Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01534/09..7BEBRG
Secção:2ª SEcção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/12/2010
Relator:Francisco Rothes
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR - DEPENDÊNCIA DA ACÇÃO PRINCIPAL - INIMPUGNABILIDADE AUTÓNOMA - RELATÓRIO DA FISCALIZAÇÃO
Sumário:I - Na ausência de disposição legal que preveja a impugnabilidade autónoma do acto de inspecção tributária, as eventuais ilegalidades verificadas no respectivo procedimento, de acordo com o princípio da impugnação unitária vigente no processo tributário (art. 54.º do CPPT e 66.º da LGT) apenas podem ser invocadas,
– ou na impugnação judicial do acto final do procedimento de avaliação da matéria tributável, quando esta seja efectuada por métodos directos ou quando não conduza a liquidação (art. 86.º, n.ºs 1 e 3, da LGT),
– ou na impugnação judicial do subsequente acto de liquidação, quando a correcção da matéria tributável seja efectuada por métodos indirectos (art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da LGT).
II - Na impossibilidade de impugnação judicial autónoma do acto de inspecção tributária, também não deve reconhecer-se a possibilidade de suspensão da respectiva eficácia a título cautelar, dada a dependência da pretensão cautelar em relação à causa principal (cf. art. 113.º, n.º 1, do CPTA).
III - A pretensão cautelar deve ser indeferida in limine caso se verifique a sua manifesta ilegalidade (art. 116.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CPTA)
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 Notificada do relatório da inspecção tributária que lhe foi efectuada pelos serviços da Direcção de Finanças de Braga (adiante Requerida ou Recorrida), veio a sociedade denominada “FERDIEXPORT - , LDA.” (adiante Contribuinte, Requerente ou Recorrente) pedir ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que decretasse providência cautelar de suspensão da eficácia do referido relatório, cuja anulação disse pretender pedir em acção administrativa especial a instaurar (() Vide o esclarecimento prestado pela Requerente a fls. 99/100, a solicitação do Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (despacho de fls. 96), quanto à identificação do acto cuja suspensão de eficácia foi pedida, bem como quanto à natureza da acção de que tal pedido iria depender.).
Para tanto, alegou, em síntese, que, quando da notificação para o exercício do direito de audiência prévia à elaboração do relatório, a AT não lhe comunicou a hora e local onde podia consultar o processo, motivo por que considera ter ficado impedida de exercer cabalmente aquele exercício, pois que não lhe foi possível verificar se o que consta do teor do projecto de relatório da inspecção tributária «se alicerça em elementos probatórios fiáveis, credíveis e legais» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.), nem lhe foi possível saber se o processo enferma de «vícios passíveis de colocar em causa a sua legalidade». Mais alegou que nem faz sentido alegar, como o fez a AT na sequência do exercício do direito de audição por parte da Contribuinte, que esta não demonstrou vontade de consultar o processo, pois tal vontade «só pode ser aferida se a possibilidade de consulta lhe for expressamente facultada». Alegou ainda que, porque o comportamento da AT, para além de ilegal, «poderá acarretar para a requerente um prejuízo de tal forma elevado que pode mesmo ter como consequência o seu encerramento», apesar da possibilidade da requerente atacar a liquidação que venha a ser feita, porque «para suspender a subsequente execução terá de prestar uma caução equivalente àquele montante acrescido de juros», há que admitir a presente providência e declarar a suspensão da eficácia dos efeitos do relatório de inspecção tributária, sendo que se propõe intentar acção para pedir a anulação do acto em causa.

1.2 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga indeferiu liminarmente o pedido ao abrigo do disposto no art. 116.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), com fundamento na «inimpugnabilidade do acto que obsta à sua impugnação contenciosa autónoma a título principal e, necessariamente, à suspensão da respectiva eficácia a título cautelar por isso que o presente procedimento encontra-se, em relação à causa principal, numa situação de dependência, como decorre do estatuído no art. 113º nº 1 do CPTA». Para tanto, em síntese, considerou que:

«– O acto cuja suspensão da eficácia se pretende não é imediatamente lesivo dos direitos do Requerente;
Não existe, por outro lado, disposição legal expressa que possibilite a sua impugnação contenciosa autónoma;
A norma do artigo 54.º do CPPT reserva a discussão da legalidade do acto em causa para a impugnação da decisão final do procedimento, impedindo a sua impugnação contenciosa autónoma».

1.3 Inconformada com essa decisão, a Contribuinte dela recorreu para este Tribunal Central Administrativo Norte, apresentando com o requerimento de interposição do recurso as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«

I
Quando foi notificado à recorrente o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, para esta exercer o seu direito de audição, foi-lhe escamoteado na notificação o direito consagrado no artº. 101º, nº 2, do Código de Procedimento Administrativo, ou seja, não lhe foi feita indicação do local e horas a que poderia consultar o processo.

II
Nos termos do disposto no artº. 268º, nº 3, da C.R.P. e do artº. 100º, nº 2, do C.P.A., a recorrente tinha, e tem, o direito a ser notificada do Projecto de Relatório de Inspecção, através de uma notificação que, entre outras coisas, indicasse hora e local para consulta de todo o procedimento.

III
Nunca a Administração Tributária, no procedimento ora em causa, alguma vez notificou a recorrente no sentido de lhe indicar hora e local para consulta dos respectivos autos.

IV
O comportamento da Administração Tributária, neste caso concreto os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Braga, violou o disposto artº. 268º, nº 3, da C.R.P. e do artº. 100º, nº 2, do C.P.A., e também, pasme-se as próprias regras do seu funcionamento interno (que a vinculam, cfr.artº. 68º-A da LGT).

V
Com esse comportamento a recorrente ficou sem saber, v.g., quais os elementos probatórios que a relacionam com a Tecilemos, sendo que, da notificação feita não resulta nenhuma imputação concreta de qualquer acto praticado pela recorrente que legitime as afirmações constantes do Projecto de Relatório da Inspecção, que lhe foi notificado.

VI
E, o mesmo se dirá relativamente ao alegado, hipotético e inexistente conluio entre a recorrente e a Patrisantos, uma vez que, em concreto, inexiste qualquer facto concreto directamente imputado recorrente que permita concluir que a mesma tinha qualquer ligação com a Patrisantos fora do giro comercial de ambas.

VII
Sem saber, em concreto, o que consta do procedimento que seja passível de fundamentar as conclusões constantes do Projecto de Relatório - se é que existe, o que não se concede e só por mera hipótese se refere -, não é possível à recorrente exercer cabalmente o seu direito de audiência prévia.

VIII
A audiência prévia dos interessados é uma formalidade essencial relativa à formação da vontade administrativa, cuja omissão vicia o acto administrativo praticado em 14 de Outubro de 2009 , o qual, enferma, por isso, do vício de anulabilidade, que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

IX
O simples facto de no momento em que foi praticado o acto cuja suspensão de eficácia se requereu ainda não ter tido lugar a liquidação do imposto, não significa que, por força do mesmo, não se tenham produzido, de imediato, efeitos obrigacionais na esfera jurídica da recorrente.

X
As alterações à matéria colectável são também de actos susceptíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes, pois condicionam o ulterior acto de liquidação.

XI
No dia 14 de Outubro de 2009, com a prática do acto cuja suspensão se requereu, nasceu na esfera jurídica da recorrente um obrigação de pagamento, que apesar de ainda não se encontrar liquidada, era já certa.
XII
O acto praticado em 14 de Outubro de 2009 pela Administração Tributária, não teve em conta o disposto na Constituição na Lei e nas suas regras internas de funcionamento da Direcção Gera dos Impostos, sendo que, no momento em que foi praticado o acto, vício de que padecia o procedimento tributário já havia sido invocada pela recorrente junto da própria Administração Tributária.
XIII
O comportamento da Administração Tributária na situação em apreço potencia o aparecimento de uma situação favorável ao Estado e desfavorável ao particular, directamente resultante de uma omissão da observância de formalidades legais por parte daquela, administrativa, legal e constitucionalmente obrigatórias.

XIV
Assim sendo, o acto praticado por Manuel Joaquim Gonçalves Pereira, Chefe de Divisão, em 14 de Outubro de 2009, é anulável por se encontra alicerçado num procedimento que padece do vício de violação de uma formalidade essencial, sendo que, tal acto, por si só, implica, sem mais, o nascimento de uma obrigação na esfera jurídica da recorrente.

XV
Por força do disposto nos artºs. 60º da GT e 60º do RCPIT, seria no momento em que deveria exercer o seu direito de audição que a recorrente teria que, dentro do procedimento tributário, suscitar todas as questões que entendesse por bem fazer, nomeadamente invocar a violação das normas legais que, no seu entender, tinha sido feita pela Administração Tributária, o que a recorrente fez.
XVI
Para não ter o seu património atacado por uma penhora alicerçada num procedimento em que houve flagrante violação de orientações genéricas - cfr. artº.55º, nº3, do CPPT e Circular nº13/99, de 8 de Julho da Direcção Geral dos Impostos - da lei - cfr. artºs. 60º da LGT, 60º e 40, alínea e) do RCPIT e 101º, nº2 do CPA - e também da Constituição - cfr. artº.268º -, a recorrente terá que prestar uma caução de centenas de milhares de euros, pois, os meios de reacção à sua disposição não têm efeito suspensivo.
XVII
Tal entendimento é manifestamente inconstitucional pois, em última instância, poderá permitir à Administração Tributária a obtenção de receitas através da cobrança indevida de tributos, bastando para o efeito que o custo que os contribuintes tenham que suportar com os meios de reacção ao seu alcance seja equiparado ou superior ao valor do tributo que aquela pretende receber, ainda que de forma indevida.

XVIII
É, por isso, inconstitucional, por violação do disposto no artº. 268º, nºs.1 e 4, da CRP, a interpretação do artº. 54º do CPPT, quando feita no sentido de que, mesmo não tendo sido cumpridas as orientações genéricas - cfr. artº. 55º, nº 3, do CPPT e Circular nº 13/99, de 8 de Julho da Direcção Geral dos Impostos - e a lei - cfr. artºs. 60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº 2 do CPA - num procedimento tributário, e mesmo sendo esse facto comprovado por documento oficial - notificação -, a decisão que sanciona o Relatório e que dá origem ao nascimento da obrigação de imposto na esfera jurídica do contribuinte, não é passível de impugnação judicial.
XIX
Ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal a quo; o disposto nos artºs. 54º, 55º, nº 3, do CPPT, 60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº 2 do CPA e 268º da CRP.

Nestes termos e nos mais de Direito, que V.Exas. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, por via disso, ser revogada a douta decisão recorrida, sendo substituída por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas.

Decidindo deste modo, farão V.Exª., aliás, como sempre, um acto de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA».

1.4 O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

1.5 A Recorrida não contra alegou.

1.6 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Norte, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, aderindo, sem reserva, à fundamentação da decisão recorrida.

1.7 Cumpre apreciar e decidir, com dispensa de vistos dos Juízes adjuntos, atenta a natureza urgente do processo.

* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 Com interesse para a decisão, há a considerar as seguintes circunstâncias processuais:
a) Os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Braga, em cumprimento de ordens de serviço, efectuaram no período compreendido entre 31 de Março de 2009 e 17 de Agosto do mesmo ano uma acção inspectiva à sociedade denominada “Ferdiexport - , Lda.”, incidindo sobre o IVA dos exercícios de 2005, 2006, 2007 e 2008 (cf. o relatório de inspecção tributária, com cópia de fls. 71 a 89 dos presentes autos);
b) Para notificação da Contribuinte para o exercício do direito de audiência prévia relativamente ao projecto de relatório da inspecção, a Direcção de Finanças de Braga remeteu-lhe cópia do mesmo, conjuntamente com ofício do qual, para além do mais, consta o seguinte:
«Assunto: PROJECTO RELATÓRIO DA INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA – ARTIGO 60.º DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA (LGT) E ARTIGO 60.º DO REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA (RCPIT)
Exm.º(s) Senhor(es)
Notifica(m)-se de que, no prazo de 10 dias poderá(ão), querendo, exercer o direito de audição, por escrito ou oralmente, sobre o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, que se anexa, nos termos previstos no artigo 60.º da LGT r artigo 60.º do RCPIT.
Optando pela primeira forma, o documento que concretize o direito de audição deverá ser enviado a este Serviço fazendo menção dos elementos constantes da N/ referência.
No caso de pretender pronunciar-se oralmente deverá comparecer, dentro do mesmo prazo, neste Serviço, a fim de ser lavrado o termo de declarações.
[…]
Com os melhores cumprimentos»
(cf. cópia do ofício, a fls. 27 e 31, e cópia do projecto de relatório de inspecção, de fls. 32 a 46);
c) A Contribuinte exerceu o direito de audiência mediante requerimento no qual, para além do mais, invocou a nulidade da notificação dita b) por na mesma não ter sido observado o disposto na parte final do art. 101.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), uma vez que no respectivo ofício não lhe foi indicada a hora e local em que podia consultar o processo (cf. cópia do requerimento apresentado pela Contribuinte para o exercer o direito de audiência, de fls. 50 a 63);
d) A Direcção de Finanças de Braga, pronunciando-se sobre o alegado em sede de audiência prévia, considerou, para além do mais, que a indicação de hora e local para consulta do processo só se impunha caso a AT tivesse optado pela forma escrita para que a Contribuinte pudesse exercer o direito de audiência, como resulta do disposto no art. 101.º do CPA, o que não sucedeu, bem como que a Contribuinte não demonstrou qualquer vontade ou interesse em consultar o processo de inspecção (cf. a apreciação do requerimento por que a Contribuinte exerceu o direito de audiência, no ponto IX do relatório de inspecção, de fls. 80 vº a 83);
e) Por despacho de 14 de Outubro de 2009, proferido por um Chefe de Divisão, no exercício de competências delegadas pelo Director de Finanças de Braga, foram sancionadas as conclusões do relatório (cf. o despacho aposto sobre o relatório, a fls. 71);
f) Para notificação à Contribuinte do relatório da inspecção, a Direcção de Finanças de Braga remeteu-lhe cópia do mesmo (cf. cópia do ofício a fls. 70);
g) A Contribuinte fez dar entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga um pedido de suspensão de eficácia do referido relatório da inspecção tributária (cf. requerimento inicial, de fls. 3 a 23, bem como o esclarecimento sobre o mesmo prestado pela Requerente a fls. 99/100).


2.1.2 As circunstâncias processuais que ora deixámos arroladas estão documentadas nos próprios autos ou referidas na sentença recorrida e não mereceram impugnação.


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A AT, na sequência de uma fiscalização a “Ferdiexport -, Lda.”, elaborou o projecto de relatório da fiscalização e notificou a Contribuinte para sobre o mesmo exercer o direito de audição por escrito ou oralmente.
A Contribuinte, com vista ao exercício desse direito, apresentou um requerimento no qual alegou não poder exercer cabalmente o referido direito, por não ter sido notificada da hora e local em que podia consultar o processo, omissão que considera integrar nulidade por violação do disposto no art. 101.º, n.º 2, do CPA.
A AT não atendeu essa alegação e notificou a Contribuinte do teor do relatório da fiscalização.
Veio então a Contribuinte pedir ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que decretasse providência cautelar de suspensão da eficácia do referido relatório, cuja anulação disse pretender pedir em acção administrativa especial a instaurar.
Para tanto, alegou, em síntese a referida omissão da comunicação relativamente à data e local em que poderia consultar o processo, para além de ilegal, «poderá acarretar para a requerente um prejuízo de tal forma elevado que pode mesmo ter como consequência o seu encerramento» pois, apesar da possibilidade da requerente atacar a liquidação que venha a ser feita, «para suspender a subsequente execução terá de prestar uma caução equivalente àquele montante acrescido de juros», o que lhe poderá acarretar «prejuízo de tal forma elevado que pode mesmo ter como consequência o seu encerramento».
O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga indeferiu liminarmente o pedido de providência cautelar com fundamento na «inimpugnabilidade do acto que obsta à sua impugnação contenciosa autónoma a título principal».
A Requerente recorreu dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo Norte. Se bem interpretamos as suas alegações e respectivas conclusões, entende, em síntese, que «com a prática do acto cuja suspensão se requereu, nasceu na esfera jurídica da recorrente uma obrigação que pagamento, que apesar de ainda não se encontrar liquidada, era já certa» (cf. conclusão XI), sendo que «tal acto, por si só, implica, sem mais, o nascimento de uma obrigação na esfera jurídica da recorrente» (cf. conclusão XIV); mais entende que o referido acto, na medida em que não atendeu a sua alegação aduzida em sede do exercício do direito de audiência prévia «é anulável porque se encontra alicerçado num procedimento que padece de vício de violação de uma formalidade essencial» (cf. conclusão XIV) e gerador de um prejuízo irreparável para a Requerente, que «[p]ara não ter o seu património atacado por uma penhora alicerçada num procedimento em que houve flagrante violação de orientações genéricas […], da lei […] e também da Constituição […], terá que prestar uma caução de centenas de milhares de euros, pois, os meios de reacção à sua disposição não têm efeito suspensivo» (cf. conclusão XVI).
Daí que a questão que ora cumpre apreciar e decidir seja apenas a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga decidiu correctamente ao indeferir liminarmente a requerida providência cautelar com o fundamento na inimpugnabilidade autónoma do acto cuja suspensão da eficácia foi requerido.

2.2.2 DA INIMPUGNABILIDADE DO RELATÓRIO DA FISCALIZAÇÃO E DA CONSEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE DEDUZIR PROVIDÊNCIA CAUTELAR PEDINDO A SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DAQUELE ACTO

2.2.2.1 Como deixámos já dito, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga indeferiu liminarmente a providência requerida porque entendeu que o acto cuja suspensão de eficácia a Requerente veio pedir – o relatório da inspecção, como ela mesma confirmou a solicitação daquele Juiz (cf. despacho de fls. 96 e requerimento de fls. 99/100) – não é autonomamente impugnável. Assim, e na medida em que a providência cautelar está dependente da causa principal, como decorre do disposto no art. 113.º, n.º 1, do CPTA, é manifesta a ilegalidade da pretensão de tutela cautelar formulada pela Requerente, a determinar a rejeição liminar do requerimento inicial, nos termos do art. 116.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do referido Código.
Na sua alegação, a Requerente não afirma categoricamente o contrário, ou seja, não afirma que o relatório da fiscalização é um acto impugnável. No entanto, afirma expressamente que, com o mesmo «nasceu na esfera jurídica da recorrente uma obrigação de pagamento» e que tal acto «por si só, implica, sem mais, o nascimento de uma obrigação na esfera jurídica da recorrente». Ora, essa alegação, sobretudo quando conjugada com a da violação do disposto no art. 268.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), terá necessariamente implícita a possibilidade de impugnação do acto de inspecção.
Ora, como bem salientou a decisão recorrida, no contencioso tributário, contrariamente ao que sucede no contencioso administrativo (cf. art. 51.º do CPTA (() Diz o art. 51.º, n.º 1, do CPTA:
«Ainda que inseridos num procedimento num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos».)) «vigora o princípio da impugnação unitária, nos termos do qual, em regra, só há impugnação contenciosa do acto final do procedimento, que afecta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte, fixando a posição final da administração tributária perante este, definindo os seus direitos ou deveres. esse princípio extrai-se também do art. 66.º da LGT, em que se estabelece o regime dos actos interlocutórios do procedimento tributário, que determina que os contribuintes e outros interessados podem reclamar de quaisquer actos ou omissões praticados pela Administração tributária, mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados impugnar a decisão final do procedimento com fundamento em qualquer ilegalidade» (() JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 5.ª edição, I volume, anotação 2 ao art. 54.º, pág. 423. ).
Mais salientou a decisão recorrida, que no caso sub judice «está em causa um acto praticado no âmbito de um procedimento tributário que, se for caso disso, conduzirá a um acto de liquidação de um tributo», que o acto de inspecção é meramente interlocutório e não é «um acto destacável susceptível de impugnação autónoma, na exacta medida em que não e um acto que condicione irremediavelmente a decisão final do procedimento, sendo certo que há disposição expressa que possibilite essa impugnação autónoma».
Também aqui estamos de acordo com a decisão recorrida.
Na verdade, na ausência de disposição legal que preveja a impugnabilidade autónoma do acto de inspecção tributária, as eventuais ilegalidades verificadas no respectivo procedimento, de acordo com o princípio da impugnação unitária vigente no processo tributário (cf. os citados arts. 54.º do CPPT e 66.º da LGT) apenas podem ser invocadas, ou na impugnação judicial do acto final do procedimento de avaliação da matéria tributável, quando esta seja efectuada por métodos directos ou quando não conduza a liquidação (cf. art. 86.º, n.ºs 1 e 3, da LGT), ou na impugnação judicial do subsequente acto de liquidação, quando a correcção da matéria tributável seja efectuada por métodos indirectos (cf. art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da LGT) (() Diz o art. 86.º da LGT:
«1 - A avaliação directa é susceptível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa directa.
2 - A impugnação da avaliação directa depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão.
3 - A avaliação indirecta não é susceptível de impugnação contenciosa directa, salvo quando não dê origem a qualquer liquidação.
4 - Na impugnação do acto tributário de liquidação em que a matéria tributável tenha sido determinada com base em avaliação indirecta, pode ser invocada qualquer ilegalidade desta, salvo quando a liquidação tiver por base o acordo obtido no processo de revisão da matéria tributável regulado no presente capítulo.
5 - Em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, a impugnação judicial da liquidação ou, se esta não tiver lugar, da avaliação indirecta depende da prévia reclamação nos termos da presente lei».).
Isto, porque não há dúvida de que o acto de que o relatório da inspecção não é “imediatamente lesivo”. Salvo o devido respeito, a alegação da Recorrente, de que com esse relatório «nasceu na esfera jurídica da recorrente uma obrigação de pagamento» e que tal acto «por si só, implica, sem mais, o nascimento de uma obrigação na esfera jurídica da recorrente», não corresponde à realidade. A obrigação de pagamento só se constituirá se e quando as correcções operadas no rendimento tributável face às conclusões a que chegou a AT no relatório de inspecção derem origem a uma liquidação de imposto; por outro lado, a obrigação na esfera jurídica da recorrente só poderá resultar, ou da obrigação de pagamento decorrente da liquidação, ou, se não houver lugar a liquidação, do acto final de avaliação da matéria tributável.
Em conclusão, o relatório da inspecção não constitui acto destacável, não sendo susceptível de impugnação contenciosa autónoma, como bem decidiu o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Essa restrição em nada contende com a garantia constitucional de consagrada no art. 268.º, n.º 4, da CRP, na medida em que os interessados sempre poderão na impugnação do acto final do procedimento invocar «qualquer ilegalidade» (art. 54.º do CPPT e art. 66.º, n.º 2, da LGT), designadamente as verificadas relativamente a actos interlocutórios que não sejam passíveis de impugnação autónoma.

2.2.2.2 Tendo em conta que o acto cuja suspensão de eficácia foi requerida não é autonomamente impugnável, também nenhuma censura nos merece a decisão recorrida na medida em que considerou inadmissível o pedido de suspensão da eficácia do mesmo.
Na verdade, como bem ficou dito naquela decisão, dada a relação de dependência que a lei estabelece entre o procedimento cautelar e a causa principal, como decorre do disposto no art. 113.º, n.º 1, do CPTA (() Diz o art. 113.º, n.º 1, do CPTA:
«O processo cautelar depende da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respectivo».), se é inadmissível a impugnação autónoma do acto a título principal necessariamente também não será admissível a suspensão da respectiva eficácia a título cautelar.
*
Face ao exposto, o recurso não merece provimento, sendo de confirmar o despacho recorrido nos seus precisos termos.
Note-se, aliás, que toda a argumentação da Recorrente se centrou sobre a possibilidade de impugnação autónoma do relatório da inspecção.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Na ausência de disposição legal que preveja a impugnabilidade autónoma do acto de inspecção tributária, as eventuais ilegalidades verificadas no respectivo procedimento, de acordo com o princípio da impugnação unitária vigente no processo tributário (art. 54.º do CPPT e 66.º da LGT) apenas podem ser invocadas,
– ou na impugnação judicial do acto final do procedimento de avaliação da matéria tributável, quando esta seja efectuada por métodos directos ou quando não conduza a liquidação (art. 86.º, n.ºs 1 e 3, da LGT),
– ou na impugnação judicial do subsequente acto de liquidação, quando a correcção da matéria tributável seja efectuada por métodos indirectos (art. 86.º, n.ºs 3 e 4, da LGT).
II - Na impossibilidade de impugnação judicial autónoma do acto de inspecção tributária, também não deve reconhecer-se a possibilidade de suspensão da respectiva eficácia a título cautelar, dada a dependência da pretensão cautelar em relação à causa principal (cf. art. 113.º, n.º 1, do CPTA).
III - A pretensão cautelar deve ser indeferida in limine caso se verifique a sua manifesta ilegalidade (art. 116.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CPTA).

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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.


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Porto, 12 de Maio de 2010




(Francisco Rothes)




(Fonseca Carvalho)

(Moisés Rodrigues)