Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00226/11.2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/23/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CONCURSO; PROCEDIMENTO; TRANSFERÊNCIA DA POSIÇÃO ENTRE DUAS EMPRESAS; ACÇÃO PRÉ-CONTRATUAL; CONTRAINTERESSADA; LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO; LEGITIMIDADE; INTERESSE EM AGIR; INTERESSES DIFUSOS; ARTIGOS 9º, N.º2, E 55º N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
CADUCIDADE; NULIDADE PROCESSUAL; ARTIGOS 9º, N.º2, E 55º N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; COMPETÊNCIA PARA O JULGAMENTO; JUIZ SINGULAR; JUIZ COLECTIVO; O ARTIGO 40º DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS; DECRETO-LEI N.º 214-G/2015, DE 02.10; PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DO JUIZ; ARTIGO 605º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE (2013); PROIBIÇÃO DE ACTOS INÚTEIS (ARTIGO 137º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2009).
Sumário:
1. Tendo havido transferência da posição de uma empresa no procedimento objecto do processo judicial, a primitiva empresa, contrainteressada neste processo, deixou de ter um interesse contraposto ao da autora, tendo a segunda empresa passado a figurar como contrainteressada e não se verificando no caso uma situação de litisconsórcio, tão-pouco necessário, entre as duas empresas, pelo que a presença da segunda empresa basta para assegurar a legitimidade passiva no processo judicial.
2. A autora invocou que pretende defender as regras urbanísticas do Plano Diretor Municipal de Vila Nova de Gaia, concelho onde habita, está recenseada e é eleitora, que entende terem sido violadas pelo acto impugnado, o que basta para assegurar o seu interesse em agir e a sua legitimidade, nos termos do disposto nos artigos 9º, n.º2, e 55º n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
3. Verifica-se uma nulidade processual, a omissão de pronúncia, devida, sobre um requerimento de prova, e omissão de um acto que devia ter sido praticado, a notificação de uma entidade para vir aos autos confirmar se a autora, por intermédio da sua advogada requereu e a realizou a consulta do processo no âmbito da questão de caducidade do direito de acção, suscitada na contestação (artigo 201º, n.º1, do Código de Código de Processo Civil na versão de 2009, aplicável ao caso).
4. Nulidade processual que acaba por determinar não a nulidade, nessa parte, do despacho saneador, dado que no saneador é possível conhecer da matéria de excepção e a caducidade tinha sido uma excepção suscitada, mas um erro de julgamento, o de julgar improcedente a excepção de caducidade com elementos que existiam no processo quando o processo ainda não continha todos os elementos necessários e suficientes para uma decisão conscienciosa sobre essa matéria, por erro na aplicação ao caso do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 87º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
5. O disposto no artigo 40º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais na redacção com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, aplica-se aos processos pendentes, passando a ser competente o juiz singular o competente para decidir de facto e de direito acções que antes impunham a intervenção do Tribunal Colectivo.
6. Este entendimento não se aplica, no entanto, aos casos, como o presente, em que a fase de instrução do julgamento foi feita pelo Tribunal do Colectivo.
7. Esta solução é desde logo imposta pelo princípio consagrado no artigo 605º do Código de Processo Civil de (2013), o princípio da plenitude da assistência do juiz, a exigir que todos os juízes que participaram na audiência final terminem o respectivo julgamento e este só termina no contencioso administrativo com a sentença ou acórdão em que se julga de facto e de direito.
8. Tal solução é também imposta pela proibição de actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil de 2009), que tanto proíbe a prática de actos inúteis como a inutilização de actos válidos, dado que a solução contrária, limitadora das garantias do processo, levaria a que os dois juízes que só participaram na instrução teriam trabalhado em pura perda de tempo, pois que nenhum proveito se extrairia dessa sua actividade. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MJRMR
Recorrido 1:Município de VNG
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Julgar procedente a arguição de uma nulidade
Determinar a produção de prova
Julgar procedente a excepção de incompetência
Declarar nula a sentença
Determinar a prolação do acórdão pelo tribunal colectivo
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:emitiu parecer no sentido da incompetência funcional do Juiz a quo para proferir a decisão recorrida, pedindo que se declare a nulidade da sentença, baixando os autos à primeira instância para decisão da matéria de facto e de direito pela formação de juízes que presidiram à instrução e julgamento (artºs 195º nº 1 e 200º nº 3 do CPC), ficando prejudicada a apreciação dos restantes vícios alegados pela Recorrente.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

MJRMR veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 10.11.2015, pela qual foi julgada improcedente a acção administrativa especial conexa com actos administrativos pela Recorrente intentada contra o Município de VNG e em que foi indicada como Contrainteressada GNII, Ldª para declaração de nulidade do acto que deferiu o pedido de informação prévia e o acto que licenciou a operação urbanística em causa nos presentes autos e, ainda que seja decretada a anulação dos actos que aprovaram o projecto de arquitectura e licenciaram a operação urbanística em causa, com todas as consequências legais.
Invoca, em síntese, a incompetência funcional do juiz singular para proferir a decisão de facto e de direito recorrida, uma vez que a instrução foi feita por três juízes, os quais deveriam ter proferido a decisão recorrida, pelo que não o tendo feito ocorreu a violação do princípio de plena assistência dos juízes; a não ponderação nem positiva nem negativamente –foi como se não existisse do depoimento da testemunha JAB, o que constitui nulidade que influenciou o julgamento da matéria de facto, violando, consequentemente, os artigos 413º e 607º do Código de Processo Civil; o comprimento de um dos lados da construção é do ponto de vista urbanístico completamente indiferente para aferir da cércea, se nesse lado não houver acessos para a rua para a qual dá essa fachada mais longa; esse acesso só se faz pela Rua da P... e não pela Av. B...; então o critério da cércea possível e regularmente admitida para a operação urbanística em análise é apenas de r/c e nunca de r/c mais cinco; o que demonstra que a aprovação do pedido de informação prévia neste errado pressuposto e a aprovação do projeto de arquitectura que redundou no licenciamento final da edificação produziu uma violação do artigo 9º do RPDM por ter permitido construção que excede largamente a cércea admissível regulamentarmente para aquele específico local e nos termos do art. 103º do regime legal dos instrumentos de gestão territorial, os licenciamentos que contrariem o disposto nos planos directores municipais são nulos.
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O Recorrido Município P… e a Contrainteressada GNII, L.da, ora também Recorrida, apresentam contra-alegações em que pugnam pela competência funcional do juiz a quo para proferir a decisão recorrida, pela manutenção desta.
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A Recorrida GNII, L.da aproveitou as contra-alegações para ampliar o objecto do recurso, para conhecimento das questões da ilegitimidade passiva, da falta de interesse em agir da impugnante e da caducidade do direito de acção da impugnante, questões
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O Ministério Público emitiu parecer no sentido da incompetência funcional do Juiz a quo para proferir a decisão recorrida, pedindo que se declare a nulidade da sentença, baixando os autos à primeira instância para decisão da matéria de facto e de direito pela formação de juízes que presidiram à instrução e julgamento (artºs 195º nº 1 e 200º nº 3 do CPC), ficando prejudicada a apreciação dos restantes vícios alegados pela Recorrente.
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Os Recorridos Município de VNG e GNII, L.da respondem ao parecer do Ministério Público nos termos constantes das contra-alegações já apresentadas, concluindo ainda o Município de VNG que, a proceder a tese da recorrente, o presente recurso não seria admissível, já que da decisão proferida pelo juiz singular caberia reclamação para a conferência e não recurso, como ficou decidido pela jurisprudência, designadamente constitucional.
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O Juiz a quo proferiu despacho de sustentação da decisão recorrida.
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I.I. - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do recurso jurisdicional da Recorrente MJ:
1 - A aplicação imediata do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aos processos pendentes em que o Tribunal em formação coletiva não só já começou as suas funções, como já as terminou, evidencia, claramente, uma violação deste princípio da plenitude de assistência dos juízes (605º do Código de Processo Civil), para além de representar um retrocesso na economia processual.
2 - Se a prova foi produzida perante três juízes só esses três juízes podem decidir a matéria de facto. Assim, a decisão da matéria de facto e, consequentemente, depois a decisão da matéria de direito produzida pelo juiz singular é nula por manifesta violação do princípio de plena assistência dos juízes.
3- Basta ler a decisão para logo ver que o Tribunal a quo não ponderou nem positiva nem negativamente - foi como se não existisse - o depoimento prestado pela testemunha JAB.
4 - O que significa que, faltando esta ponderação global, a fundamentação da decisão claudica porque a mesma não é - como deveria - o resultado da ponderação de todas as provas, mas apenas daquelas que o Tribunal a quo quis ponderar, o que não lhe é permitido e constitui nulidade que influenciou o julgamento da matéria de facto, pois basta dedicar-se a ouvir a gravação do depoimento desta testemunha para logo concluir que este será o depoimento mais importante - se não o único relevante de todos os restantes - e, curiosamente, foi o único sobre o qual o juiz a quo não fez qualquer juízo de valor, qualquer que fosse o sentido do mesmo, violando, consequentemente, o 413º e 607º do Código de Processo Civil.
5 - O comprimento de um dos lados da construção é do ponto de vista urbanístico completamente irrelevante para aferir da cércea, se nesse lado não houver acessos para a rua para a qual dá essa fachada mais longa.
6 - Isto é assim porque a cércea é um conceito que relativo à cota da soleira e repete-se a cota da soleira pressupõe - por natureza de conceito - que a fachada pela qual se afere a cércea é precisamente aquela para a qual dá o edifício, ou seja, no qual este tem um acesso para a rua que lhe diz respeito.
7 - A cércea mede-se da cota da soleira de um edifício e as soleiras só existem onde há entradas e do lado da Av. B... não há entradas para a via pública para o edifício.
8 - Há sim entrada - como ficou provado nos factos - do lado da Rua da P....
9. E, nessa rua, como consta claramente da inspeção realizada e do depoimento de JAB que o Tribunal decidiu ignorar e não valorar existe uma cércea dominante e essa é de r/c .
10 - Há, pois, uma cércea dominante nessa rua - que é a que aqui interessa - e essa é de R/C e havendo cércea dominante no arruamento em causa, ou seja, na frente urbana do prédio que é a Rua da P..., então, o critério da cércea possível e regulamentarmente admitida para a operação urbanística em análise é APENAS de r/c, e nunca, mas nunca, de r/c mais 5.
11- O que demonstra que a aprovação do pedido de informação prévia neste errado pressuposto e a aprovação do projeto de arquitetura que redundou no licenciamento final da edificação produziu uma violação do artigo 9º do Regulamento do Plano Director Municipal por ter permitido construção que excede largamente a cércea admissível regulamentarmente para aquele específico local.
12 - E, nos termos do artigo 103º do regime legal dos instrumentos de gestão territorial, os licenciamentos que contrariem o disposto nos planos diretores municipais são nulos.
13 - E o Tribunal ao aferir a cércea possível do prédio pela rua para a qual deita a fachada mais comprida do edifício - av. B... - erra o seu julgamento por violar o conceito legal de cércea a por isso chega a uma conclusão errada da legalidade do licenciamento em causa.
14- E, sendo nulos, o acto de licenciamento e o acto que aprovou o pedido de informação prévia, é patente que nenhum desses actos pode continuar a produzir os seus efeitos.
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I.II. - São estas as conclusões das alegações da Contrainteressada GNII, L.da, ora Recorrida, que definem o objecto da ampliação do recurso jurisdicional:
Do aproveitamento do acto administrativo como fundamento da defesa.
- Considerando este Tribunal que o procedimento do pedido de informação prévia e o procedimento do licenciamento são anuláveis ou que a fundamentação constante do processo de licenciamento quanto às cérceas não é correcta, devem ser conhecidos, neste recurso os fundamentos e argumentos de defesa aduzidos pela Contrainteressada quanto ao aproveitamento dos actos administrativos impugnados.
- É irrelevante o erro de facto e de direito dos actos administrativos face ao princípio do aproveitamento do acto, quando um ou alguns dos fundamentos são exactos e suficientes para suportar a legalidade do acto.
- Deve ser negada relevância anulatória ao erro da Administração, quando, pelo conteúdo do acto e pela incidência da sindicação que foi chamado a fazer, possa afirmar, com inteira segurança, que a representação errónea dos factos ou do direito aplicável não interferiu com o conteúdo da decisão administrativa porque não afectou as ponderações ou as opções compreendidas.
- Ainda que se entendesse que, ao longo do procedimento se cometeu vício de preterição de uma formalidade ou vício de aplicação da norma do Regulamento do Plano Director Municipal, tais vícios não têm eficácia invalidante, desde logo porque, em concreto, a construção licenciada não acarreta um prejuízo estético da povoação, ou desadequada inserção da obra no ambiente onde se insere, ou afecta a beleza da paisagem, devendo o acto impugnado ser mantido na ordem jurídica.
- Face aos interesses que a recorrente pretende defender, aos prejuízos que a anulação do acto causará à contrainteressada e à defesa do interesse público, os actos do procedimento do pedido de informação prévia e do procedimento do licenciamento sempre seriam de ser aproveitados os actos administrativos praticados.
Das excepções dilatórias e peremptórias deduzidas em sede de contestação.
- As decisões proferidas em sede de despacho saneador quanto às excepções dilatória de ilegitimidade passiva e falta de interesse em agir da Autora, bem como a excepção peremptória de caducidade do seu direito de acção, e não tendo a Contrainteressada ficado vencida na decisão final (sentença ora recorrida), são impugnáveis através da ampliação do objecto do recurso.
Da ilegitimidade passiva.
- Tendo a presente acção sido intentada com vista à anulação do acto de licenciamento, fundamentando a Autora a sua pretensão em ilegalidades alegadamente cometidas quer no processo de pedido de informação prévia, quer no de licenciamento de construção e tendo, quer o pedido de informação prévia, quer o pedido de licenciamento, sido requeridos pela sociedade FISC, Lda., esta sociedade é titular de um interesse contraposto ao da autora.
- Não tendo a Autora indicado todos os Contrainteressados, sujeitos da relação material controvertida, verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário e a ilegitimidade passiva (cfr. nº 1 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conducente à absolvição da instância.
Da falta de interesse em agir.
- A Autora não tem interesse na demanda porquanto não alegou ou demonstrou existir, da sua parte, uma necessidade efectiva de tutela judiciária e factos objetivos que tornem necessário o recurso à via judicial.
10ª - A Autora nada alegou que contenda com o mérito do acto impugnado ou que demonstre a existência de um interesse difuso do urbanismo e do ordenamento do território ou de um seu interesse legítimo na procedência da presente acção.
11ª - A falta de interesse em agir constitui uma excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir que conduz à absolvição da instância.
Da caducidade do direito de acção.
12ª - Em sede de contestação, a Contrainteressada requereu a produção de prova quanto aos factos alegados tendentes à verificação da excepção da caducidade do direito de acção.
13ª- O Tribunal recorrido não proferiu qualquer decisão quanto a tal requerimento probatório, no sentido de o deferir ou indeferir, tendo, no entanto, proferido decisão julgando improcedente a excepção da caducidade com fundamento na falta de prova dos factos alegados tendentes à verificação de tal excepção.
14ª - Na exacta medida em que o Tribunal proferiu decisão quanto à excepção invocada sem que, previamente, se tenha pronunciado sobre o requerimento probatório da Contrainteressada, o tribunal a quo omitiu um acto e formalidade que a lei prescreve e que, por sua vez, constitui uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 201º do Código de Processo Civil.
15ª - Considerando que o Tribunal deve conhecer todas as questões que concretamente são colocadas à sua apreciação (designadamente pronunciando-se sobre os requerimentos probatórios das partes), a decisão proferida padece de nulidade por omissão de pronúncia (al. d) do n 1 do artigo 668º, todos do Código de Processo Civil).
16ª - Considerando que de acordo com o disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 87º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, apenas é possível ao Tribunal, findos os articulados, conhecer das excepções peremptórias, quando o estado do processo o permita, sem necessidade de mais indagações, e considerando que caso dos autos, o estado do processo não permitia o conhecimento da excepção da caducidade sem que fossem produzidas as indagações requeridas, a decisão proferida padece de nulidade, em virtude de ter sido praticado acto que a lei não admite (cfr. artigo 201º do Código de Processo Civil).
17ª - As nulidades processuais vindas de referir influem no exame e decisão da causa, na exacta medida em que impedem o conhecimento dos factos essenciais à decisão da excepção de caducidade invocada.
18ª - O requerimento probatório deduzido pela Contrainteressada na sua contestação é essencial, fundamental e necessário à prova dos factos alegados tendentes à verificação da excepção da caducidade do direito de acção e, nessa medida, devia ter sido proferida decisão que o deferisse e ordenasse.
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II- O mérito do recurso jurisdicional.
1. A matéria de excepção apreciada no despacho saneador.
Por ser processual e logicamente precedente o conhecimento das excepções suscitadas na contestação e apreciadas no despacho saneador, começaremos pelo conhecimento destas.
1.1. A ilegitimidade passiva.
Invoca a Recorrida a este propósito que:
Tendo a presente acção sido intentada com vista à anulação do acto de licenciamento, fundamentando a Autora a sua pretensão em ilegalidades alegadamente cometidas quer no processo de pedido de informação prévia, quer no de licenciamento de construção e tendo, quer o pedido de informação prévia, quer o pedido de licenciamento, sido requeridos pela sociedade FISC, Lda., esta sociedade é titular de um interesse contraposto ao da Autora; não tendo a Autora indicado todos os Contrainteressados, sujeitos da relação material controvertida, verifica-se a preterição de litisconsórcio necessário e a ilegitimidade passiva, face ao disposto no nº 1 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conducente à absolvição da instância.
Sem razão.
Como se refere no despacho saneador, tendo havido transferência da posição procedimental da Sociedade FISC, L.da para a Contrainteressada (ora Requerente da ampliação do objecto do recurso), a GNII, L.da, aquela primeira empresa deixou de ter um interesse contraposto ao da Autora, ora Recorrente.
Apenas a GNII, L.da tem agora um interesse contraposto ao da Autora pelo que não existe qualquer situação de litisconsórcio necessário, a determinar a ilegitimidade passiva pela circunstância de apenas esta ter sido indicada como Contrainteressada.
Improcede, pois, tal como decidido, esta excepção.
1.2. A falta de interesse em agir.
Quanto a esta excepção foi invocado:
A Autora não tem interesse na demanda porquanto não alegou ou demonstrou existir, da sua parte, uma necessidade efectiva de tutela judiciária e factos objetivos que tornem necessário o recurso à via judicial; a Autora nada alegou que contenda com o mérito do acto impugnado ou que demonstre a existência de um interesse difuso do urbanismo e do ordenamento do território ou de um seu interesse legítimo na procedência da presente acção; a falta de interesse em agir constitui uma excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir que conduz à absolvição da instância.
Também aqui sem razão.
Dispõe o n.º 2 do artigo 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que:
“Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
No que diz respeito em concreto à impugnação de actos administrativos, prevê o n.º 2 do artigo 55º do mesmo diploma que:
“A qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as decisões e deliberações adotadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado, assim como das entidades instituídas por autarquias locais ou que destas dependam”.
Defendendo-se, portanto, interesses difusos, como é o caso do urbanismo, e por forma a evitar a inviabilidade prática de os defender em juízo por não terem um titular concreto e individual, é reconhecida legitimidade para intervir em processos para a sua defesa a qualquer pessoa, independentemente de ter ou não interesse pessoal; no caso concreto de impugnação de actos dos órgãos autárquicos tem legitimidade activa qualquer cidadão recenseado na circunscrição a que pertence a autarquia.
Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, no Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª edição, páginas 387-388:
“Trata-se de um meio de fiscalização cívica da gestão das autarquias, que visa unicamente as actuações ilegais praticadas sob a forma de actos administrativos, em vista à reposição da legalidade objectiva e que, por isso, surge enquadrada como uma modalidade de legitimidade activa típica da acção impugnatória.
No caso concreto a Autora invocou que pretende defender as regras urbanísticas do Plano Diretor Municipal de VNG, concelho onde habita, está recenseada e é eleitora, que entende terem sido violadas pelo acto impugnado.
Tanto basta para assegurar a sua legitimidade activa pelo que improcede esta excepção tal como decidido no despacho saneador.
1.3. A caducidade do direito de acção.
Finalmente, no que concerne a esta excepção, concluiu a Recorrida:
Em sede de contestação, a Contrainteressada requereu a produção de prova quanto aos factos alegados tendentes à verificação da excepção da caducidade do direito de acção; o Tribunal recorrido não proferiu qualquer decisão quanto a tal requerimento probatório, no sentido de o deferir ou indeferir, tendo, no entanto, proferido decisão julgando improcedente a excepção da caducidade com fundamento na falta de prova dos factos alegados tendentes à verificação de tal excepção; na exacta medida em que o Tribunal proferiu decisão quanto à excepção invocada sem que, previamente, se tenha pronunciado sobre o requerimento probatório da Contrainteressada, o Tribunal a quo omitiu um acto e formalidade que a lei prescreve e que, por sua vez, constitui uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 201º do Código de Processo Civil; considerando que o Tribunal deve conhecer todas as questões que concretamente são colocadas à sua apreciação (designadamente pronunciando-se sobre os requerimentos probatórios das partes), a decisão proferida padece de nulidade por omissão de pronúncia (al. d) do n 1 do artigo 668º, todos do Código de Processo Civil); considerando que de acordo com o disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 87º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, apenas é possível ao Tribunal, findos os articulados, conhecer das excepções peremptórias, quando o estado do processo o permita, sem necessidade de mais indagações, e considerando que caso dos autos, o estado do processo não permitia o conhecimento da excepção da caducidade sem que fossem produzidas as indagações requeridas, a decisão proferida padece de nulidade, em virtude de ter sido praticado acto que a lei não admite (cfr. artigo 201º do Código de Processo Civil); as nulidades processuais vindas de referir influem no exame e decisão da causa, na exacta medida em que impedem o conhecimento dos factos essenciais à decisão da excepção de caducidade invocada; o requerimento probatório deduzido pela Contrainteressada na sua contestação é essencial, fundamental e necessário à prova dos factos alegados tendentes à verificação da excepção da caducidade do direito de acção e, nessa medida, devia ter sido proferida decisão que o deferisse e ordenasse.
O Tribunal Recorrido, sobre esta excepção, disse o seguinte, no despacho saneador, de essencial:
“No caso presente, no que tange ao ato de licenciamento da operação em causa nestes autos vem arguida a violação das normas do PDM de VNG por alegada violação do que se encontrava previsto à data do PIP em sede de cércea admitida para os edifícios.
Ora de acordo com o disposto no artigo 68º, n.º1, alínea d) do Decreto-Lei 555/99, de 16.12, “São nulas as licenças ou autorizações previstas no presente diploma que violem o disposto no plano director municipal de ordenamento do território, medidas preventivas ou licenças de autorização de loteamento em vigor.
Assim sendo, estando em causa vício imputado ao acto impugnado que, a ser procedente, gera a nulidade a decisão, a sua impugnação, como vimos, pode ser feita a todo o tempo, pelo que, quanto a tal vício se revela totalmente improcedente a alegada caducidade do direito de acção.
Mas, ainda, que quanto à falta de legitimidade procedimental para dar início e tramitar o pedido de licenciamento, tal vício invalidante determine a mera anulabilidade do acto, o que significa que a acção se encontrava sujeita ao prazo de três meses (após o conhecimento do acto) fixado na lei para ser intentada, o que é certo é que a contra-interessada apesar de, em diversos artigos da sua oposição alegar que a Autora consultou o procedimento administrativo diversas vezes e que dele derivou o conhecimento dos actos de deferimento do licenciamento em causa, o que é certo é que não faz qualquer prova, como lhe competia, de que isso efectivamente aconteceu, não juntando nem fazendo sequer qualquer referência a documento que comprove essa alegação.
Nesta medida, não estão reunidas as condições para afirmar, com segurança, que a consulta do procedimento ocorreu e em que data e, ainda, que dessa consulta derivou o conhecimento necessário para efectivar o direito de instaurar acção impugnatória como aquela que veio a intentar.
Termos em que, se julga improcedente a suscitada caducidade do direito de acção.”
E, em despacho de sustentação; defendeu que:
“No caso concreto, porém, não se descortina a ocorrência de tal nulidade.
Na verdade, a recorrente não pode ater-se a uma visão exclusiva de eventual falta de decisão expressa no domínio em questão, já que a mera análise dos autos revela-nos que, por dois momentos distintos, o Tribunal desconsiderou em toda a linha a sua pretensão probatória.
Com efeito, do teor dos despachos exarados a fls. 233 e seguintes e 323 e seguintes dos autos, grassa à evidência que o Tribunal não relevou oportuno a produção de prova nos termos requeridos pela ora recorrente.
Ora, tal enquadramento, nos termos em que se mostra expressado no parágrafo antecedente, revela-nos que o Tribunal, pese embora o tenha feito de uma forma implícita, efetivamente, tomou posição sobre a pretensão probatória da recorrente.
Por conseguinte, não ocorre o vício de nulidade invocado pela recorrente”.
Vejamos.
O articulado inicial terminou com os seguintes pedidos:
- a declaração de nulidade do acto administrativo que deferiu o PIP e que licenciou a operação em causa por violação do art. 9º do RPDM e,
- a anulação dos actos que aprovaram o projecto de arquitectura e licenciaram a operação urbanística por violação de poder.
Na sua contestação a Contrainteressada alegou que:
- a Autora, por intermédio da sua advogada, consultou o procedimento de informação prévia e o processo de licenciamento pelo menos nas datas de 21/01/2010 e 11/03/2010, pelo tendo o projecto de arquitectura sido aprovado por despacho de 02 de Abril de 2009, e considerando a partir das referidas datas da consulta do processo a Autora ficou a saber que a Câmara Municipal, verificadas as condições expostas naquele despacho, autorizaria e licenciaria a obra, designadamente quanto à volumetria e cércea, mostra-se caducado o direito à acção da Autora;
- ainda que se considere que o prazo de 3 meses previsto na al. b) do n.º 2 do art. 58º do CPTA apenas se inicia depois de preenchidos os requisitos de que depende a eficácia do acto, tal prazo mostra-se igualmente decorrido e ultrapassado, pois o despacho de deferimento do licenciamento de construção foi proferido em 25/02/2011, face ao conhecimento do procedimento e à previsibilidade de vir a ser licenciada a construção nos moldes que veio, actuando como um cidadão normalmente diligente, cabia-lhe acautelar o seu direito à acção, através da consulta periódica do processo de licenciamento, pelo direito à acção mostra-se caducado.
Para prova dos factos alegados, a Contrainteressada requereu, nos termos do disposto no artigo 531º do Código de Processo Civil, a notificação da GAIURB - Urbanismo e Habitação, EEM, para vir aos autos confirmar se a Autora, por intermédio da sua advogada EF, no dia 19.01.2010 requereu a consulta do processo para o dia 21.01.2010, consulta que efectivamente realizou, e se no dia 09.03.2010 requereu a consulta do processo para o dia 11.03.2010, consulta que efectivamente realizou.
Ora dispõe o artigo 59.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (na redacção anterior a 2015, aplicável ao caso), sob a epígrafe “Início dos prazos de impugnação”:
1 - O prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o acto administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação, ainda que o acto tenha sido objecto de publicação obrigatória.
2 - O disposto no número anterior não impede a impugnação, se a execução do acto for desencadeada sem que a notificação tenha tido lugar.
3 - O prazo para a impugnação por quaisquer outros interessados dos actos que não tenham de ser obrigatoriamente publicados começa a correr a partir do seguinte facto que primeiro se verifique:
a) Notificação;
b) Publicação;
c) Conhecimento do acto ou da sua execução”.
No presente caso está em causa não apenas a declaração de nulidade de um acto - a declaração de nulidade do acto administrativo que deferiu o pedido de informação prévia e que licenciou a operação em causa por violação do artigo 9º do Regulamento do Plano Director Municipal, em relação à qual não se coloca a questão de prazo - mas também a anulação de actos subsequentes - a anulação dos actos que aprovaram o projecto de arquitectura e licenciaram a operação urbanística por violação de poder.
É, portanto, pertinente a questão do prazo de três meses a que alude alínea b) do n.º 2 do artigo 58º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Como a Autora não tinha de ser notificada dos actos impugnados, por não ser destinatária dos mesmos nem parte no procedimento administrativo, é importante determinar quando teve conhecimento desses actos.
Ora a Contra-Interessada suscitou a questão de a Autora ter tido conhecimento dos actos mais de três meses antes de ter intentado a acção invocando que solicitou, através da sua Advogada, a consulta do processo, o que efectivamente lhe foi facultado, em 21.01.2010 e 11.03.2010.
Para prova destes factos alegados, a Contrainteressada requereu a notificação da GAIURB - Urbanismo e Habitação.
Ora sobre este requerimento em concreto não foi emitida qualquer decisão.
E a excepção da caducidade foi decidida no despacho saneador, com o fundamento, subsidiário, para a hipótese de se considerar a mera anulabilidade para os vícios invocados de não ter sido feita qualquer prova do invocado.
O que efectivamente traduz uma nulidade processual, a omissão de pronúncia, devida, sobre um requerimento de prova, e omissão de um acto que devia ter sido praticado, a notificação da GAIURB - Urbanismo e Habitação, EEM, para vir aos autos confirmar se a Autora, por intermédio da sua Advogada EF, requereu e a realizou a consulta do processo nos dias 21.01.2010 e 11.03.2010 (artigo 201º, n.º1, do Código de Código de Processo Civil na versão de 2009, aplicável ao caso),
Acabando por determinar não a nulidade, nessa parte, do despacho saneador, dado que no saneador é possível conhecer da matéria de excepção e a caducidade tinha sido uma excepção suscitada, mas um erro de julgamento, o de julgar improcedente a excepção de caducidade com elementos que existiam no processo quando o processo ainda não continha todos os elementos necessários e suficientes para uma decisão conscienciosa sobre essa matéria, por erro na aplicação ao caso do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 87º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Tudo a determinar a revogação do despacho saneador na parte em que julgou, sem mais, improcedente a excepção de caducidade do direito de acção e a determinar a prática do acto omitido, a notificação da GAIURB nos termos requeridos, para, só depois, se emitir decisão sobre a excepção em apreço.
Procedendo, logo nesta parte, o recurso.
2. A incompetência funcional do juiz singular para proferir a decisão recorrida.
Alega a Recorrente MJ:
“ À presente acção foi atribuído o valor de €30.000,01.
O que significa que para além dos critérios de competência jurisdicional territorial de matéria e de hierarquia que apontaram o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto como competente, a competência funcional para apreciar os factos e o direito competia neste a uma formação de três juízes, como de resto, decorria do artigo 40º do ETAF.
E, foi por isso, que o julgamento da acção foi presidido por 3 juízes.
E que todas as diligências instrutórias, incluindo a deslocação ao local da construção aqui em causa foram levadas a cabo por 3 juízes.
Sucede que, tendo o novo ETAF instituído a regra do juiz singular, e tendo este entrado em vigor sem qualquer disposição transitória também quanto aos processo pendentes, tem sido entendimento notório dos tribunais administrativos - julga-se que por orientação superior - que tal novidade legislativa teria que ser aplicada aos processos pendentes qualquer que fosse a fase em que os mesmos se encontrassem.
Com efeito, tem-se consciência e até se aplaude que a alteração legislativa visou ­sobretudo atento o baixo limite mínimo do valor das acções em causa - permitir uma maior racionalização dos meios judiciais escassos e fomentar uma maior celeridade processual, desimpedindo aqueles que poderiam ser os juízes adjuntos para poderem ser juízes singulares em outros processos que deles careceriam.
E, atento este motivo, até pode admitir-se que na ausência de norma transitória esta alteração tenha aplicação aos processos pendentes.
Só não se pode admitir, porque tal viola outros princípios processuais que essa alteração seja aplicada a processos pendentes cujo julgamento pela formação de 3 juízes já se tenha iniciado ao tempo da sua entrada em vigor. E isto é assim mesmo que não haja qualquer disposição transitória prevista para esta situação nos processos pendentes, pura e simplesmente porque outra solução poria em causa o respeito de princípios e garantias processuais importantes para não dizer absolutamente essenciais.
Ora, como é bom de ver, já em julho de 2014 o julgamento da matéria de facto deste processo estava concluído pela formação de 3 juízes que a tinham iniciado.
E se os princípios processuais que se vão invocar já justificariam sem mais que a decisão de facto e de direito tivesse sido proferida pelos três juízes da formação e não por apenas um, mais grave é ainda que a mesma seja proferida por um único dessa formação em atenção a tal alteração legislativa, quando tal só é temporalmente possível por causa da demora de ano e meio para que fosse emanada a decisão desde as alegações proferidas pelas partes no processo.
Portanto, foi na presença da formação de três juízes que toda a instrução do presente processo começou e acabou pelo que apesar da alteração legislativa aplicável aos processos pendentes só podia ser esta formação a indicar e a fundamentar a matéria de facto que foi dada como provada e, consequentemente, ato contínuo a aplicar o direito aos factos.
São vários os princípios que assim o teriam imposto:
Antes de mais, o princípio da economia processual, segundo o qual, não se devem praticar atos inúteis, o que quer dizer também que não se deve desaproveitar os efeitos que ao tempo da sua aplicação se pretenderam obter com a apreciação conjunta da prova e do direito por 3 juízes. Ora, se não o ditasse já este princípio ditaria, desde já, o bom senso, que grande parte da racionalidade organizatória dos tribunais pretendida com esta alteração está manifestamente ultrapassada, in casu, porque a formação de 3 juízes não só já iniciou, como acabou as suas funções, o que quer dizer que aqui o que há a fazer é que o trabalho por este prestado há mais de ano e meio não vire uma inutilidade.
Depois, o princípio da plenitude de assistência por todos os juízes previsto no artigo 605º do CPC aplicável ex vi ao CPTA, determina que a produção da prova tenha de ser decidida por todos os juízes perante os quais a mesma foi produzida.
Ora, a aplicação imediata do ETAF aos processos pendentes em que o Tribunal em formação coletiva não só já começou as suas funções, como já as terminou, evidencia, claramente, uma violação deste princípio essencial do processo. Se a prova foi produzida perante três juízes só esses três juízes podem decidir a matéria de facto. Assim, a decisão da matéria de facto e, consequentemente, depois a decisão da matéria de direito produzida pelo juiz singular é nula por manifesta violação do princípio de plena assistência dos juízes.
E não valerá a pena argumentar que o "tribunal coletivo se extinguiu" e, por isso, é possível mudar a meio do jogo a competência do Tribunal. Com efeito a competência da formação de 3 juízes não era uma competência jurisdicional, mas antes dentro desta, uma competência funcionalmente decisória. Não foi o TAF do porto que se extinguiu, mas antes deixou de ser da competência decisória de uma formação, passando a ser (salvas as excepções previstas na lei) antes da competência decisória de um juiz singular, o julgamento de facto e de direito das acções administrativas.
Contudo, isto não justifica nem autoriza que - repete-se - depois de começadas e concluídas as tarefas instrutórias que conduziam ao cumprimento da tarefa decisória desta formação e por suposto imperativo de aplicação no tempo da lei atual se coarte inadvertida e inopinadamente a competência decisória já em pleno e legítimo exercício no momento em que entrou em vigor o novo ETAF.
Posto isto, e mais uma vez, o juiz singular que preferiu a decisão ora recorrida é incompetente do ponto de vista funcional e decisório para a proferir, sendo a mesma nula por violação dos princípios supra elencados.”
Vejamos:
Dispunha o artigo 40º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10:
“1 - Os tribunais administrativos de círculo funcionam com juiz singular, a cada juiz competindo o julgamento, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam distribuídos.
(…)
3 - Nas acções administrativas especiais de valor superior à alçada, o tribunal funciona em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito”.
A redacção deste artigo veio a ser alterada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, passando a dispor:
1 - Exceto nos casos em que a lei processual administrativa preveja o julgamento em formação alargada, os tribunais administrativos de círculo funcionam apenas com juiz singular, a cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam distribuídos.
2 - [Revogado].
3 - [Revogado]”.
A alteração legislativa introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, por força do disposto no n.º 4 do artigo 15º deste diploma, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Tem sido consensual o entendimento de que a sobredita alteração legislativa se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Entende, porém, a Recorrente que, não obstante admitir a aplicação da alteração legislativa aos processos pendentes, tal aplicação não é possível no caso dos presentes autos, por força dos princípios da economia processual e da plenitude da assistência dos juízes, em virtude de, na data da entrada em vigor da lei, já se mostrar realizado o julgamento pela formação de 3 juízes (produção de todos os meios probatórios indicados pelas partes).
E tem razão a Recorrente.
O julgamento comporta a instrução do processo (produção de todos elementos probatórios), a discussão da matéria de facto e de direito, o julgamento da matéria de facto e de direito.
Se a instrução não se encontrasse já feita na data em que entrou em vigor a nova redacção do artigo 40º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, estando-se perante um processo pendente, a partir do dia 03.10.2015, o julgamento da matéria de facto e de direito, o que significa também a produção de prova requerida pelas partes, seria incumbência do juiz singular.
Sucede que, no caso em apreço, a instrução foi toda efectuada pela formação de três juízes, pelo que, segundo o princípio do aproveitamento do acto e da plenitude da assistência dos juízes, incumbiria aos três juízes - que assistiram à realização da prova pessoal e com inspecção ao local - julgar de facto e de direito, já que o contrário violaria a legítima expectativa das partes à formação de juízes que melhor garante o bom julgamento da causa.
No sentido de que a formação em tribunal singular é potencialmente limitadora de tais garantias das partes se pronuncia Carlos Carvalho, em Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, obra de que são coordenadores Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrano, AAFDL Editora, 2016, 2ª Edição, pág. 178.
Também o princípio consagrado no artigo 605º do Código de Processo Civil de 2013, em vigor à data da realização do julgamento e aplicável ao processo administrativo por força do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002, em vigor à data dessa realização, o princípio da plenitude da assistência do juiz exige que todos os juízes que participaram na audiência final terminem o respectivo julgamento e este só termina no contencioso administrativo com a sentença ou acórdão em que se julga de facto e de direito.
Conclui-se, assim, que ao julgamento já iniciado até ao dia 2 de Outubro, ainda que terminado no dia 3 de Outubro ou em data posterior, de 2015, não lhe é aplicável a alteração do artigo 40º nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas sim a anterior redacção do artigo 40º, nº 3, desse diploma legal, supra transcrita.
Sob pena de se reduzir a actividade de dois dos três juízes chamados a apreciar o caso a uma total inutilidade, apesar de, ao menos parcialmente terem sido validamente praticados.
Ora, com toda a certeza, que não foi esse o propósito do legislador quando introduziu a referida alteração, pelo que temos que fazer uma interpretação restritiva do artigo 15º, nº 4, do Decreto-Lei n.º 214-G/2015.
É também irrefutável que o legislador com essa alteração visou, concretamente, obter uma maior racionalização dos escassos meios judiciais e fomentar a celeridade processual até nos processos pendentes em 3 de Outubro de 2015, mas nunca postergando garantias já adquiridas pelas partes.
Mas, no caso, já tinha sido despendida a actividade de três juízes e não apenas de um.
Por outro lado, se nessa data o julgamento já se havia iniciado, não se vê razão para não garantir a intervenção dos três Juízes que o iniciaram ao longo de toda a actividade inerente ao julgamento em sentido lato, concretamente no acórdão de julgamento da matéria de facto e de direito, que dela faz parte.
In casu, se três juízes iniciaram esse julgamento, os três juízes que produziram a instrução, têm que participar na discussão da matéria de facto e de direito e no julgamento da matéria de facto e de direito, ou seja têm que estar em toda a actividade do julgamento.
Sob pena de os dois juízes que só participaram na instrução terem trabalhado em pura perda de tempo, pois que nenhum proveito se extraiu dessa sua actividade, que como já defendemos é potencialmente limitadora das garantias das partes do processo, o que contende, em nosso entender, com a proibição da prática de actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil de 2009).
A proibição da prática de actos inúteis tem, na nossa perspectiva, duas vertentes: a proibição da prática de actos inúteis para o futuro e a proibição de inutilizar, com efeitos retroactivos, actos validamente praticados.
Neste caso a instrução do processo foi validamente feita (ao menos em parte) por três juízes, não se pode agora inutilizar esse trabalho.
Discordamos ainda que, face à interpretação que fizemos das indicadas disposições legais, o recurso tenha que ser convolado em reclamação para a conferência nos termos do artigo 27º nº 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002, por ser inadmissível.
Dispõe o art. 27º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos na redacção anterior à alteração introduzida pelo citado DL n.º 214-G/2015, sob a epígrafe “Poderes do relator”:
1- Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código:
(…)
i) Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada; (…)
2 - Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com excepção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal.
Ora no caso concreto não estamos perante a hipótese prevista na lei de o juiz singular ter decidido a acção invocando a simplicidade da questão a decidir, mas perante situação que não se enquadra nesses dispositivos legais e que, como tal, é susceptível de recurso, por não estar prevista no elenco das situações em que se tem que reclamar para a conferência.
Mais concretamente estamos perante uma decisão que deveria, nos termos da lei, ter sido proferida por três juízes e não apenas por um, nos termos acima expostos.
Assim, e a contrario, o presente caso enquadra uma das situações em que é admissível o recurso – artigo 142º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002.
Considerando-se, como se considera, que a competência funcional para o julgamento da presente acção cabia ao Colectivo de Juízes, em virtude de não ser aplicável aos autos a alteração legislativa introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 214-G/2015, o recurso é o meio próprio para impugnar a sentença proferida em 1ª instância.
Aquilo que a Recorrente invoca como violação de lei, do princípio da plenitude da assistência dos juízes (artigo 605º do Código de Processo Civil) e das regras da competência para o julgamento, o que é também correcto, traduz, além disso – e o Tribunal é livre de fazer o enquadramento jurídico que entende por adequado dos fundamentos do recurso -, uma nulidade processual: a prática de um acto não previsto na lei aplicável ao caso – o julgamento da matéria de facto e de direito por juiz singular – que se repercute necessariamente no exame e decisão da causa, a cabo de três juízes e não apenas de um – artigo 201º, n.º1, do Código Civil.
Impondo-se a baixa dos autos à 1ª instância para prolação de acórdão pelo Colectivo de Juízes que participou na instrução do processo, com julgamento da matéria de facto e de direito.
3. Ampliação do objecto do recurso; o aproveitamento do acto administrativo como fundamento da defesa.
Esta questão tem a ver com o mérito da acção e, por isso, fica prejudicado o conhecimento da mesma, dada a necessidade de ser emitida, agora pelo Colectivo de Juízes, nova decisão sobre o mérito da acção.
***
Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em:
1. Julgar procedente a arguição de nulidade processual, deduzida na ampliação do objecto do recurso, por omissão de pronúncia sobre diligência de prova requerida e preterição desta prova.
1.1. Determinar a produção da prova requerida; e
1.2. Relegar a decisão sobre a caducidade para a decisão final.
2. Julgar procedente a excepção dilatória da incompetência funcional do Juiz Singular para proferir a decisão da acção em 1ª instância e competente o Colectivo de Juízes que produziu a prova pessoal e inspecção ao local realizada nos autos.
2.1. Declarar nula a sentença proferida pelo Juiz Singular; e
2.2. Determinar a prolação de acórdão pelo referido Colectivo de Juízes que julgue de facto e de direito a presente acção, incluindo a excepção de caducidade, nos termos acima delimitados.
Não é devida tributação.
Porto, 23.11.2018
Rogério Martins
Alexandra Alendouro
(Luis Garcia, vencido conforme declaração de voto que segue)
-*-
Voto vencido.
A partir da entrada em vigor do D.L. n.º 214-G/2015, de 02/10, a regra, mesmo nos processos pendentes, passou a ser a de que (excepto nos casos em que a lei processual administrativa preveja o julgamento em formação alargada), os tribunais administrativos de círculo funcionam apenas com juiz singular, a cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam distribuídos.
Os critérios de interpretação não permitem que a aplicação de lei seja restritiva, a modos de "reavivar" o que se encontra arredado pela lei vigente.
Sem perturbar a argumentação avançada que fez vencimento: a "plenitude" não consagra que intervenham "todos" os juizes, antes afasta quem não tenha tido intervenção; por outro lado não há inutilidade para os actos de pretérito, pois o juiz singular continua a “aproveitar” a produção de prova que antes, na forma legalmente prevista ao tempo, perante si (também) desfilou.
Porto, 23/11/2018.
Ass. Luís Migueis Garcia