Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00348/12.1BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/28/2022
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:MATÉRIA DE FACTO- CEMITÉRIOS PAROQUIAIS- JAZIGO- ALVARÁ- DANOS MORAIS
Sumário:1- Perante as regras positivas vigentes na atual lei processual civil aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o tribunal ad quem deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade.

2- A lei atribui aos municípios, através das câmaras municipais, ou às freguesias, através das respetivas juntas, conforme se trate de cemitérios municipais ou de cemitérios paroquiais, a competência para conceder terrenos nos cemitérios para jazigos, mausoléus ou sepulturas perpétuas (artºs 34º, nº 6, alínea d) e 68º, nº 2, alínea r), da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, alterada pela Lei nº 5-A/2002, de 11/1).

3- De acordo com o Decreto n.º 48770 de 18 de dezembro de 1968, que estabelece o modelo de regulamento dos cemitérios municipais, todas as concessões de terrenos em cemitérios de freguesias serão tituladas por alvará do presidente da junta de freguesia, do qual constarão os elementos de identificação do concessionário e a sua morada, referências do jazigo ou sepultura perpétua respetivos, nele devendo mencionar-se, por averbamento, todas as entradas e saídas de restos mortais.

4- A falta de emissão de alvará, ou de averbamento, não implica a invalidade do ato constitutivo de direitos que titula, implicando apenas a ineficácia do ato.
5- Os simples incómodos, perturbações ou arrelias não traduzem danos morais que de harmonia com o padrão objetivo estabelecido no n.º 1 do artigo 496.º do Cód. Civil, assumam uma tal gravidade na esfera jurídica do lesado que reclamem ser ressarcidos.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I.RELATÓRIO

1.1. D., residente em 8, (…); S., residente em (...), Bragança; E., residente em (...), Bragança; A., residente em (...), Bragança; M., residente em (...), Bragança, todos com os demais sinais identificativos nos autos, moveram a presente ação administrativa comum contra a JUNTA DE FREGUESIA (...), com sede na Rua (…), pedindo a condenação da Entidade Demandada:
A) a reconhecer a existência a favor da 1ª Autora de um acordo ou contrato de alienação e/ou concessão do direito ao uso privativo, no cemitério de (...), da parcela de terreno (campa) onde se encontra(va) sepultado o seu pai e dos demais Autores; e, consequentemente,
B) a exumar e trasladar o cadáver que foi inumado na sepultura por si identificada no respetivo articulado para outra dentro do mesmo cemitério; e
C) a pagar a quantia de 1.500,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos (por estes especificados e justificados no seu articulado), o que perfaz o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegam, em síntese, que são todos filhos de J., falecido em 06/04/1966 e inumado no cemitério de (...), na segunda campa situada a nascente do cemitério, no sentido Norte-Sul;
Em 12/08/1984, a 1ª Autora solicitou ao legal representante da Entidade Demandada, mediante requerimento, a compra de uma parcela de terreno no cemitério de (...), correspondente àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado e que se destinava a jazigo familiar, a qual foi deferida e efetivada em 14/08/1984 pelo preço de 2.000$00;
No dia 07/03/2010, pelas 13.30h, naquele túmulo em que se encontravam os restos mortais do pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, sem o conhecimento ou consentimento dos Autores;
Quando tomaram conhecimento do sucedido, contactaram com a Entidade Demandada para solucionar a situação, tendo esta reconhecido o lapso ao permitir sepultar um defunto no túmulo pertença da 1ª Autora, comprometendo-se a resolver a questão, sem que o tenha feito até hoje;
Os Autores deslocavam-se com frequência ao túmulo do seu pai, mantendo-o em bom estado de conservação, sem que o mesmo estivesse votado ao abandono ou esquecimento, procedendo à sua limpeza e ali depondo ramos de flores;
Em consequência do descrito, os Autores ficaram privados do exercício do direito de culto ao seu familiar e gravemente incomodados com a ideia de que sobre aquele se encontra inumado um terceiro que lhes é estranho e a quem os seus familiares prestam ali homenagem, causando aos Autores desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensificam quando vão ao cemitério;
Os danos não patrimoniais dos Autores são relevantes e da responsabilidade da Entidade Demandada, que tem a obrigação de os compensar, dado que lhe competia gerir, conservar e promover a limpeza dos cemitérios, o que não fez com diligência.
1.2. Citada, a Entidade Demandada apresentou contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação, alegando, em suma, que os Autores dispunham de três meses para requerer a anulação do ato administrativo de concessão de terreno para a inumação do cadáver do terceiro, o qual violava, na sua perspetiva, o direito de uso do local onde o seu pai está sepultado, pelo que se verifica a caducidade do seu direito de ação;
Desconhece se o pai dos Autores foi sepultado na campa referida pelos mesmos, dado que não possui qualquer documento ou registo que possa demonstrar esse facto nem os Autores apresentaram qualquer indício ou prova do mesmo facto;
O documento apresentado pelos Autores não pode titular qualquer compra, por ser legalmente impossível, mas antes mera concessão temporária ou perpétua para sepultura ou jazigo, e não identifica o local dentro do cemitério a que se refere;
A Entidade Demandada não sabe se o referido documento corresponde a uma concessão temporária ou perpétua para sepultura ou jazigo, nem o mesmo é claro a esse respeito, aceitando apenas que nos anos de 1984/1985 atribuiu concessões para sepulturas a alguns moradores de (...);
No dia 07/03/2010, foi sepultado no cemitério de (...) um defunto, de que é viúva D., residente em Cascais, mas não no local onde estava sepultado o pai dos Autores, tanto assim que alguns dos Autores estavam presentes no aludido funeral e nada invocaram ou opuseram nesse momento, consentindo que o funeral decorresse naquele local;
A Entidade Demandada não reconheceu ter ocorrido qualquer lapso com a realização desse funeral, na sequência do contacto do 2º Autor, mas sim que, a ser verdade, empenharia todos os esforços para solucionar o problema, sendo certo, porém, que os Autores não demonstraram haver sobreposição dos locais de sepultura;
Não existia no local onde foi efetuada o enterro de março de 2010 qualquer lápide ou objeto indiciador de qualquer tratamento de campa por quem quer que fosse, tendo a Entidade Demandada considerado essa sepultura abandonada há mais de dez ou quinze anos, pelo que foi aí realizada a referida inumação.
Os Autores apresentaram resposta à contestação, sustentando a validade e eficácia do negócio jurídico de concessão da sepultura do seu pai, bem como a correção da forma processual adotada, com base no artigo 37º, nº 2 d) e f) do CPTA, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas pela Entidade Demandada.
Seguidamente, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, mediante o qual foram julgadas improcedentes as exceções de erro na forma de processo e de caducidade do direito de ação deduzidas pela Entidade Demandada, além de terem sido fixados o valor da ação, o objeto do litígio e os temas da prova.
1.3. Após a respetiva identificação, determinou-se a citação dos herdeiros de J., na qualidade de contrainteressados.
1.4. As contrainteressadas D. e L., apresentaram contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação, alegando, em síntese, que os Autores não têm legitimidade ativa para a presente ação, uma vez que a 1ª Autora não tem alvará de concessão de terrenos para sepultura e os demais Autores não têm nem apresentaram qualquer título em seu nome que lhes dê quaisquer direitos sobre a sepultura do seu pai;
A Entidade Demandada não tem legitimidade passiva para a presente ação, uma vez que não podia ceder terrenos de sepulturas pré-existentes nem tem qualquer registo nos seus arquivos do documento apresentado pelos Autores; e
Ao tempo, na povoação de (...), quem determinava o lugar da inumação era o coveiro em colaboração com a família do falecido, sendo aquela a sepultura que há mais tempo tinha sido utilizada;
O pai dos Autores faleceu em 1966 e os mesmos nunca puseram no seu túmulo nenhum objeto de culto, estando a sepultura abandonada, sendo certo que a 1ª Autora terá “comprado” uma “campa” para si e os seus, mas não a do seu pai;
J., falecido marido e pai de cada uma das chamadas, respetivamente, foi enterrado numa sepultura abandonada, onde antes terá sido enterrado o pai dos Autores, sem necessidade do consentimento destes, e próximo de outros familiares daquele defunto.
Concluem que os Autores litigam de má fé, devendo ser condenados em multa a reverter para as chamadas no montante de 7.500,00€.
1.5. Os Autores apresentaram resposta à contestação das chamadas, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas pelas mesmas, já que as partes são os sujeitos da relação material controvertida, tal como configurada pelos Autores, tendo-se ainda defendido do pedido de condenação como litigantes de má fé, alegando que não se verificam os respetivos pressupostos legais.
1.6. Proferiu-se despacho saneador que julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade ativa e passiva suscitadas pelas chamadas, dada a sua superveniência em relação ao despacho saneador.
1.7. Realizou-se audiência de julgamento.
1.8. O TAF de Mirandela proferiu sentença julgando a presente ação parcialmente procedente constando essa sentença do seguinte segmento decisório:
«Nestes termos, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, por via disso, condeno a Entidade Demandada a:
1. Reconhecer a existência a favor da 1ª Autora de um contrato de concessão do direito ao uso privativo, no cemitério de (...), da parcela de terreno (campa) onde se encontra(va) sepultado o seu pai e dos demais Autores; e, consequentemente,
2. Exumar e trasladar o cadáver de J. que foi inumado na sepultura atrás identificada para outra dentro do mesmo cemitério; e
3. Pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas por Autores e Entidade Demandada na proporção de 15% e 85%, respetivamente.
Registe e notifique.»
1.9. Inconformada com o assim decidido, a Entidade Demandada interpôs o presente recurso de apelação, no qual apresenta as seguintes Conclusões:

«1ª. A Ré não se conforma com a condenação determinada na douta sentença proferida em 3 de janeiro de 2021 e a sua discordância assenta (i) quer no julgamento da matéria de facto efetuado pelo Ilustre Tribunal recorrido - impugnando-se a decisão de facto e tendo o presente recurso, também por objeto, a reapreciação da prova gravada -, (ii) quer no que diz respeito ao direito aplicado, por se entender que a douta sentença recorrida não fez a melhor interpretação e aplicação das normas jurídicas vigentes e pertinentes. ASSIM:
1. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto:
2ª. A Ré considera incorretamente julgados os factos dados como provados sob os nºs 5, 6, 7, 9, 12 e 13 da matéria de facto constante de fls 4 a 7 da douta sentença, tendo sido violado o artº 607º, nºs 3, 4 e 5, do CPC.
3ª. Relativamente ao ponto 5 da matéria de facto: Do depoimento da testemunha M., que fundamentou a resposta dada ao ponto 5 da matéria de facto dada como provada, não resulta que o mesmo sabia que a campa a que se referia o documento de fls 33, com data de 12 de agosto de 1984 (a que alude o ponto 4 dos factos provados), era efetivamente aquela em que o pai dos Autores havia sido inumado no cemitério de (...).
4ª. Tal é o que resulta do respetivo teor de tal depoimento, referenciado na ATA da audiência final de 10-09-2020, conforme respetiva gravação áudio 00.07.00 a 01.02.22., e ainda do que também resulta de fls 8 da douta sentença, que expressa que aquela testemunha “Declarou que vendeu à 1ª Autora a campa que já existia antes, onde estava enterrado o seu pai, mas que não sabia onde era até então, tendo ido ao cemitério com a própria no mesmo dia, tendo-lhe aí sido indicada a mesma”
5ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado”, que deveria ter sido dado como não provado
6ª. Relativamente ao ponto 6 da matéria de facto: Do teor do referido documento de fls 33 apenas resulta que “Esta Junta não vê qualquer inconveniente no seu deferimento” e, como resulta da fundamentação de fls 8, a testemunha M. (cfr. ATA de audiência final de 10-09-2020, respetiva gravação áudio 00.07.00 a 01.02.22.), este era apenas “tesoureiro da Entidade Demandada entre 1982 e 1990”.
7ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada “, que deveria ter sido dado como não provado
8ª. Relativamente ao ponto 7 da matéria de facto: Do teor do mesmo documento de fls 33 resulta que, ao invés de qualquer concessão, a Autora solicitou “autorização da compra de terreno no cemitério Público no lugar desta freguesia de (...)” e, concomitantemente, como resulta da fundamentação de fls 7, foi a própria Autora quem referiu que tinha “sido o seu irmão Silvestre que escreveu o recibo sobre o requerimento de fls. 33;”
9ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1.000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa “, que deveria ter sido dado como não provado
10ª. Relativamente ao ponto 9 da matéria de facto: A resposta dada a esta matéria encontra-se em contradição com a resposta dada ao ponto 16, quando refere que “16. Os 2º e 3º Autores estiveram presentes no funeral de J. e nada invocaram ou opuseram nesse momento”.
11ª. Concomitantemente, o conhecimento prévio e consentimento tácito dos Autores relativamente ao funeral de 7-3-2010 resulta dos depoimentos de:
. A., referenciado na ATA de audiência final de 10-07-2020, gravado através de gravação áudio 03.21.33 a 03.50.03;
. M., referenciado na ATA de audiência final de 10-07-2020, gravado através de gravação áudio 03.53.35 a 04.17.23;
. A., referenciado na ATA de audiência final de 10-07­2020, gravado através de gravação áudio 04.39.00 a 04.55.08
12ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “9. No dia 7 de março de 2010, pelas 13.30h, na cova em que se encontrava sepultado o pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, J., sem o conhecimento prévio nem o consentimento dos Autores “, que deveria ter sido dado como não provado
13ª. Relativamente ao ponto 12 da matéria de facto: Este facto encontra-se em contradição com os factos dados como provados sob os nºs 17 e 18, e ainda com os factos não provados sob as alíneas b) e c), ou seja, que “b) O covado do pai dos Autores sempre se manteve em bom e regular estado de conservação” e que “ c) Ali se deslocavam os Autores nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai.”.
14ª. Por outro lado, que o local onde foi sepultado o pai dos Autores se encontrava completamente abandonado a partir da respetiva inumação, sem qualquer cuidado ou trato, sem colocação de qualquer símbolo de culto por mínimo que fosse, e sem qualquer visita, quer até 1984, e desde esta data e até 2010, resulta do depoimento das testemunhas:
. A., referenciado na ATA de audiência final de 10-07-2020, gravado através de gravação áudio 03.21.33 a 03.50.03;
. M., referenciado na ATA de audiência final de 10-07-2020, gravado através de gravação áudio 03.53.35 a 04.17.23;
. J., referenciado na ATA de audiência final de 10-07-2020, gravado através de gravação áudio 04.18.54 a 04.38.28;
. A., referenciado na ATA de audiência final de 10-07­2020, gravado através de gravação áudio 04.39.00 a 04.55.08;
. J., referenciado na ATA de audiência final de 15-07­2020, gravado através de gravação áudio 01.14.49 a 01.31.53;
E ainda,
. Do depoimento de parte da Presidente da JUNTA DE FREGUESIA (...), E., referenciado na ATA de audiência final de 15-07-2020, gravado através do sistema digital de 00.44.18 a 01.12.47
15ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores “, que deveria ter sido dado como não provado.
16ª. Relativamente ao ponto 13 da matéria de facto: Das declarações de parte da primeira Autora, D., referenciado na ATA de audiência final de 15-07-2020, gravado através de gravação áudio 00.02.10 a 00.40.00, resulta que as mesmas não expressam que todos os “Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família”, o que resulta também de fls 7 da douta sentença quando, na análise a tal depoimento, não efetua qualquer referência a tal facto.
17ª. Por outro lado, tal facto é contraditório com o facto dado como não provado sob a alínea d), onde não se provou que “d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério”.
18ª. Pelo que foi indevidamente dado como provado que “13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família “, que deveria ter sido dado como não provado.
19º. Acresce que, ainda que da conjugação dos referidos depoimentos e declarações pudesse subsistir alguma dúvida sobre a realidade daqueles factos (o que, em face do respetivo teor, não se admite), estes teriam de ser dados como não provados, por
terem necessariamente de ser resolvidos contra a parte a quem ao facto aproveita, nos termos dos artºs 346º do Código Civil e artº 414º, do CPC.
20ª. Impõe-se por isso a modificação da resposta dada àquela matéria de facto, com o que, salvo melhor entendimento, resultará a revogação da douta sentença recorrida e a total improcedência da ação.
2. Sem prescindir, dos restantes fundamentos de recurso:
21ª. Mesmo na hipótese de vir a improceder a invocada impugnação da matéria de facto nos termos supra requeridos, considera-se que, de qualquer forma, os autos impõem sempre a revogação da douta decisão proferida. ASSIM:
22ª. Com a fundamentação que consta de fls 11, parte final, a fls 17, a douta sentença condenou a Ré a “1. Reconhecer a existência a favor da 1ª Autora de um contrato de concessão do direito ao uso privativo, no cemitério de (...), da parcela de terreno (campa) onde se encontra(va) sepultado o seu pai e dos demais Autores; e, consequentemente, 2. Exumar e trasladar o cadáver de J. que foi inumado na sepultura atrás identificada para outra dentro do mesmo cemitério;”
23ª. Tendo expressado adequadamente a fls 14 que “Deste modo, é evidente que a 1ª Autora não poderia ter comprado uma sepultura no cemitério de (...), administrado pela Entidade Demandada, nem esta a poderia ter vendido.”, a douta sentença suportou aquela condenação com a fundamentação de fls 15 a 17, com o que a Ré não se conforma.
24ª. Tendo por referência a data de 6 de abril de 1966, da inumação do pai dos Autores, e a data de 12 de agosto de 1984, da existência do requerimento a que alude o ponto 4 dos factos provados, as disposições legais sequencialmente aplicáveis autos são:
. O CÓDIGO ADMINISTRATIVO aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31095, de 31­12-1940, de que se salienta o disposto nos artºs 253º, nº 11, 356º, e 363º, nº 5º, e respetivo parágrafo único.
. O DECRETO nº 44220, de 3-3-1962, que veio promulgar as normas para a construção e polícia de cemitérios, de que se salienta o disposto no artº 29º.
. O DECRETO nº 48770, de 18-12-1968, que veio aprovar os preceitos a que obedecerão os regulamentos sobre polícia dos cemitérios, onde, no respetivo “Modelo de Regulamento dos Cemitérios Paroquiais”, aplicável “à inumação dos cadáveres de indivíduos falecidos na área da freguesia”, se salienta o disposto nos artºs 33º e respetivo parágrafo único, 36º e e respetivo parágrafo único.
. O DECRETO-LEI N.º 100/84, de 29-03, que veio rever “A LEI nº 79/77, de 25 de outubro, no sentido da atualização e reforço das atribuições das autarquias locais e da competência dos respetivos órgãos”, salientando-se o disposto nos artºs 27º, nº 1, al. l), 87º, e 88º, nº 1, al. e), e nº 2.
. O primeiro CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (a que se alude porque invocado na douta sentença), que só entrou em vigor posteriormente àquela data de 12 de agosto de 1984, com a sua aprovação pelo DL n.º 442/91, de 15 de Novembro, salientando-se o expresso no respetivo artº 133º, nºs 1 e 2, al. f).
25ª. Em face daqueles preceitos legais aplicáveis afigura-se inequívoco que, quer em 6-4-1966 (data da inumação do pai dos Autores) ou 12-08-1984 (data do documento a que alude o ponto 4 dos factos dados como provados) a concessão de terreno para sepultura no cemitério teria necessariamente de ser precedido de requerimento com a assinatura reconhecida do requerente, e, para além disso, ser necessariamente titulado por Alvará emitido pelo respetivo presidente da Junta de Freguesia, com descrição “dos elementos de identificação do concessionário e a sua morada, referências do jazigo ou sepultura perpétua respectivos, nele devendo mencionar-se, por averbamento, todas as entradas e saídas de restos mortais”.
26ª. ORA, como se disse, o requerimento que constitui o documento de fls 33 do suporte físico do processo, com data de 12 de agosto de 1984, expressa uma mera solicitação para “autorização da compra de terreno no cemitério Público no lugar desta freguesia lugar (...); a compra de uma campa com a dimensão de 2m,98 reservada para jazigo familiar”, sobre o qual foi aposto apenas que “Esta Junta não vê qualquer inconveniente no seu deferimento”, sendo ainda certo que, conforme declarações da Autora aludidas a fls 7 da douta sentença, foi “o seu irmão Silvestre que escreveu o recibo sobre o requerimento de fls. 33;”, ou seja, que “Pagou a Domicilia ao Manuel Gonçalves 2.000$00”.
27ª. Sendo inequívoco que, em face daqueles preceitos legais aplicáveis, tal documento carece em absoluto da forma legalmente exigível, pelo que é nulo e de nenhum efeito, também nos termos dos artº 220º, 289º, e 294º do Código Civil.
28ª. Acresce que aquele documento de 12 de agosto de 1984 não contém minimamente os “requisitos essenciais de substância e de forma”, impostos pelo artº 293º do Código Civil, que permitam a conversão de tal “pedido de compra” num Alvará administrativo de concessão de terreno para sepultura.
29ª. Sendo totalmente indevida a conclusão expressa na douta sentença a fls 15, segundo a qual, nos termos do artº 293º do Código Civil, “operou-se a conversão do negócio jurídico celebrado pela 1ª Autora e a Entidade Demandada num contrato de concessão de uso privativo do domínio público, tendo por objeto uma sepultura”.
30ª. Ao contrário do referido a fls 16 da douta sentença considera-se ainda que, tendo em conta a exigência de forma legalmente prescrita, consubstanciada na exigência de Alvará administrativo nos termos dos preceitos legais supra invocados, o teor do documento de 12 de agosto de 1984 representa um negócio jurídico legalmente impossível e indeterminável, nos termos do artº 280º, nº 1, do Código Civil.
31ª. ACRESCE ainda que a douta sentença condenou também a Ré a “3. Pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.”
32ª. Tendo em conta que os Autores são em número de cinco, é evidente o lapso da douta sentença, na medida em que, tendo a Ré que “Pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos Autores”, o total do valor indemnizatório que resulta daquela condenação é de 5.000,00 €, cuja retificação se requer.
33ª. Acresce todavia que a Ré considera nada ter a pagar aos Autores a título de danos não patrimoniais. Com efeito, tendo dado como provado que “13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família”, a douta sentença considerou ao mesmo tempo como não provado que “d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério”.
34ª. Ora, não se provando que os Autores sofreram enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, não é possível extrair-se que ficaram perturbados e incomodados e, por outro lado, não pode senão concluir-se que não existem danos morais cuja gravidade mereça a tutela do direito, nos termos do artº 496º, nº 1, do CC.
35ª. Por outro lado, tendo em conta que o documento de fls 33 / ponto 4 dos factos provados é totalmente desprovido das exigências formais legalmente impostas e nunca pode ser qualificado como o “Alvará” administrativo exigível, não pode traduzir omissão culposa e/ou grave a circunstância de se ter provado que “15. A Entidade Demandada não tinha conhecimento e não constava dos seus arquivos qualquer exemplar, cópia ou registo relativo ao documento acima aludido em 4. e 6.”
36ª. Concomitantemente, tendo em conta os factos dados como provados sob os nºs 11, 12, 16, 17, e 18, e ainda que foi dado como não provado que “b) O covado do pai dos Autores sempre se manteve em bom e regular estado de conservação“ e que “c) Ali se deslocavam os Autores nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai“, considera-se que a Ré não atuou com culpa e/ou ilicitude relativamente á inumação de J. em 7 de março de 2010, que permita ser responsabilizada por quaisquer danos morais sofridos pelos Autores.
37ª. Nestes pressupostos, deveria a Ré ter sido absolvida de todos os pedidos formulados pelos Autores, o que, salvo melhor opinião, justifica e impõe a revogação da douta sentença.
Salvo melhor opinião, consideram-se violados os preceitos legais invocados.
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supríveis por Vs. Exas., deve ser revogada a douta sentença recorrida, de onde decorrerá a improcedência total da ação, tudo com as legais e devidas consequências, por assim ser de devida e costumada
JUSTIÇA.«
1.10. Os apelados contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação e concluindo as suas contra-alegações nos termos que se seguem:
«DO RECURSO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
I – DOS FACTOS IMPUGNADOS PELA RECORRENTE

A Ré impugnou a seguinte matéria de facto, considerada provada pelo Tribunal de primeira Instância:
“5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada (cfr. fls, 33 do suporte físico do processo e depoimento da testemunha M.).
7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1,000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da ia Autora e depoimento da testemunha M.).
12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores (cfr. depoimentos das testemunhas I., L., A.).
13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família (declarações de parte da 1a Autora e fls. 106 do suporte físico do processo).

II – DA INEXISTÊNCIA DE MEIOS DE PROVA QUE GERAM DECISÃO DIVERSA (QUANTO À MATÉRIA DE FACTO) DA ADOPTADA (PELO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA)

Sucede que, em relação aos factos que o Recorrente impugna, não apresenta meios de prova que imponham decisão diversa da adoptada.

Os meios de prova que a Recorrente pretende sejam reapreciados são: um documento (em que ia Autora solicitou ao legal representante da Recorrida, à data, a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98) e as declarações prestadas pela 1.a Autora e pelas testemunhas.

Sucede que foram exactamente esses meios de prova, ou seja, as declarações de parte daqueles, que fundamentaram a decisão da matéria de facto, quanto aos factos considerados provados e impugnados em recurso. Dito por outras palavras:

Os excertos das declarações das testemunhas referenciados no recurso de apelação interposto pela Ré, para fundamentar o recurso sobre matéria de facto e a alteração da decisão que sobre os factos impugnados (pela Recorrente no recurso de apelação) recaiu,

são irrelevantes e nunca gerariam a alteração da decisão sobre qualquer um deles (dos factos impugnados pela Recorrente).

Sendo os excertos da gravação das declarações de parte da Ré e das testemunhas, transcritos pela Recorrente, numa tentativa de alicerçar o seu recurso quanto à impugnação destes factos, despiciendos.
B) – DO RECURSO DE DIREITO

Com relevância para a decisão da causa, o tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 6 de Abril de 1966, faleceu J., residente em (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, pai dos Autores (cfr. fis. 11 a 31 do suporte físico do processo).
2. O pai dos Autores foi inumado no cemitério de (...), que se situa junto à igreja dessa localidade (cfr. declarações de parte da ia Autora e depoimento das testemunhas M., L., A., A. e J.).
3. O pai dos Autores foi sepultado na segunda campa situada a nascente do cemitério, sentido Norte-Sul (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas M., L., A., A. e J.).
4. No dia 12 de agosto de 1984, a 1ª Autora solicitou ao legal representante da Entidade Demandada, mediante requerimento a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar (cfr. fis 33 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada (cfr. fls. 33 do suporte físico do processo e depoimento da testemunha M.).
7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1.000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
8. Nos anos de 1984 e 1985, a Entidade Demandada procedeu à concessão de parcelas de terreno no cemitério de (...) a outros habitantes da freguesia, atribuindo-lhes, na sequência do deferimento dos respectivos requerimentos, o uso exclusivo, privativo e perpétuo dos talhões concessionados (cfr. fls. 101 a 104 do suporte físico do processo e depoimento das testemunhas M., N., I. e A.).
9. No dia 7 de Março de 2010, pelas 13.30h, na cova em que se encontrava sepultado o pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, J., sem o conhecimento prévio nem o consentimento dos Autores (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas A., M. e J.).
10. No mesmo dia, o 2º Autor dirigiu-se à Entidade Demandada para procurar solucionar a situação (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo e declarações de parte de Elisabete Santos).
11. A Entidade Demandada contactou a família do defunto J., para tentar remediar a situação, mas não obteve a sua anuência para a exumação e trasladação dos seus restos mortais (cfr. fls. 107 do suporte físico do processo).
12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores (cfr. depoimentos das testemunhas I., L., A.).
13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado uni terceiro, estranho à sua família (declarações de parte da 1ª Autora e fls. 106 do suporte físico do processo).
14. Os familiares de J. prestam-lhe homenagem junto do respectivo túmulo, tendo erigido uma lápide no local (cfr. depoimentos das testemunhas I. e M.).
15. A Entidade Demandada não tinha conhecimento e não constava dos seus arquivos qualquer exemplar, cópia ou registo relativo ao documento acima aludido em 4. e 6. (cfr. declarações de parte de Elisabete de Jesus dos Santos).
16. Os 2º e 3º Autores estiveram presentes no funeral de J. e nada invocaram ou opuseram nesse momento (cfr. depoimentos das testemunhas A., M. e A.).
17. Não existia, em 2010, no local do túmulo do pai dos Autores qualquer lápide, objecto de culto ou qualquer objecto a assinalar a respectiva campa (cfr. depoimentos das testemunhas M., J. e A.).
18. Já após a data da propositura da presente ação, foi colocada uma placa ou lápide onde consta o nome e data da morte do pai dos Autores junto ao túmulo deste (cfr. declarações de parte da ia Autora e depoimentos das testemunhas L., M., A.).
19. Pelo menos até ao ano de 2010, na povoação de (...), quem determinava o lugar da inumação era o coveiro, em colaboração com a família do falecido, escolhendo urna das sepulturas que há mais tempo tinha sido utilizada (cfr. depoimentos das testemunhas M., A. e M.).
20. A viúva e a filha do falecido J. escolheram aquele local de sepultura para este, porque ao lado ou próximo do mesmo se encontravam as sepulturas de uma 7 irmã e um irmão, dos avós e outros familiares da 1ª chamada (cfr. depoimentos das testemunhas A. e M.).

Quanto ao recurso sobre a matéria de Direito, limita-se a Recorrente a despejar “frases feitas” que a deviam alertar para a falta de fundamento do seu recurso. Com efeito,
10º
sublinha-se que foi feita a prova da celebração do negócio efectuado entre a Junta e a Autora,
11º
tendo sido confessado ainda pela Ré, ora Recorrente, de forma inequívoca, no artigo 29.º da Contestação (e que aceite foi para não mais ser retirado dos autos), que, nos anos 1984/1985 aquela atribuiu concessões para sepulturas.
12º
Os cemitérios públicos (como o referido nos Autos) são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e pelas Freguesias,
13º
afectos a um fim de utilidade pública, ou seja, ao uso directo e imediato do público.
14º
Sendo, assim, tais terrenos insusceptíveis de direitos privados,
15º
apenas sendo consentido aos particulares o seu uso privativo (ainda que com carácter perpétuo).
16º
No caso “sub judice”, a utilização do terreno, por parte dos Autores, no cemitério de (...), para sepultura de seu falecido pai,
17º
constitui uma das formas de utilização do domínio público pelos particulares,
18º
sendo que o título constitutivo dessa utilização ou uso privativo passou por um negócio jurídico bilateral entre a Autora D. e a Junta de Freguesia, isto é, um contrato (sendo este um contrato de concessão).
19º
E contrato de concessão de uso privativo do domínio público que se consubstanciou num contrato administrativo, plenamente válido,
20º
pelo que, da afectação do uso da parcela de terreno no cemitério de (...) para inumação do pai dos Autores, através do contrato de concessão,
21º
resultaram e resultam direitos reais administrativos, que se encontram, consequentemente, subordinados ao direito administrativo e que consolidados se encontram na esfera jurídica da Autora D. e na Ordem Jurídica.
22º
Dispõe o artigo 178.º, n.º 1 do CPA que contrato administrativo é o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
23º
Ré, ora Recorrente, quem, com a sua conduta (ao autorizar a inumação de outrem na campa onde estava inumado o pai dos Autores), violou o direito ou interesse imanente ao contrato de concessão existente.
24º
Não padecendo, consequentemente, tal concessão, dos vícios, de facto e de direito, que imputados lhe são pela Ré, ora Recorrente.
TERMOS EM QUE dever ser julgado improcedente o recurso interposto pela Ré/Recorrente, pelos fundamentos supra expostos ou outros que V. Exas. se dignarão suprir, mantendo-se na íntegra a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância para, assim, se fazer JUSTIÇA.»
1.11. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer.
1.12. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1 Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas pela Apelante à apreciação deste TCAN resumem-se ao seguinte:
1- se ao julgar provada a facticidade dos pontos n.ºs 5, 6, 7, 9, 12 e 13 dos factos provados na sentença recorrida, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, e se uma vez revisitada e reponderada a prova produzida, se impõe alterar a materialidade fáctica assim julgada provada, dando-se a mesma como não provada;
2- se na sentença recorrida, ao condenar o Réu a reconhecer a existência a favor da 1.ª Autora de um contrato de concessão do direito ao uso privativo, no cemitério de (...), da parcela de terreno ( campa) onde se encontra (va) sepultado o seu pai e dos demais Autores e, consequentemente, exumar e transladar o cadáver de J. que foi inumado na sepultura atrás identificada para outra dentro do mesmo cemitério, a 1ª Instância incorreu em erro de direito ao não considerar como exigível que a concessão de terreno para sepultura no cemitério teria necessariamente de ser precedida de requerimento com a assinatura reconhecida do requerente, e, para além disso, ser necessariamente titulado por Alvará emitido pelo respetivo presidente da Junta de Freguesia, carecendo tal documento em absoluto da forma legalmente exigível, pelo que é nulo e de nenhum efeito, nos termos dos artº 220º, 289º, e 294º do Código Civil, para além de não conter os requisitos de impostos pelo artigo 293º do Código Civil, que permitam a conversão de tal “pedido de compra” num Alvará administrativo de concessão de terreno para sepultura.
3- se a sentença recorrida ao condenar a Ré a pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, incorreu em lapso de escrita e em erro de direito por não se terem provados o danos morais invocados cuja gravidade mereça a tutela do direito, nem os pressupostos da culpa e da ilicitude.
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III- FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu como assentes os seguintes factos
«1. No dia 6 de abril de 1966, faleceu J., residente em (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, pai dos Autores (cfr. fls. 11 a 31 do suporte físico do processo).
2. O pai dos Autores foi inumado no cemitério de (...), que se situa junto à igreja dessa localidade (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas M., L., A., A. e J.).
3. O pai dos Autores foi sepultado na segunda campa situada a nascente do cemitério, sentido Norte-Sul (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas M., L., A., A. e J.).
4. No dia 12 de agosto de 1984, a 1ª Autora solicitou ao legal representante da Entidade Demandada, mediante requerimento a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar (cfr. fls 33 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada (cfr. fls. 33 do suporte físico do processo e depoimento da testemunha M.).
7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1.000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
8. Nos anos de 1984 e 1985, a Entidade Demandada procedeu à concessão de parcelas de terreno no cemitério de (...) a outros habitantes da freguesia, atribuindo-lhes, na sequência do deferimento dos respetivos requerimentos, o uso exclusivo, privativo e perpétuo dos talhões concessionados (cfr. fls. 101 a 104 do suporte físico do processo e depoimento das testemunhas M., N., I. e A.).
9. No dia 7 de março de 2010, pelas 13.30h, na cova em que se encontrava sepultado o pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, J., sem o conhecimento prévio nem o consentimento dos Autores (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas A., M. e J.).
10. No mesmo dia, o 2º Autor dirigiu-se à Entidade Demandada para procurar solucionar a situação (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo e declarações de parte de Elisabete Santos).
11. A Entidade Demandada contactou a família do defunto J., para tentar remediar a situação, mas não obteve a sua anuência para a exumação e trasladação dos seus restos mortais (cfr. fls. 107 do suporte físico do processo).
12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores (cfr. depoimentos das testemunhas I., L., A.).
13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família (declarações de parte da 1ª Autora e fls. 106 do suporte físico do processo).
14. Os familiares de J. prestam-lhe homenagem junto do respetivo túmulo, tendo erigido uma lápide no local (cfr. depoimentos das testemunhas I. e M.).
15. A Entidade Demandada não tinha conhecimento e não constava dos seus arquivos qualquer exemplar, cópia ou registo relativo ao documento acima aludido em 4. e 6. (cfr. declarações de parte de Elisabete de Jesus dos Santos.
16. Os 2º e 3º Autores estiveram presentes no funeral de J. e nada invocaram ou opuseram nesse momento (cfr. depoimentos das testemunhas A., M. e A.).
17. Não existia, em 2010, no local do túmulo do pai dos Autores qualquer lápide, objeto de culto ou qualquer objeto a assinalar a respetiva campa (cfr. depoimentos das testemunhas M., J. e A.).
18. Já após a data da propositura da presente ação, foi colocada uma placa ou lápide onde consta o nome e data da morte do pai dos Autores junto ao túmulo deste (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimentos das testemunhas L., M., A.).
19. Pelo menos até ao ano de 2010, na povoação de (...), quem determinava o lugar da inumação era o coveiro, em colaboração com a família do falecido, escolhendo uma das sepulturas que há mais tempo tinha sido utilizada (cfr. depoimentos das testemunhas M., A. e M.).
20. A viúva e a filha do falecido J. escolheram aquele local de sepultura para este, porque ao lado ou próximo do mesmo se encontravam as sepulturas de uma irmã e um irmão, dos avós e outros familiares da 1ª chamada (cfr. depoimentos das testemunhas A. e M.).
*
Não se provaram os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
a) A Entidade Demandada reconheceu imediatamente o lapso, ao permitir sepultar um defunto no covado pertença da 1ª Autora, tendo-se comprometido a resolver a situação.
b) O covado do pai dos Autores sempre se manteve em bom e regular estado de conservação.
c) Ali se deslocavam os Autores nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai.
d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério.»
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III.B. DE DIREITO
b.1. da impugnação do julgamento da matéria de facto.
3.2.O Apelante impugna o julgamento da matéria de facto julgada provada pela 1ª Instância nos pontos 5, 6, 7, 9, 12 e 13 da sentença sob sindicância, pretendendo que a prova produzida não consente que se julgue provada essa concreta facticidade, a qual deve antes ser dada como não provada.
A matéria de facto dada como provada nesses pontos é a seguinte:
“5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada (cfr. fls, 33 do suporte físico do processo e depoimento da testemunha M.).
7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1,000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da ia Autora e depoimento da testemunha M.).
9. No dia 7 de Março de 2010, pelas 13.30h, na cova em que se encontrava sepultado o pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, J., sem o conhecimento prévio nem o consentimento dos Autores (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas A., M. e J.).
12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores (cfr. depoimentos das testemunhas I., L., A.).
13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família (declarações de parte da 1a Autora e fls. 106 do suporte físico do processo).”
3.2.2. Antes de mais, cumpre assinalar que o Apelante, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, cumpriu com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto que lhe são impostos pelo art.º 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, ex vi, art. 1º do CPTA, na medida em que indica, nas conclusões de recurso, os concretos pontos da matéria de facto que impugna (os pontos 5, 6, 7, 9, 12 e 13 dos factos julgados provados na sentença,) e, bem assim, enuncia, na motivação de recurso e, inclusivamente, indevidamente, nas conclusões (sem que daqui decorra qualquer repercussão jurídica para a admissibilidade legal do tribunal ad quem poder entrar na apreciação dessa impugnação), a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto que impugna, assim como indica quais os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impõem esse julgamento da matéria de facto diverso que propugna, fazendo uma análise minimamente crítica desses meios de prova, por forma a demonstrar o porquê de os mesmos não consentirem o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, mas antes imporem o por si propugnado, e quanto aos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que foram objeto de gravação, indica o início e o termo dos excertos da prova pessoal em que funda o seu recurso e, inclusivamente, procede à transcrição destes.
Deste modo, é apodítico que o Apelante cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto a que se encontra legalmente adstrito, o que nem sequer vem colocado em crise pelos apelados, pelo que nos abstemos de tecer maiores, por desnecessárias, delongas e considerações a propósito dos mencionados ónus impugnatórios e respetivo cumprimento pelo apelante, pelo que, do ponto de vista estritamente processual, nenhum óbice legal se suscita quanto à possibilidade deste tribunal entrar na apreciação dessa impugnação.
3.2.3.Posto isto, incumbe precisar que em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância e submetida ao princípio da livre apreciação da prova, do regime jurídico que se encontra explanado no art.º 662º do CPC, decorre ser propósito do legislador que o tribunal de 2ª Instância realize um novo julgamento em relação à matéria de facto impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Deste modo, perante as regras positivas vigentes na atual lei processual civil aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o tribunal ad quem deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade.
Nesse novo julgamento, como verdadeiro tribunal de substituição que é, o tribunal ad quem tem autonomia decisória, devendo apreciar livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão e que, portanto, se encontrem subtraídos ao princípio da livre convicção do julgador (art.º 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, o tribunal de recurso não se encontra condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que esta fez dessa mesma prova, podendo, na formação dessa sua convicção autónoma este TCAN recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, uma vez realizado esse novo julgamento, para que seja possível ao tribunal ad quem alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, não basta que a prova indicada pelo recorrente, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal de recurso, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento diverso que vem propugnado pelo mesmo, mas antes que o imponha.
Com efeito, o n.º 1 do art.º 662º, n.º 1 do CPC é expresso ao estatuir que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, não bastando, por isso, que a prova produzida consinta ou admita o julgamento de facto diverso que vem propugnado pelo recorrente, mas antes que o imponha.
Essa exigência legal decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, pelo que sempre que a impugnação do julgamento da matéria de facto verse sobre matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova, o tribunal de recurso nunca poderá deixar de ter presente os enunciados princípios e, bem assim a consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não podendo, por isso, aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao julgador da 1ª Instância, sequer desconsiderar, em absoluto, os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final.
Daí que o uso pelo tribunal de recurso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto só deva ser usado quando seja possível concluir, face à prova produzida, com a necessária segurança, pela existência de um efetivo erro na apreciação da prova relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente, isto é, quando após proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, se conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Daqui deriva que “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609..
Posto isto, entremos na concreta apreciação do julgamento da matéria de facto impugnado pelo apelante.
b.1.2- Da impugnação dos pontos 5, 6 e 7 dos factos provados.
3.4. Nos pontos 5, 6 e 7 dos factos provados, a 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade:
“5. Essa campa correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimento da testemunha M.).
6. O referido requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada (cfr. fls, 33 do suporte físico do processo e depoimento da testemunha M.).
7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1,000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da Autora e depoimento da testemunha M.)”.
3.4.1. O Apelante considera que não pode dar-se como provado que essa campa, ou seja, aquela a que se refere o requerimento de compra apresentado pela Autora, correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado, asseverando que do depoimento da referida testemunha M. não resulta que o mesmo sabia que a campa a que se referia o documento de fls. 33 dos autos era efetivamente aquela em que o pai dos autores havia sido inumado no cemitério de (…), tal como resulta do seu depoimento quando afirma a dado passo que: “Declarou que vendeu à 1.ª Autora a campa que já existia antes, onde estava enterrado o seu pai, mas que não sabia onde era até então, tendo ido ao cemitério com a própria no mesmo dia, tendo-lhe aí sido indicada a mesma”.
3.4.2.Não vem impugnado pelo Apelante, sendo matéria de facto definitivamente assente, que no dia 06 de abril de 1966, faleceu J., residente em (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, pai dos Autores (cfr. ponto 1 do elenco dos factos provados) e que o mesmo foi então inumado no cemitério de (...), que se situa junto à igreja dessa localidade ( cfr. ponto 2 do elenco dos factos provados), tendo sido sepultado na segunda campa situada a nascente do cemitério, sentido Norte-Sul.
Também não vem questionado pelo Apelante que no dia 12 de agosto de 1984, a 1ª Autora solicitou ao legal representante da Entidade Demandada, mediante requerimento a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar ( cfr. ponto 4 do elenco dos factos provados)
3.4.3. Precise-se que na sequência da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pelo apelante tivemos o cuidado de proceder à audição integral de todos os depoimentos prestados em audiência final e de proceder à análise de toda a prova documental que se encontra junta aos autos, e mal descortinamos fundamento fáctico para a impugnação do julgamento da matéria de facto operada pelo apelante, a qual passa pela desconsideração ou desvalorização, quiçá, uma deficiente interpretação ou leitura pelo mesmo daquela que foi a versão dos factos apresentada pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
3.4.4. Confirmamos que a 1.ª Autora, em sede de depoimento de parte que prestou, disse expressamente que na altura foi ao cemitério com a testemunha M., e que este mediu e marcou com dois paus a sepultura, mas que aqueles desapareceram depois e que pagou mais de 1.000$00 pela campa, não se recordando do montante exato, tendo afirmado ter sido o seu irmão S. que escreveu o recibo sobre o requerimento de fls. 33 dos autos.
3.4.5. As declarações prestadas pela 1.ª Autora foram no essencial corroboradas pela testemunha M., que como bem se refere na motivação da fundamentação de facto avançada pelo julgador a quo foi« tesoureiro da Entidade Demandada entre 1982 e 1990» tendo confirmado « a autoria do requerimento de fls. 33, bem como o seu deferimento pelo Presidente da Junta de Freguesia, tendo ideia de ter cobrado 1.000$00 pelo jazigo, sem cujo pagamento não teria sido deferida a venda do terreno. Declarou que vendeu à 1ª Autora a campa que já existia antes, onde estava enterrado o seu pai, mas que não sabia onde era até então, tendo ido ao cemitério com a própria no mesmo dia, tendo-lhe aí sido indicada a mesma. Esclareceu que, antes de 1982, as pessoas enterravam os mortos onde queriam, deixava-se passar cinco a dez anos e enterrava-se outras pessoas no mesmo local. Depois, a junta de freguesia começou a vender às pessoas as campas dos seus familiares, mas continuou-se a proceder como antes nos casos de defuntos que não tinham campas».
3.4.6.É certo que a testemunha M., como observa o Apelante, desconhecia onde tinha sido sepultado o pai da Autora, falecido há vários anos antes- 06 de abril de 1966- quando na sequência do requerimento de compra de uma parcela de terreno no cemitério de (...) destinada a jazigo, apresentado pela 1.ª Autora a 12 de agosto de 1984, aquele se deslocou com a 1.ª Autora, nesse mesmo dia, ao referido cemitério.
Porém, resulta inequívoco do seu depoimento a afirmação de que a parcela de terreno que foi “vendida” à 1.ª Autora, coincide com uma “campa que já existia antes, onde estava enterrado o seu pai”, a qual lhe foi indicada pela Autora nessa data. E note-se que esta versão dos factos coincide com a versão dos factos que resulta das declarações de parte prestadas pela 1.ª Autora a qual foi perentória em afirmar, repete-se, que comprou a sepultura do seu pai à junta de freguesia, por ter ouvido dizer que esta andava a vender sepulturas, pela qual pagou mais de 1.000$00 por ela, embora tenha sido o seu irmão Silvestre que escreveu o recibo sobre o requerimento de fls. 33 e que, nessa altura, foi ao local com a testemunha M., tendo este medido e marcado com dois paus a sepultura, mas que aqueles desapareceram depois.
3.4.7.Assim, se é certo que a testemunha M. não sabia onde tinha sido sepultado o pai da Autora, também é certo que logo no dia 12 de agosto de 1984, quando a Autora apresentou o requerimento de compra de uma parcela de terreno no cemitério de (...) para jazigo familiar e aquele se deslocou com a mesma a esse cemitério, aquela logo lhe indicou/sinalizou que a parcela que pretendia adquirir era a correspondente ao local onde se situava o túmulo do seu pai. Sendo assim, é caso para perguntar porque razão a 1.ª Autora pretendia adquirir aquela concreta parcela de terreno no cemitério de (...) e não uma outra qualquer, se ali não estivesse sepultado o seu pai? Note-se que não foi indicada nenhuma razão pelo Apelante, em sede de contestação, que permitisse perceber o interesse da 1.ª Autora por aquele concreto local do cemitério e não por um qualquer outro local disponível nesse cemitério. Por outro prisma, tendo a 1.ª Autora perdido o pai em abril de 1966 e encontrando-se o mesmo sepultado naquele cemitério de (...), á luz das regras da experiência de vida é compreensível que a mesma, pretendendo adquirir um terreno para jazigo familiar, quisesse adquirir o local onde estava sepultado o seu ente querido, numa atitude de respeito e de piedade para com o seu familiar. O contrário é que não seria assaz compreensível ou, no mínimo, expectável, face às normais regras da experiência de vida.
3.4.8.Quanto à matéria do ponto 6 dos factos assentes, o Apelante considera que do depoimento de M. não pode extrair-se que o mesmo soubesse que o requerimento apresentado pela autora pelo qual a mesma solicitou a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), tivesse sido deferido pelo Presidente da Entidade Demandada, uma vez que a testemunha M. era apenas “tesoureiro da Entidade Demandada entre 1982 e 1990. E que, por outro lado, o documento de fls. 33 que serviu de fundamento probatório, apenas resulta que “Esta junta não vê qualquer inconveniente no seu deferimento».
3.4.9.A este respeito dir-se-á que o facto da testemunha M. ser apenas o tesoureiro da Junta de Freguesia e não o seu Presidente, não torna o seu depoimento quanto a essa matéria irrelevante, mas determinante. Sendo tesoureiro da Entidade Demandada, não só integrava o órgão executivo, como era funcionalmente responsável por todos os movimentos financeiros daquela autarquia local, tendo por força do exercício dessas funções um conhecimento amplo de todos os contratos e compromissos assumidos pela respetiva autarquia. Assim, tendo o mesmo afirmado que o requerimento de compra da parcela de terreno para jazigo familiar no cemitério de (...), apresentado pela autora no dia 12 de agosto de 1984, foi deferido pelo Presidente da Junta de Freguesia respetiva, órgão que o mesmo integrava, não vemos qualquer razão para dar como não provado esse facto. Ademais, se assim não fosse, não se compreende que nesse mesmo dia, a referida testemunha se tivesse deslocado com a 1.ª Autora ao cemitério de (...) para proceder à marcação da parcela de terreno destinada a jazido familiar que a Autora pretendia adquirir e que, como vimos, correspondia ao local onde se encontrava sepultado o seu pai.
3.4.10.No que concerne à matéria do ponto 7 dos factos assentes, o Apelante sustenta que a mesma não podia ser dada como provada, com fundamento no depoimento da testemunha Manuel Inácio, tendo em conta que do documento de fls. 33 resulta que, ao invés de qualquer concessão, a Autora solicitou “autorização da compra de terreno no cemitério Público no lugar desta freguesia de (...)”, para além de resultar da motivação da fundamentação de facto ter sido a própria Autora quem referiu que tinha “sido o seu irmão Silvestre que escreveu o recibo sobre o requerimento de fls. 33».
Considerando o depoimento de parte da 1.ª Autora e, bem assim, o depoimento prestado pela testemunha M., não vemos fundamento para revogar o julgamento de facto realizado pela 1.ª Instância na parte em que dá como assente que a 1.ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1,000$00 a 2,000$00 pela parcela de terreno em causa. É a própria autora que o declara em depoimento de parte, o que é confirmado pela testemunha M., que na qualidade de tesoureiro, detém uma posição qualificada na estrutura da Entidade Demandada que confere credibilidade ao seu depoimento.
Apenas quanto ao inciso “concessão” que consta desse ponto da matéria de facto assente, assiste razão ao Apelante. Na verdade, trata-se de um conceito de direito, e como tal não deve ser levado aos factos assentes.
Assim sendo, altera-se o ponto 7 da matéria de facto assente, devendo dele passar a constar o seguinte:
«7. A 1ª Autora pagou uma quantia entre PTE 1,000$00 a 2.000$00 pela parcela de terreno em causa (cfr. declarações de parte da Autora e depoimento da testemunha M.)”.
b.1.3- Da impugnação do ponto 9 dos factos provados.
3.5.O Apelante impetra erro de julgamento sobre a seguinte matéria de facto julgada provada no ponto 9 dos factos assentes: « 9. No dia 7 de Março de 2010, pelas 13.30h, na cova em que se encontrava sepultado o pai dos Autores, foi sepultado outro defunto, J., sem o conhecimento prévio nem o consentimento dos Autores (cfr. fls. 106 do suporte físico do processo, declarações de parte da 1ª Autora e depoimento das testemunhas A., M. e J.)».
Refere a esse respeito que a resposta dada a esta matéria se encontra em contradição com a resposta dada ao ponto 16, quando aí dá como provado que 16. Os 2º e 3º Autores estiveram presentes no funeral de J. e nada invocaram ou opuseram nesse momento”.
Segundo o Apelante, houve conhecimento prévio e consentimento tácito dos Autores para que J. fosse sepultado na cova em que se encontrava sepultado o pai daqueles e isso, porque, os 2.º e 3.º Autores estiveram presentes no funeral daquele e na invocaram ou opuseram nesse momento. Mas sem razão.
3.5.1.Prima facie, refira-se que a circunstância comprovada de os 2.º e 3.º Autores terem estado presentes no funeral de J. e não se terem oposto a que aquele fosse inumado na campa que era onde se encontrava sepultado o pai de ambos, sequer nada tendo dito, não permite que daí se conclua, sem mais, ocorrer uma contradição entre a matéria provada no ponto 9 com a matéria provada neste ponto 16 do elenco dos factos provados.
3.5.2.Note-se que, se assim fosse, não se compreenderia que, conforme resulta do depoimento prestado por E., legal representante da Entidade Demandada desde 2017, logo no dia do funeral do J., o 2º Autor se tivesse dirigido à junta de freguesia a queixar-se que tinham enterrado outro senhor na sepultura do pai.
O facto de os 2.º e 3.º Autores terem estado presentes no funeral de J. e nada terem dito, muito menos oposto a que o mesmo fosse inumado no túmulo onde se encontrava sepultado o pai de ambos, não é algo de tão bizarro que só possa significar que agiram dessa forma porque tiveram conhecimento prévio e consentiram que essa inumação fosse efetuada na referida campa.
3.5.3.Note-se que quem comparece a um funeral, participa numa cerimónia de despedida, ou por assim dizer, num último adeus a alguém que respeita ou a cuja família quer prestar a sua solidariedade e apoio num momento que é de dor e mágoa, e como tal, perante o inusitado de uma situação como a que sucedeu, é compreensível que os 2.º e 3.º autores nada tenham dito ou feito nesse concreto momento e circunstância, inibindo-se de criar uma situação que tornaria aquele momento ainda mais doloroso, acrescentando perturbação e confusão entre os presentes e quiçá impedindo, ou pelo menos, manchando a despedida ao falecido quando posteriormente poderiam resolver essa situação de forma menos agressiva.
3.5.4. Acresce que, de toda a prova a cuja audição procedemos de forma alguma resulta comprovado que os Autores tivessem conhecimento prévio e que tivessem consentido que na sepultura do pai dos autores ali fosse enterrado outro defunto. A igual conclusão se chega quando se atenta nos depoimentos invocados pelo Apelante.
Vejamos.
Se atentarmos no depoimento da testemunha A., cunhado do falecido J., que afirmou ter conhecido o falecido pai dos Autores, o mesmo confirmou que o túmulo onde se encontrava sepultado o pai dos Autores é o túmulo onde anteriormente tinham sido inumados os seus avós, e o mesmo local fora sepultado o marido da 1ª chamada. Disse ainda que nessa altura, se enterravam os mortos nas sepulturas mais antigas e que não havia marcação das sepulturas. Afirmou também que a testemunha M. vendeu as sepulturas como quis, sem consultar o povo, apesar do cemitério ser pequeno e referiu que o enterro do seu cunhado foi naquele local porque era uma das sepulturas mais antigas, já que não tinha sido ninguém enterrado ali entre 1966 e 2010, e porque já lá estavam os restos mortais dos seus avós.
3.5.5.A consideração deste depoimento de forma alguma permite alicerçar a tese do Apelante de acordo com a qual os Autores tinham conhecimento prévio e deram o seu consentimento tácito para que na sepultura do seu pai ali fosse inumado o cunhado da testemunha. Aliás, deste depoimento resulta que a sepultura onde foi inumado o falecido J. era onde se encontrava sepultado o pai dos Autores e que o seu cunhado fora ali enterrado não porque tivesse havido consentimento dos Autores mas porque era uma das sepulturas mais antigas, já que não tinha sido ninguém enterrado ali entre 1966 e 2010, e porque já lá estavam os restos mortais dos seus avós.
3.5.6. Outrossim, também o depoimento prestado pela testemunha M., não constitui fundamento probatório capaz de abalar o julgamento de facto realizado pela 1.ª Instância. Esta testemunha, no essencial do seu depoimento, disse que o seu avô foi coveiro durante muitos anos no cemitério de (...), e que estão lá sepultados a sua avó e o seu irmão, razão pela qual visita o referido cemitério há 36 anos a esta parte. Esclareceu que era habitual enterrar as pessoas que iam morrendo nas sepulturas mais antigas, com mais de dez anos e que na sepultura onde fora enterrado o J., só após o seu funeral é que foi lá colocada a lápide alusiva ao pai dos Autores. Frisou que apesar de estes andarem a afirmar que tinham comprado aquela campa, não tinham número nem confrontações, ao contrário do que acontece no seu caso desde há três ou quatro anos e que se abriu a sepultura do J. naquele local porque estavam lá antepassados dele e que aquela campa, a segunda ao fundo do lado esquerdo, estava desleixada antes de 2010. Acrescentou ainda que no dia do funeral deste último, viu os 2º e 3º Autores lá, mas ninguém disse nada, sabendo que o primeiro foi à tarde falar com a Presidente da junta de freguesia e com o pároco, tendo aquela ligado à 1ª chamada.
Ora, tendo sido este o teor do depoimento da referenciada testemunha, não resulta do mesmo que, primeiro, o pai dos Autores não estivesse sepultado desde a sua morte no ano de 1966, no túmulo onde em 2010 foi inumado o falecido J. e que os Autores tivessem conhecimento prévio e tivessem consentido na inumação de J. naquele túmulo onde jaziam os restos mortais do pai dos Autores.
3.5.7.Por sua vez, a testemunha A., que disse ser sobrinho e primo de cada uma das chamadas, respetivamente, e filho da testemunha J., afirmou que o seu pai morreu em 2001 e que aquele recanto do cemitério foi sempre da família, havendo campas ao lado sem identificação, admitindo ter visto uma placa alusiva ao pai dos Autores, mas só depois do enterro do J.. Além disso, corroborou que o critério seguido na aldeia era de enterrar os mortos onde estivessem as sepulturas mais antigas, apesar de ter sabido por outros que o M. tinha tomado a iniciativa de vender sepulturas.
3.5.8.Em bom rigor, do depoimento destas testemunhas não se colhe nenhum contributo que possa servir de fundamento probatório para se concluir que os Autores tinham conhecimento prévio e tinham consentido que o falecido J. fosse inumado onde se encontrava sepultado o seu pai.
3.5.9.Por isso, é manifesta a falta de razão do Apelante, nenhum fundamento se descortinando para que esta 2.ª Instância ponha em crise o julgamento efetuado pelo Tribunal a quo, a que acresce o facto não despiciendo de ter sido perante a 1.ª Instância que as testemunhas depuseram em audiência de julgamento e, como tal, ser o senhor juiz a quo, por força dessa imediação, aquele que teve a melhor oportunidade para aferir da credibilidade de cada um dos depoimentos prestados. A imediação na produção da prova tem um peso significativo na livre apreciação da prova, porquanto, presenciando-se a produção da prova, observa-se diretamente a espontaneidade dos depoentes e as reações às questões que lhes vão sendo colocadas, percecionando-se todo um conjunto de elementos não verbais relevantes para a formação da convicção e para a valoração e apreciação crítica da globalidade da prova.
Como alertava já Eurico Lopes Cardoso, os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspeto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe e como tal apreendidos ou percecionados por outro Tribunal que pretenda fazer a reapreciação da prova testemunhal, sindicando os termos em que a mesma contribuiu para a formação da convicção do julgador, perante o qual foi produzida -cfr. BMJ n.º 80, págs. 220/ 221.

3.5.10. Por fim, observe-se que embora o Apelante alegue a existência de uma contradição entre os factos inscritos no ponto 9 dos factos assentes e aqueloutros inscritos no artigo 16, o mesmo não cuidou de explicar porque razão essa aparente contradição não passa disso mesmo, sendo foi parco na análise critica dos meios de prova em que o Tribunal a quo se alicerçou para a formação da sua convicção, não se tendo empenhado suficientemente em tornar percetível a este Tribunal ad quem as razões pelas quais a sua convicção sobre o julgamento da matéria de facto se deve sobrepor à convicção que o Tribunal a quo formou quanto às provas que teve de considerar e ponderar,
Nestes termos, improcede o invocado fundamento de recurso.
b.1.4- Da impugnação do ponto 12 dos factos provados.
3.6. No ponto 12 dos factos provados deu-se como provado que:
«12. Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores (cfr. depoimentos das testemunhas I., L., A.)».
3.6.1.Entende o Apelante que esta matéria dada como provada no ponto 12 se encontra em contradição com os factos provados sob os n.ºs 17 e 18, quando referem:
«17. Não existia, em 2010, no local do túmulo do pai dos Autores qualquer lápide, objeto de culto ou qualquer objeto a assinalar a respetiva campa (cfr. depoimentos das testemunhas M., J. e A.).
18. Já após a data da propositura da presente ação, foi colocada uma placa ou lápide onde consta o nome e data da morte do pai dos Autores junto ao túmulo deste (cfr. declarações de parte da 1ª Autora e depoimentos das testemunhas L., M., A.)».
3.6.2.E que tal ponto dos factos assentes também se encontra em contradição com os factos não provados sob as alíneas b) e c) onde se considerou como não provada a seguinte matéria:
« b) O covado do pai dos Autores sempre se manteve em bom e regular estado de conservação.
c) Ali se deslocavam os Autores nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai.»
3.6.3. Mas claramente sem razão. Como já dissemos, o Apelante lança para a ribalta da discussão os factos provados que considera que deviam ser dados como não provados, aqueloutros que também foram dados como provados mas que alega estarem em contradição com os dados como provados, e, bem assim, os factos que foram dados como não provados que também deviam levar à conclusão que pretende seja extraída pelo Tribunal ad quem, mas não cuida de ir ao fundo das questões que coloca, ou seja, não trata de explicar de forma justificada porque é que na sua perspetiva existem factos em contradição com outros factos, antes remete o Tribunal para esse exercício, com que o que cumpre, de forma muito deficitária, o ónus de proceder à analise critica das provas que invoca.
3.6.4. Procedendo-se a essa análise crítica através de uma ponderação rigorosa sobre a facticidade e os meios probatórios que levaram a 1.ª Instância a dar como assente a facticidade vertida em todos os identificados pontos dos factos assentes ( 12,17 e 18) e bem assim a facticidade dada como não provada nas citadas alínea b) e c), deparasse-nos com alguma evidência não existir qualquer contradição.
3.6.5.A facticidade dada como assente no ponto 12, de acordo com a qual o Tribunal a quo considerou que os Autores se deslocavam com pouca frequência à campa do falecido pai, basicamente restrita ao Dia dos Fieis Finados, altura em que procediam à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores, não está em contradição com a facticidade dada como provada no ponto 17, onde se dá como assente que sobre a campa dos pais dos Autores não existia, até ao ano de 2010, qualquer lápide, objeto de culto ou qualquer objeto a assinalar a respetiva campa. É da experiência de vida e apreensível por qualquer cidadão designadamente a residir em meio rural, onde se mantém vivo o culto dos familiares aos seus mortos pela prática habitual dos familiares sobrevivos assearem semanalmente as campas dos entes queridos, lavando-as e colocando flores novas nas respetivas jarras ou floreiras, que existem situações em que essa prática e esse modo de prestar culto aos respetivos entes queridos não se verifica, havendo por isso jazigos se encontram totalmente abandonados, a par de outros casos em que aqueles apenas são cuidados pontualmente, em regra, por ocasião do Dia dos Fieis Finados, data em que é habitual os familiares deslocarem-se ao cemitério (s) onde jazem os seus entes queridos para lhe prestarem a sua homenagem. Daí não vislumbrarmos a existência de uma qualquer contradição entre a matéria provada no ponto 12 e a vertida nos pontos 17 e 18.
3.6.6. Do mesmo modo, também não vemos qualquer contradição entre a prova dessa matéria do ponto 12 e o facto de ter sido julgado como não provado que (i) o côvado do pai dos autores sempre se tivesse mantido em bom e regular estado de conservação; (ii) e que aqueles ali se deslocassem nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai.
O dar-se como provado no ponto 12 que «Os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência, especialmente no Dia dos Fiéis Finados, procedendo à sua limpeza, retirando ervas e aí depondo flores» não só não contradiz a matéria dada como assente nos pontos 17 e 18 e os factos considerados não provados nas indicadas alíneas, como milita nesse sentido. De facto, se os Autores se deslocavam com pouca frequência ao túmulo do seu pai, naturalmente que aquele não podia estar em bom e regular estado de conservação, uma vez que não era objeto de uma limpeza e arranjo contínuos por parte dos Autores, como seria requerido para que o aludido túmulo se mostrasse preservado e cuidado.
Termos em que improcede o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto julgada provada no ponto 12 dos factos assentes.
b.1.5- Da impugnação do ponto 13 dos factos provados.
3.7. Por fim, o Apelante impetra erro de julgamento à sentença recorrida por ter nela o Tribunal a quo ter dado como provado, no ponto 13 do elenco dos factos assentes, que: «13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família (declarações de parte da 1.ª Autora e fls. 106 do suporte físico do processo)».
Aduz, para o efeito, que essa conclusão não resulta das declarações de parte prestadas pela 1.ª Autora e, por outro lado, esse facto é contraditório com o facto dado como não provado sob a alínea d), onde não se provou que d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério”.
Por isso, entendem que a matéria do ponto 13 dos factos assentes devia ser considerada como não provada.
3.7.1. Da audição das declarações de parte prestadas pela da 1.ª Autora colhe-se ter a mesma revelado que a circunstância de ter sido sepultado uma outra pessoa na campa onde jazia o seu falecido pai a incomodou e perturbou assim como aos demais autores.
É certo que sobre esta matéria nenhuma outra testemunha se pronunciou. Porém, considerando as declarações da 1.ª Autora a esse respeito, à luz das normais regras da experiência de vida, afigura-se-nos plausível que os autores tenham, pelo menos, ficado perturbados e incomodados com o facto de na campa onde se encontram os restos mortais do seu pai, ter sido inumado o cadáver de outra pessoa não pertencente à família dos mesmos, sem que para tal tivessem anuído.
O facto de não se ter provado que os Autores tenham sofrido um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que vão ao cemitério, não permite que se conclua que os mesmos não se sentiram perturbados e incomodados com a circunstância de ter sido inumado na campa do seu pai um estranho. E prova disso mesmo é o facto de, constatada essa situação, os Autores se terem mobilizado e recorrido ao Tribunal para verem resposta uma situação com a qual não se conformaram, o que fizeram através da presente ação administrativa.
Termos em que se indefere o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto.
b.2.Do mérito
b.2.1. Do erro de julgamento da sentença decorrente da condenação da Ré no dois primeiros pedidos formulados pelas Autores.
4.A Apelante impetra também erro de julgamento de mérito à sentença recorrida. Sustenta, para tanto, que o Tribunal a quo ao condenar o Réu a reconhecer a existência a favor da 1.ª Autora de um contrato de concessão do direito ao uso privativo, no cemitério de (...), da parcela de terreno ( campa) onde se encontra (va) sepultado o seu pai e dos demais Autores e, consequentemente, exumar e transladar o cadáver de J. que foi inumado nessa sepultura para outra dentro do mesmo cemitério, incorreu em erro de direito ao não considerar como exigível que a concessão de terreno para sepultura no cemitério teria necessariamente de ser precedida de requerimento com a assinatura reconhecida da requerente, e, para além disso, ser necessariamente titulado por Alvará emitido pelo respetivo presidente da Junta de Freguesia, carecendo tal documento em absoluto da forma legalmente exigível, pelo que é nulo e de nenhum efeito, nos termos dos artigos 220º, 289º, e 294º do Código Civil, para além de não conter os requisitos impostos pelo artigo 293º do Código Civil, que permitam a conversão de tal “pedido de compra” num Alvará administrativo de concessão de terreno para sepultura.
Aduz que tendo por referência os artigos 253.º, 356.º e 363.º do Código Administrativo, artigo 29.º do Decreto n.º 44220, de 03/03/1962, artigos 33.º e 36.º do Decreto n.º 48770, de 18/12/1968, artigos 27.º e 88.º do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29/03 e artigo 133.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15/11, é inequívoco que, quer em 06/04/1966 ( data da inumação do ai dos Autores), ou em 12/08/1984 ( data a que alude o documento de fls. 33 dos autos) a concessão do terreno para sepultura teria necessariamente de cumprir aqueles preceitos legais, designadamente, ser precedido de requerimento com a assinatura reconhecida do requerente e ser necessariamente titulado por Alvará emitido pelo respetivo Presidente de Junta de Freguesia. Sendo assim, entende que o requerimento de fls. 33, sobre o qual foi decidido apenas que «Esta Junta não vê qualquer inconveniente no seu deferimento», carece em absoluto da forma legalmente exigível, sendo nulo e de nenhum efeito em face dos referidos normativos e do disposto nos artigos 220.º, 289.º e 294.º do Cód. Civil.
Por outro prisma, considera que perante a disciplina do artigo 293.ºdo Cód. Civil o requerimento de fls. 33 não contém os “requisitos essenciais de substância e de forma” que permitam a conversão de tal “pedido de compra” num Alvará de concessão de terreno para sepultura, o que impossibilita legalmente a respetiva conversão.
Assim, assevera ser totalmente indevida a conclusão expressa na sentença recorrida segundo a qual, nos termos do artigo 293.º do Cód. Civil “operou-se a conversão do negócio jurídico celebrado pela 1.ª Autora e a Entidade Demandada num contrato de concessão de uso privativo do domínio público, tendo por objeto uma sepultura”.
Mais considera que contrariamente ao sustentado na sentença, o negócio jurídico a que se alude no ponto 4 dos factos assentes representa um negócio jurídico legalmente impossível e indeterminável, nos termos do artigo 280.º, n.º1 do Cód. Civil.
Vejamos.
Na sentença recorrida, o Senhor Juiz a quo, começou por detalhar o regime legal aplicável à concessão de terrenos em cemitérios e à inumação e trasladação de cadáveres, escrevendo-se a esse respeito o seguinte:
«O artigo 27º, nº 1 al. l) do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de março, entretanto revogado pela Lei nº 169/99, de 7 de setembro, estipulava que competia às juntas de freguesia conceder terrenos nos cemitérios sob administração da freguesia para jazigos e sepulturas perpétuas.
Por sua vez, a alínea m) do mesmo preceito legal estabelecia que competia igualmente às juntas de freguesia declarar prescritos a favor da freguesia, nos termos da lei e após publicação de avisos, os jazigos, mausoléus ou outras obras instaladas nos cemitérios sob administração da freguesia, quando não sejam conhecidos os proprietários ou relativamente aos quais se mostre que, após notificação judicial, se mantém, de forma inequívoca e duradoura, desinteresse na sua conservação e manutenção.
Estas competências foram depois transpostas para a Lei nº 169/99, de 7 de setembro, na redação introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro, onde, no seu artigo 34º, nº 6 al. c) e d) se estipula que compete às juntas de freguesia conceder terrenos, nos cemitérios propriedade da freguesia, para jazigos, mausoléus e sepulturas perpétuas, bem como declarar prescritos a favor da freguesia, nos termos da lei e após publicação de avisos, os jazigos, mausoléus ou outras obras, bem como sepulturas perpétuas instaladas nos cemitérios propriedade da freguesia, quando não sejam conhecidos os proprietários ou relativamente aos quais se mostre que, após notificação judicial, se mantém desinteresse na sua conservação e manutenção de forma inequívoca e duradoura.
Aliás, nos termos do nº 4 al. c) da mesma disposição legal, compete às juntas de freguesia, gerir, conservar e promover a limpeza dos cemitérios.
Estas competências das juntas de freguesia não são alheias às normas para a construção e polícia de cemitérios constantes do Decreto nº 44220, de 1962-03-03, segundo o qual, nomeadamente, é proibida a abertura de sepulturas antes de decorrido o prazo legal de inumação de cinco anos após o enterramento, salvo no caso de mandado judicial (cfr. artigo 23º) e passados os cinco anos do período legal de inumação podem abrir-se as sepulturas temporárias ou perpétuas para efeito de novo enterramento. As ossadas encontradas serão removidas ou enterradas no fundo do próprio coval, mas abaixo da profundidade fixada no artigo 12.º, isto é, 1,15m para os adultos e 1m para as crianças (cfr. artigo 24º).
Em qualquer caso, nos termos do artigo 29º do mesmo decreto, as câmaras municipais e as juntas de freguesia deviam, em prazo a fixar pelo Ministro do Interior, elaborar os seus regulamentos sobre a polícia dos cemitérios, discriminando os preceitos a observar quanto ao regime de serviço, à receção de cadáveres, inumação em sepulturas temporárias, perpétuas e jazigos, depósito em ossários, transladações, concessões de terrenos para sepulturas perpétuas e jazigos particulares, construções funerárias, uso e fruição de sepulturas perpétuas e jazigos, destino das sepulturas perpétuas e jazigos abandonados, taxas, licenças e outras disposições julgadas convenientes.
Nesse sentido, o Decreto 48770, de 1968-12-18, aprovou os preceitos a que deviam obedecer os regulamentos sobre polícia dos cemitérios, publicando os modelos de regulamentos dos cemitérios municipais e dos paroquiais.
Assim, segundo o modelo de regulamento dos cemitérios municipais anexo ao referido decreto, as inumações serão efetuadas em sepulturas ou jazigos (cfr. artigo 6º), não sendo permitidos enterramentos em vala comum (cfr. artigo 13º). Por sua vez, as sepulturas classificam-se em temporárias e perpétuas, considerando-se temporárias as sepulturas para inumação por cinco anos, findos os quais se poderá proceder à exumação, enquanto as perpétuas se definem como aquelas cuja utilização foi exclusiva e perpetuamente concedida pela Câmara Municipal, a requerimento dos interessados, devendo estas localizar-se em talhões distintos dos destinados a sepulturas temporárias (cfr. artigo 17º).
Por outro lado, a requerimento dos interessados, poderá a Câmara fazer concessão de terrenos, no cemitério, para sepulturas perpétuas e construção ou remodelação de jazigos particulares (cfr. artigo 33º), devendo o requerimento ter a assinatura reconhecida, mencionar o cemitério e, quando o terreno se destine a jazigo, indicar a área pretendida (cfr. artigo 34º).
Uma vez deliberada a concessão, a Câmara notificará os interessados para comparecerem no cemitério, a fim de se proceder à escolha e demarcação do terreno, sob pena de se considerar caduca a deliberação tomada (cfr. artigo 34º).
O prazo para pagamento da taxa de concessão de terrenos destinados a sepulturas perpétuas ou jazigos é fixado por regulamento municipal ou da freguesia, a contar da data em que tiver sido feita a respetiva escolha e demarcação, sendo condição indispensável para a cobrança da mesma taxa a apresentação de recibo comprovativo do pagamento da sisa (cfr. artigo 35º).
A concessão de terrenos será titulada por alvará do presidente da Câmara, a emitir dentro de certo número de dias seguintes ao cumprimento das formalidades prescritas neste capítulo, a fixar no regulamento municipal ou da freguesia, sendo certo que do referido alvará constarão os elementos de identificação do concessionário e a sua morada, referências do jazigo ou sepultura perpétua respetivos, nele devendo mencionar-se, por averbamento, todas as entradas e saídas de restos mortais (cfr. artigo 36º).
Emitido o alvará de concessão, as inumações, exumações e trasladações a efetuar em jazigos ou sepulturas perpétuas dependem de autorização expressa do concessionário ou de quem legalmente o representar (cfr. artigo 38º).
Por último, consideram-se abandonados, podendo declarar-se prescritos, os jazigos cujos concessionários não sejam conhecidos ou residam em parte incerta e não exerçam os seus direitos por período superior a dez anos, nem se apresentem a reivindicá-los dentro do prazo de sessenta dias, depois de citados por meio de éditos publicados em dois jornais mais lidos no concelho e afixados nos lugares do estilo, devendo esse prazo contar-se a partir da data da última inumação ou da realização das mais recentes obras de conservação ou de beneficiação que nas mencionadas construções tenham sido feitas, sem prejuízo de quaisquer outros atos dos proprietários, ou de situações suscetíveis de interromperem a prescrição, nos termos da lei civil (cfr. artigo 42º).
Estas normas a que deviam obedecer os regulamentos sobre polícia dos cemitérios vieram, por fim, a ser revogadas pelo Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de dezembro, entretanto sucessivamente alterado - estando o mesmo em vigor, ao tempo do funeral de J., em 2010, com a redação introduzida pela Lei nº 30/2006, de 11 de julho - na parte que contrariassem o referido diploma legal revogatório.
Este diploma legal veio estabelecer o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, de cidadãos nacionais ou estrangeiros, bem como de alguns desses atos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, e, ainda, da mudança de localização de um cemitério.
Deste regime jurídico destaca-se a necessidade da inumação ser requerida à entidade responsável pela administração do cemitério ou do centro funerário, onde as mesmas tiverem lugar, em modelo constante do anexo i do referido decreto-lei, do qual faz parte integrante
4.1.É pacificamente aceite quer pela doutrina, quer pela jurisprudência dos tribunais nacionais, que os cemitérios públicos são bens dominiais, possuídos e administrados pelos municípios, e freguesias, e estão afetos a um fim de utilidade pública, uma vez que se destinam à inumação de todos aqueles que falecerem na circunscrição onde se situam e de serem de acesso livre ( Cfr. entre outros, Marcelo Caetano, in “Direito Administrativo”, pg. 940; V.M. Lopes Dias, in “Cemitérios, Jazigos e Sepulturas”, pg. 329 e segs. e Acórdãos do STA, de 27/10/88, rec. n.º 25.546); de 07/03/89, rec. n.º 26.036); de 10/03/92, rec. n.º 29.754 e de 24/09/98, rec. n.º 43.843.
Conforme se afirma em Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/09/2012, proferido no processo n.º 29/09.3TBVVD.G1: “Os terrenos (talhões) das sepulturas e jazigos são sem dúvida coisa pública como resulta de entre outros dos Decretos nºs 44220 de 03.03.1962 (artºs 1º- escolha de terrenos, 4º- organização do processo pelas câmaras e juntas de freguesia, 8º e 29º, poder de regulamentação daquelas), [alterado pelo Decreto nº 45864 de 21.10.1971, DL nºs 463/71 de 02.11 (art.º 4º, competências dessas autarquias para designadamente construção, ampliação e remodelação de cemitérios), 857/76 de 20.12 e 168/2006 de 16.08 (idem)], 48770, de 18.12.1968 (Aprova Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais e Paroquiais, artºs 1º, 14º - sepulturas agrupadas em talhões, 17º- sepulturas perpétuas ou temporárias, 33º- concessão de terrenos), DL nºs 274/82, de 14/7, e 411/98 de 30.121 (art.º 32º, que revogou o diploma antecedente, com as alterações que lhe foram introduzidas pelos DL nºs 62/83, de 02.02, e 43/97, de 07.02 e atento ainda aos Despachos Normativos nºs 171/82, de 16.08, e 28/83, de 27.01). ”
4.2.É inquestionável que a lei atribui aos municípios, através das câmaras municipais, ou às freguesias, através das respetivas juntas, conforme se trate de cemitérios municipais ou de cemitérios paroquiais, a competência para conceder terrenos nos cemitérios para jazigos, mausoléus ou sepulturas perpétuas (artºs 34º, nº 6, alínea d) e 68º, nº 2, alínea r), da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, alterada pela Lei nº 5-A/2002, de 11/1).
Ora, a construção de jazigos e sepulturas destina-se a preservar os sentimentos de amor, saudade, piedade e respeito pelos membros falecidos da família, o que, aliado ao facto de a inumação dos cadáveres ter de cumprir condições higiénicas e sanitárias adequadas, determinou o legislador a estabelecer que essa finalidade será melhor alcançada se o seu uso for privativo, e daí que os cemitérios se encontrem divididos em parcelas de pequenas dimensões cujo uso é facultado, de um modo individual e através de títulos de concessão, às pessoas que dele necessitem.
4.3.Por conseguinte, a “ utilização das parcelas de terreno dos cemitérios públicos pelos particulares, para sepulturas e implantação de jazigos, depende da prévia «concessão» da respetiva entidade da administração local, e é titulada pelo «alvará» que não só a formaliza como a publicita (ver na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, Almedina, Coimbra, 1980, páginas 919, 937, 938, e 946 e seguintes; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, páginas 422 e seguintes; Pires de Lima, Propriedade e Transmissão de Jazigos, RT, Ano 44º; Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, volume III, páginas 54 e 55; ver, na jurisprudência, AC STA de 07.03.89, Rº026036; AC STA de 10.03.92, Rº029754; AC STA de 24.09.98, Rº043843; AC STA de 13.02.2001, Rº046706; AC STA de 06.03.2002, Rº046143; AC do Tribunal de Conflitos de 08.07.2003, 010/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2010, 015/09)”- cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos nº 13/2015, de 17-09-2015.
4.4.Estes títulos, que documentam a atribuição, por ato ou contrato administrativo, dessas parcelas pertencentes ao domínio público ao uso e utilização privativa de certa pessoa, que pode ser perpétua, permitem a constituição de direitos de índole administrativa sobre elas, direitos estes que são regulados pelo direito administrativo. Contudo, importa frisar que se trata de direitos precários, resolúveis não definitivos, constituídos para determinado fim, limitados por factores actuantes de interesse público submetidos a um ordenamento de interesse colectivo e sujeitos ao controle da Administração.” (Lopes Dias, ob. cit., pág. 375,).
4.5. É incontornável que a Administração tem um largo controle sobre o uso, fruição e disposição dos jazigos e sepulturas e tem uma vasta possibilidade de atuação sobre elas.
Como bem se sintetiza no Acórdão do Tribunal de Conflitos nº 13/2015, de 17/09/2015, acima citado “O direito de particulares sobre sepulturas só existe, pois, se e na medida em que exista aquele direito de uso privativo da respetiva parcela do bem do domínio público, direito este que só se constitui através daquele título especial, a concessão, que podendo embora ser «acto», configura normalmente um «contrato administrativo»”.
Por conseguinte, “a realização de qualquer transmissão só pode tornar-se efectiva depois de um acto de aprovação ou consentimento da Câmara Municipal ou da Junta de Freguesia. Pertencendo o terreno ao domínio público, tendo sido permitida a ocupação deste por concessão especial, recaindo sobre a entidade pública a responsabilidade de garantia do funcionamento do serviço público em boas condições bem como duma acção de política sanitária geral, assim temos de o considerar.”( cfr. Lopes Dias, ob. cit., pág. 400 e 401.
Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 22.06.2011, processo 00482/06.7BEBRG onde se afirma que: “A utilização de terrenos nos cemitérios para sepultura ou para jazigos é uma das formas de utilização do domínio público pelos particulares.
O título constitutivo dessa utilização ou uso privativo pode passar por acto ou negócio jurídico bilateral, isto é, um contrato, sendo este um contrato de concessão.
O contrato de concessão de uso privativo do domínio público é um contrato administrativo (artigo 9º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n. 129/84, de 27 de Abril, e artigo 178º, n.º2, alínea e) do Código de Procedimento Administrativo).
Assim, da afectação do uso dos cemitérios através de contrato, ou acto, de concessão, resultam direitos reais administrativos, os quais, se encontram subordinados ao direito administrativo.
Neste sentido, pacífico, ver, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27.10.1988, processo n.º 025546, de 07.03.1989, processo n.º 026036, de 24.09.1998, processo n.º 43843, de 06.03.2002, processo n.º 046143, acórdão do Tribunal dos Conflitos de 08.07.2003, processo n.º 010/02, acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.04.2010, processo n.º 01249/04.2BEVIS, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.11.2002, processo n.º 0251136; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2005, processo n.º 987/05-1; na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 8.ª edição, pág. 849; Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, pág. 173; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, pág. 329 e seguintes.
O deferimento de um pedido por deliberação dos órgãos das autarquias locais ou decisão dos seus titulares, que implique conferir aos particulares direitos duradouros, como é o caso, deve ser titulado por um alvará expedido pelo respectivo presidente – art.º 94 da actual Lei das autarquias locais, Lei nº 169/99, de 18/09.”
4.6.Por outro lado, conforme se expendeu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 03.05.2013, processo 01423/04, “… há que ter presente que o alvará constitui o documento firmado por uma autoridade pública, mediante o qual se atesta a existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa.
Esta configuração, resultava, desde logo, do disposto no art. 356º do Código Administrativo, que estabelecia que o alvará «é o título dos direitos conferidos a particulares por deliberações…que os invistam em situações jurídicas permanentes.
No específico campo de sepulturas perpétuas em cemitérios municipais, resulta ainda do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado pelo Decreto 48770, de 18/12/1968, cujo art. 36º estabelece que a concessão de terrenos é titulada por alvará, do qual constarão os elementos do concessionário e da sepultura concessionada.”
Veja-se ainda a jurisprudência veiculada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.04.2010, processo 01249/04.2BEVIS, onde se assevera que: “Os cemitérios públicos são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e pelas freguesias, afectos a um fim de utilidade pública, ou seja, ao uso directo e imediato do público.
É sabido que os cemitérios, sob a jurisdição das freguesias, são bens do domínio público da respectiva autarquia, e que a existência de um direito dos particulares ao uso privativo de uma parcela desse bem depende da prévia concessão da administração local, titulada por alvará, estando fora do comércio jurídico privado [artigo 202º nº2 do CC].
O direito de propriedade de particulares sobre jazigos só existe, pois, se e na medida em que exista aquele direito ao uso privativo da respectiva parcela do bem do domínio público, direito este que só se constitui através daquele título especial, a concessão, que, podendo embora ser acto, configura, normalmente, contrato administrativo [sobre este tema ver, na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, Almedina, Coimbra, 1980, páginas 919, 937, 938, e 946 e seguintes; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, páginas 422 e seguintes; Pires de Lima, Propriedade e Transmissão de Jazigos, RT, ano 44º; e Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, volume III, Páginas 54 e 55].
Quer se entenda que o jazigo constitui um todo com o terreno em que está implantado, fazendo, por isso mesmo, parte integrante do cemitério, fora do comércio jurídico e insusceptível de posse e de tutela possessória, quer se admita a natureza privatística dos direitos incidentes sobre jazigos [solução para a qual propendemos], sempre teremos de concluir pela insusceptibilidade da sua aquisição mediante usucapião.
De facto, a construção do jazigo não retira à parcela de terreno concedida o carácter de bem do domínio público, o que transforma o direito de propriedade sobre o mesmo numa propriedade sui generis, porque cerceada por limitações inerentes à própria dominialidade dos cemitérios. Todavia, tais limitações não impedem o desenvolvimento desse direito de propriedade sui generis com uma certa autonomia, a ponto de ser susceptível de transmissão mortis causa ou inter vivos, mas sempre dependente da sua matriz quanto à respectiva existência.
Assim, e mesmo adoptando esta postura doutrinal mais aberta, não poderemos deixar de considerar que esse direito de propriedade sobre jazigos radica, em última análise, numa relação jurídica que é desencadeada pelo contrato de concessão da parcela terreno em que está implantado, e que lhe imprime contornos e limitações inerentes à respectiva dominialidade pública desta última.
Resulta, pois, inadmissível a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre jazigos implantados em cemitério público, dado que, ao admiti- -lo, nós estaríamos a permitir intoleráveis intromissões de poderes privados no domínio público, como a posse que sustenta a usucapião, completamente desenraizados de qualquer intervenção da administração e quiçá contra ela.
Em suma, há que reconhecer como fontes únicas da existência do direito de propriedade sobre jazigos, em cemitério público, a lei e a vontade da administração, vertida em acto ou contrato administrativo de concessão.” ( cfr. no mesmo sentido, Acórdãos deste TCAN, de 06/03/2015, proc. n.º 00464/12.0PRT e de 22/06/2011, proc. n.º 00482/06.7BEBRG.)
De acordo com o Decreto n.º 48770 de 18 de dezembro de 1968, que estabelece o modelo de regulamento dos cemitérios municipais - normativo que ainda se mantém em vigor, encontrando-se revogadas apenas as normas jurídicas que contrariem o disposto no Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro10 -, todas as concessões de terrenos em cemitérios de freguesias serão tituladas por alvará do presidente da junta de freguesia, do qual constarão os elementos de identificação do concessionário e a sua morada, referências do jazigo ou sepultura perpétua respetivos, nele devendo mencionar-se, por averbamento, todas as entradas e saídas de restos mortais.
4.7. Revertendo ao caso em análise, o Tribunal a quo, depois de precisar que «o domínio público está sujeito aos princípios da inalienabilidade, da imprescritibilidade e da impenhorabilidade, salvo nas hipóteses de desclassificação legal, desclassificação administrativa, desafetação e degradação (cfr. Ac. STA, 07/06/2018, Proc. nº 2592/16.3T8SNT.L1.S1)» e que por via disso a « 1.ª Autora não poderia ter comprado uma sepultura no cemitério de (...), administrado pela Entidade Demandada, nem esta a poderia ter vendido», conclui que o negócio jurídico celebrado entre a 1ª Autora e a Entidade Demandada, se bem que não possa configurar uma compra e venda, ainda assim, considerando a disciplina legal do artigo 293º do Código Civil (cuja aplicação aos contratos administrativos encontra hoje expressão legal no artigo 285º, nº 3 do Código dos Contratos Públicos, mas que já resultava do artigo 185º, nº 3 do Código do Procedimento Administrativo de 1991 e, antes, do facto de estar em causa um princípio geral de direito aplicável a todo o tipo de invalidades contratuais), e a putativa vontade das partes, leva a que se conclua ter havido a conversão do negócio jurídico celebrado pela 1ª Autora e a Entidade Demandada num contrato de concessão de uso privativo do domínio público, tendo por objeto uma sepultura (cfr. artigo 9º, nº 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de abril).
Lê-se na sentença recorrida que «na qualificação jurídica de um contrato, não é decisiva a denominação atribuída pelas partes, mas sim o conteúdo da relação jurídica estabelecida entre as mesmas.
Por outro lado, os eventuais vícios formais do referido contrato de concessão, bem como da deliberação que o determinou, por preterição de formalidades procedimentais essenciais (nomeadamente a falta de reconhecimento de assinatura da requerente e a falta de pagamento da sisa) não determinavam a nulidade dos mesmos, mas sim a sua anulabilidade (cfr. artigo 185º, n.os 1 e 3 a) do CPA de 1991 e, anteriormente, artigo 364º do Código Administrativo de 1940).
E a igual conclusão se chegaria na hipótese de se entender estar em causa não um contrato administrativo, mas sim um mero ato administrativo de concessão de sepultura.
Com efeito, tanto o vício de forma como o vício de violação de lei conduzem à anulabilidade do referido ato administrativo e não à sua nulidade, salvo nos casos legalmente previstos (cfr. artigos 133º e 135º do CPA de 1991, bem como, já antes, os artigos 363º e 364º do Código Administrativo de 1940).
Porém, no caso da anulabilidade, o ato ilegal produz todos os seus efeitos jurídicos até que seja determinada a sua anulação, estando a sua arguição dependente de prazo e sujeita a invocação dos interessados, dado não ser do conhecimento oficioso.
Nessa conformidade, não tendo sido anulado oportunamente o ato de concessão de sepultura à 1ª Autora, este continuou a produzir os seus efeitos normais, tendo o decurso do tempo sanado a sua invalidade formal e substancial.
Ora, como resultou da discussão da causa, a 1ª Autora e a Entidade Demandada tiveram em vista a concessão da sepultura onde havia sido enterrado o pai da primeira, para constituição de jazigo familiar. Assim, apesar de não estar claramente referenciada no documento que titula a concessão, a área concedida coincide com o local onde comprovadamente tinha sido sepultado J., pai dos Autores, sendo, portanto, o seu objeto determinável.
Aliás, não havia óbice legal a essa concessão, uma vez que o pai dos Autores tinha sido sepultado há muito mais de cinco anos aquando da mesma, nem ocorreu a caducidade da concessão, uma vez que a 1ª Autora acompanhou o elemento da Entidade Demandada ao cemitério para marcar a sepultura concessionada no próprio dia em que a sua pretensão foi deferida.
Por outro lado, não tendo sido fixado qualquer prazo no título de concessão, deve entender-se que esta não estava sujeita a termo, sendo, portanto, perpétua.
Além disso, não releva o facto de a Entidade Demandada não ter ficado com o registo da concessão atribuída nem da receita correspondente, porque isso só põe em evidência a deficiente organização interna da mesma, mas não afeta os direitos adquiridos pelos particulares, desde que suficientemente titulados, como é o caso, atento o princípio da boa fé.
Deste modo, não há dúvida que a 1ª Autora adquiriu validamente o direito de uso privativo da sepultura onde havia sido anteriormente enterrado o seu pai. E, reflexamente, os seus irmãos, ora 2º a 5º Autores, podem beneficiar do mesmo, na medida do consentimento da 1ª Autora, dado que esta obteve a concessão da referida sepultura para constituição de jazigo familiar.
De resto, não se pode considerar prescrito o seu direito, quer porque não se provou o alegado abandono da sepultura, quer porque a prescrição não foi declarada pela Entidade Demandada, seguindo o procedimento legal previsto.»
4.8.A sentença recorrida, contrariamente ao defendido pelo Apelante, não incorre em erro de direito. É certo que no caso, o único documento que titula a atribuição à 1.ª Autora do direito ao uso privativo de um espaço no cemitério de (...), correspondente ao côvado onde foi inumado o pai dos Autores, é o requerimento apresentado pela mesma, em 12 de agosto de 1984, ao legal representante da Entidade Demandada, para a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar, campa essa que correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado (cfr. pontos 4 e 5 do elenco dos factos provados). E conforme se provou, esse requerimento foi deferido pelo Presidente da Entidade Demandada, tendo a Autora pago uma quantia entre PTE 1.000$00 a 2.000$00 pela concessão da parcela de terreno em causa (cfr. pontos 6 e 7 do elenco dos factos provados).
4.9. Sendo inegável que o procedimento legal previsto para a concessão de parcelas de terreno em cemitérios para a construção de jazigos, não foi observada, inexistindo alvará que titule a concessão em causa, a construção jurídica delineada na sentença recorrida permite contudo que, em face do ordenamento jurídico nacional, o referido requerimento possa convolar-se num contrato administrativo de concessão de sepultura no cemitério de (...).
4.10. Resulta dos factos provados que no dia 12 de agosto de 1984, a 1ª Autora solicitou ao legal representante da Entidade Demandada, mediante requerimento a compra de uma parcela de terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar, tendo esse mesmo requerimento sido deferido pelo Presidente da Entidade Demandada, em consequência do que lhe foi atribuída a parcela/campa que correspondia àquela em que o seu falecido pai tinha sido sepultado ( vide pontos 4, 5, 6 e 7 do elenco dos factos provados), pelo que, tendo em consideração que o sentido da vontade negocial deve ser averiguado quer em face da declaração expressa nos documentos, quer em face de todas as circunstâncias nele expressas, tendo em conta o declaratário concreto, pode afirmar-se, sem equívoco, que a 1.ª Autora e a Entidade Demandada tiveram em vista, com aquele requerimento - e o seu consequente deferimento, o pagamento da respetiva taxa e a deslocação do então tesoureiro da Entidade Demandada para na presença da Autora marcar com dois paus a parcela que lhe era disponibilizada para jazigo, a qual correspondia à campa onde estava inumado o seu pai-, a concessão da sepultura onde havia sido enterrado o pai da primeira, para constituição de jazigo familiar.
4.11.Assim, pese embora o referido documento não configure em sentido formal uma deliberação da Junta de Freguesia nem corresponda à emissão de um alvará, documento que devia titular a referida concessão, tal não significa que esse contrato/ato/concessão seja nulo por vicio de forma, sequer que seja nulo por o seu objeto ser indeterminável como pretende o Apelante, uma vez que, não só a falta de emissão de alvará, ou de averbamento, não implica a invalidade do ato constitutivo de direitos que titula, implicando apenas a ineficácia do ato (neste sentido, ver, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.03.2007, recurso no 0721/06; e Acórdão deste TCAN, de 22/06/2011, processo n.º 00482/06.7BEBRG), como o seu objeto resulta determinável quando conjugado o documento referido no ponto 4 dos factos assentes ( documento de fls. 33 dos autos) com o facto provado de a parcela concedida à 1.ª Autora no cemitério de (...) corresponder ao local onde o pai dos Autores tinha sido inumado em 1966.
4.12.No caso em análise, como resulta do expendido, a 1.ª Autora arroga-se titular do jazigo onde se encontra sepultado o seu pai por ter lhe sido atribuída a respetiva concessão de uso privativo de domínio público no dia 12 de agosto de 1984, apresentando como prova desse direito o documento escrito de fls. 33 dos autos, e assiste-lhe toda a razão, sendo efetivamente titular desse direito, cuja prova, se dúvidas houvesse, logrou dissipar com a prova testemunhal que indicou na presente ação e com as declarações de parte que prestou.
4.13.Ademais, como bem nota o Tribunal a quo, os eventuais vícios formais do referido contrato de concessão, bem como da deliberação que o determinou, por preterição de formalidades procedimentais essenciais (nomeadamente a falta de reconhecimento de assinatura da requerente e a falta de pagamento da sisa) não determinavam a nulidade dos mesmos, mas sim a sua anulabilidade (cfr. artigo 185º, n.os 1 e 3 a) do CPA de 1991 e, anteriormente, artigo 364º do Código Administrativo de 1940).
4.14.Estas conclusões mantêm-se válidas caso se concluísse estar-se perante um mero ato administrativo de concessão de sepultura, na medida em que as invalidades que lhe poderiam ser assacadas, configurando vício de violação de lei e vicio de forma, apenas determinariam a mera anulabilidade do ato administrativo, não conduzindo à sua nulidade, (cfr. artigos 133º e 135º do CPA de 1991, bem como, já antes, os artigos 363º e 364º do Código Administrativo de 1940).
Note-se que, conforme se deu como provado, nos anos de 1984 e 1985, a Entidade Demandada procedeu à concessão de parcelas de terreno no cemitério de (...) a outros habitantes da freguesia, atribuindo-lhes, na sequência do deferimento dos respetivos requerimentos, o uso exclusivo, privativo e perpétuo dos talhões concessionados (cfr. ponto 8 do elenco dos factos provados), sem que contudo tivessem sido emitidos os competentes alvarás.
4.15. Perante os factos que foram dados como provados, tal como entendeu a 1. Instância, não resta qualquer dúvida que entre a 1.ª Autora e a Entidade Demandada se estabeleceu um contrato de concessão de uso privativo do domínio publico, em relação ao qual a Entidade Demandada não garantiu o cumprimento do procedimento legal estabelecido para esse contrato.
Pese embora a falta de cumprimento do procedimento previsto para a celebração deste tipo de contrato de concessão de uso privativo do domínio público, a falta de observância do formalismo estabelecido para este tipo de contrato administrativo não determina a sua nulidade mas a mera anulabilidade, pelo que se tem de haver o contrato de concessão como operante.
4.16.Ademais, pese embora a vaguidade do requerimento de 12 de agosto de 1984 através dele é possível determinar o objeto desse contrato, qual seja, o terreno (campa) no cemitério de (...), com a dimensão de 2m/98, destinada a jazigo familiar, correspondente ao terreno/campa onde se encontra sepultado o pai dos Autores.
4.17.Como tal, em conclusão, não se tendo confirmado que a Ré tivesse, mediante deliberação, declarado a prescrição desse jazigo a favor da freguesia e, não se tendo provado o abandono desse jazigo por parte da 1.ª Autora, mediante os elementos de prova existentes e o quadro legal invocado pelo Tribunal a quo a decisão que se impunha só podia passar pelo reconhecimento da 1.ª Autora como titular da concessão relativa ao suso privativo do referido jazigo, onde está sepultado o seu pai desde 1966.
4.18.Nessa sequência, naturalmente que, como se diz na sentença recorrida «a 1ª Autora e, acompanhada desta, os demais Autores, podem legitimamente opor-se à inumação de J. naquele mesmo espaço, uma vez que, nos termos do artigo 38º do modelo de regulamento dos cemitérios municipais, acima aludido, “emitido o alvará de concessão, as inumações, exumações e trasladações a efetuar em jazigos ou sepulturas perpétuas dependem de autorização expressa do concessionário ou de quem legalmente o representar”.
Ora, nenhum dos Autores deu autorização expressa para a inumação do referido defunto na sepultura de que eram concessionários.
Aliás, tal como resultou da discussão da causa, essa inumação também não foi formalmente requerida à Entidade Demandada, tendo sido decidida entre o coveiro e os familiares do defunto, só tendo vindo a chegar ao conhecimento do secretário da junta de freguesia em (...) depois de consumada.
Contudo, ainda que essa fosse uma prática ancestral e se desconhecesse a prévia concessão daquela sepultura aos Autores, não se podia, no ano de 2010, continuar a proceder como outrora, face à normativa vigente.
Deste modo, a Entidade Demandada tem de corrigir a situação, mediante a exumação e trasladação dos restos mortais de J. para outra sepultura dentro do mesmo cemitério.»
Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
b.2.2. Do erro de julgamento de direito decorrente da condenação da Ré no pagamento de uma compensação por danos morais aos Autores.
5.O Tribunal a quo julgou procedente o pedido de condenação da Ré no pagamento da quantia de 1.000,00€ a cada um dos autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
5.1.Em relação a este segmento da sentença recorrida o Apelante sustenta que o Tribunal a quo incorreu em lapso de escrita e em erro de direito por não se terem provado os danos morais invocados cuja gravidade mereça a tutela do direito, nem os pressupostos da culpa e da ilicitude.
Do lapso de escrita:
5.2. Em sede de retificação de erros materiais, dispõe o art.º 614º do CPC, que se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art.º 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidão devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz (n.º 1); em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação (n.º 2); se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar no tocante a todo o tempo (n.º 3).
Note-se que o enunciado regime jurídico apesar de se encontrar previsto para a sentença, aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos (n.º 3 do art. 613º do CPC) e é extensível aos acórdãos por força do art. 666º, n.º 1 do CPC, onde os pedidos de retificação ou de reforma do acórdão, bem como a arguição de nulidade daquele têm de ser decididos em conferência (n.º 2 do art. 666º).
O erro de escrita de que eventualmente enferme o acórdão antes proferido tem como pressupostos: a) que se esteja perante um efetivo erro de escrita; b) e que esse erro de escrita seja revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.
No caso, resulta inequivocamente da sentença recorrida que o Tribunal a quo incorreu em manifesto lapso de escrita quando refere que a compensação a pagar a cada um dos cinco autores é de 1.000,00€ e não de 1.500,00€, conforme resulta do facto de ter igualmente condenado a Ré no pagamento de uma quantia global a título de compensação pelos danos morais sofridos pelos autores de 7.500,00€, sendo esse o montante global que foi peticionado pelos Autores na p.i., e de cuja consideração resulta caber a cada um dos Autores o montante parcelar de 1.500,00€.
Deste modo é indiscutível que a 1.ª Instância ao condenar o Apelante a “Pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos…” lavrou em manifesto erro de escrita, revelável no próprio contexto em que a declaração foi proferida, pelo que onde se lê “1.000,00€” deve passar a ler-se “1.500,00€”.
Assim sendo, na procedência do invocado lapso de escrita, impõe-se ordenar a retificação do aludido erro de escrita.
Da Condenação da Apelante no pagamento de compensação por danos não patrimoniais:
5.3. Nas conclusões 33.ª a 36.ª das alegações de recurso, o Apelante sustenta que diferentemente do que decidiu o Tribunal a quo, nada tem a pagar aos Autores a título de danos não patrimoniais, conquanto, pese embora se tenha dado como provado que os ““13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família”, também se deu como não provado que “d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério”.
Como tal, entende que atento o disposto no artigo 496.º do Cód. Civil não pode senão concluir-se que não existem danos morais cuja gravidade mereça a tutela do direito.
Ademais, diz que tendo em conta que o documento de fls 33 / ponto 4 dos factos provados é totalmente desprovido das exigências formais legalmente impostas e nunca pode ser qualificado como o “Alvará” administrativo exigível, não pode traduzir omissão culposa e/ou grave a circunstância de se ter provado que “15. A Entidade Demandada não tinha conhecimento e não constava dos seus arquivos qualquer exemplar, cópia ou registo relativo ao documento acima aludido em 4. e 6., pelo que, concomitantemente, tendo em conta os factos dados como provados sob os nºs 11, 12, 16, 17, e 18, e ainda que foi dado como não provado que “b) O covado do pai dos Autores sempre se manteve em bom e regular estado de conservação“ e que “c) Ali se deslocavam os Autores nas datas de aniversário e de falecimento do seu pai“, considera que não atuou com culpa e/ou ilicitude relativamente á inumação de J. em 7 de março de 2010, que permita ser responsabilizada por quaisquer danos morais sofridos pelos Autores.
5.4.Fundando-se o pedido de compensação pelos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos Autores na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, nos termos do disposto no artigo 342º, n.º 1 do Cód. Civil, impendia sobre os Autores ( apelados), o ónus da alegação e da prova dos factos consubstanciadores dos pressupostos cumulativos desse tipo de responsabilidade previstos no n.º 1 do artigo 483º do Cód. Civil, isto é: do facto, da ilicitude, da culpa, do dano e do indispensável nexo causal entre o facto e o dano.
5.5.Conforme é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência administrativa, esse tipo de responsabilidade corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, que tem consagração legal no art.º 483º, n.º 1 do CC, pelo que são pressupostos da mesma a verificação dos seguintes requisitos legais cumulativos: a) a verificação do “facto”, enquanto comportamento ativo ou omissivo voluntário do agente, no sentido de ser controlado ou suscetível de ser controlável pela vontade deste; b) a “ilicitude” desse comportamento ativo ou omissivo do agente, traduzida na circunstância deste violar direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) “culposo”, por se afirmar um nexo de imputação entre esse comportamento ilícito, ativo ou omissivo, e a vontade do agente, que o torna merecedor de um juízo de censura ético-jurídica, por essa sua conduta se mostrar desconforme com a diligência que teria tido um homem médio ou um funcionário ou agente típico que se encontrasse nas concretas circunstâncias em que o concreto agente se encontrava quando agiu ou quando omitiu a sua obrigação de agir, não obstante esse dever de ação lhe fosse legalmente imposto; d) a existência de “dano”, isto é a lesão de ordem patrimonial ou moral na esfera jurídica do demandante; e) a afirmação de um nexo de causalidade adequado entre a conduta ativa ou omissiva do agente e o dano que se verificou Acs. STA de 10/10/2000, Proc. 40576 e de 12/12/2000, Proc. 1226/02, in base de dados da DGSI..
De particular, na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, há a considerar que o art.º 9º da citada Lei n.º 67/2007, estabelece, em sede de ilicitude considerar-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos (n.º 1), bem como quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do art.º 7º (n.º 2).
Com efeito, deste dispositivo legal resulta que em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, consagra-se um conceito amplo de ilicitude (bem mais amplo do que resulta do n.º 1 do art.º 483º do CC), na medida que para efeitos desta específica responsabilidade é ilícito o ato que viole normas legais sejam constitucionais ou infraconstitucionais, incluindo, regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de previdência comum.
Neste sentido já se pronunciava Marcelo Caetano no âmbito da vigência do anterior DL n.º 48.051, ao ponderar que “É necessário, em primeiro lugar, que tenha sido praticado um ato jurídico, nomeadamente um ato administrativo, como um facto material, simples conduta despida do caráter de ato jurídico. O ato jurídico provem por via de regra de um órgão que exprime a vontade imputável à pessoa coletiva de que é elemento essencial. O facto material é normalmente obra dos agentes que executam ordens ou fazem trabalhos ao serviço da Administração. O art. 6º do DL 48054 contém, para os efeitos de que trata o diploma, uma noção de ilicitude. Quanto aos atos jurídicos, incluindo, portanto, os atos administrativos, consideram-se ilícitos os que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis: quer dizer, a ilicitude coincide com a ilegalidade do ato e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respetivos vícios. Quanto aos factos materiais, por isso mesmo que correspondem tantas vezes ao desempenho de funções técnicas, que escapam às malhas da ilegalidade estrita e se exercem de acordo com as regras de certa ciência ou arte, dispõe a lei que serão ilícitos, não apenas quando infrinjam as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis, mas ainda quando violem as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração” Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, 10ª ed., volo. II, pág. 1125..
No que respeita ao requisito da culpa, é entendimento pacífico que “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo” Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª ed., Almedina, pág. 531..
Na senda deste conceito de culpa e concretizando-o para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, estabelece o artº. 10º da Lei n.º 67/2007, que a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir em função das circunstâncias ou agente zeloso e cumpridor (n.º 1) e que sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos ilícitos (n.º 2) e que para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento dos deveres de vigilância (n.º 3).
Destarte, resulta deste preceito que para efeitos de culpa, a aferição desta deverá ser feita, como sucede na responsabilidade civil extracontratual em geral, de acordo com as concretas circunstâncias especificas do caso concreto em que o agente deixou de atuar, apesar de sobre si impender um dever legal de atuação, ou em que atuou, e tendo em consideração o grau de diligência de um funcionário diligente, zeloso e cumpridor.
Sublinhe-se ainda que este art.º 10.º da citada Lei, estabelece um critério próprio de aferição da culpa, no domínio da responsabilidade da Administração, prevendo como padrão aferidor da culpa, o agente zeloso e cumpridor, pelo que se pode concluir que o legislador assumiu ser imperativo que a Administração atue, através dos seus agentes, com a diligência a que uma pessoa competente está vinculada, sob pena de violação dos deveres de zelo e de boa administração.
No entanto, para que esse facto ilícito e culposo dê lugar ao direito indemnizatório não é suficiente que, em abstrato, desse facto ilícito e culposo possam decorrer danos, sabendo-se que situações existem em que o facto, ainda que ilícito e culposo, não se chega a concretizar em prejuízo (dano) na esfera jurídica, patrimonial e/ou moral, do terceiro objeto desse facto, ou que os danos que o terceiro sofre na sua esfera jurídica não emergem desse concreto facto ilícito e culposo que serve de causa de pedir à presente ação, mas exclusivamente de outras causas.
Assim, é que se exige para que o direito indemnizatório se afirme, que em consequência do facto ilícito e culposo emirjam, como consequência direta e necessária desse facto (nexo causal) efetivos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais na esfera jurídica do terceiro. Ou seja, para além do facto ilícito e culposo, exige-se a verificação efetiva do pressuposto do dano (danos efetivos) e do nexo causal entre o facto e o dano.
Depois, não é suficiente que em consequência do facto ilícito e culposo se verifiquem, em concreto, efetivos danos patrimoniais ou não patrimoniais na esfera jurídica do terceiro, mas é necessário que este (caso o demandado não aceite assumir a sua responsabilidade extrajudicialmente), instaure a ação indemnizatória, alegando, na petição inicial, os factos essenciais (arts. 5º, n.º 1 do CPC) integrativos do facto, da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo causal entre o facto e o dano e que prove esses factos (art. 342º, n.º 1 do CC).
5.6.Assente nas premissas que se acabam de enunciar, não podemos deixar de subscrever o que a respeito dos pressupostos da culpa e da ilicitude o Tribunal a quo expendeu na sentença recorrida, e que se transcreve:
«Finalmente, importa reconhecer que a atuação da Entidade Demandada, ao permitir, por ação ou omissão, o enterro de terceiro na sepultura previamente concessionada aos Autores, consubstanciou um ato ilícito e culposo, por funcionamento anormal do serviço, constituindo a mesma no dever de indemnizar os Autores pelos danos sofridos (cfr. artigos 7º, n.os 1, 3 e 4, 9º, nº 2 e 10º, nº 1 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro).
Na verdade, “é, assim, possível identificar duas modalidades de ilicitude, distinguindo as situações danosas causadas pela prática de atos jurídicos ilegais, daquelas que resultam de operações materiais ilícitas: ilicitudes por ilegalidade e ilicitudes por inobservância de deveres objetivos de cuidado. A estas duas modalidades, o nº 2 vem acrescentar uma terceira, que corresponde às situações de funcionamento anormal do serviço, tal como previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 7º” (cfr. RUI MEDEIROS (org). Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, pág. 243/244).
Assim, não releva, para o que aqui nos ocupa, não ter sido determinada a autoria pessoal da ação ou omissão aqui em causa, já que, nestes casos, deve a mesma ser atribuída ao funcionamento anormal do serviço, mantendo, assim, a sua ilicitude, como flui do acima exposto.
De facto, “a responsabilidade por danos resultantes de um funcionamento anormal do serviço prescinde do apuramento da imputabilidade do facto lesivo a um determinado titular de órgão ou agente, como pressuposto da responsabilidade das entidades públicas. Mesmo quando os danos não tenham resultado de um comportamento concreto de determinada pessoa, ou, em todo o caso, não seja possível comprovar a autoria pessoal de uma ação ou omissão efetivamente ocorrida, existe responsabilidade da entidade pública desde que a produção dos danos possa ser imputada a um funcionamento anormal do serviço – ou seja, desde que, atendendo às circunstâncias e por referência a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço a adoção de uma conduta suscetível de não ter causado ou ter evitado os danos produzidos” (cfr. autor e obra citados, pág. 249).
Por outro lado, como se evidencia pelo cotejo das normas do artigo 7º, nº 4, 9º, n.os 1 e 2 e 10º, nº 1 do RRCEEP, o juízo de ilicitude por violação coletiva de deveres objetivos de cuidado, que equivale, na prática, ao funcionamento anormal do serviço, implica necessariamente uma censura ético-jurídica sobre o mesmo, ou seja, a assunção do carácter culposo da conduta.
Como refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA [in RUI MEDEIROS (org), obra citada, pág. 248], “(...) não vemos como, uma vez demonstrada a inobservância dos deveres objetivos de cuidado que, in casu, se impunham ao agente lesivo, ainda possa haver espaço para decidir que essa inobservância não foi culposa”. É, de resto, o que se retira da jurisprudência que emana do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 21/09/2010, proferido no Proc. nº 859/09, citado pelo mesmo autor.
Note-se que a diligência e aptidão requerida legalmente se afere por referência a um agente zeloso e cumpridor e já não em função de padrões médios, conforme decorre da lei civil (cfr. artigo 487º, nº 2 do Código Civil), sendo a bitola consagrada muito exigente (cfr. RUI MEDEIROS, obra citada, pág. 275 e ss.).
Ora, a Entidade Demandada podia e devia ter registo das concessões de sepulturas atribuídas e apreciar a viabilidade das pretensões de inumação de novos cadáveres nas mesmas, quando tal lhe fosse requerido, obstando à prática de inumações não autorizadas no cemitério de (...).
Deste modo, não há dúvida quanto à verificação do requisito da culpabilidade no que respeita à Entidade Demandada, sob a forma de negligência ou culpa leve.»
5.7. Já no que concerne ao pressuposto do dano, discordamos do que a esse respeito foi decidido pelo Tribunal a quo.
Os danos morais são os que emergem da lesão de bens estranhos ao património do lesado, nomeadamente: integridade física, saúde, tranquilidade, bem-estar físico e psíquico, liberdade, honra e reputação, e verificam-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, angustia, vergonha, etc., em consequência de uma lesão de direitos, nomeadamente de personalidade.
No caso dos danos não patrimoniais, não há a intenção de pagar ou indemnizar o dano, mas apenas o intuito de atenuar um mal consumado, sabendo-se que a composição pecuniária pode servir para satisfação das mais variadas necessidades, desde as mais grosseiras e elementares às de mais elevada espiritualidade, tudo dependendo, nesse aspeto, da utilização que dela se faça – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 5ª edição, páginas 563 e 564.
Conforme ensina Antunes Varela “a indemnização reveste, no caso de danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (cfr. ob.cit., pág.568).
No artigo 496.º, n.º1 do Cód. Civil prescreve-se que só devem ser ressarcidos os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. E daí que seja pacificamente aceite que não são merecedores da tutela do direito os meros incómodos, as indisposições, preocupações e arrelias comuns.
Nesse sentido, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.05.2005, proferido no processo n.º 0127/03 que a «… personalidade física e moral dos indivíduos é protegida por lei contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa ilícita - artigo 70.º do CC» e que «em princípio, a dor moral causada por facto ilícito é abrangida pelo n.º 1 do artigo 496.º», mas que isso pode não acontecer, mormente em situações de «dor insignificante, uma simples maçada ou incómodo, que um cidadão comum retém como inerente às vicissitudes normais da vida em sociedade» visto não atingirem «a gravidade merecedora da tutela do direito, em sede de atribuição de indemnização por danos não patrimoniais».
5.7.No caso vertente, o Tribunal a quo deu como provado que “13. Os Autores ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai se encontra inumado um terceiro, estranho à sua família”, mas concomitantemente deu como não provado “d) A situação em apreço causa aos Autores um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação e angústia, que se intensifica sempre que os Autores vão ao cemitério”.
Ora, como vimos, os simples incómodos, perturbações ou arrelias não traduzem danos morais que de harmonia com o padrão objetivo estabelecido no n.º 1 do artigo 496.º do Cód. Civil, assumam uma tal gravidade na esfera jurídica do lesado que reclamem ser ressarcidos.
Em relação aos Autores, se é incontornável que os mesmos ficaram perturbados e incomodados com a ideia de que sobre o túmulo do seu pai foi inumado um terceiro, estranho à família, também é irrefragável que em consequência dessa situação nem por isso os Autores sofreram um enorme desgosto, revolta, frustração, inquietação ou angústia, o que, aliás, bem se compreende, considerando que, os Autores deslocavam-se ao túmulo do seu pai com pouca frequência ( vide ponto 12 do elenco dos factos provados), o que é revelador de um certo distanciamento dos Autores, pelo que não seria normal que após a inumação de um terceiro na sepultura do falecido pai e só por esse facto passassem a ter uma relação diferente da que até então mantinham com a memória do pai e com o túmulo onde o mesmo se encontrava inumado, e que passassem a sofrer de forma intensa com essa situação.
A perturbação e incómodos sentidos pelos Autores com a inumação de um terceiro no túmulo do seu pai não assume no caso concreto uma relevância em termos de gravidade que justifique a condenação do Réu no pagamento de uma compensação na medida em que os danos daí resultantes se resumiram a isso mesmo, não tendo provocado na esfera jurídica dos autores uma dor moral que lhes tivesse determinado um sofrimento intenso, uma dor angustiante, a ponto de se terem passado a sentir, por via dessa situação, tristes, inquietos ou irritados.
E sendo assim, cremos assistir razão ao Réu, não se podendo retirar da facticidade apurada a existência de danos morais na esfera jurídica dos Autores que assumam o padrão de gravidade prevista pelo artigo 496.º, n.º1 do Cód. Civil.
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IV- DECISÃO
IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Na procedência do lapso de escrita invocado pelo apelante, ordenam a retificação da sentença recorrida de modo a que no ponto 3 do segmento decisório onde se lê3.Pagar a quantia de 1.000,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento” passe a ler-se : “3. Pagar a quantia de 1.500,00€ a cada um dos Autores, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos, perfazendo o montante global indemnizatório de 7.500,00€, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.”;
b) Revogam a sentença recorrida no segmento em que condenou o Réu a pagar aos autores uma compensação por danos morais no montante global de 7.500,00€, absolvendo o réu desse pedido.
c) No mais, confirmam a sentença recorrida.
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Custas da apelação por Apelante e Apelados, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 70% para o apelante e 30% para os apelados (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 28 de janeiro de 2022

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa
______________________________________________
i) Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI.

ii) Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI.

iii) Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.

iv) Acs. STA de 10/10/2000, Proc. 40576 e de 12/12/2000, Proc. 1226/02, in base de dados da DGSI.

v) Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, 10ª ed., volo. II, pág. 1125.

vi) Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª ed., Almedina, pág. 531.