Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00208/13.9BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/03/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; DISPENSA DE PROVA;
CONTRAPROVA; PROVA DO CONTRÁRIO;
“IN DUBIO PRO REO”; DEFICIÊNCIA INSTRUTÓRIA.
Sumário:
1. Não existe qualquer norma a estabelecer um valor probatório reforçado para as declarações de qualquer entidade no âmbito do processo disciplinar, a exigir contraprova (artigo 346º do Código Civil).

2. Menos ainda existe qualquer norma que estabeleça um valor pleno, ou seja, que exija a prova do contrário (artigo 347º do Código Civil), às declarações de um vigilante ou até a qualquer declaração de qualquer autoridade pública.

4. Porque tal seria claramente contrário ao princípio in dubio pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência, com consagração constitucional - artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

5. Pelo que padece de deficiência instrutória o processo disciplinar em que foi dispensada a produção de prova oferecida pela arguida, por se entender que as declarações do vigilante de uma escola - que presenciou o “flagrante delito” - eram suficientes para dar como provados os factos em que assentou o acto punitivo.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, I.P. (INSA), veio interpor RECURSO JURISDICIONAL do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 28.11.2014, pelo qual foi julgada procedente a acção administrativa especial intentada por «AA» contra o ora Recorrente e, assim, I), anulado o acto impugnado, o despacho do Presidente do Réu, de 09.07.2012, que aplicou à Autora a pena disciplinar de suspensão de actividade graduada em 30 dias e II) condenada a Entidade Demandada a praticar todos os actos e procedimentos necessários à reposição da Autora na situação jurídico-funcional em que se encontrava à data do despacho impugnado.

Invocou para tanto, em síntese, que nunca poderia ter aqui havido um erro notório na apreciação da prova, que pudesse levar à absolvição da aqui Recorrida por via do juízo de dúvida razoável de que terá (ou não) praticado aquela infracção, pelo que se impunha , ao contrário do decidido, julgar a acção totalmente improcedente.

A Recorrida contra-alegou defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer, também no sentido da improcedência do recurso.

*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

CONCLUSÕES:

1.º Nos presentes autos, nunca houve qualquer dúvida (e muito menos insanável) de que a infracção foi efectivamente cometida.

2.º Porque a recorrida foi apanhada a praticá-lo, em flagrante delito.

3.º Quanto ao acontecimento do dia 28 de Março de 2012 (tentativa de crime de dano), o facto de a recorrida alegar ter saído do trabalho à hora que indica, não prova ou demonstra que a mesma não pudesse estar nas instalações da R. à hora indicada, como efectivamente estava.

4.º De facto, a ora recorrida foi vista e identificada pelo vigilante de serviço, «BB», no dia, local e hora da ocorrência,

5.º O qual interveio, ordenando à recorrida para se afastar da viatura, tendo estado fisicamente junto daquela.

6.º Acontecimento que o referido vigilante descreveu no relatório que elaborou no próprio dia, e que confirmou e melhor precisou nas declarações que prestou no processo disciplinar,

7.º Tendo o relato desse acontecimento sido também confirmado pelo Sr. «CC», que dele teve conhecimento no próprio dia e hora, através do telefonema que recebeu do segurança, «BB», enquanto estavam a decorrer os factos.

8.º O mesmo se diga, quanto ao dia seguinte, relativamente ao facto da afixação da faixa com a palavra "ROUBO" no gradeamento do CGMJM, cujo pedido de material (fita-cola e de clips) e colocação pela recorrida (e outros colegas) foi presenciada pelo mesmo vigilante, e que, também neste caso, elaborou de imediato novo relatório da ocorrência,

9.º Tendo, quer aquele segurança, quer o responsável pela segurança do CGMJM, confirmado, e melhor precisado os factos nas declarações que prestaram no processo disciplinar.

10.º E bem assim, também o Instrutor pôde confirmar pessoalmente a veracidade e viabilidade factual daquelas ocorrências, através da inspecção ao local que fez no decorrer das diligências da instrução do processo disciplinar.

11.º Tal prova, documental, por inspecção e testemunhal, directa, e contemporânea da ocorrência dos factos, apresentou-se e continua a apresentar-se com credível, fiável, verdadeira.

12.º O instrutor do processo recusou fundamentadamente as diligências requeridas pela recorrida, porque face à prova já produzida ("extremamente clara e esclarecedora") - se mostrarem "desnecessárias, impertinentes e dilatórias",

13.º Ou seja, duvidas não poderiam restar que ora requerida cometeu as infracções disciplinares.

14.º E não restaram porque foi apanhada a fazê-lo, em flagrante delito, pelo responsável da segurança do CGMJM,

15.º Que é uma pessoa alheia aos quadros de funcionários do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, reportando, de forma isenta, a uma empresa de vigilância, especificamente contratada pelo recorrente para manter a segurança nas suas instalações,

16.º Em face dos factos provados, considerou o Sr. Instrutor que a recorrida não cumpriu com os deveres gerais a que estava obrigada, bem como atentou gravemente contra a dignidade e o prestígio do CGMJM e do INSA, tendo atentado contra bens do CGMJM e desrespeitado gravemente os seus superiores hierárquicos.

17.º Pelo que, considerou a acusação que a recorrida cometeu as infracções disciplinares de p. p. nos artigos 17.º a 18.º do ED, por violação dos deveres gerais de obediência, de lealdade e de correcção estabelecido(s) no art. 3.º, n.º 2, alíneas f) a h) do ED.

18.º Aplicando-lhe a competente sanção disciplinar.

19.º Na esteira daquilo que nos ensina o Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque, o princípio da presunção de inocência "(...) rege a valoração da prova pela autoridade judiciária, isto é, o processo de formação da convicção sobre os meios de prova (...)",

20.º Por outro lado, o princípio in dubio pro reo "(...) decorre do princípio da culpa, e, em última instância, do princípio do Estado de Direito. Ele complementa o princípio da inocência, mas não se confunde com este. Numa das suas vertentes, o princípio da presunção de inocência rege o processo da formação da convicção, estabelecendo regras para a valoração da prova. Ao invés, o princípio in dubio pro reo dispõe que, finda a valoração da prova, a dúvida insanável sobre os factos deve favorecer o arguido. Isto é, o princípio in dubio pro reo só intervém depois de concluída a tarefa de valoração da prova e quando o resultado da valoração da prova não é conclusivo. O princípio in dubio pro reo não é, pois, um princípio de direito probatório, mas antes uma regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos (...)"

21.º Para aquele Professor, "o princípio só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (...)".

22.º Nesse sentido, e, como consequência, não podemos deixar de observar aquilo que é a existência da prova além da presunção da inocência.

23.º Ou, se quisermos, indícios para além da presunção da inocência (sustentados, claro, pela produção de prova que os venha a confirmar), e que, ainda na esteira do Doutor Paulo Pinto de Albuquerque são "(...) as razões que sustentam e revelam uma convicção indubitável de que, de acordo com os elementos conhecidos no momento da prolação da sentença, um facto se verifica. O TC já admitiu claramente a sindicância como matéria de direito das `razões' que fundamentam o grau de convicção requerido pela decisão condenatória. Por exemplo, num caso de condenação com base em busca domiciliária e apreensão de cocaína em casa do arguido, o TC afirmou a sindicabilidade do juízo prudencial baseado nas regras de experiência, segundo o qual quem possui na sua residência os objectos apreendidos nas condições específicas dos presentes autos não poderá deixar de ter conhecimento da sua existência, sendo este juízo Suficientemente claro para poder ser identificado e contestado em sede de recurso” (…)”

24.º O que ocorre, pela mesmíssima ordem de razões, em situações de flagrante delito.

25.º E que foi - repita-se - o que sucedeu no âmbito dos presentes autos.

26.º Assim, finda a apreciação da prova, o juiz poderá deparar-se com uma dúvida insanável sobre os factos. Aí sim, apenas no caso da dúvida insanável, só aí deve aplicar o princípio in dúbio pro reo.

27.º Caso contrário, a aplicação daquele princípio não tem lugar.

28.º Ou seja, se a decisão impugnada pela recorrida não manifestou qualquer incerteza, nem qualquer dúvida acerca da condenação imposta à arguida, o Instrutor do processo disciplinar não decidiu «in malam partem», não se verificando violação do dito princípio.

29.º Lançamos ainda mão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/200714: "só pode "conhecer-se da violação desse princípio [in dúbio pro reo] quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido;"- assim, Ac. Do STJ de 08-07-04 Proc.n.º1121/04 5.ª.
(…)
V - Este vício não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP) - cf. Acs. do STJ de 07-01-04, Proc. n.º 3213/03 - 3.a, e de 29-04-92, Proc. n.º 42535.
VI - A contradição insanável - a que não possa ser ultrapassada ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum - da fundamentação, ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou na contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
VII - O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verifica?' ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos: trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental,' as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria táctica provada ou excluindo dela algum facto essencial - cf. Ac. do STJ de 03-07-02, Proc. n.º 1748/02- 3.ª. (…)”

30.º Assim se conclui que, no que concerne à aplicação daquele princípio, necessário é que i) haja um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, ii) que se decida em desfavor do arguido, apesar desse estado de dúvida; iii) que haja um erro notório na apreciação da prova; iii) e que esse erro notório ocorra porque se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar.

31.º O que, claramente não ocorreu na presente situação porquanto i) nunca chegou o Sr. Instrutor a um "estado de dúvida sobre a realidade dos factos", ii) deram-se por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, se teriam podido (como se vieram a) verificar,

32.º Consequentemente, nunca poderia ter aqui havido um erro notório na apreciação da prova, que pudesse levar à absolvição da aqui recorrida por via do juízo de dúvida razoável de que terá (ou não) praticado aquela infracção.

33.º Uma vez que a prova produzida foi de tal modo sólida, determinante e conclusiva, que pouca margem (para não dizer nenhuma) conferiu ao julgador (neste caso o Instrutor) no exercício do livre arbítrio da sua apreciação.

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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

I) Por despacho de 03.04.2012, o Presidente do Réu determinou a abertura de um processo disciplinar contra, de entre outros, a aqui Autora, tendo sido nomeado o Dr. «DD» como instrutor do processo, conforme emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

II) No referido processo disciplinar foi elaborada a nota de culpa que faz fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

III) A nota de culpa foi notificada à Autora por e-mail datado de 15 de Maio de 2012, conforme emerge da análise de fls. 20 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e, bem assim, emerge do posicionamento das partes exarado nos respectivo articulados.

IV) No âmbito do referido processo disciplinar foi imputada à Autora, por um lado, a tentativa, em co-autoria material, de esvaziamento dos pneus do veículo dos veículos do CJM [parqueados à frente da entrada do CJM], a fim de na manhã seguinte [29.03.2012] ser dificultado o serviço de transporte que iria ter lugar naquele Centro, com a finalidade de transportar equipamento afecto ao mesmo para outro destino, e, por outro, em 29.03.2012, por solicitado clips e fita cola a fim de, conjuntamente com a Dra. «EE», uma faixa com o termo "Roubo", que ficou colocado no gradeamento esquerdo, tendo em vista a ostentação aos utentes do mesmo centro e do público em geral que, no CJM, estaria a ser cometido um roubo através do transporte de equipamentos que estariam a fazer do CJM [cfr. artigos 1°, 2° e 5° da acusação], em função do que o instrutor do processo considerou que a Autora violou os deveres gerais de obediência, de lealdade e correcção estabelecidos no artigo 3°, n° 1, alíneas f) a h) do ED, com o praticou a infração previsto nos artigos 17° e 18° do ED e punida com a pena de suspensão ou demissão e despedimento por facto imputável ao trabalhador, emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

V) A Autora apresentou defesa escrita, requerendo o arquivamento do processo e ao mesmo tempo que requereu diligências de prova, conforme emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

VI) Em 01.06.2012, o instrutor do processo recusou liminarmente a produção das diligências probatórias requeridas pela Autora, "(...) uma vez serem manifestamente impertinentes e desnecessárias, uma vez que as mesmas já se encontram provadas pelas declarações do Sr. «BB», nos termos do artigo 53°, n°.1 (...)", conforme emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

VII) Em 05.07.2012 foi elaborado o relatório final de procedimento disciplinar, do qual consta a proposta de aplicação à Autora de pena disciplinar de suspensão de actividade graduada em 30 dias, nos termos do disposto no artigo 10°, n°. 4 e 17° do ED "(...) por não ter cumprido com os deveres gerais, bem como ter atentado gravemente contra a dignidade e o prestigio do CJM e do INSA, ter atentado contra bens do CJM e ter desrespeitado gravemente os seus superiores hierárquicos, fora do local de serviço (...)",conforme emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

VIII) Por despacho de 09.072012, do Presidente do Réu, foi decidido concordar com as conclusões do relatório final acabado de referir "(...) não se entendendo necessárias a realização de novas diligências de prova ou a emissão de parecer do superior hierárquico da Autora (...)", nessa medida, decidindo-se aplicar à Autora de pena disciplinar de suspensão de actividade graduada em 30 dias, nos termos do disposto no artigos 9°, n°. 1, c),10°, n°. 4 e 17° do ED, conforme emerge da análise de fls. não numeradas do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

IX) O despacho acabado de referir foi notificada à Autora por oficio datado de 29.10.2012, conforme emerge da análise de fls. 50 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

X) Em 09.11.2012, a Autora solicitou nova notificação da decisão final, com indicação do prazo e entidade competente para possível instrução de recurso hierárquico, conforme emerge da análise de fls. 52 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

XI) Sobre tal pretensão recaiu despacho do Presidente do Réu, de 13.11.2012, do seguinte teor: "Não autorizo", conforme emerge da análise de fls. 52 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

XII) Na sequência de tal, a Autora solicitou a fundamentação de facto do despacho referido em xi), nos termos do artigo 124° do CPA, conforme emerge da análise de fls. 52 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

XIII) Sobre a pretensão da Autora recaiu informação do seguinte teor:" Em virtude da notificação da decisão final não ser susceptível de recurso contencioso não existe a obrigatoriedade de constar na mesma o órgão competente para a apreciar a impugnação do acto nem o prazo para o referido efeito, nos termos do art. 680/1, e) parte final do CPA", conforme emerge da análise de fls. 53 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

XIV) Em 23.11.2012, o Presidente do Réu proferiu despacho do seguinte teor:" Concordo. Notifique-se", conforme emerge da análise de fls. 53 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

XV) Dá-se por reproduzido o teor dos documentos que integram os autos [inclusive o processo administrativo apenso].

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III - Enquadramento jurídico.

Este é o teor da decisão recorrida na parte relevante:

"(…)
Cientes destes considerandos, e revertendo, agora, ao caso dos autos, temos que, como já referido, foi imputado à Autora a tentativa, em co-autoria material, de esvaziamento dos pneus do veículo dos veículos do CJM [parqueados à frente da entrada do CJM], a fim de na manhã seguinte [29.03.2012] ser dificultado o serviço de transporte que iria ter lugar naquele Centro, com a finalidade de transportar equipamento afecto ao mesmo para outro destino, e, bem assim, a circunstância de em, em 29.03.2012, ter solicitado clips e fita-cola a fim de fixar, conjuntamente com a Dra. «EE», uma faixa com o termo "Roubo", que ficou colocada no gradeamento esquerdo, tendo em vista a ostentação aos utentes do mesmo centro e do público em geral que, no CJM, estaria a ser cometido um roubo através do transporte de equipamentos que estariam a fazer do CJM.

A imputação da factologia supra descrita assentou, conforme se alcança da análise do relatório final, essencialmente na ponderação efectuada pela entidade instrutora das declarações prestadas pelo Sr. «DD» em detrimento do depoimento em sentido totalmente divergente daquele prestado pela própria arguida, aqui Autora, sendo de evidenciar neste domínio a desconsideração das diligências complementares de prova por esta requerida, e que se mostram espelhadas na sua resposta à peça acusatória.

Ora, está-se em crer convictamente que a ponderação efectuada que se mostra fixada nos termos e com o alcance atrás explicitados não constitui suporte probatório suficiente para a imputação à Autora da factologia pelo qual foi acusada e punida.

Na verdade, a existência de duas versões antagónicas dos factos, por si só, não legitima de todo uma convicção segura da materialidade dos factos imputados à Autora, para além de toda a dúvida razoável.

Em bom rigor, atenta a infirmação dos factos pela arguida, impunha-se à entidade instrutora, em diligências instrutórias, esclarecer os factos em discussão. Procedendo às diligências instrutórias necessárias com vista à cabal descoberta da verdade dos. factos, ademais e especialmente, as requeridas pela arguida em sede de instrução dos autos.

Daí que se nos afigure existir um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do acto final do procedimento, assentando o acto impugnado em pressupostos de facto não fundados em elementos probatórios, objectivos e seguros, mas antes em factos controvertidos e incertos. Nesta esteira, por não se mostrar adquirida qualquer factualidade objectiva e segura no tocante à imputada violação dos deveres pelos quais vem a Autora, impunha-se ao órgão decisor, por aplicação do princípio in dúbio pro reo, que não aplicasse qualquer punição disciplinar à Autora “.

Mostra-se completamente acertada esta decisão.

Importa desde logo esclarecer que a decisão recorrida, ao contrário do afirmado pelo Recorrente não fez qualquer valoração da prova produzida no sentido de a mesma afastar, ou não qualquer juízo de dúvida razoável de a Autora, ora Recorrida, ter praticado (ou não) a infracção.

O juízo que a decisão recorrida faz é anterior a esse juízo sobre a prova produzida.

O que se afirma na decisão recorrida, embora invocando princípio in dubio pro reo, é que a prova produzida é insuficiente para se fazer o juízo de de verificação, ou não, da infracção dado que as declarações da testemunha ouvida foram contraditadas pela visada que ofereceu prova em contrário.

E na verdade a Entidade Demandada o que fez no procedimento disciplinar foi, materialmente, atribuir um valor absoluto às declarações prestadas pelo vigilante «DD», não admitindo a prova em contrário requerida pela arguida.

Invocando neste recurso que o mesmo “ocorre, pela mesmíssima ordem de razões, em situações de flagrante delito”.

Ora em caso de fragrante delito o que temos é a versão apresentada por uma autoridade pública que, por se tratar de uma autoridade pública, deve merecer um crédito reforçado.

O que aqui não sucede, pois um vigilante não é uma autoridade pública e por isso a sua versão dos factos, ainda que reduzida a escrito, não constitui um “auto de notícia” nem qualquer documento com idêntico valor probatório.

Mesmo o auto de notícia faz prova em juízo no que toca por exemplo às contra-ordenações laborais, mas admite prova em contrário - n.ºs 1 e 3 do artigo 13.º do Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14.09.

Mas não existe norma equivalente no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, a estabelecer um valor reforçado a um qualquer “auto de notícia” elaborado no âmbito deste tipo de processo disciplinar.

Nem existe qualquer norma a estabelecer um valor probatório reforçado para as declarações de qualquer entidade no âmbito do processo disciplinar, a exigir contraprova (artigo 346º do Código Civil).

Menos ainda existe qualquer norma que estabeleça um valor pleno, ou seja, que exija a prova do contrário (artigo 347º do Código Civil), às declarações de um vigilante ou até a qualquer declaração de qualquer autoridade pública.

Porque tal seria claramente contrário ao princípio in dubio pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência, com consagração constitucional - artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Impõe-se, por isso, manter a decisão recorrida, negando provimento ao recurso.

*
IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

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Porto, 03.11.2023


Rogério Martins
Fernanda Brandão
Nuno Coutinho, com a declaração de voto que se segue

Declaração de voto:

Concordando com o não provimento do recurso, entendo que devia ter sido equacionada a aplicação do artigo 6º da Lei nº 38-A/2023.

Nuno Coutinho