Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02093/22.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/12/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Margarida Reis
Descritores:ARRESTO; OPOSIÇÃO;
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO;
PROPRIEDADE DOS VEÍCULOS ARRESTADOS;
Sumário:
I. Sendo manifesto que a Recorrente, ao não indicar com exatidão as passagens da gravação do depoimento das testemunhas, incumpriu com o ónus de identificação do concreto meio probatório em causa, o seu recurso deve ser imediatamente rejeitado nos segmentos em que alude ao depoimento das testemunhas, tal como resulta do disposto na citada alínea a) do n.º 2 do art. 640.º CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT.

II. Não tendo a empresa Executada, aqui Recorrente, logrado provar a transmissão da propriedade dos veículos arrestados em momento anterior ao do decretamento do arresto, não podia o Tribunal a quo ter ordenado o levantamento do respetivo arresto.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RElatório
«X, Lda.», inconformada com a sentença proferida em 2023-07-04 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou parcialmente procedente a oposição ao arresto decretado por sentença proferida em 2022-10-18 e em consequência determinou o respetivo levantamento quanto ao veículo com a matrícula ..-..-HZ, mantendo-o no demais, vem dela interpor o presente recurso.
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
Conclusões
I. No presente caso, nenhum dos veículos automóveis arrestados eram, à data do arresto, propriedade da Recorrente. Aliás, nunca estes veículos foram registados como propriedade da Recorrente.
II. Porque, os veículos em causa foram objeto de importação, por encomenda dos clientes da Recorrente e mediante o pagamento de um adiantamento ou sinal. E registados posteriormente em nome dos compradores.
III. No entanto, no presente caso, a transferência da propriedade dos bens móveis deu-se através da entrega desses bens aos compradores, que, por sua vez, procederam ao pagamento do preço ao vendedor.
IV. Assim sendo, a prova do contrato de compra e venda de veículos automóveis pode fazer-se por qualquer meio admitido em direito, designadamente através de prova testemunhal.
V. No entanto, o tribunal a quo, deu como matéria não provada que os veículos automóveis com as matrículas, “..-..-ZI”, “..-..-ZC”, “..-..-QS”, “..-..-SD”, “..-..-IZ”, “..-..-HF” foram transacionados ou existiu transferência da posse e propriedade da sociedade «X, Lda.» para terceiros.
VI. Contudo, no depoimento prestado, a testemunha «AA», enquanto legal representante de «W, Lda.», afirmou ter adquiridos os veículos automóveis aqui em causa, em data anterior ao arresto (26-10-2022), com as matrículas: ..-..-SD, ..-..-HZ e ..- ..-HF.
VII. A testemunha afirmou que a data em que tomou posse dos veículos corresponde à data da emissão das faturas juntas pela Recorrente em sede de oposição, que datam de 18-08-2022 (relativo à matrícula ..- ..-SD), de 07-08-2022 (relativo à matrícula ..-..-HZ) e de 25-07-2022 (relativo à matrícula ..-..-HF), datas bem anteriores ao arresto.
VIII. Cujos documentos, conjugados com o depoimento da testemunha são suficientes para comprovar a transferência da posse e propriedade dos veículos.
IX. Por isso, andou mal ao considerar não provada a transferência da posse e propriedade dos veículos para a sociedade «W, Lda.»
X. Por seu lado, do depoimento da testemunha «BB», resultou que este adquiriu um veículo marca ..., matrícula ..-..-IZ. A testemunha afirmou que a data em que tomou posse do veículo corresponde à data declarada no Requerimento de registo automóvel, junto aos autos em sede de oposição, a qual consta assinada por ambas as partes com a menção de que o contrato de compra e venda foi celebrado a 13-07-2022.
XI. Este depoimento veio também confirmar a forma de negócio operada pela Recorrente, exposta em sede de oposição, de que a Recorrente importa veículos por encomenda dos clientes, mediante o pagamento de um adiantamento ou sinal.
XII. Por isso, o preço não é pago na totalidade na data da entrega dos veículos. Nessa altura, parte do preço já se encontra pago e outra parte, dependendo dos clientes, é paga em prestações posteriores à entrega. Apesar do veículo já se encontrar na posse e ser utilizado pelo cliente.
XIII. Ademais, importa esclarecer que, desta forma, era impossível proceder ao registo imediato da propriedade dos veículos, tal como foi esclarecido pelas testemunhas.
XIV. Pois, uma vez que os veículos eram importados, a Recorrente apenas preenchia (em seu nome próprio) a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) junto da alfândega e procedia ao pagamento do ISV. Após isso, é atribuída uma matrícula nacional ao veículo, que vem impressa na DAV.
XV. Com a DAV e a matrícula, é possível circular durante 60 dias. Era nesse período que a Recorrente entregava os veículos aos seus clientes.
XVI. Durante esses 60 dias, o cliente deveria dirigir-se ao IMT e entregar toda a documentação obtida na alfândega (DAV e cópia do livrete autenticada pela alfândega) para que o processo seja enviado para a Conservatória do Registo Automóvel. Processo que, dependendo do balcão do IMT, pode demorar cerca de 30 dias. Só após a confirmação do IMT que o processo está terminado é possível requisitar o Documento Único Automóvel.
XVII. Por esse motivo, os veículos eram entregues aos clientes sem que o registo automóvel fosse efetuado.
XVIII. Além disso, pela mesma ordem de razão, resulta suficientemente demonstrado, pelos documentos juntos em sede de oposição (ainda que não acompanhados por prova testemunhal que não foi possível produzir) que os veículos arrestados foram entregues aos compradores e por estes pagos, em data anterior ao arresto:
1. O veículo automóvel com a matrícula ..-..-ZI foi vendido e entregue em 18-12-2021, a «CC», conforme provado por documentos juntos, designadamente pela declaração para registo automóvel, assinada por vendedor e comprador, que menciona que o contrato de compra e venda foi celebrado em 18-12-2021.
2. O veículo automóvel com a matrícula ..-..-ZC foi vendido e entregue em 04-07-2021, a «k, Lda.», conforme provado pela fatura ...87, de 04-07-2022, junta pela Recorrente em sede de oposição e pelos documentos juntos em oposição ao arresto deduzida pela actual proprietária do veículo, que constitui apenso A dos presentes autos.
3. O veículo automóvel com a matrícula ..-..-QS foi vendido e entregue em 15-08-2022, a «DD», conforme provado por documentos juntos, designadamente pela declaração para registo automóvel, assinada por vendedor e comprador, que menciona que o contrato de compra e venda foi celebrado em 11-08-2022.
XIX. Por tudo o supra exposto, entende a Recorrente que os documentos juntos e a prova testemunhal produzida são elementos factuais suficientes para permitir concluir pela venda e transmissão da propriedade dos veículos arrestados.
XX. Motivo pelo qual, não se podem considerar preenchidos os pressupostos para o decretamento da providência de arresto e a oposição deduzida deveria ter sido julgada totalmente procedente, e em consequência, ordenar-se o levantamento do arresto relativo a todos os veículos.
Termina pedindo:
Termos em que, e nos melhores de Direito aplicável, deve o presente recurso ser procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituído por outra que julgue procedente a oposição deduzida e que ordene o levantamento do arresto sobre os veículos automóveis. Fazendo, desta forma, V. Ex.ªs a estimada e sã JUSTIÇA!
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A Entidade Recorrida não apresentou contra-alegações.
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A Digna Magistrada do M.º Público emitiu parecer no sentido da total improcedência do presente recurso.
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Com dispensa de vistos prévios, atenta a natureza urgente do processo [cf. art. 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário].
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Questões a decidir no recurso
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso.
Assim sendo, importa apreciar se a sentença recorrida padece dos erros de julgamento de facto que lhe são imputados pela Recorrente.
II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto
Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO
Factos assentes:
Considero provados os seguintes factos, com relevância para a decisão, com base no teor dos documentos juntos aos autos:
1) Em 18-10-2022 foi proferida sentença onde se ordenou o arresto dos bens requeridos e autorizada a AT a proceder a todos os atos e diligências necessárias à execução efetiva da providência decretada. – cfr fls 171 do sitaf;
2) Na sentença referida em 1) julgou-se o requerimento procedente e em consequência ordenou-se que se procedesse ao arresto dos seguintes bens requeridos:
- Contas bancárias: IBAN ..............................78 e IBAN ...............................50 e ainda:
- o veículo automóvel com a matrícula “..-..-ZI”
- o veículo automóvel com a matrícula “..-..-ZC” - o veículo automóvel com a matrícula “..-..-QS” - o veículo automóvel com a matrícula “..-..-SD” - o veículo automóvel com a matrícula “..-..-IZ” - o veículo automóvel com a matrícula “..-..-HZ” - o veículo automóvel com a matrícula “..-..-HF”
– cfr fls 171 do sitaf;
3) Da informação da inspeção tributária, em nota anexa ao quadro de veículos a arrestar e referido em 2), consta que a informação reporta a 6/10/2022 pode sofrer alterações, diariamente, face à atividade da sociedade requerida – cfr fls 171 do sitaf e informação para pedido de arresto – cfr fls 4 a 15 do sitaf;
4) Conforme informação do SF ..., de 5 de dezembro de 2022, os veículos foram arrestados com data de 26-10-2022. – cfr. fls 198 dos autos;
5) À data de 26-10-2022, o registo existente dos veículos automóveis era da sociedade arrestada, ou sem registo – cfr Doc nº 2 a 7 juntos pela Fazenda Pública;
6) No veículo ..-..-QS a propriedade é transferida a 17-1-2023, posterior ao registo de arresto. – cfr Doc nº 2 a 7 juntos pela Fazenda Pública;
7) Quanto ao veículo ..-..-HZ, a propriedade é transferida a 20-10-2022, pelo que o registo do arresto é posterior à transferência de propriedade – cfr Doc nº 2 a 7 juntos pela Fazenda Pública;
8) No veículo ..-..-HZ, a propriedade é transferida a 18-10-2022 – cfr Doc nº 6 junto pela Fazenda Pública;
9) As inspeções em curso para os anos de 2020 e 2021, não tiveram acesso à contabilidade- cfr. doc. 1 junto pela Fazenda Pública.
10) As faturas comunicadas no sistema E-fatura, apenas identificam as partes intervenientes na transação comercial, preço e data, não identificam os bens vendidos. – cfr prova testemunhal;
11) Em 11-01-2023 foi apresentada oposição – cfr fls 220 e seguintes do sitaf;
12) Dão-se aqui como reproduzidos para todos os efeitos legais os documentos juntos com a oposição identificados como Doc nº 1 a), b), c) e d); Doc nº 2 a) e b); Doc nº 3 a), b) e c); Doc nº 4 a) e b); Doc nº 5 a), b) e c); Doc nº 6 a) e b); Doc nº 7ª) e b), respeitantes a declarações emitidas pela «X, Lda.» e requerimentos ao Instituto de Registos e Notariado, Conservatória de Registo Automóvel;
13) Dão-se como reproduzidos os documentos juntos pela Fazenda Pública a fls 257 e seguintes do sitaf e devidamente identificados como Doc nº 1 a Doc nº 7.
14) Dá-se por reproduzido o seguinte email:
“(...)
De: «F»
Para: «EE»
Assunto: RE: [...00-OI............42] Pedido de elementos e prestação de esclarecimentos || «X, Lda.» || NIPC ...
Data: 26 de julho de 2022 10:51:40
Bom dia,
informamos o seguinte sobre a empresa «X, Lda.» com o NIPC ...:
Não temos nenhum elemento da contabilidade da empresa, dos exercícios de 2019 a 2021;
Não foi entregue pela empresa documentos para a contabilidade.
Cumprimentos,
«F».
- cfr Doc nº 1 junto a fls 261 do sitaf;
15) Dos documentos referidos em 13) destaca-se o doc nº 6 de onde se extrata o seguinte:
“(...)
Pesquisa por Matrícula (Veículo Terrestre)
IDENTIFICAÇÃO DO VEÍCULO
Matrícula ..-..-HZ
Proprietários Características
DADOS DE PROPRIEDADE
Nº de resultados: 3
(...)
NIF do proprietário: ... «FF» – data de início de propriedade: 2022-10-18
NIF do proprietário: ... «X, Lda.» data de início de propriedade: 2022-07-26 e data do fim de propriedade: 2022-10-18 (...)
- Doc nº 6 junto a fls 267 do sitaf;
*

Factos não provados:
- Que os veículos automóveis com as matrículas, “..-..-ZI”, “..-..-ZC”, “..-..-QS”, “..-..-SD”, “..-..-IZ”, “..-..-HF” foram transacionados ou existiu transferência da posse e propriedade da sociedade «X, Lda.» para terceiros;
Motivação:
A decisão da matéria de facto resultou da análise dos documentos e informações oficiais, não impugnados, juntos aos autos pelas partes e constantes do processo administrativo, bem assim da prova testemunhal ouvida e ainda nas posições assumidas nos articulados, tudo conforme foi referido em cada ponto dos factos assentes.
Foi análise de toda a prova assim enunciada que, em conjugação com as regras da experiência comum, sedimentou a convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados – Cfr. art. 74º LGT, 76º nº 1 LGT e art. 362º e ss do CC.
Os factos não provados resultam da total ausência de prova conforme infra se demonstrará.
Foram ouvidas as seguintes testemunhas:
- «AA»; comerciante de automóveis, disse conhecer a Oponente, há cerca de dois anos em virtude de terem negócios em comum, nomeadamente na compra e venda de veículos automóveis aqui em causa com as matrículas: ..- ..-SD, ..-..-HZ e ..- ..-HF.
Na decorrência da sua inquirição foram-lhe solicitados os seguintes elementos:
- Os comprovativos de transferências bancárias entre a «W, Lda.» e a «X, Lda.», relativas às faturas - recibo nº...5 de 18 de agosto referente ao veículo automóvel com a matrícula ..- ..-SD.de 2022.
- Relativo à fatura-recibo ...3 de 7 de agosto de 2022 referente ao veículo automóvel com a matrícula .. ..-HZ fatura recibo ... de 25/07/2022 referente ao veiculo automóvel com a matricula ..-..-HF.
E ainda, os contratos de financiamento, e as declarações de venda entre a sociedade «W, Lda.» e os terceiros adquirentes, que não foram juntos.
Ora, os documentos juntos por «AA», não demonstram de forma inequívoca quando foram pagas as viaturas e colocadas à disposição da sociedade «W, Lda.»
E acrescenta-se que o seu depoimento, sem apoio documental é manifestamente insuficiente infirmar os pressupostos subjacentes à penhora dos veículos com as matrículas “..-..-SD” e “..-..-HF, pois e como bem referem as partes: “não existe uma correlação direta entre a compra e venda dos mesmos, isto é, não é possível fazer uma correspondência de uma transferência que corresponda única e exclusivamente à aquisição de um veículo.”
- «EE»- inspetora tributária que elaborou a informação relativamente ao arresto à sociedade «X, Lda.», confirmando o teor da mesma.
Referiu que os veículos em causa foram adquiridos intracomunitariamente pela requerida, conforme faturas que constam nos processos alfandegários de legalização dos mesmos. Disse ainda que, consultado o sistema do “Imposto Único de Circulação” (IUC), alguns dos veículos ainda estavam registados em nome da «X, Lda.», sendo que outros ainda nem estavam registados naquele sistema. Posteriormente, a ATA acedeu aos registos de propriedade automóvel constantes da conservatória do registo automóvel, onde constavam os veículos em nome da requerida, ou não existiam registos em nome de terceiros, baseando-se na apresentação das DAV desses veículos.
Acrescentou que da informação da inspeção tributária, em nota anexa ao quadro de veículos a arrestar, é salvaguardado que a informação reporta a 6/10/2022 e pode sofrer alterações, diariamente, face à atividade da sociedade requerida.
Mais referiu que a ATA não sabia, nem poderia saber da venda desses veículos, e que não teve acesso à contabilidade da requerida ou faturas onde constasse a venda dos mesmos ou o meio de recebimento. Pelo que, sem acesso à contabilidade ou registos bancários da requerida, nunca poderia a ATA verificar o pagamento das viaturas, nem saber se as viaturas tinham sido vendidas, até porque não havia registo, na respetiva conservatória automóvel, das viaturas indicadas.
Disse que as inspeções em curso para os anos de 2020 e 2021, não tiveram acesso à contabilidade e que as faturas comunicadas no sistema E-fatura, apenas identificam as partes intervenientes na transação comercial, preço e data, não identificam os bens vendidos, como tal, nem por aí, a ATA conseguiria identificar se os veículos seriam ou não propriedade da requerida.
- «BB», disse conhecer a Oponente, em virtude de ter adquirido um veículo marca ... matricula ..-..-IZ. Acrescentou que efetuou o pagamento em numerário no valor de 24.600,00 euros, e em prestações de 3000 euros mensais entre fevereiro e outubro de 2022, em clara oposição ao vertido no documento 5 a) emitido pela arrestada junto com a oposição ao arresto
Mais disse que o veículo chegou em julho de 2022 e que em setembro desse ano começou a circular.
O seu depoimento foi insuficiente para demonstrar o ónus que sobre a requerente impendia, revelando-se até contraditório com os documentos apresentados conforme supra se referiu.
Assim, não estando juntos os contratos de financiamento das viaturas vendidas a terceiros solicitados, e não tendo sido apresentadas apólices de seguros de automóvel, para verificar por entidade terceira, quando as viaturas foram transferidas quer para a sociedade quer para terceiros adquirentes, ou os documentos de inspeção automóvel, IUC ou manutenções, qualquer documento de entidades terceiras onde fosse possível verificar as transferências de propriedade e que de forma inequívoca, suportasse os testemunhos produzidos, foi determinante para que se considerasse como não provado o facto aí vertido.
*
II.2. Fundamentação de Direito
Importa apreciar se a decisão recorrida padece dos erros de julgamento que lhe são assacados pela Recorrente, que alega, em síntese, que na mesma é feita uma inadequada apreciação da prova produzida nos autos, sendo esse o motivo pelo qual não foi reconhecido que não era proprietária dos veículos em questão na data em que foi efetuado o arresto.
Vejamos.
Quanto ao alegado no recurso relativamente à apreciação do depoimento das testemunhas, é manifesto que a Recorrente não cumpre o ónus de especificação a que estava obrigada.
Com efeito, o legislador impõe aos recorrentes um ónus muito particular no que se refere à fundamentação do recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (cf. art. 640.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT), que encontra a sua razão de ser na necessidade imperiosa de garantir o direito ao contraditório, por um lado, e por outro, de salvaguardar “a rigorosa delimitação do objeto do recurso, até porque o sistema consagrado não permite recursos genéricos contra a matéria de facto(cf. GERALDES, António Abrantes, PIMENTA, Paulo, e SOUSA, Luis Filipe Pires de – Código de Processo Civil Anotado. Vol. I. 3.ª edição, reimpressão. Coimbra: Almedina, 2022, p. 831, destacado nosso).
Assim sendo, e como decorre do disposto no n.º 1 do art. 640.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, assim como (iii) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Por sua vez da alínea a) do n.º 2 da mesma disposição resulta que no que se refere à identificação dos concretos meios probatórios, quando os mesmos sejam gravados, incumbirá ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Ora, sendo manifesto que a Recorrente, ao não indicar com exatidão as passagens da gravação do depoimento das testemunhas, incumpriu com o ónus de identificação do concreto meio probatório em causa, o seu recurso é desde já imediatamente rejeitado nos segmentos em que alude ao depoimento das testemunhas, tal como resulta do disposto na citada alínea a) do n.º 2 do art. 640.º CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT, que por esse motivo, não será objeto de (re)ponderação por este Tribunal.
Quanto ao demais, vejamos.
O presente arresto foi requerido pela Fazenda Pública no contexto de inspeção tributária em curso à Recorrente, no âmbito do qual se apurou preliminarmente que a mesma, não obstante a sua constituição em outubro de 2019, e da sua inscrição para o exercício de 8 atividades diversas, e ainda de se encontrar enquadrada em IRC pelo regime geral de determinação do lucro tributável e em IVA, no regime normal trimestral (desde 2019-10-18), nunca entregou quaisquer declarações de IVA e IRC (cf. Informação para pedido de Arresto, nos termos do disposto no art. 31.º do RCPIT e art. 135.º e seguintes do CPPT).
Foi ainda preliminarmente apurado o montante de EUR 2.115.832,00 referente a faturas declaradas pela Recorrente através do E-fatura e o montante de EUR 215.299,43 de faturas não declaradas, no valor total de EUR 2.331.131,43, e que encontrando-se a aqui Recorrente, como já referido, inscrita para o exercício de 8 atividades diferentes e sem qualquer relação entre si, 31,12% do total da base tributável faturada naquele exercício diz respeito a venda de malhas, não obstante a mesma não se encontrar inscrita em qualquer atividade relacionada com o setor têxtil (cf. Informação para pedido de Arresto, nos termos do disposto no art. 31.º do RCPIT e art. 135.º e seguintes do CPPT).
Apuraram ainda preliminarmente os Serviços de Inspeção Tributária através do sistema VIES que a Recorrente ali surge identificada por diversos fornecedores comunitários, também no exercício de 2020, como sendo adquirente de veículos automóveis em sede de aquisições intracomunitárias de bens, tendo omitido o dever legal de comunicar a aquisição intracomunitária de veículos nas declarações periódicas de 2020 no montante de EUR 1.032.215,00, e ainda que terá recorrido ao Regime Especial de Tributação de Bens em Segunda Mão, Objetos de Arte, de Coleção e Antiguidades (RETBSM) sem que estivessem reunidos os requisitos para tanto (cf. Informação para pedido de Arresto, nos termos do disposto no art. 31.º do RCPIT e art. 135.º e seguintes do CPPT).
Decretado o arresto preventivo, veio a Recorrente apresentar oposição ao mesmo, na qual invocou que a Fazenda Pública não teria comprovado nos autos a titularidade e propriedade dos veículos automóveis arrestados – respetivamente, com as matrículas ..-..-ZI, ..-..-ZC, ..-..-QS, ..-..-SD, ..-..-IZ, ..-..-HZ e ..-..-HF -, e que à data do arresto, concretizado em 2022-10-26 (cf. ponto 4, da fundamentação de facto), não era proprietária de qualquer um destes veículos.
Na decisão recorrida entendeu o Tribunal de primeiro julgamento da causa que, e à exceção do veículo com a matrícula ..-..-HZ, e perante a prova apresentada pela Fazenda Pública, a aqui Recorrente não logrou fazer prova de que à data do arresto não era proprietária dos restantes veículos automóveis, pelo que o levantamento do arresto apenas foi determinado relativamente àquele veículo.
Com efeito, da prova documental apresentada pela Fazenda Pública foi possível provar, perfunctoriamente, que relativamente aos veículos em questão, na data em que o arresto foi registado – em 2022-10-26 –, ou a propriedade se encontrava registada a favor da Recorrente – caso dos veículos com as matrículas ..-..-ZI (cf. doc. 2, a fls. 263 dos autos, na numeração do SITAF, junto pela Fazenda Pública com o requerimento apresentado em 2023-01-25), ..-..-QS (cf. doc. 4, a fls. 265 dos autos, na numeração do SITAF, junto pela Fazenda Pública), ..-..-SD (cf. doc. 5, a fls. 266 dos autos, na numeração do SITAF, junto pela Fazenda Pública), e ..-..-HF (cf. doc. 7, a fls. 268 dos autos, na numeração do SITAF), ou não apresentavam a propriedade registada – caso do veículo com a matrícula AI-..-2C (cf. doc. 2, a fls. 263 dos autos, na numeração do SITAF).
Com efeito, relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-ZI, apenas constava o registo de propriedade a favor da Recorrente, e relativamente aos veículos com as matrículas ..-..-QS, ..-..-SD e ..-..-HF, as datas de alteração do registo de propriedade são posteriores à data do registo do arresto, que ocorreu em 2022-10-26, a saber, e respetivamente, em 2023-01-17, e em 2022-11-25.
Por outro lado, considerou o Tribunal que a Recorrente não logrou provar que a propriedade dos veículos não era sua na data do arresto, tanto mais que, e como se deixou expresso na motivação da fundamentação de facto reproduzida supra, não foram juntos documentos solicitados, a saber, contratos de financiamento das viaturas vendidas, apólices de seguros de automóvel, documentos de inspeção automóvel, IUC ou manutenções, ou qualquer outro documento de entidades terceiras através dos quais fosse possível verificar as transferências de propriedade e que de forma inequívoca, suportasse os depoimentos das testemunhas, que, e como resulta também da motivação da decisão, não foram de molde a convencer o Tribunal a quo da bondade da versão dos factos apresentada pela aqui Recorrente.
E não deixou ali de se explicitar que também os documentos juntos pela aqui Recorrente não convenceram o Tribunal, por não demonstrarem de forma inequívoca quando foram pagas e colocadas à disposição da sociedade «W, Lda.» as viaturas em causa, ali se sublinhando que é a própria Recorrente que reconhece que “não existe uma correlação direta entre a compra e venda dos mesmos, isto é, não é possível fazer uma correspondência de uma transferência que corresponda única e exclusivamente à aquisição de um veículo.”, não tendo por isso, e por si só, o depoimento da testemunha «AA» sido de molde a convencer o Tribunal a quo.
Mais se deixou explicitado na decisão sob recurso que relativamente ao veículo com a matrícula ..-..-IZ “… tal ainda é mais incompleto, porquanto, ainda que se tratando de uma alegada venda, não titulada por qualquer fatura, e enunciada como subjacente um pagamento prestacional em numerário, verifica-se que as declarações da testemunha alegado adquirente, se pautam por configuradas imprecisões e mesmo incongruência quanto confrontadas com documento de suporte constante do requerimento inicial, sob o doc. n.º 5 a).”, explicitando-se as incongruências identificadas no depoimento da testemunha em questão.
Ora, em face da apreciação efetuada pelo Tribunal a quo do conjunto da prova apresentada, não se vislumbra que na decisão sob recurso tenha sido cometido o invocado erro de julgamento de facto, na sua modalidade de erro na apreciação das provas, revendo-se este Tribunal na avaliação global da prova ali efetuada, nada havendo a censurar à mesma, pois de facto, e à mingua da apresentação de outros documentos, designadamente emitidos por entidades terceiras, e em face da apreciação dos depoimentos prestados registada na motivação da decisão, não restava senão concluir que a Recorrente não logrou provar que a transmissão da propriedade dos veículos arrestados em questão ocorreu antes do registo do arresto.
Assim sendo, e em face do exposto, deve o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente.

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Atendendo ao seu total decaimento no presente recurso, a Recorrente é condenada nas correspondentes custas [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT e art. 7.º, n.º 2 do RCP].
***
Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:
I. Sendo manifesto que a Recorrente, ao não indicar com exatidão as passagens da gravação do depoimento das testemunhas, incumpriu com o ónus de identificação do concreto meio probatório em causa, o seu recurso deve ser imediatamente rejeitado nos segmentos em que alude ao depoimento das testemunhas, tal como resulta do disposto na citada alínea a) do n.º 2 do art. 640.º CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT.

II. Não tendo a empresa Executada, aqui Recorrente, logrado provar a transmissão da propriedade dos veículos arrestados em momento anterior ao do decretamento do arresto, não podia o Tribunal a quo ter ordenado o levantamento do respetivo arresto.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 12 de setembro de 2023 - Margarida Reis (relatora) – Tiago Miranda – Paula Teixeira.