiel, de 2008.04.28, o R. fixou à Contra-Interessada um novo prazo para proceder à demolição do muro e do anexo, «sob pena de, em caso de incumprimento, ser a mesma determinada a expensas suas (infractora) …» - (cfr. fls. 83 a 87 do PA n.º 58/01 - “Queixa”);
VIII) O Vereador atrás indicado ordenou em 22.10.2008 que a demolição do muro e do anexo corresse a expensas da ora Contra-Interessada, mais ordenando aos serviços do R. que recolhessem orçamentos para executar a demolição (cfr. fls. 99 a 102 dos autos).
«»
3.2. DE DIREITO
Considerada a factualidade supra fixada importa que não foi objecto de impugnação cumpre, agora, entrar na análise dos fundamentos dos recursos jurisdicionais interpostos.
O TAF de Penafiel em apreciação da pretensão deduzida pelo A., aqui ora recorrido, contra o “Município de Penafiel” e a co-R. contra-interessada concluiu no sentido de que “in casu” o ente público demandado não havia emitido pronúncia sobre o requerimento formulado pelo A. em 13.12.2007 [peticionar tomada posse administrativa para ulterior demolição das obras ilegais - muro e anexo edificados] termos em que, face à existência de anteriores actos administrativos consolidados a determinar a demolição daquelas obras e ao seu incumprimento voluntário por parte da co-R. contra-interessada, se impunha o prosseguimento do procedimento camarário para reposição e tutela da legalidade administrativa urbanística, pelo que condenou o R. Município nos termos atrás enunciados.
Reagindo a tal decisão os RR. insurgem-se contra o ali julgado, sustentando haver o tribunal “a quo” incorrido em nulidade e erro de julgamento.
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3.2.1. DO RECURSO JURISDICIONAL DO R. “MUNICÍPIO PENAFIEL
3.2.1.1 DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E PROPORCIONALIDADE (arts. 266.º CRP, 03.º e 05.º CPA)
Sustenta o ente público R., ora recorrente, que a decisão judicial impugnada infringe os princípios da legalidade e da proporcionalidade consagrados no quadro normativo referido em epígrafe.
Apreciemos.
Para além dos afloramentos constantes do art. 02.º da CRP resulta ainda do n.º 2 do art. 266.º da nossa Lei Fundamental que os “… órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei …”, sendo que decorre do n.º1 do art. 03.º do CPA que os “… órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos …”.
Constitui pedra basilar do Estado de direito a subordinação jurídica de todos os poderes públicos, nomeadamente o da Administração, sendo o princípio da legalidade o concretizador de tal fundamento.
A subordinação jurídica implica que os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.
Tal princípio tem por conteúdo não apenas o respeito da lei, em sentido formal ou em sentido material, mas abrange ou implica a subordinação da Administração a todo o bloco legal (a CRP, a lei ordinária, o regulamento, os direitos resultantes de contrato administrativo e de direito privado ou de acto administrativo constitutivo de direitos, bem como aos princípios gerais de Direito e mesmo ao Direito Internacional que vigore na ordem jurídica interna), sendo que o mesmo princípio tem por objecto todos os tipos de comportamentos da Administração Pública e comporta duas modalidades:
a) A preferência da lei (veda à administração que a mesma contrarie o direito vigente) e
b) A reserva da lei (exige-se que a administração na sua actuação, mesmo que não contrária ao direito, tenha fundamento numa norma jurídica), sendo que esta se projecta, por sua vez, em duas maneiras complementares:
1) A precedência de lei (exprime a necessária anterioridade do fundamento jurídico-normativo que preside à actuação administrativa), e
2) A reserva de densificação normativa (exigência daquele mesmo fundamento jurídico-normativo estar e se mostrar dotado dum grau de suficiente pormenorização que permita antecipar adequadamente tal actuação administrativa) (cfr., para maiores desenvolvimentos, Freitas do Amaral in: “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, págs. 40 e segs.; Marcelo Rebelo de Sousa in: “Direito Administrativo Geral - Introdução e princípios fundamentais”, Tomo I, págs. 153 e segs.; M. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e J. Pacheco Amorim in: “Código de Procedimento Administrativo”, 2.ª edição, págs. 86 e segs.; Santos Botelho, Pires Esteves e Cândido Pinho in: “Código de Procedimento Administrativo Anotado”, 5.ª edição, págs. 48/51).
Munidos do pertinente enquadramento e dos considerandos antecedentes sobre o princípio que alegadamente foi violado pela decisão judicial impugnada temos para nós que a ilegalidade não existe no caso "sub judice".
Com efeito, desde logo o princípio em referência nos termos em que se mostra consagrado nos preceitos legais em questão não vale para a aferição da legalidade duma decisão judicial. É que tal princípio e normativos trazidos à colação pelo recorrente apenas possuem plena valia/vinculação para a Administração, devendo esta nortear e pautar a sua actividade pela sua estrita observância.
Ainda assim não se vislumbra que o decidido e os termos em que o R. foi condenado envolvam desrespeito ao princípio em análise à luz do enquadramento feito quanto ao mesmo, pois, nada ressalta dos autos que permita concluir que tal actuação tida por devida através da decisão condenatória envolva ou implique uma actuação contrária à lei, nomeadamente, que aquela conduta a desenvolver em obediência à decisão judicial seja proferida sem fundamento na lei e/ou fora dos limites pela mesma impostos.
Por conseguinte, não se descortina à luz do exposto que a decisão judicial impugnada tenha evidenciado ou evidencie nos termos em que foi proferida uma actuação ilegal na análise da pretensão formulada pelo A. em face do princípio “sub judice”.
Passando, agora, ao enquadramento do outro princípio em questão decorre do n.º 2 do art. 05.º, n.º 2 do CPA que as “… decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar …”.
Consagra-se no citado normativo em termos de legislador ordinário o princípio da proporcionalidade, cumprindo-se também aqui uma directriz constitucional inserta no n.º 2 do art. 266.º da CRP.
Na actuação administrativa terá, por conseguinte, de existir uma proporção adequada entre os meios empregues e o fim que se pretende atingir, já que a proporcionalidade terá de se verificar entre o fim da lei e o fim do acto, entre o fim da lei e os meios escolhidos para atingir tal fim e entre as circunstâncias de facto que dão causa ao acto e as medidas tomadas.
Este princípio tem grande aplicação na actividade administrativa e, em especial, na actividade que se insere na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa” ("justiça administrativa"), sendo que, nesse âmbito, não deverá o juiz, em princípio, sobrepor o seu poder de apreciação ao da autoridade investida daquele poder, salvo situações como de incompetência do órgão, de inobservância de formalidades essenciais no decurso do processo, de falta ou insuficiência de fundamentação da decisão final, de erro nos pressupostos, de desvio de poder, de erro manifesto, inadmissibilidade ostensiva dos critérios usados, ou mostrarem-se estes manifestamente desacertados e inaceitáveis.
É certo que no âmbito da tutela da legalidade urbanística, mormente das sanções administrativas e medidas de polícia administrativa legalmente previstas, a Administração deve pautar a sua acção pelo princípio geral de direito em análise, o qual conjuntamente com o princípio da legalidade configuram garantias do Estado de direito.
Dúvidas não temos que face ao quadro legal definido no art. 106.º do RJUE, tal como acontecia com o regime jurídico fixado nos arts. 165.º e 167.º do RGEU, se pauta pelo princípio da proporcionalidade, numa lógica de impor ao infractor o menor sacrifício possível, e que, por ser assim, não se pode ordenar a demolição de obras que, apesar de ilegalmente construídas, cumprem as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis, ou são susceptíveis de os vir a satisfazer.
Tal significa que a demolição das obras ilegais tem de ser precedida por um juízo relativo à possibilidade das mesmas poderem vir a ser legalizadas e desse juízo ser negativo.
Este regime não elege, assim, em caso de obra construída ilegalmente, a demolição como a única medida capaz de satisfazer interesse público visto prever o aproveitamento da construção, desde que a Administração reconheça que a mesma é susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares legalmente previstas para aquele local e tipo de edificação, salvaguardando-se, desta forma, não só as obras que, sem mais, cumpram aqueles requisitos, mas também as que, com modificações, possam vir a satisfazê-los.
A solução legislativa consagrada é, pois, informada pelo princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de necessidade e da proporcionalidade propriamente dita. A primeira a proclamar que só deve lesar-se a posição do particular se não houver outro meio para lograr prosseguir o interesse público. A segunda a ditar que a medida correctiva a suportar pelo administrado deve ser justa, na relação custo/benefício, ou seja, deve reduzir-se ao mínimo indispensável para obter a reintegração da legalidade urbanística ofendida.
Temos, por conseguinte, que a Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, for passível de ser legalizada.
Contudo, da existência de tal dever não deriva minimamente que o mesmo haja no caso “sub judice” sido infringido pela decisão judicial impugnada, pois, importa ter presente que no caso vertente a Administração mostra-se confrontada com actos administrativos [ordenadores da demolição], que pela mesma foram proferidos e que se consolidaram na ordem jurídica, qualificando as obras levadas a cabo como ilegais (clandestinas) por realizadas sem a prévia obtenção de permissão administrativa tida por necessária e que não são passíveis de legalização.
Nessa medida, consolidados na ordem jurídica que estão tais actos ordenadores da demolição das construções realizadas, nos quais se conclui pela insusceptibilidade ou inidoneidade de legalização, temos que o poder de ordenar a demolição e da levar a cabo se mostram ou se apresentam como vinculados, pelo que não faz sentido procurar-lhe imputar ilegalidades próprias daquele tipo de actos inseridos na denominada “discricionariedade técnica ou administrativa”, mormente, a infracção ao princípio da proporcionalidade.
Atente-se que do facto duma obra poder ter sido passível de legalização que não foi concretizada, por ausência duma atitude efectiva e pró-activa do interessado na sua legalização, não deriva a impossibilidade legal por parte da Administração de determinar a sua demolição, nem a isso obsta o princípio da proporcionalidade, já que como referem Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes “… o que determina o n.º 2 do artigo 106.º não é a que a demolição não pode ser ordenada se a obra for susceptível de ser licenciada, …, mas que a demolição pode ser evitada se a obra for susceptível de ser licenciada …” (in: “Direito do Urbanismo …”, pág. 176).
Ainda que assim se não considere temos que, para além disso, não se descortina que, no caso vertente, considerando os factos apurados e o que supra se teceu quanto à caracterização do princípio em análise, a decisão judicial e a condenação que a mesma encerra envolvam qualquer erro grosseiro ou manifesto que infrinja o princípio da proporcionalidade porquanto não demonstrada a susceptibilidade de legalização das obras a sua demolição tem-se como executada em integral respeito ao princípio da legalidade, com reintegração desta e observância do interesse público.
Se a decisão de implementação da execução da ordem de demolição era a única medida possível, então, a mesma é necessariamente adequada, como é óbvio, e como tal não pode ter-se como desrespeitadora ou ilegal por infracção ao princípio da proporcionalidade.
Improcede, deste modo, este fundamento de impugnação.
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3.2.1.2 DA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 106.º, n.º 4 e 107.º, n.º 1 RJUE, 01.º, n.º 2 e 151.º, n.º 1 CPA
Reclama também o ente público R. que a decisão judicial em crise e os termos em que a mesma se mostra proferida infringiram os normativos aludidos em epígrafe, porquanto não haveria sido proferida ordem de demolição nos termos do n.º 4 do art. 106.º do RJUE, o que impediria a prolação de decisão a ordenar a posse administrativa por efeito do princípio da precedência de acto administrativo.
Vejamos.
A actividade edificatória, tal como sustenta André Folque, é “… relativamente proibida e só a comunicação prévia, a licença ou a autorização permitem exercer o direito ou constituí-lo …” (in: “Curso de Direito da Urbanização e da Edificação”, pág. 157).
Tem-se, assim, como clandestina toda a actividade urbanística que haja tido lugar, no seu todo ou apenas em parte, sem controlo administrativo prévio.
O que acontece todavia com as edificações levadas a cabo à margem daquele controlo? Enquanto clandestinas terão de ser demolidas?
O legislador, desde cedo, sensível a situações em que em nada se mostre lesado o interesse público, nem direitos ou interesses legalmente protegidos de terceiros, tem, dentro de determinados condicionalismos, permitido ou concedido a possibilidade de legalização das edificações feitas sem controlo administrativo prévio, posicionamento este que se estriba em imperativos e razões de primazia da materialidade construída.
Nessa linha, atente-se no regime definido pelo art. 167.º do RGEU, preceito que entretanto veio a ser revogado na totalidade pelo actual RJUE [cfr. art. 129.º, al. e)], bem como no actual art. 106.º do RJUE o qual veio, como já aludimos supra, permitir que um interessado se oponha à demolição mediante a possibilidade de obter o licenciamento ou autorização «a posteriori» ainda que tenha de se providenciar por trabalhos de alteração ou de correcção (art. 105.º).
No referido art. 106.º prevêem-se dois tipos de medidas de tutela ou de polícia urbanística, sendo uma a demolição (total ou parcial) e outra a reposição do terreno nas condições pré-existentes.
Reflexo das necessidades de ponderação a efectuar em cada caso, fazendo apelo aos princípios gerais consagrados no CPA, mormente, do princípio da proporcionalidade, de molde a lograr encontrar e escolher a medida ou medidas adequada(s) e equilibrada(s) a repor a legalidade urbanística infringida, temos que do cotejo do citado preceito se impõe à Administração o dever de ponderação sobre qual das medidas de polícia urbanística ali previstas se mostrará a pertinente.
Com efeito, se existem situações em que a reintegração da legalidade urbanística reclama a implementação de ambas as medidas outras situações bastam-se com o recurso a apenas uma delas.
Note-se, por outro lado, que a medida de polícia urbanística em causa (demolição de construções) tem como pressuposto a ilegalidade, constituindo um poder conferido à edilidade que legitima o uso da força pública para fazer cumprir as suas injunções ou intimações (arts. 149.º, n.º 2 CPA, 107.º e 108.º do RJUE), na certeza de que a mesma, salvo casos de risco iminente para a segurança de pessoas e bens, goza de alguma discricionariedade na sua implementação em função da definição de prioridades temporais e sociais, bem como orçamentais (disponibilidades) e das técnicas adequadas para a sua implementação.
Atente-se, todavia, que o poder de ordenar a demolição se apresenta como vinculado logo que se mostre reconhecida a inidoneidade ou impossibilidade da operação de conformação do edificado com o quadro normativo tido por relevante e aplicável ao caso, poder esse que se configura ainda como imprescritível visto do seu não exercício não cria ou confere direitos, nem pode conduzir à extinção dos respectivos poderes funcionais visto estarem em causa interesses públicos irrenunciáveis e indisponíveis (cfr. art. 29.º do CPA).
Ora o acto que ordene a demolição de obra deve obrigatoriamente fixar um prazo para o respectivo destinatário proceder ao seu cumprimento (cfr. art. 106.º, n.º 1 do RJUE), sendo que, como sustenta João Pereira Reis e outros, uma vez expirado aquele prazo o presidente da edilidade “… deverá determinar a realização dos actos materiais necessários à concretização da ordem proferida, não tendo que praticar qualquer novo acto administrativo nesse sentido, como, numa primeira leitura, se poderia inferir da parte final do n.º 4 do art. 106.º …” (in: “Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação”, 3.ª edição, pág. 291).
Revertendo ao caso em presença temos que, tal como decorre dos elementos factuais apurados, o anexo edificado com cerca de 05 m2 objecto de ordem de demolição violaria o disposto no art. 48.º PDM sendo que o muro implantado, igualmente com ordem de demolição, não foi igualmente legalizado por falta de apresentação/instrução com autorização do condómino da fracção «B», contígua.
Mais resulta que ambas as construções foram objecto de ordens de demolição comunicadas à contra-interessada por ofício de 16.08.2007 [n.º 08026], no qual esta era notificada para, no prazo de 30 dias, proceder à demolição do muro e do anexo (cfr. fls. 10 dos autos), sendo que na sequência da informação jurídica [datada de 11.04.2008] pelo despacho do Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Penafiel [datado de 28.04.2008] foi fixado à contra-interessada um novo prazo para proceder à demolição do muro e do anexo «sob pena de, em caso de incumprimento, ser a mesma determinada a expensas suas (infractora) …» (cfr. fls. 83 a 87 do PA n.º 58/01 - “Queixa”).
Vista a factualidade apurada e presente o enquadramento atrás expendido temos como insubsistente o fundamento de ilegalidade invocado pelo recorrente, porquanto ordenada que se mostra a demolição das construções em causa, após facultada e frustrada a possibilidade de legalização, não se mostrava necessário, ao invés do que sustenta o R. aqui recorrente, proferir novo acto a ordenar de novo a demolição à luz do n.º 4 do art. 106.º do RJUE para assim se legitimar a prossecução e desenvolvimento dos actos de concretização da mesma, porquanto do que se trata é de conferir ao presidente da edilidade o dever de implementar a decisão ordenadora da demolição determinando aos serviços camarários a concretização e execução coerciva de tal medida de polícia urbanística uma vez apurado o incumprimento voluntário por parte do infractor.
Neste sentido conferir o entendimento firmado no acórdão do STA de 12.03.2009 (Proc. n.º 01065/08 in: «www.dgsi.pt/jsta»), no qual se refere a dado passo que o “… recorrente sustenta, também, que a posse administrativa tinha como requisito «a existência de um despacho prévio a ordenar a demolição e reposição coercivas» e que, sendo assim, terminado o prazo concedido para a demolição voluntária, o Presidente da Câmara tinha de proferir novo despacho, desta vez a ordenar a demolição e a reposição coercivas, uma vez que o primeiro acto mais não passava de uma manifestação de intenção de proceder a essa demolição e reposição coercivas se o notificado não as fizesse voluntariamente. Haviam, assim, sido violados o disposto nos art. 106.º e 107.º do DL 555/99.
Sem razão, porém.
Com efeito, de acordo com as apontadas normas, a posse administrativa de um prédio com vista à reposição da situação em que o mesmo se encontrava antes da realização das obras ilegais tem por pressuposto o não cumprimento voluntário da ordem que, nesse sentido, foi dada. Esta ordem de demolição é que é o verdadeiro acto administrativo lesivo e aquela posse mais não é do que um seu acto de execução.
Deste modo, o Sr. Juiz a quo tem razão quando afirma que a ordem de demolição a que o Recorrente se refere é, apenas e tão só, uma «ordem dirigida aos serviços da Câmara Municipal (ordem interna hoc sensu) para que executem aquela outra ordem (externa) de demolição da obra e reposição do terreno dada ao particular nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, pelo que não influi na validade do acto sindicado» …”.
Não envolve, pois, o julgado qualquer infracção ao regime que dimana nos arts. 106.º e 107.º do RJUE, 01.º e 151.º do CPA.
Improcede, face ao exposto, também este fundamento de impugnação.
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3.2.1.3 DA VIOLAÇÃO DO ART. 71.º, n.º 2, “in fine” do CPTA
Sustenta, por fim, o aqui recorrente que a decisão judicial recorrida envolve violação do preceito legal em epígrafe, visto a mesma contender com seus poderes decisórios extravasando aquela pronúncia judicial os respectivos limites legais.
Analisemos.
Com o art. 71.º do CPTA o legislador visou definir as linhas balizadoras da pronúncia do tribunal quando este, em cumprimento dos seus deveres e obrigações legais (obrigação de julgar e dever de obediência à lei - cfr. arts. 08.º do C. Civil, 95.º do CPTA, 03.º, n.º 1, 264.º, 658.º e segs. do CPC), tem de emitir decisão sobre pretensão de condenação da Administração à prática dum acto administrativo.
O objecto do processo neste tipo de acções traduz-se na imposição à Administração do dever de praticar um determinado acto administrativo que o autor reputa ter sido legalmente omitido ou recusado, sendo que, por força do n.º 2 do art. 66.º e do n.º 1 do art. 71.º do CPTA, tal objecto é sempre a pretensão do interessado e, nessa medida, temos que este meio contencioso se dirige não à anulação contenciosa daquele acto de recusa mas, ao invés, à condenação da Administração na prolação dum acto que, substituindo aquele, emita pronúncia sobre o caso concreto ou que venha a dar satisfação à pretensão deduzida.
Nessa medida, e tal como decorre da parte final do n.º 2 do aludido preceito, mostra-se desnecessária a dedução de pedido de anulação, de declaração de nulidade ou de inexistência do acto de indeferimento porquanto resulta directamente da pronúncia condenatória a eliminação da ordem jurídica daquele acto.
Importa ter, todavia, presente que a dedução duma pretensão condenatória à prolação de acto devido não se reconduz unicamente àquelas situações em que o “acto devido” é um acto cujo conteúdo se mostra legalmente “pré-determinado” por exercido ao abrigo de poderes estritamente vinculados, mas também às situações em que a Administração age no âmbito de poderes discricionários.
Na verdade, a Administração Pública está subordinada à lei nos termos precisos que emanam do princípio da legalidade, impendendo sobre a mesma um dever de decisão.
Ocorre, porém, que a lei não regula sempre do mesmo modo os actos a praticar pela Administração, pois umas vezes a regulamentação legal é precisa (vinculação) e noutras é imprecisa (discricionariedade).
O âmbito da discricionariedade varia consoante aquilo que decorre da lei, bem como com a própria natureza da actividade administrativa que é alvo de regulamentação legal.
Entende-se que a "discricionariedade" se define como "uma liberdade de decisão que a lei confere à Administração, a fim de que esta, dentro dos limites legalmente estabelecidos, escolha de entre várias soluções possíveis aquela que lhe parecer mais adequada ao interesse público".
De forma mais sucinta a discricionariedade será a liberdade conferida à Administração de decidir no quadro das limitações fixadas por lei, tratando-se daquilo que os franceses, na esteira de Michoud, têm chamado de "le choix de l'heure".
Importa ter em consideração que, por mais vinculada que seja a actividade administrativa, existe, no entanto, um mínimo de discricionariedade, tanto para mais que não existem poderes totalmente vinculados ou poderes totalmente discricionários e, como tal, os actos administrativos são proferidos muitas das vezes num quadro de mistura ou combinação, em doses variadas, entre exercício de poderes vinculados e o exercício de poderes discricionários.
Daí que seria preferível falar-se antes que em certa zona existe vinculação e que noutra existe discricionariedade.
A discricionariedade na Administração está ou pode ser limitada de duas formas.
Uma primeira por intermédio de limites legais, nos quais se incluem:
a) A adequabilidade subjectiva do comportamento escolhido à realização do fim legal (o interesse público como meta padrão da escolha discricionária) (cfr. art. 266.º, n.º 1 da CRP);
b) O princípio da justiça que se traduz no dever da Administração harmonizar o interesse público específico que lhe cabe prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares eventualmente afectados (cfr. art. 266.º, n.º 2 da CRP); e
c) O princípio da imparcialidade (cfr. art. 266.º, n.º 2 da CRP).
Uma segunda forma por força dos limites decorrentes da auto-vinculação que a Administração, no âmbito estrito das suas competências, cria com a elaboração de regulamentos externos pelos quais limita a sua própria discricionariedade, sendo que, no entanto, tal auto-vinculação só é legítima e válida quando não impeça a Administração Pública da ponderação do caso concreto enquanto liberdade concedida pela lei para discricionariamente prosseguir o interesse público.
Enuncia-se no n.º 1 do art. 03.º do CPTA, preceito que tem por epígrafe «poderes dos tribunais administrativos», que no “… respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação …”.
Reitera-se e reafirma-se aqui o princípio da separação e interdependência de poderes, que já se mostrava enunciado nos arts. 02.º e 111.º da CRP, constituindo e enunciando-se o mesmo como referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais no exercício da sua função no seio do Estado de Direito (cfr. arts. 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP).
O princípio da divisão ou da separação de poderes não implica hoje uma proibição absoluta ou sequer uma proibição-regra do juiz condenar, dirigir injunções ou orientações, intimar, sancionar, proibir ou impor comportamentos à Administração.
Tal princípio implica tão-só uma proibição funcional do juiz afectar a essência do sistema de administração executiva, ou seja, não pode ofender a autonomia do poder administrativo [o núcleo essencial da sua discricionariedade], enquanto medida definida pela lei daquilo que são os poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos aos órgãos da Administração (cfr. arts. 03.º, n.ºs 1 e 3, 71.º, n.º 2, 95.º, n.º 3, 167.º, n.º 6, 168.º, n.º 3 e 179.º, n.ºs 1 e 5 todos do CPTA, preceitos estes dos quais claramente se infere a preocupação do legislador em assegurar ou mesmo reservar/preservar os denominados “espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa).
Tal como afirma M. Aroso de Almeida “… sobre os tribunais administrativos, enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas …, recai o sagrado dever de fazer cumprir a lei e o Direito, em toda a extensão em que a conduta da Administração se deva pautar por regras e princípios jurídicos. Os tribunais administrativos não julgam, portanto, da conveniência ou oportunidade da actuação administrativa (artigo 3.º, n.º 1 do CPTA). Mas não podem deixar de exercer, em plenitude, a função (judicial) de que estão incumbidos, em toda a extensão em que o exija a aplicação das normas jurídicas que obrigam a Administração Pública …” (em “Considerações sobre o novo regime do contencioso administrativo”, in: “A Reforma da Justiça Administrativa”, BFDC, 2005, pág. 18).
Na mesma linha J.M. Sérvulo Correia refere que “... pode extrair-se do CPTA uma orientação genérica no sentido de que a margem de livre decisão administrativa se encontra submetida a um pleno controlo de juridicidade mas, também, a um mero controlo de juridicidade: tudo aquilo que, no iter conducente à decisão, seja juridicamente determinado ou juridicamente valorável constitui campo de controlo jurisdicional; mas os critérios de valoração ou decisão de natureza extra-jurídica, auto determinados pelo órgão administrativo no âmbito de uma margem de liberdade que lhe é deixada pela lei, constituem uma área em que ao juiz não são permitidas injunções sobre o se ou o como do agir ou decisões substitutivas. Assim é porquanto se trata de uma área de actuação que exige legitimidade democrática-eleitoral directa ou indirecta (e não mera legitimidade institucional) e origina responsabilidade política.
A conveniência ou oportunidade da actuação administrativa, sobre a qual os tribunais não julgam …, corresponde, pois, à formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa envolvidas na adopção da conduta (CPTA, artigo 95.º, n.º 3 …) …” (in: “Direito Contencioso Administrativo”, volume I, pág. 777).
Do exposto se infere que uma adequada e correcta interpretação e compatibilização entre o princípio da separação de poderes e o princípio da tutela jurisdicional efectiva perante os poderes públicos não impede que os tribunais administrativos se pronunciem sobre os termos em que a Administração, desenvolvendo-se no âmbito do exercício de poderes marcados pela denominada “discricionariedade administrativa”, deva definir o direito com a emissão do acto administrativo.
Importa é que os tribunais o façam observando em toda a extensão aquilo que se mostra permitido pelas normas jurídicas aplicáveis de molde a que inexistam “espaços/zonas de protecção” ou “de terra de ninguém”, mas sem que tal controlo degenere, ou se traduza na prática, na substituição das valorações da Administração pelas valorações do julgador, na certeza de que na explicitação das vinculações a observar pela Administração (cfr. n.º 2 do art. 71.º do CPTA) o Tribunal, como refere J.M. Sérvulo Correia, não pode “… cair na tentação de transformar aqueles parâmetros de juridicidade de limites em critérios directos de conduta …” (in: ob. cit., pág. 780) quando das circunstâncias concretas não derive, como será e acontecerá na maioria das situações, uma única solução possível a ser proferida.
Temos, pois, que os poderes dos tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos, ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados no art. 266.º, n.º 2 da CRP.
Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos, inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado, ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, etc.).
Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente fixados.
Como vimos as limitações aos poderes de pronúncia materializam-se e vão sendo reiteradamente afirmados ou “recordados” em vários normativos do CPTA (cfr. arts. 71.º, n.º 2, 95.º, n.º 3, 168.º, n.º 2 e 179.º, n.º 1 todos do CPTA), com o recurso a expressões equivalentes como “valorações próprias do exercício da função administrativa” ou “espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa”.
Configurando tal espaço de actuação da Administração uma zona de reserva desta os poderes de sindicabilidade contenciosa por parte dos tribunais administrativos estarão limitados à apreciação das alegadas violações dos princípios jurídicos acima aludidos, princípios esses que sempre condicionam e devem nortear aquela na sua actividade, devendo ainda ser, por princípio, um “controlo pela negativa”.
Com efeito e tal como sustenta J.M. Sérvulo Correia os “… princípios do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição são sobretudo limites negativos de racionalidade jurídica na valoração e ponderação. Evitam uma intromissão administrativa desigualitária, desproporcionada, injusta, parcial ou de má-fé na esfera jurídica dos cidadãos sob a capa da margem de livre decisão …” pelo que “… o papel do juiz administrativo é o de averiguar se tais limites foram ultrapassados ou violados, não lhe sendo todavia permitido substituir-se à Administração para efeito de reponderação de juízos valorativos que integram materialmente a função administrativa …”, termos em que a “… consideração dos princípios de conduta administrativa como limites para efeito do controlo jurisdicional tem como postulado de base a ideia de que, desde que não os desrespeite, a Administração é livre na eleição dos pressupostos e na sua valoração. O reverso desta ideia é a máxima de que não cabe ao juiz, mesmo quando detecte violação dos limites, substituir-se à Administração na eleição dos pressupostos e na respectiva valoração …” (in: ob. cit., págs. 778/779).
E conclui o citado Autor “… o juiz não pode comandar a Administração quanto ao conteúdo da decisão administrativa dependente de valorações próprias do exercício da função administrativa, ele deve explicitar as vinculações a observar pela administração. E tal explicitação pode redundar em determinação do conteúdo da conduta a adoptar quando a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma actuação como legalmente possível (…). No tocante à juridicidade do exercício da margem de livre decisão, a explicitação de vinculações a observar apenas poderá consistir na identificação de limites inultrapassáveis, mas mão na pretensa dedução do sentido da «única decisão correcta» a partir de tais parâmetros de juridicidade …” (in: ob. cit., pág. 780).
Cientes dos considerandos a este propósito expendidos e do que supra já se afirmou em torno do tipo e natureza dos poderes em questão na situação em apreciação nos autos temos para nós que a decisão judicial impugnada não contraria ou infringe o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CPTA.
É que a mesma mostra-se, tal como se infere dos seus próprios termos, claramente proferida em consonância com os poderes administrativos conferidos na lei à Administração em sede de tutela da legalidade urbanística e em estrita observância dos limites de pronúncia conferidos ao tribunal “a quo”, pois, por um lado, atentou e considerou a margem de discricionariedade existente na opção entre as medidas de polícia urbanística tidas por mais adequadas, necessárias e proporcionais à situação e, por outro lado, na vinculação que impende sobre a Administração decorrente dos actos de demolição firmados na ordem jurídica enquanto caso resolvido e do dever de necessária implementação e concretização material em prazo razoável.
Improcede, por conseguinte, este fundamento de impugnação, não envolvendo a decisão judicial qualquer infracção ao n.º 2 do art. 71.º do CPTA.
π
3.2.2. DO RECURSO JURISDICIONAL DA R. CONTRA-INTERESSADA
3.2.2.1 DA NULIDADE DECISÃO JUDICIAL [art. 668.º, n.º 1, al. d) CPC] Argumenta a R. contra-interessada que a decisão judicial aqui ora sindicada omitiu e desrespeitou os seus deveres de decisão ou de pronúncia já que não terá conhecido de factos e de fundamentos de direito por si invocados na contestação e que conduziriam a conclusão diversa [legalização actualmente possível das construções em crise].
Analisemos.
Estipula-se no art. 668.º do CPC, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença” e na parte que ora releva, que é “… nula a sentença: … d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ...”.
As situações de nulidade da decisão encontram-se legalmente tipificadas no art. 668.º, n.º 1 do CPC, cuja enumeração é taxativa, comportando causas de nulidade de dois tipos [de carácter formal - art. 668.º, n.º 1, al. a) CPC - e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão - art. 668.º, n.º 1, als. b) a e) CPC], sendo que a qualificação como nulidade de decisão de ilegalidades integradoras de erro de julgamento não impede o Tribunal “ad quem” de proceder à qualificação jurídica correcta e apreciar, nessa base, os fundamentos do recurso.
Caracterizando em que se traduz a nulidade da decisão por infracção ao disposto na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC temos que a mesma se prende com o dever que impende sobre o tribunal de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art. 660.º, n.º 2 CPC).
Trata-se, nas palavras de M. Teixeira de Sousa, do “... corolário do princípio da disponibilidade objectiva (art. 264.º, n.º 1 e 664.º, 2.ª parte) …” que “… significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.
(...) Também a falta de apreciação de matéria de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia …” (in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lx 1997, págs. 220 e 221).
Questões para este efeito são “... todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …” (cfr. A. Varela in: RLJ, Ano 122.º, pág. 112) e não podem confundir-se “... as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão …” (cfr. J. Alberto dos Reis in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 143).
Daí que as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do Tribunal terão de ser determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido.
Afirma ainda M. Teixeira de Sousa que o “... tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa. (...) Verifica-se, pelo contrário, uma omissão de pronúncia e a consequente nulidade [art. 668.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte] se na sentença, contrariando o disposto no art. 659.º, n.º 2, o tribunal não discriminar os factos que considera provados (...) ou se abstiver de apreciar a procedência da acção com fundamento numa das causas de pedir invocadas pelo autor (...).
Se o autor alegar vários objectos concorrentes ou o réu invocar vários fundamentos de improcedência da acção, o tribunal não tem de apreciar todos esses objectos ou fundamentos se qualquer deles puder basear uma decisão favorável à parte que os invocou. (...)
Em contrapartida, o tribunal não pode proferir uma decisão desfavorável à parte sem apreciar todos os objectos e fundamentos por ela alegados, dado que a acção ou a excepção só pode ser julgada improcedente se nenhum dos objectos ou dos fundamentos puder proceder.
… Como corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264.º, n.º 1 e 664.º 2.ª parte), a decisão é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte], ou seja, quando a decisão esteja viciada por excesso de pronúncia. Verifica-se este excesso sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado, bem como quando conhece de matéria alegada ou pedido formulado em condições em que está impedido de o fazer. (...).
O excesso de pronúncia pode ser parcial ou qualitativo, consoante o tribunal conheça de um pedido que é quantitativa ou qualitativamente distinto daquele que foi formulado pela parte. Este excesso de pronúncia parcial ou qualitativo também conduz à nulidade da decisão [arts. 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e)], mas ele é distinto do excesso de pronúncia previsto no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte, pela seguinte razão: - se o tribunal condena no pedido formulado, mas utiliza um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento, a hipótese cabe na nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte; - mas se o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis, condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, o caso inclui-se na previsão do art. 668.º, n.º 1, al. e).
(...) O art. 661.º, n.º 3 (...) constitui uma excepção a este fundamento de nulidade da decisão …” (in: ob. cit., págs. 220 a 223).
A sentença ou o acórdão constituem decisões jurisdicionais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional que, num caso posto à sua apreciação, dirimem um conflito de interesses (públicos e/ou privados) no âmbito das relações jurídicas administrativas (cfr. arts. 01.º e 04.º ambos do ETAF).
Os mesmos conhecem do pedido e da causa de pedir, ditando o direito para aquele caso concreto, pelo que a sentença ou o acórdão podem estar viciados de duas causas que poderão obstar à eficácia ou validade da dicção do direito:
- Por um lado, podem ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação;
- Por outro, como actos jurisdicionais, podem ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretados e, então, tornam-se passíveis de nulidade nos termos do art. 668.º do CPC.
Munidos deste enquadramento quanto ao conceito de nulidade de decisão judicial e, em particular, da nulidade em questão temos que, no caso, falha a assacada nulidade por infracção à al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC.
Como se infere do teor e fundamentos vertidos na decisão judicial impugnada [cfr., em especial, págs. 06 e 07], na mesma tem-se como apreciada e afastada a pretensa possibilidade de legalização das construções em crise face ao pressuposto dum anterior acto ordenador da demolição firmado na ordem jurídica que inviabilizaria tal possibilidade de legalização.
Com efeito, lida atentamente a decisão judicial objecto de impugnação temos que na mesma não ocorre, ao invés do assim sustentado, omissão quanto ao dever de pronúncia na certeza de que não integra a arguida nulidade um eventual erro de julgamento.
De harmonia com o atrás exposto e sem necessidade de outros considerandos, improcede na totalidade o fundamento de nulidade arguido.
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3.2.2.2 DA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 06.º, n.º 1, al. i) e 06.º-A RJUE
Invoca, por fim, a co-R. que a decisão judicial em crise incorreu em erro de julgamento porquanto foi proferida com preterição do disposto nos normativos em epígrafe visto ao caso serem os mesmos aplicáveis na redacção que lhes foi conferida pela Lei n.º 60/07.
Vejamos.
Refira-se, desde logo, que no caso estamos em face de execução de ordem de demolição de construções determinada e consolidada na ordem jurídica ainda antes da alteração operada pela Lei n.º 60/07 e da sua entrada em vigor (02.03.2008 - cfr. art. 07.º daquele diploma), e, como tal, aquele regime legal não é passível de lhe ser aplicável e considerado para efeitos de eliminar um tal caso decidido ou resolvido, na certeza de que, por outro lado, também o procedimento em causa se mostrava “pendente” à data da entrada em vigor daquela Lei e como tal não sujeito ao referido quadro normativo (cfr., respectivo, art. 06.º).
Mas ainda que assim se não considere temos que do quadro factual em presença não se vislumbra estarmos perante construções que sejam isentas de licença nos termos dos arts. 06.º, n.º 1, al. i) e 06.º-A do RJUE, porquanto, não se descortina que, no caso, se mostrem preenchidos os pressupostos/requisitos enunciados nas várias alíneas do n.º 1 do art. 06.º-A.
Em concretização e quanto ao muro de divisão temos que o mesmo possui cerca de 02 metros (cfr. fls. 36 do vol. II do PA) [na al. b) do n.º 1 do art. 06.º-A fala-se em “… muros de vedação até 1,8 m de altura que não confinem com a via pública e de muros de suporte de terras até uma altura de 2 m ou que não alterem significativamente a topografia dos terrenos existentes …] e quanto à construção do arrumo ou anexo ilegal/clandestino em causa, eventualmente enquadrável na al. a) do n.º 1 do citado preceito, temos que quanto ao mesmo em momento algum a R. contra-interessada demonstrou que tal edificação observasse ou fosse compatível com o disposto no art. 48.º do PDM, para dessa forma se mostrar como legítima uma possível construção, na certeza de que as construções em crise não se prendem com “estufas de jardim com altura inferior a 3 m e área igual ou inferior a 20 m2” [al. c)], ou com “pequenas obras de arranjo e melhoramento da área envolvente das edificações que não afectem área do domínio público” [al. d)], ou com “equipamento lúdico ou de lazer associado a edificação principal com área inferior à desta última” [al. e)], ou ainda com “outras obras, como tal qualificadas em regulamento municipal” [al. g)].
Note-se que do facto das obras previstas no art. 06.º-A se encontrarem isentas de licença ou de qualquer controlo administrativo prévio não deriva ou se pode inferir que tal implique igual dispensa de observância das normas legais e regulamentares aplicáveis, designadamente, das constantes em plano municipal ou plano especial de ordenamento do território ou bem assim das normas técnicas de construção (cfr. João Pereira Reis e outros in: ob. cit., pág. 46).
Assim, temos que a presente a decisão judicial recorrida não se mostra elaborada em infracção ao disposto nos arts. 06.º, n.º 1, al. i) e 06.º-A do RJUE, pelo que importa concluir, face ao exposto, que a mesma, no julgamento de facto e de direito feito, não preteriu o regime fixado naqueles normativos, improcedendo, desta forma, o fundamento de recurso em análise.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento aos recursos jurisdicionais “sub judice” e, em consequência e com a fundamentação antecedente, manter o acórdão recorrido.
Custas em nesta instância a cargo dos RR., sendo que na mesma a taxa de justiça é reduzida a metade nos termos legais [arts. 73.º-A, n.º 1, 73.º-D, n.º 3, 73.º-E, n.º 1, al. a), 18.º, n.º 2 todos do CCJ, 446.º do CPC e 189.º do CPTA].
Notifique-se. D.N..
Restituam-se, oportunamente, os suportes informáticos que hajam sido gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA).
Porto, 27 de Maio de 2010
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. Antero Pires Salvador
Ass. Maria Isabel São Pedro Soeiro