Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00382/07.3BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/09/2012
Tribunal:TCAN
Relator:Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:AUTORIZAÇÃO INSTALAÇÃO EQUIPAMENTO MÉDICOS
DL N.º 95/95
DIREITO INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA
INCONSTITUCIONALIDADES ORGÂNICA E MATERIAL
Sumário:I. O direito à livre iniciativa económica privada, incluindo no setor da saúde, não constitui um direito absoluto mas antes um direito que, quer em termos constitucionais quer em termos legais, se mostra e pode ser objeto de introdução pelo Estado de limites e de restrições decorrentes, mormente, do “interesse geral” e do “assegurar, nas instituições de saúde de adequados padrões de eficiência e de qualidade”, bem como das necessidades e exigências ao nível, por exemplo, da “disciplina e controlo ao nível da produção, da distribuição, comercialização e uso dos meios de tratamento e diagnóstico”, por forma a que o Estado não se demita e cumpra aquilo que são as suas incumbências prioritárias em matéria do assegurar do direito à proteção da saúde [art. 64.º, n.º 3 da CRP].
II. O quadro normativo inserto nos arts. 02.º e 03.º do DL n.º 95/95 na sua conjugação/articulação com a Resolução CM n.º 61/95 não envolve a definição de requisitos ou condições que contendam com o disposto nos arts. 17.º, 18.º e 61.º, n.º 1 da CRP, porquanto, por um lado, nada naquele quadro normativo contende com o direito de criação duma empresa privada na área da saúde e, por outro lado, a instalação do equipamento médico pesado por estabelecimento de saúde [seja ele público ou privado] está sujeita a autorização do Ministro da Saúde a conceder de acordo com critérios de programação e de distribuição territorial fixados naquela Resolução sem que se faça qualquer distinção ou diferenciação quanto ao cumprimento daqueles critérios em função do estabelecimento de saúde ser público ou privado.
III. A liberdade de iniciativa económica, quer em tese geral quer em particular no domínio da saúde, não funda ou reclama um direito incondicionado ou ilimitado à livre instalação de quaisquer estabelecimentos de saúde em qualquer espaço, com qualquer tipo de pessoal e de equipamento, sem que haja que respeitar ou estar sujeito ao cumprimento de requisitos e/ou condições decorrentes de outros princípios, bens e valores constitucionais e legais na matéria.
IV. Não se mostra integrado no cerne ou conteúdo essencial de proteção da liberdade de iniciativa económica privada na área da saúde este específico aspeto da instalação de equipamentos médicos pesados e que, portanto, a exigência de autorização com fixação de critérios para a sua obtenção atinja a liberdade de iniciativa económica privada para efeitos da sua integração na previsão do art. 168.º, n.º 1, al. b) da CRP [atual art. 165.º, n.º 1, al. b)] enquanto área de reserva de lei parlamentar.*

* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:D. ..., S.A.
Recorrido 1:Ministério da Saúde
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Concede parcial provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
“DT … , SA”, devidamente identificada nos autos, inconformada veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Coimbra, datada de 17.05.2011, que no âmbito da ação administrativa especial deduzida contra o “MINISTÉRIO DA SAÚDE”, igualmente identificado nos autos, julgou improcedente a pretensão nela deduzida de condenação do R. a autorizar o pedido por si formulado em 11.05.2006 no quadro do DL n.º 95/95 de instalação dum PET/CT.
Formula nas respetivas alegações (cfr. fls. 305 e segs. - paginação processo em suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário), as seguintes conclusões:

As normas do Decreto-Lei n.º 95/95 de 9 de maio e as da Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/95 de 8 de junho são materialmente inconstitucionais por conterem, sem justificação credenciável, normas restritivas do direito à livre iniciativa económica privada, em violação do disposto nos artigos 61.º n.º 1, 17.º e 18.º, n.º 2 da CRP.
… A norma do art. 18.º, n.º 2 da CRP exige que as restrições impostas por lei sejam limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses legalmente protegidos - princípio da proporcionalidade - o que no caso presente não foi de todo considerado, dado que não existe nas normas citadas qualquer justificação para os rácios adotados.
… De qualquer forma, os referidos diplomas enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto nos arts. 165.º, n.º 1 alínea b), 61.º, n.º 1 e 17.º da CRP, uma vez que estando em causa direitos fundamentais dos cidadãos, o governo só poderia legislar sobre esta matéria com autorização da Assembleia da República que inexiste no presente caso.
… Mesmo que, assim não se entendesse, sempre os referidos atos normativos - Decreto-lei n.º 95/95 e RCM 61/95 - seriam inconstitucionais por clara violação do princípio da tipicidade consagrado nos n.ºs 5 e 6 do artigo 112.º da CRP.
… A nossa Constituição, não permite que a lei remeta para ato normativo atípico, como é a Resolução do Conselho de Ministros a sua regulamentação.
… Tal comportamento é particularmente chocante quando está em causa a limitação de um direito fundamental sujeita a especiais condicionamentos - art. 18.º, n.º 2 da CRP.
… Por outro lado, o despacho que indeferiu o pedido da Dt. ... fez uma errada aplicação dos rácios contidos na RCM 61/95.
… Deste diploma resulta que o rácio não é definido em termos rígidos, mas como critério de referência (um aparelho por cerca de 1000 000 de habitantes) que deve ceder sempre que existam condicionantes com reflexos na coerência do planeamento dos serviços.
… Ora considerando:
- que o que está em causa é a instalação de um PET/CT com um potencial de diagnóstico muito superior ao PET simples único existente em 1995;
- que a população existente na ARS excede atinge 2,4 milhões de habitantes, excedendo em 400.000 os limites considerados adequados de um PET por um milhão de habitantes, uma vez que na zona da ARS só existem dois equipamentos deste tipo;
- que o PET tem hoje uma procura exponencialmente superior ao que acontecia em 1995, tornando obsoleto o rácio fixado
… Deverá utilizar-se a flexibilidade dos limites fixados para autorizar a instalação do equipamento requerida pela ora recorrente.
… A decisão recorrida não cumpre o «pressuposto vinculado» de ser instalado um aparelho de tomografia de emissão de positrões, por cada 1.000,000 de habitantes (rectius por «cerca» de 1.000,000 de habitantes).
… O espírito deste pressuposto é o de que o legislador considerou que, cada PET teria capacidade para assegurar, na valência respetiva, os cuidados sanitários de uma população de 1 milhão de habitantes, o que não acontece com um dos dois PETS instalados em Coimbra, principalmente afeto à investigação.
… Esta questão não é da livre apreciação da Administração, fora da competência do tribunal, mas está dentro da competência deste para apreciar da forma como a Administração cumpriu o referido «pressuposto vinculado».
… Aquele pressuposto não é cumprido pela simples verificação naturalística de que foram instalados 2 PETS numa área em que existem 2,4milhões de habitantes, exigindo-se a análise da sua efetiva capacidade, face aos termos em que foi autorizado, de preencher as necessidades dessa população.
… Como resulta dos respetivos Estatutos e Regulamento Interno (Docs. n.º 1 e 2) o PET instalado no ICNAS da Universidade de Coimbra destina-se no essencial à investigação, embora possa também «prestar serviços especializados de saúde, no domínio das aplicações biomédicas das radiações».
… Quer isto dizer que, nunca por nunca, o PET do ICNAS poderá cobrir as necessidades de um outro PET totalmente dedicado a fins assistenciais.
… Sendo assim, só por mera ficção jurídica se pode considerar que os 2 PETS existentes na ARS de Coimbra podem preencher o pressuposto da cobertura de mais de 2,000,000 de habitantes.
… Ao decidir em contrário a sentença recorrida viola o disposto do art. 1.º da RCM 61/95.
… Por outro lado, os rácios estabelecidos pelo legislador pretendem estabelecer uma articulação entre o Estado e a iniciativa privada.
… A decisão de indeferir o pedido da recorrente não respeita igualmente este princípio porque, no caso da área geográfica da ARS do Centro, ficam as entidades privadas totalmente excluídas da utilização deste meio de diagnóstico.
… Nos termos da alínea b), do n.º 3 do artigo 64.º da CRP, para assegurar o direito à proteção da saúde incumbe prioritariamente ao Estado «Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde».
… À luz dos princípios expressos nos n.ºs 1 e 4 da Base I e d) da Base XXIV da Lei de Bases da Saúde e designadamente do princípio da articulação - que só pode significar coexistência - entre entidades públicas e privadas, não pode deixa de se entender que prevista «coerência do planeamento nos serviços» sai prejudicada com o monopólio, por entidades públicas, de equipamentos médicos como o PET CT.
… Assim, sempre seria de considerar que a coerência do planeamento dos serviços, ao pressupor a convivência entre entidades públicas e privadas deveria sempre determinar o deferimento da pretensão da DT. ..., ao abrigo do disposto no n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/95.
… Consequentemente, a decisão de indeferimento do pedido da DT. …, representa uma séria lesão do interesse público, do interesse dos utentes, e dos igualmente legítimos interesses da DT. … e viola o disposto nos artigos 17.º, 18.º, 61.º e 165.º da CRP, bem como o n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/95, contrariamente ao que foi considerado na douta sentença recorrida.
… Nestes termos e no mais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e condenar-se o recorrido à prática do ato de deferimento do pedido da A. para instalação de um PET/CT em Coimbra, conforme é pedido na petição inicial …”.
O ente público R., ora recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 345 e segs.) nas quais conclui pela manutenção do julgado sem, todavia, haver terminado com qualquer quadro conclusivo.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal notificada nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA não emitiu qualquer parecer (cfr. fls. 367 e segs.).
Colhidos os vistos legais juntos dos Exmos. Juízes-Adjuntos foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.



2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que se, pese embora por um lado, o objeto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos arts. 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do CPTA, 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º todos do Código de Processo Civil (CPC) (na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24.08 - cfr. arts. 11.º e 12.º daquele DL -, tal como todas as demais referências de seguida feitas relativas a normativos do CPC) “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal “ad quem” em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto ainda que a declare nula decide “o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito” reunidos que se mostrem no caso os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.
As questões suscitadas reconduzem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida ao julgar totalmente improcedente a pretensão condenatória formulada incorreu em erro de julgamento por infração ao disposto nos arts. 17.º, 18.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, 64.º, n.º 3, al. b), 112.º, n.ºs 5 e 6 e 165.º, n.º 1, al. b) todos da CRP [inconstitucionalidades materiais e orgânica de vários dos normativos do DL n.º 95/95, de 09.09], 02.º e 03.º do DL n.º 95/95, 01.º e 02.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/95, de 08.06, bem como dos n.ºs 1 e 4 da Base I e d) da Base XXIV da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24.08) [cfr. alegações e conclusões de recurso supra reproduzidas].



3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Resulta da decisão judicial recorrida como assente com interesse para a decisão da causa a seguinte factualidade:
I) A A. remeteu, com data de 11.05.2006, ofício à entidade demandada, solicitando “… de acordo com o Decreto-Lei n.º 95/95, de 9 de maio formalizar o pedido de instalação de um equipamento de Tomografia de Emissão de Positrões com sistema de atenuação por TAC (PET/CT) marca SI. …, modelo BI. …, num espaço imediatamente contíguo às nossas atuais instalações …” (fls. 91);
II) A A. foi ouvida, para efeitos do artigo 100.º do CPA, sobre projeto de decisão de indeferimento da sua pretensão (fls. 93-95 que aqui se dão como inteiramente reproduzidas);
III) A A. respondeu à audiência prévia, nos termos de fls. 96-107, que aqui se dão como inteiramente reproduzidas;
IV) Com data de 10.01.2007 foi emitido parecer onde foi analisada a resposta à audiência prévia (fls. não numeradas do «PA» e fls. 115-119);
V) Com data de 16.01.2007 foi elaborado parecer (fls. não numeradas do «PA» e fls. 113-114), no qual o Diretor-Geral de Saúde emitiu despacho de “… Não autorizo, tendo em atenção o quadro legal vigente. 22-01-07. FJ. …”;
VI) O indeferimento da pretensão da A. foi-lhe notificado com data de 02.02.2007 (fls. 108).



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3.2. DE DIREITO
Assente a factualidade apurada cumpre, agora, entrar na análise das questões suscitadas para se concluir pela procedência ou improcedência da argumentação desenvolvida pela recorrente no recurso jurisdicional “sub judice”.

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3.2.1. DA DECISÃO JUDICIAL RECORRIDA
O TAF de Coimbra em apreciação da pretensão condenatória deduzida pela A. concluiu no sentido de que a mesma, no quadro normativo invocado, não padecia das inconstitucionalidades/ilegalidades invocadas [inconstitucionalidades materiais e orgânica, e violação de lei/erro sobre pressupostos - art. 02.º do DL n.º 95/95 e Resolução CM n.º 61/95], não assistindo à A. o direito à obtenção da autorização para instalação daquele equipamento, termos em que improcedeu o pedido formulado na ação.

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3.2.2. DA TESE DA RECORRENTE
Argumenta esta que tal decisão judicial fez errado julgamento já que a improcedência da pretensão se mostra eivada de infração ao que decorre dos arts. 17.º, 18.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, 64.º, n.º 3, al. b), 112.º, n.ºs 5 e 6 e 165.º, n.º 1, al. b) todos da CRP [inconstitucionalidades materiais e orgânica de vários dos normativos do DL n.º 95/95], 02.º e 03.º do referido DL, 01.º e 02.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/95, bem como dos n.ºs 1 e 4 da Base I e d) da Base XXIV da Lei de Bases da Saúde e, como tal, o indeferimento operado é ilegal, termos em que a presente ação administrativa deveria ter sido julgada totalmente procedente condenando-se o R. a autorizar a A. à instalação do referido equipamento.

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3.2.3. DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.3.1. DAS INCONSTITUCIONALIDADES

I. Sustenta a recorrente ter a decisão judicial aqui sindicada incorrido em erro de julgamento no segmento em que desatendeu as invocadas inconstitucionalidades materiais e orgânica suscitadas em torno dos normativos insertos no DL n.º 95/95 em articulação com a Resolução CM n.º 61/95.

II. Prévia à sua análise importa deixarmos notas preliminares e de enquadramento em matéria dos conceitos de “constitucionalidade” e de “inconstitucionalidade” os quais são “... conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa - a Constituição - e outra coisa - um comportamento - que lhe está ou não conforme, que cabe ou não cabe no seu sentido, que tem nela ou não a sua base. (...) Não se trata de relação de mero caráter lógico ou intelectivo. É essencialmente uma relação de caráter normativo e valorativo, embora implique sempre um momento de conhecimento. Não estão em causa simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid ou a desarmonia entre este e aquele ato, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica …” (cfr. Jorge de Miranda in: "Manual de Direito Constitucional - Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição", Tomo VI, 3.ª edição revista e atualizada, págs. 09/10) na certeza de que não padece de inconstitucionalidade toda e qualquer desconformidade com a Constituição já que por inconstitucionalidade se deve entender ou qualificar o não cumprimento por parte dos órgãos do poder político, por ação ou por omissão, da Constituição através de comportamentos daqueles que sejam direta e imediatamente regulados por normas constitucionais e com os mesmos desconformes.

III. Estamos perante uma situação enquadrada no conceito de inconstitucionalidade material quando o vício se reporta ao conteúdo, ao passo que quando o vício resulta ou manifesta-se quanto à forma do ato jurídico-público estamos perante uma situação de inconstitucionalidade formal.

IV. Como alude Jorge de Miranda se “... todo o ato jurídico possui um conteúdo e uma forma, um sentido e uma manifestação, e se o ato jurídico-público se destina a atingir o fim previsto pela norma e nasce, de ordinário, mediante um processo ou procedimento, ele tanto pode ser inconstitucional (ou ilegal) por o seu sentido volitivo divergir do sentido da norma como pode sê-lo por deficiência de formação e exteriorização; e, se num ato normativo a norma como que parece desprender-se do ato que a gerou, tanto pode ser esta norma ilegítima quanto ilegítimo o ato em si. E, se como se sabe, se a validade do ato tem de ser referida ao tempo da sua elaboração, a validade da norma terá de ser vista em cada momento que durar a sua vigência. (…) Noutra perspetiva atende-se preferentemente à norma ofendida e qualifica-se então a inconstitucionalidade de material, quando é ofendida uma norma constitucional de fundo, de orgânica, quando se trata de norma de competência, e de forma, quando se atinge uma norma de forma ou de processo ...” (in: ob. cit., pág. 37).

V. Note-se, ainda, que importa ter presente que não cabe ao tribunal comum apreciar em bloco e em abstrato a inconstitucionalidade de diplomas legais na sua totalidade por se tratar de tarefa ou competência atribuída em exclusivo ao próprio Tribunal Constitucional (doravante «TC»), tanto mais que nesta sede a questão de inconstitucionalidade concreta só, pode ser relevante, só pode ser objeto de decisão pelo tribunal enquanto incindível da causa nele pendente, enquanto questão prejudicial em face da questão principal a decidir no processo, ou seja, é da inconstitucionalidade ou da não inconstitucionalidade da norma na sua aplicação ao ato concreto que se cura e cumpre emitir pronúncia.

VI. Presentes estas notas breves de enquadramento e entrando na análise dos fundamentos de recurso importa, então, atentar no quadro normativo pertinente do qual resulta, desde logo, do n.º 1 do art. 61.º da CRP que a “… iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral …”, prevendo-se, por seu turno, em termos de incumbências prioritárias do Estado em matéria do assegurar do direito à proteção da saúde [art. 64.º, n.º 3 da CRP] que ao mesmo incumbe “… b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; … d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade; e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico …”.

VII. Resulta, por outro lado, do art. 112.º da CRP [redação/numeração que veio a ser introduzida pela Lei Constitucional n.º 01/2004, de 24.07], sob a epígrafe “atos normativos”, e no que para aqui releva em sede de reserva de criação de atos legislativos, bem como da deslegalização e reenvios normativos, que nenhuma “… lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos …” (n.º 5), que os “… regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes …” (n.º 6) sendo que os “… regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão …” (n.º 7), preceito este que corresponde no essencial à anterior redação do art. 115.º da CRP mantida pela revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 01/92, de 25.11.

VIII. Prevê-se, por fim, no n.º 1 do art. 165.º da CRP [redação/numeração que veio a ser introduzida pela Lei Constitucional n.º 01/97, de 20.09] que é “… da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: … b) Direitos, liberdades e garantias …”, preceito esse que corresponde exatamente à anterior redação do art. 168.º, n.º 1, al. b) da CRP mantida pela revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 01/92.

IX. Munidos dos comandos constitucionais postos em crise cumpre, agora, efetuar o respetivo enquadramento perscrutando o seu sentido e âmbito de molde, assim, nos habilitar no aferir da razoabilidade e fundamento das críticas dirigidas pela A. à decisão judicial em crise.

X. Assim, cumpre desde logo ter presente em sede de enquadramento do art. 61.º, n.º 1 da CRP (direito à livre iniciativa económica) que o mesmo constitui um direito fundamental (não apenas um mero princípio programático ou um princípio objetivo da organização económica) e, especificamente, configura-se como um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias do título II da parte I da Constituição, pese embora se mostre interligado ou conexionado com alguns dos direitos económicos, sociais e culturais e com os quais pode interferir/interagir, mormente, no caso em presença com o direito à saúde e à sua proteção (cfr. art. 64.º da CRP).

XI. Tal direito corresponde “… à possibilidade de livre expressão da personalidade em atos com conteúdos e fins económicos, quer sejam materiais quer jurídicos …“, podendo assumir duas formas jurídicas substancialmente diversas como sejam a “… liberdade de atuação material, consistente na livre escolha e prática de atos materiais com natureza económica …” e a “… liberdade jurídica, isto é, o poder de disposição dos próprios bens, pessoais ou patrimoniais, mediante a criação de preceitos concretos em execução de disposições normativas da ordem jurídica, quer por comportamento meramente individual (liberdade negocial), quer em interação com a livre vontade de outros sujeitos (liberdade de contratar …) …”, sendo que quanto ao conteúdo económico de qualquer uma dessas liberdades a livre iniciativa económica “… compreende o direito de escolher e exercer a forma da atividade económica desenvolvida por cada um, designadamente constituindo e gerindo unidades autónomas de produção (direito de empresa em sentido restrito …) ou então exercendo atividade produtiva com mobilidade em espaços económicos (direitos de estabelecimento e livre prestação de serviços nos processos de integração económica …) …” (cfr. António L. Sousa Franco em “Nota sobre o princípio da liberdade económica” in: B.M.J. n.º 355, págs. 12/14).

XII. Tal como é sustentado igualmente por J. Gomes Canotilho e Vital Moreira a “… liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica (liberdade de criação de empresa, liberdade de investimento, liberdade de estabelecimento) e, por outro lado, na liberdade de organização, gestão e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresário, liberdade empresarial) …” (in: “Constituição República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição, pág. 790; vide ainda Jorge Miranda in: “Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais”, 3.ª edição, Tomo IV, págs. 515/516).

XIII. Temos, assim, que por apelo ao princípio geral da liberdade enquanto decorrência da liberdade económica a regra seria o livre exercício das atividades produtivas pela generalidade dos sujeitos económicos, mormente, dos agentes privados perante o Estado.

XIV. Ocorre, porém, que nos próprios termos constitucionais [cfr., no caso e para a situação em presença, os arts. 61.º, n.º 1 e 64.º, n.º 3, als. b), d) e e) da CRP] o direito fundamental em referência, beneficiando é certo enquanto direito de natureza análoga do competente regime dos direitos, liberdades e garantias (cfr. arts. 17.º e 18.º da CRP), sofre restrições decorrentes dos “quadros definidos pela Constituição e pela lei” e terá de ter “em conta o interesse geral”, na certeza, porém, de que no assegurar do direito à proteção da saúde são incumbências prioritárias do Estado o garante “duma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”, bem como quer a disciplina e fiscalização das formas empresariais e privadas da medicina em articulação com o SNS de molde a “assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade”, quer a disciplina e controlo da “produção, … distribuição, … comercialização e … uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e … meios de tratamento e diagnóstico” [cfr. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira in: ob.. cit., págs. 789/791; António L. Sousa Franco in: loc. cit., pág. 23; J. C. Vieira de Andrade in: “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, 2012, 5.ª edição, págs. 166/167; Jorge Miranda e Rui Medeiros in: “Constituição República Portuguesa Anotada”, vol. I, págs. 660/661].

XV. Na verdade, no caso do direito fundamental em crise é a própria Constituição que, desde logo, lhe enuncia limites/restrições, mas é a mesma ainda que “… remete para a lei ordinária … a determinação do conteúdo …” do direito a ponto de “… o conteúdo constitucional fica autolimitado em face da liberdade constitutiva do legislador …” e “… o núcleo essencial se configura como um «conteúdo mínimo» do direito …” [cfr. J. C. Vieira de Andrade in: ob. cit., págs. 166/167].

XVI. Como é defendido ainda neste âmbito por J. Gomes Canotilho e Vital Moreira face aos termos constitucionais a definição deste direito “deixa uma ampla margem para a delimitação e configuração legislativa, em função da «constituição económica»” mas tais limitações ou restrições “… terão de ser justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e sempre com respeito de um «núcleo essencial» que a lei não pode aniquilar (art. 18.º), de acordo, aliás, com a «garantia institucional» de um setor económico privado (cfr. art. 82.º-3 …). É a própria Constituição que admite a possibilidade de a lei vedar a atividade às empresas privadas de outras da mesma natureza em determinados setores básicos …, não estando a lei impedida de estabelecer outros limites à liberdade de criação de empresas (por exemplo, limite ao número de empresas em determinado setor, limites máximos do investimento inicial necessário, limites de natureza ambiental ou de ordenamento territorial), desde que respeitados os requisitos constitucionais acima referidos. Em certas áreas, a iniciativa económica privada, embora não sendo vedada, está todavia, sujeita constitucionalmente a restrições especiais (ver, por ex., arts. 64.º-3/d …, etc.). (…) Se a lei pode delimitar negativamente o âmbito da liberdade de iniciativa económica privada, stricto sensu, também pode conformar com grande liberdade, por maioria de razão, a organização e a atividade empresarial, estabelecendo restrições mais ou menos profundas. (…) No que respeita à liberdade de atividade da empresa, a Constituição prevê diretamente algumas das restrições possíveis” elencando de novo como exemplo dessas restrições especiais as insertas no referido art. 64.º, n.º 3, al. d) da CRP (in: ob. cit., págs. 790/791) (sublinhados nossos).

XVII. Esta leitura vem sendo, aliás, sustentada pelo TC em várias das suas decisões nas quais se teve de pronunciar sobre a matéria.

XVIII. Assim, refere-se, nomeadamente, no acórdão do TC n.º 471/01, de 24.10.2001 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos»] que “… não se está perante um direito absoluto, pois no próprio preceito se acrescenta que o mesmo deve ser exercido «nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral». Como se escreveu no acórdão deste Tribunal, n.º 392/89 … o exercício da atividade económica privada é modelado pelo legislador ordinário, desde que observados os condicionamentos ou restrições que impeçam o exercício daquele direito de modo particularmente oneroso. (…) Com o mesmo sentido se pronunciou o Tribunal no acórdão n.º 328/94 … reiterando uma leitura deste direito relativizante - que «nem sequer tem limites expressamente garantidos pela Constituição», sem prejuízo de se lhe reconhecer um conteúdo mínimo, sob pena do seu esvaziamento - de modo a que a sua configuração se faça «nos quadros da Constituição e da lei», tendo em conta aquele convocado interesse geral. (…) Ora, esta relativização quadra-se adequadamente com a lógica de um diploma como o constitucional, que «inscreve à testa dos princípios fundamentais da organização económico-social ‘a subordinação do poder económico ao poder político democrático’ [artigo 80.º, alínea a)]» …”.

XIX. Por sua vez no acórdão do mesmo Tribunal n.º 289/04, de 27.04.2004 [consultável no mesmo sítio], veio sustentar-se ainda, fazendo apelo a algumas das suas anteriores decisões sobre a matéria, que “… disse-se no citado Acórdão n.º 328/94, que «(...) o direito de liberdade de iniciativa económica privada, como facilmente deflui do aludido preceito constitucional, não é um direito absoluto (ele exerce-se, nas palavras do Diploma Básico, nos quadros da Constituição e da lei, devendo ter em conta o interesse geral). Não o sendo - e nem sequer tendo limites expressamente garantidos pela Constituição (muito embora lhe tenha, necessariamente, de ser reconhecido um conteúdo mínimo, sob pena de ficar esvaziada a sua consagração constitucional) - fácil é concluir que a liberdade de conformação do legislador, neste campo, não deixa de ter uma ampla margem de manobra». (…) A norma constitucional remete, pois, para a lei a definição dos quadros nos quais se exerce a liberdade de iniciativa económica privada. Trata-se, aqui, da previsão constitucional de uma delimitação pelo legislador do próprio âmbito do direito fundamental - da previsão de uma ‘reserva legal de conformação’ (a Constituição recebe um quadro legal de caraterização do conteúdo do direito fundamental, que reconhece). A lei definidora daqueles quadros deve ser considerada, não como lei restritiva verdadeira e própria, mas sim como lei conformadora do conteúdo do direito …”.

XX. E no acórdão do mesmo Tribunal n.º 254/07, de 30.03.2007 [consultável no mesmo sítio], afirmou-se neste âmbito, na mesma linha, que sobre “… o conteúdo constitucional do direito à livre de iniciativa económica privada o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que o mesmo se divide numa dupla vertente. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica - direito à empresa, liberdade de criação de empresa - e, por outro, na liberdade de gestão e atividade da empresa - liberdade de empresa, liberdade de empresário, liberdade empresarial (nesse sentido, designadamente, os Acórdãos n.ºs 187/2001, 348/03 e 289/04, …). (…) Também a doutrina tem assinalado repetidamente que é apenas naquela dupla vertente que desdobra o referido princípio. Assim, designadamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, p. 490; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2.ª Edição, pp. 454 e 455; Jorge Coutinho de Abreu, «Limites constitucionais à iniciativa económica privada», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem ao Professor Ferrer-Correia, Tomo III, pp. 413 e 414 …”.

XXI. Também o STA/Pleno no seu acórdão de 09.11.2006 (Proc. n.º 0262/02 in: «www.dgsi.pt/jsta») afirmou a propósito do direito à livre iniciativa privada “… não é um direito absoluto, mas sim um direito que pode ser objeto de limites mais ou menos apertados. A iniciativa privada pressupõe o respeito pelas regras que setorialmente definem cada atividade económica. Livre iniciativa não corresponde a fazer-se o que se quer quando se quer …”.

XXII. Atente-se, por outro lado, que da conjugação ou articulação entre os arts. 61.º e 64.º da CRP deriva que o princípio constitucional da autonomia privada “… não perfilhou um modelo de monopólio do setor público de prestação de cuidados de saúde - tendencialmente coincidente com o Serviço Nacional de Saúde -, antes admite a existência de um setor privado de prestação de cuidados de saúde em relação de complementaridade e até de concorrência com o setor público ...” (cfr. Ac. TC n.º 731/95, de 14.12.1995, consultável no mesmo sítio) na certeza de que o “…direito à proteção da saúde … não é … um dos «direitos, liberdades e garantias», previstos no Título II da Parte I da Constituição, nem um direito de natureza análoga a estes, para efeitos de sujeição ao mesmo regime jurídico, nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei Fundamental. É antes, um direito social típico e, enquanto tal, configura-se como um direito a ações ou prestações do Estado, de natureza jurídica (medidas legislativas), de caráter material (bens e serviços) e de índole financeira, necessárias à respetiva satisfação. Assim, ao contrário dos «direitos, liberdades e garantias», cujo âmbito e conteúdo são essencialmente determinados ao nível das opções constitucionais, e, por isso, são diretamente aplicáveis, (cfr. o artigo 18.º, n.º 1, da Constituição), o direito à proteção da saúde, como direito social, está dependente de uma «interposição legislativa», isto é, de uma atividade mediadora e subsequente do legislador, com vista à criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao seu exercício efetivo. Esta caraterística, que é comum à generalidade dos direitos económicos, sociais e culturais, põe com acuidade o problema da efetivação do direito à saúde. Fala-se aqui de uma efetivação «sob reserva do possível», para significar a sua dependência dos recursos económicos existentes …” (cfr., entre outros, os Acs. TC n.º 330/89, de 11.04.1989, e n.º 731/95, de 14.12.1995, consultáveis no mesmo sítio).

XXIII. Cientes de tudo quanto a propósito do direito à livre iniciativa económica se expôs importa, então, aferir do primeiro fundamento de erro de julgamento o qual se prende com a pretensa inconstitucionalidade material assacada ao ato que recusou a autorização peticionada [ofensa aos arts. 61.º, n.º 1, 17.º e 18.º, n.º 2 da CRP por parte dos arts. 01.º, 02.º e 03.º do DL n.º 95/95 em conjugação com a Resolução CM n.º 61/95 - por efeito da sua sustentação no quadro normativo ordinário citado] e que foi julgada improcedente pela decisão judicial recorrida.

XXIV. É certa a tensão existente entre, por um lado, o livre exercício duma atividade económica privada de prestação de serviços/cuidados de saúde e, por outro lado, os poderes funcionais conformadores, disciplinadores e fiscalizadores do Estado naquele setor de harmonia com os objetivos referidos no citado n.º 3 do art. 64.º da CRP.

XXV. Ocorre que, como se aludiu supra, o direito à livre iniciativa económica privada, incluindo no setor da saúde, não constitui um direito absoluto mas antes um direito que, quer em termos constitucionais quer em termos legais, se mostra e pode ser objeto de introdução pelo Estado de limites e de restrições decorrentes, mormente, do “interesse geral” e do “assegurar, nas instituições de saúde de adequados padrões de eficiência e de qualidade”, bem como das necessidades e exigências ao nível, por exemplo, da “disciplina e controlo ao nível da produção, da distribuição, comercialização e uso dos meios de tratamento e diagnóstico”, por forma a que o Estado não se demita e cumpra aquilo que são as suas incumbências prioritárias em matéria do assegurar do direito à proteção da saúde [art. 64.º, n.º 3 da CRP].

XXVI. Deriva do próprio preâmbulo do DL n.º 95/95 [diploma que veio estabelecer os procedimentos a observar na instalação do equipamento médico pesados nos estabelecimentos de saúde públicos e privados - cfr. art. 01.º - e que revogou o DL n.º 445/88 - art. 05.º] que com o quadro normativo nele instituído se visou estabelecer uma “articulação entre o Estado e a iniciativa privada” de molde a que a “gestão dos recursos disponíveis se efetue no sentido da obtenção do maior proveito para a comunidade”, com o que se visou cumprir os comandos constitucionais insertos quer no próprio n.º 1 do art. 61.º quer ainda no art. 64.º.

XXVII. Ora analisado o quadro normativo inserto nos arts. 02.º e 03.º do DL n.º 95/95 na sua conjugação/articulação com a Resolução CM n.º 61/95 não se descortina, no nosso juízo, que o mesmo envolva a definição de requisitos ou condições que contendam com o disposto nos arts. 17.º, 18.º e 61.º, n.º 1 da CRP.

XXVIII. Desde logo, temos que nada naquele quadro normativo envolve qualquer restrição ao direito de criação da empresa privada na área da saúde.

XXIX. Por outro lado, temos que a instalação do equipamento médico pesado por estabelecimento de saúde [seja ele público ou privado] está sujeita a autorização do Ministro da Saúde a conceder de acordo com critérios de programação e de distribuição territorial fixados naquela Resolução sem que se faça qualquer distinção ou diferenciação quanto ao cumprimento daqueles critérios em função do estabelecimento de saúde ser público ou privado.

XXX. Daí que a definição dos critérios de programação e distribuição territorial fixados valem para os pedidos que venham a ser feitos e independentemente dos mesmos provirem de ente do setor público da saúde ou do privado, não envolvendo, assim, uma qualquer limitação à livre iniciativa privada em desfavor da pública, nem se vislumbra na concreta definição dos critérios para cada tipo de equipamentos em causa uma qualquer desproporção ilegítima em matéria da livre definição do objeto ou da gestão da empresa, na certeza de que uma eventual desatualização ou desfasamento hoje da definição dos critérios por parte daquele quadro legal não o torna por essa razão inconstitucional, nem gera necessariamente tal desvalor a falta de estudos ou de estudos credenciados que hajam estado ou sido omitidos no processo de definição dos critérios.

XXXI. Note-se que importa ter presente que a saúde dos cidadãos depende tanto do nível de acesso aos cuidados de saúde de que dispõem, como das caraterísticas próprias das populações e das regiões em que residem e dos diferentes padrões de utilização de cuidados de saúde, exigindo-se, por isso, uma distribuição ajustada dos recursos existentes ao nível da oferta considerando quer as restrições financeiras/orçamentais quer as exigências/padrões de qualidade e de eficiência como os próprios avultados volumes de investimento que estão envolvidos na instalação e no funcionamento deste tipo de equipamentos.

XXXII. É que a satisfação das necessidades de cuidados de saúde dos cidadãos e do acesso à saúde será tanto mais bem-sucedida quanto melhor ajustada estiver a rede de oferta de serviços/equipamentos face às necessidades das populações, pelo que delimitado o alcance constitucional do direito à livre iniciativa económica privada nos termos atrás definidos impõe-se concluir que, manifestamente, nenhuma das liberdades que o direito em crise envolve é minimamente atingida pelas normas que vêm questionadas, não envolvendo uma qualquer definição de critérios aleatórios, desrazoáveis e manifestamente desproporcionais no condicionamento do mesmo direito.

XXXIII. Frise-se que a liberdade de iniciativa económica, quer em tese geral quer em particular no domínio da saúde, não funda ou reclama um direito incondicionado ou ilimitado à livre instalação de quaisquer estabelecimentos de saúde em qualquer espaço, com qualquer tipo de pessoal e de equipamento, sem que haja que respeitar ou estar sujeito ao cumprimento de requisitos e/ou condições decorrentes de outros princípios, bens e valores constitucionais e legais na matéria.

XXXIV. Nessa medida, não se antevê na definição pelo legislador ordinário do quadro normativo em questão uma intervenção que se possa considerar ou qualificar como claramente violadora do art. 61.º, n.º 1 da CRP já que se tem a mesma como ajustada e proporcional ao exercício dos direitos e interesses em confronto e àquilo que são as restrições admissíveis, potenciando uma melhor e mais adequada gestão dos recursos na e para a prossecução do direito à proteção da saúde enquanto incumbência prioritária do Estado.

XXXV. Soçobrando este fundamento impugnatório importa cuidar, agora, do alegado erro de julgamento consubstanciado na apontada inconstitucionalidade orgânica do quadro normativo atrás convocado por ofensa ao disposto nos arts. 168.º, n.º 1, al. b) [ao tempo em vigor e que corresponde ao atual art. 165.º, n.º 1, al. b)], 61.º, n.º 1 e 17.º da CRP.

XXXVI. E para esse efeito cumpre recortar aquilo que deve ser considerado ou abrangido pela reserva legislativa de competência da AR neste âmbito, aferindo de seguida se o DL n.º 95/95 e Resolução CM n.º 61/95 que o regulamenta se conforma ou não com o comando constitucional.

XXXVII. Fazendo de novo apelo àquilo que vem sendo a jurisprudência constitucional definida neste âmbito cumpre ter em consideração o entendimento firmado pelo acórdão n.º 373/91, de 17.10.1991 (consultável no mesmo sítio), que aqui se acompanha, e do qual se extrai, no essencial e para o que aqui releva, que a “… democraticidade do processo genético legislativo de iniciativa parlamentar revela-se, em princípio, mais forte, relativamente à elaboração normativa governamental, na medida em que índices significativos de uma conceção democrática de Estado de direito como sejam, entre outros, o pluralismo opinativo, a publicidade, o contraditório, nele se manifestam em condições mais favoráveis. (…) Consequentemente, entre nós de modo particular após a 1.ª Revisão Constitucional, áreas de maior sensibilidade como as diretamente articuladas com a estrutura política do Estado, são confiadas ao labor legislativo do Parlamento, pela aptidão para nelas intervir com respeito pelas exigências de conformação constitucional, tão mais evidentes quanto é certo assistir-se a crescente ampliação da competência legislativa do Executivo, própria ou obtida por autorização legislativa. (…) É assim que a Constituição da República (CR) contém uma reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (AR), elencando matérias sobre as quais é este o único órgão com competência para sobre elas legislar - CR, artigo 167.º. [atual art. 164.º] (…) Outras matérias, porém, menos diretamente comprometidas com a dimensão política do Estado, podem ser objeto de atuação do Governo no plano legislativo, desde que este se encontre autorizado por lei da AR - lei de autorização legislativa - definindo-lhe os parâmetros da normação a editar - o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização. (…) Constituem a reserva relativa da competência legislativa da AR e, no seu âmbito, incluem-se os direitos, liberdades e garantias - CR, artigo 168.º [atual art. 165.º], n.º 1, alínea b), e n.º 2. (…) A competência legislativa do Governo reconhecida por credencial parlamentar não o vincula a exercê-la nem, no caso afirmativo, a cumpri-la integralmente - desde que não desvirtue os limites citados. Na verdade, nem por estar autorizado pode o Governo libertar-se da parametricidade constitucional. (…) Isto é, se bem que a AR seja considerada o órgão mais idóneo para legislar no domínio dos direitos, liberdades e garantias (…), admite-se que o Governo também atue nessa área, livremente mas nos limites da autorização ...”.

XXXVIII. E avançando na definição dos contornos do comando constitucional afirma-se que a “… obrigatoriedade de intervenção legislativa mercê do texto constitucional que, explícita ou implicitamente, lhe dita o que no essencial deve legislar - e o «como» - tem lugar sempre que o direito fundamental se não baste com a fixação primária do seu sentido normativo. (…) Ao legislador ordinário cabem … as tarefas de garantir e de concretizar os valores jurídico-constitucionais, densificando e determinando opções fundamentais relativamente às diversas áreas da vida social tocadas pela atividade pública. (…) Neste «contexto de interferência e de interinfluência recíprocas» as normas editadas pelo legislador ordinário podem, direta ou indiretamente, não servir ou não prejudicar, não promover ou não restringir um ou outro direito fundamental, ou, pelo menos, não facilitar ou não dificultar o respetivo exercício (…). (…) Ora, entende o Tribunal que, de qualquer modo, cabem necessariamente na reserva da competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b) [atual art. 165.º, n.º 1, al. b)], da CR, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias” (sublinhados nossos).

XXXIX. Com maior acuidade para a situação vertente sustentou-se no acórdão do TC n.º 289/04 (supra citado e consultável no mesmo sítio) que é “… pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência deste Tribunal, que a deslegalização não importa, só por si, uma violação da Constituição. Porém, constitui limite à sua admissibilidade que a matéria remetida para regulamento possa ser tratada por um ato não legislativo, estando a possibilidade de deslegalização «sempre excluída nas matérias sujeitas ao princípio da reserva de lei, sendo inconstitucionais quaisquer fenómenos de deslegalização incidentes sobre matérias que constitucionalmente não podem ser reguladas se não por via de lei» (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 641/95 …). (…) Nestas condições está, desde logo, a matéria dos direitos, liberdades e garantias, que é matéria de reserva de lei parlamentar. Esta constitui «um dos limites do poder regulamentar, porquanto a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva, com ressalva dos regulamentos executivos, isto é, aqueles que se limitam a esclarecer e precisar o sentido das leis ou de determinados pormenores necessários à sua boa execução» (Acórdão n.º 307/88 …; cfr. ainda, no mesmo sentido, o Acórdão n.º 185/96 …). (…) A jurisprudência deste Tribunal tem ainda afirmado que, dado o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, a exclusão de intervenção do poder regulamentar não se refere apenas à restrição de direitos, liberdades e garantias: «a própria regulamentação (e não apenas a restrição) dos direitos, liberdades e garantias tem de ser feita por lei, ou então com base na lei, mas sempre em termos de aos regulamentos da Administração não poder caber mais do que o estabelecimento de meros pormenores de execução» (Acórdão n.º 174/93 …). (…) Esta intervenção regulamentar não será, portanto, constitucionalmente admissível se atingir o âmbito de proteção garantido à liberdade de iniciativa económica privada que deva incluir-se no regime de proteção de direitos, liberdades e garantias, como «direito de natureza análoga» a estes ...”.

XL. E, referindo-se ao âmbito da liberdade de iniciativa privada, afirma de seguida que mais “… limitado será, todavia, o domínio no qual este direito fundamental beneficia de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, portanto, da sua específica proteção. Este domínio mais restrito diz respeito apenas aos «quadros gerais e aos aspetos garantísticos» da liberdade de iniciativa económica (cfr. Acórdão n.º 329/99, …), que digam respeito à liberdade de iniciar empresa e de a gerir sem interferência externa. (…) É, pois, apenas quanto a este núcleo da liberdade de iniciativa económica privada que, por aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, e por revestir a natureza de direito de natureza análoga, existe uma reserva de lei parlamentar. Como se sustentou no Acórdão n.º 373/91 (…): «cabem necessariamente na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b) [correspondente ao atual artigo 165.º], da Constituição da República, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias» …”, para depois prosseguir e concluir que “… como se referiu, o texto do n.º 1 do artigo 61.º da Constituição preceitua ainda que os quadros nos quais se exerce a iniciativa privada são definidos «pela Constituição e pela lei», tendo em conta o interesse geral. A Constituição indica, portanto, que, pelo menos, um determinado grau da própria conformação do conteúdo desta liberdade está sujeito a reserva de lei - que será reserva de lei material, neste caso (ainda que no âmbito de uma competência legislativa concorrencial do Parlamento e do Governo). (…) A admissibilidade constitucional da intervenção regulamentar em análise dependerá, portanto, de saber se o regulamento procede a uma conformação do conteúdo do direito fundamental e, em caso afirmativo, se tal ocorre num grau em que tal conformação só possa ser efetuada por via legislativa. (…) Esta questão deve ser, desde logo, analisada através de uma interpretação do preceito constitucional, de modo a apurar os limites intrínsecos do seu âmbito de proteção. Ou seja, importa determinar, como escreve Vieira de Andrade … os «limites de conteúdo, na medida em que a proteção constitucional não abranja todas as situações, formas ou modos de exercício pensáveis para cada um dos direitos, designadamente no caso das liberdades». (…) Com efeito, entendimento diverso … atribuiria à liberdade de iniciativa económica privada um conteúdo vastíssimo, abrangendo aparentemente todas as formas e modalidades específicas de exercício possível da atividade económica, de modo a que praticamente toda a intervenção normativa no domínio da economia se transformaria numa conformação do direito fundamental em causa, na medida em que toda essa intervenção seja passível de ter reflexos na vida das empresas. Esta interpretação negaria, na prática, qualquer possibilidade de intervenção regulamentar na atividade económica, fosse por normas sobre segurança, por normas técnicas de produção (…). (…) Admitindo, porém, que assim fosse, e, que, portanto, à liberdade de iniciativa privada devesse ser reconhecido um tal âmbito, se é certo, como se viu, que é tão-só a definição dos quadros gerais e dos aspetos garantísticos da liberdade de iniciativa económica privada que exige uma intervenção por via legislativa - aliás, parlamentar (…). (…) Se assim não fosse, destruindo-se a possibilidade de regulamentação da atividade económica a não ser por lei, criar-se-ia uma permanente necessidade de recurso a bagatelas legislativas, ao arrepio do que é, aliás, a prática corrente do direito português. Não foi manifestamente este o resultado que a Constituição pretendeu com o preceituado no n.º 1 do artigo 61º …” (sublinhados nossos).

XLI. Sufragando-se e acolhendo-se esta leitura do comando constitucional temos para nós que o concreto regime normativo inserto nos diplomas em referência não envolverá violação dos arts. 168.º, n.º 1, al. b) [atual art. 165.º, n.º 1, al. b)], 17.º, 18.º e 61.º, n.º 1 da CRP.

XLII. Se é certo que não acompanhamos a argumentação expendida na decisão judicial recorrida nesta sede, tanto mais que, como vimos, não estamos em presença dum direito económico, social e cultural para, assim, se poder subtrair o quadro legal em questão ao regime de reserva de lei formal, temos que ainda assim a conclusão decisória será de manter.

XLIII. Com efeito, no nosso juízo não está em causa no aludido regime legal a definição ou conformação do núcleo essencial, do conteúdo e garantias do direito à iniciativa económica privada, enquanto direito fundamental de natureza análoga, não envolvendo ou contendendo minimamente com a liberdade de iniciar a atividade económica privada no setor da saúde (direito à empresa, liberdade de criação de empresa), nem contende com a liberdade de gestão/organização e funcionamento da empresa ou mesmo ainda com uma total afetação/ingerência na liberdade de atividade da empresa no setor da saúde, em termos globais da prestação de serviços de saúde nas áreas do tratamento e do diagnóstico.

XLIV. Está em causa tão só a disciplina e definição de regras em matéria da instalação de determinados equipamentos médicos pesados nos estabelecimentos de saúde públicos e privados, mediante a exigência duma autorização dada pelo Ministério da Saúde à luz da verificação de determinados critérios que foram elencados pelo DL n.º 95/95 por apelo, num primeiro momento, ao que constava do anexo ao DL n.º 445/88 (diploma que veio a ser por ele revogado) e que, depois, foram atualizados/concretizados pela Resolução de CM n.º 61/95.

XLV. Nessa medida, não nos parece que o âmbito de proteção da liberdade de iniciativa económica privada na área da saúde inclua no seu cerne ou conteúdo essencial este específico aspeto da instalação de equipamentos médicos pesados e que, portanto, a exigência de autorização com fixação de critérios para a sua obtenção atinja a liberdade de iniciativa económica privada, enquanto direito fundamental constitucionalmente protegido, e para efeitos da sua integração na previsão do art. 168.º, n.º 1, al. b) da CRP [atual art. 165.º, n.º 1, al. b)] enquanto área de reserva de lei parlamentar, negando-se, na prática, qualquer possibilidade de intervenção disciplinadora e regulamentadora em certos aspetos na atividade económica por parte do Governo fosse pela emissão de normas sobre segurança, de normas técnicas de produção, ou de normas de funcionamento/instalação de certos tipos de equipamentos (v.g., pesados).

XLVI. Como se afirmou no acórdão do TC que vimos seguindo de perto uma tal exigência de lei parlamentar na disciplina da atividade económica criaria uma “permanente necessidade de recurso a bagatelas legislativas”, o que estaria ao arrepio do que é a prática corrente no nosso direito, não sendo isso certamente o resultado prosseguido pelo Legislador Constitucional com a definição dos comandos constitucionais insertos nos arts. 168.º, n.º 1, al. b) [atual art. 165.º, n.º 1, al. b)], 17.º, 18.º e 61.º, n.º 1 da CRP.

XLVII. Improcede, por conseguinte e com a motivação antecedente, também este fundamento de recurso, não ocorrendo a alegada inconstitucionalidade orgânica.

XLVIII. Cumpre, pois, passar à análise do fundamento seguinte e que se prende com o pretenso erro de julgamento no desatendimento da invocada inconstitucionalidade do art. 02.º do DL n.º 95/95 em articulação com a Resolução CM n.º 61/95 por ofensa do princípio da tipicidade face ao disposto no art. 115.º, n.ºs 5 e 6 da CRP [atual art. 112.º, n.ºs 5 e 6].

XLIX. Importa, desde já, referir que este fundamento de ilegalidade não foi objeto de pronúncia pela decisão judicial recorrida já que o mesmo em momento algum havia sido suscitado nos autos pela A. [cfr. petição inicial e alegações produzidas no quadro do art. 91.º do CPTA - cfr. fls. 03 e segs. e fls. 202 e segs. dos autos], termos em que terá de soçobrar este fundamento tanto mais que é logicamente impossível assacar erro de julgamento a decisão judicial quanto à violação de determinado quadro normativo quando na mesma nenhuma pronúncia sobre este quadro normativo emitiu.

L. Na verdade, a pretensão deduzida fundou-se, nomeadamente, nas inconstitucionalidades que foram alvo da apreciação antecedente e não já na inconstitucionalidade ora apenas invocada em sede de alegações de recurso jurisdicional [ofensa do quadro legal invocado do disposto no art. 112.º, n.ºs 5 e 6 da CRP].

LI. O n.º 5 do artigo 91.º do CPTA permite que o A. invoque novos fundamentos do pedido, mas exige que eles sejam de «conhecimento superveniente» à propositura da ação. Ora, a alegada inobservância do art. 112.º da CRP, nos seus n.ºs 5 e 6, é uma questão que indubitavelmente já existia na data em que a ação deu entrada em tribunal e por isso não podia ser invocada apenas nesta sede de alegações.

LII. Trata-se, pois, de uma modificação objetiva da instância não consentida pelo n.º 5 do artigo 91.º do CPTA, na certeza de que o facto da ilegalidade poder consistir na aplicação de norma inconstitucional não implica um tratamento processual diferenciado das demais ilegalidades em termos de constituir uma limitação ou um desvio ao princípio da estabilidade da instância.

LIII. Note-se, ainda e por outro lado, que o objeto do recurso jurisdicional será, assim, constituído pelas ilegalidades/erros de julgamento imputados à decisão judicial recorrida e que ao recorrente cabe demonstrar (cfr. arts. 690.º, n.º 1 e 690.º-A do CPC), sob pena de não demonstrando o desacerto do decidido, ver claudicar a sua pretensão.

LIV. Constitui entendimento uniforme o de que o recurso jurisdicional versa sobre a concreta decisão judicial impugnada, estando fora do seu âmbito, salvo as que forem de conhecimento oficioso, decidir questões que não tenham sido previamente apreciadas pelo tribunal “a quo” (cfr. Acs. do STA de 28.01.2003 - Proc. n.º 048363, de 06.10.2004 - Proc. n.º 0722/04, de 24.11.2004 - Proc. n.º 0843/04, de 14.12.2005 - Proc. n.º 0550/05, de 24.04.2007 - Proc. n.º 01181/06 todos in: «www.dgsi.pt/jsta»; Acs. do TCAN de 20.09.2007 - Proc. n.º 1410/05.2BEPRT, de 20.12.2007 - Proc. n.º 1407/05.2BEPRT - inéditos), pelo que se as alegações não afrontarem válida e eficazmente aquela decisão terá o recurso que improceder (cfr. Acs. do STA de 23.02.2000 - Proc. n.º 023819 e de 01.03.2011 - Proc. n.º 0368/10 in: «www.dgsi.pt/jsta»).

LV. Cientes e secundando tudo o acabado de enunciar temos que terá, no caso vertente, de desatender também este fundamento de recurso.

3.2.3.2. DO ERRO JULGAMENTO [ARTS. 02.º e 03.º DL N.º 95/95 e Resol. CM n.º 61/95]

LVI. Impõe-se, agora, entrarmos na análise do fundamento de recurso seguinte consubstanciado no erro de julgamento traduzido na incorreta interpretação e aplicação dos arts. 02.º e 03.º do DL n.º 95/95 em conjugação com a Resolução CM n.º 61/95 porquanto, segundo alega, o ato que lhe negou a sua pretensão padeceria, nomeadamente, de erro no seus pressupostos visto, ao invés do que se concluiu, lhe assistia o direito a obter a autorização da instalação do equipamento médico em questão.

LVII. Para o aferir do preenchimento dos requisitos ou dos pressupostos em questão e decorrentes/recortados do quadro normativo em referência cumpre, previamente, aferir se o quadro factual alegado e o provado nos permite avançar nessa tarefa.

LVIII. Ora o julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.

LIX. Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objeto da ação, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e selecionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória (arts. 511.º, n.º 1 CPC), seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida (arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC) e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto (arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC).

LX. Não pode o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa e sob pena de ilegalidade por preterição das mais elementares regras, suprimir ou omitir qualquer daquelas fases processuais precludindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de ação ou de defesa, na certeza de que ainda que em sede de julgamento e uma vez ali detetada uma omissão de inclusão de determinada realidade factual controvertida necessária à boa decisão da causa se impõe ao julgador a ampliação da base instrutória [cfr. arts. 650.º, n.º 2, al. f) e 264.º do CPC].

LXI. É inquestionável que, por força do disposto no n.º 4, do art. 712.º do CPC, são atribuídos a este Tribunal de recurso poderes cassatórios através da anulação oficiosa da decisão de facto proferida em 1.ª instância, maxime quando a repute de deficiente, obscura ou contraditória, cabendo idêntica faculdade quando se considere indispensável a ampliação da matéria de facto.

LXII. Assim e revertendo de novo ao caso “sub judice” constata-se que a realidade factual alegada relativa ao pretenso erro na aferição dos pressupostos/rácios definidos pelo art. 02.º do DL n.º 95/95 em conjugação com a resolução CM n.º 61/95 não consta do probatório apurado, sendo que se tratava de matéria de facto que havia sido invocada pela A. na petição inicial [cfr., com exclusão daquilo que seja conclusivo e de direito, o alegado nos arts. 31.º a 58.º, em especial, arts. 32.º, 34.º a 46.º, 49.º e 58.º] e que não foi levada à base instrutória pese embora impugnada, na certeza de que a factualidade provada não permite, nem autoriza, a conclusão que o tribunal “a quo” firmou quanto ao julgamento que efetuou nesta sede à luz das várias soluções jurídicas plausíveis da questão.

LXIII. Trata-se de composto factual essencial para a formulação do juízo a aferir em sede da aferição/preenchimento por parte da A. dos pressupostos/rácios definidos pelo aludido regime normativo nos quais a mesma estribou a sua pretensão e relativamente aos quais se impunha e impõe a sua sujeição à instrução probatória e competente julgamento de facto.

LXIV. Não podia o tribunal ”a quo” confrontado com a existência de realidade fáctica relevante para a decisão e que é controvertida entre as partes proferir julgamento nos termos em que o fez preterindo/omitindo quanto àquela realidade factual as fases da condensação (despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e de base instrutória que a incluísse ou seu aditamento/ampliação em sede já de audiência de julgamento) e da instrução (com a indicação e realização das diligências probatórias requeridas e/ou determinadas oficiosamente pelo tribunal incidindo sobre a aludida factualidade controvertida).

LXV. Daí que tendo presente que a decisão judicial recorrida não supriu e corrigiu a omissão havida em sede de saneamento processual [em termos de fixação da matéria de facto já assente e aquela sobre a qual importava produzir prova dado o seu caráter controverso entre as partes em litígio] e que na mesma não se cuidou da factualidade em referência relevante para a decisão da causa, importa anular, oficiosamente, nesse segmento a decisão recorrida e em determinar a repetição parcial do julgamento, nos termos dos arts. 510.º, 511.º, 650.º, 659.º e 712.º, n.º 4 do CPC “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, para ampliação do julgamento de facto de molde a que seja levada em conta a factualidade alegada que supra se aludiu, ficando prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos de recurso.



4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional e, em consequência e com a fundamentação/motivação antecedente, revogar a decisão judicial recorrida apenas no segmento que negou a pretensão condenatória peticionada pela A. enquanto estribada na ilegalidade por incorreta aplicação dos comandos legais decorrentes do DL n.º 95/95 em articulação com a Resolução CM n.º 61/95;
B) Determinar a remessa dos autos ao TAF de Coimbra para prosseguimento dos mesmos com ampliação da base instrutória, ulterior produção de prova e decisão da pretensão apenas quanto ao segmento estribado no fundamento supra referido se a tal nada mais entretanto obstar.
Custas nesta instância são cargo da parte vencida a final, sendo que, não revelando os autos especial complexidade, na fixação da taxa de justiça se atenderá ao valor resultante da secção B) da tabela I anexa ao Regulamento Custas Processuais (doravante RCP) [cfr. arts. 446.º, 447.º, 447.º-A, 447.º-D, do CPC, 04.º “a contrario”, 06.º, 12.º, n.º 2, 25.º e 26.º todos do RCP - tendo em consideração a redação decorrente da Lei n.º 7/012 e o disposto no seu art. 08.º quanto às alterações introduzidas ao mesmo RCP - e 189.º do CPTA].
Valor para efeitos tributários: 14.964,00 € [cfr. art. 12.º, n.º 2 do RCP].
Notifique-se. DN.



Restituam-se, oportunamente, os suportes informáticos que hajam sido gentilmente disponibilizados.



Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).



Porto, 09 de novembro de 2012
Ass. Carlos Luís Medeiros Carvalho
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Fernanda Brandão