Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00224/07.0BEPNF
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:12/15/2011
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:MAIS-VALIAS
IRS
REGIME TRANSITÓRIO DA CATEGORIA G
TERRENOS PARA CONSTRUÇÃO
Sumário:Os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de terreno para construção adquirido como rústico antes da entrada em vigor do C.I.R.S. e que só adquire a natureza urbana depois da entrada em vigor deste Código, não estão sujeitos a I.R.S. – artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:M...
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
1.1. A Fazenda Pública recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou procedente a presente impugnação judicial da liquidação n.º 2006 5004562135, relativa a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (I.R.S.) do ano de 2002 e respectivos juros compensatórios, no valor global de € 60.579,90, em que era impugnante M…, n.i.f. … … …, com domicílio indicado no Lugar de L…, freguesia …, município de ….
Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.
1.2. Notificado da sua admissão, a Recorrente apresentou as respectivas alegações e formulou as seguintes conclusões:
A. A douta sentença sob recurso julgou procedente a impugnação deduzida contra a liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2002 lançada sobre a impugnante no montante total de € 60.579,90 com o fundamento de que, não sendo tributados em IMV, não estariam sujeitos a IRS, face ao regime transitório vertido no art. 5° do DL nº 442-A/88, de 30.11, os ganhos resultantes da alienação do artigo … da matriz predial rústica da freguesia …, concelho ….
B. Quando afirma que “no momento da venda o prédio tinha a natureza de rústico” a douta sentença retira dos factos uma conclusão que indevidamente leva à matéria de facto dada como provada.
C. De igual modo a dita conclusão está em contradição com os factos dados como provados seguidamente enunciados de que “em 23 de Setembro de 1994 o referido prédio foi incluído em zona industrial e de armazenagem do concelho de Santo Tirso, na sequência de ratificação do Plano Director Municipal” e que “após 23.09.1994 o prédio passou a estar localizado dentro do aglomerado urbano e situa-se numa zona industrial e de armazenagem”.
D. Da concatenação dos elementos probatórios carreados aos autos não se pode senão verificar estarmos perante um terreno que demonstra apetência para construção porque só assim se justifica o interesse gerado pelo mesmo junto das entidades intervenientes nas transacções e os valores alcançados na sua transmissão.
E. De acordo com o art. 5º do DL n° 442-A/88 de 30.11, os ganhos que não eram sujeitos a tributação em sede do abolido Imposto de Mais Valias mantiveram o mesmo tratamento isto é, permaneceram não sujeitos em termos de IRS, só ficando sujeitos a tributação em sede de IRS se a sua aquisição ocorresse em momento posterior ao início da vigência do CIRS.
F. O art. 1º, n° 1 do CIMV estabelecia, por sua vez, que “o imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram: 1º Transmissão onerosa de terreno para construção (…)” e o Parágrafo 2° da mesma norma, os pressupostos objectivos e subjectivas para a determinação do conceito de terreno pata construção, referindo que “são havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidas em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo”.
G. Na vigência do CIMV desenvolveu-se corrente jurisprudencial que consolidou o entendimento de se considerar como terrenos para construção todos aqueles que se apresentavam objectivamente afectos à construção reputando e valorando os três indicativos fornecidos pelo parág. 2° do art. 1º do CIMV como Índices fornecidos pela lei para facilitar a determinação da incidência nos casos em que ocorressem as circunstâncias aí previstas
H. Assim, se, por um lado, eram de qualificar como terrenos para construção “os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo” por outro lado, a mesma qualificação podia emanar “de outros elementos que a inculcasse sem reserva “, mesmo que não abarcados por aqueles índices em consonância com a vontade de total abrangência manifestada no parágrafo 2° do art. 1° do CIMV, o que significava dizer que os referidos índices seriam meros indicativos, ao invés de limites vinculativos.
I. Nessa qualificação o aspecto material, atinente à realidade da sua potencial destinação à construção urbana suplanta o aspecto formal, atinente à denominação ou classificação sob a qual foi tratado e que se manifesta nas escrituras que formalizaram as vendas.
J. O momento relevante para aferir da verificação destes requisitos por demonstrarem o destino do prédio transmitido segundo o princípio da realização seria o da data da transmissão ou verificação do ganho, por ser aquele em que se torna possível aferir se o terreno é transmitido com as potencialidades geradoras do ganho, inerentes à faculdade de nele se construir, por serem estas que originam o acréscimo inesperado, fortuito ou imprevisto do valor dos terrenos, que justifica a tributação.
K. Isto porque a natureza jurídico-tributária do bem transmitido tem de ser vista em função das circunstâncias, qualidades e propriedades que esse bem detém à data do acto translativo gerador dos rendimentos tributados
L. O conteúdo do conceito de terreno para construção assim fixado para definir o alcance do art 5° do DL n° 442-A/88 e deve reger a situação concreta sub júdice, a qual se mostraria abrangida pelo IMV, se vigorasse à data da transmissão.
M. Assente a sujeição dos ganhos a imposto de mais-valias o regime transitório do art. 5º do DL n° 442-4/88 ordena a sua sujeição a IRS, seguindo um princípio de continuidade na tributação desse tipo de ganhos de acordo com o campo de incidência real do imposto de mais-valias.
N. Este entendimento jurisprudencial e doutrinário não fica prejudicado pela abolição do imposto de mais-valias decretada pelo art. 3.° n.° 1 do DL. 442-4/88 de 30.11, tanto mais que tal tributação, além de se manter sem hiatos com relação aos terrenos para construção, foi ainda estendida a outras realidades prediais no âmbito do CIRS, por força da previsão de uma definição actualizada do que são “terrenos para construção” no art. 6.º n.° 3 do CCA.
O. Na medida em que os meros indícios do que se deveria considerar terreno para construção, à luz do parágrafo 2° do art. 1° do CIMV, levariam a que os ganhos obtidos com a transmissão em apreço fossem tributadas se ocorressem durante a vigência do IMV, a aplicação do art. 5° do DL 442-4/88, de 30.11, por outro lado, leva a que os ganhos obtidos com imóveis que não fossem já de considerar terrenos para construção, segundo o critério da aplicação do CIMV, só ficam sujeitos a IRS na exacta medida em que a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor do CIRS.
P. Não constitui isto qualquer retroactividade na aplicação da lei porque o mesmo objecto estava já na previsão da lei antiga, já eram antes tributados por força do CIMV, de acordo com um princípio, não geral mas com limites definidos constitucionalmente, que decorre da própria essência do Estado de Direito, ancorado na tutela da certeza e segurança do direito bem como da confiança, o facto de que às normas de incidência estar vedada normalmente a eficácia retroactiva.
Q. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo interpretou incorrectamente e aplicou de forma errónea o art. 1°, n°1 e parágrafo 2° do CIMV, o art. 5° do DL 442-4/88, de 30.11 e o art. 10°, n°1, al. a), do CIRS.
1.3. Contra-alegou a Impugnante, com as subsequentes conclusões que ora se transcrevem:
1) O facto, dado por provado “... no momento da venda o prédio tinha a natureza de rústico.” não é facto conclusivo nem contraditório com outros insertos na sentença recorrida;
2) É antes o posicionamento do tribunal “a quo” sobre facto controvertido pelas partes;
3) Não resultou provado dos autos que o interesse das adquirentes se baseasse na capacidade construtiva do imóvel nem que tal tivesse presidido aos preliminares do acto nem à sua declaração final.
4) Em 06.08.1972, os impugnantes adquiriam, por morte ocorrida em 25.08.1970, o prédio rústico dos autos.
5) Em 04.08.2000, os mesmos venderam aquele referido prédio;
6) O referido prédio rústico foi incluído em zona industrial e de armazenagem na sequência da ratificação do PDM de Santo Tirso, operada pela Resolução do Conselho de Ministros, em 23.09.1994.
7) Nos termos do art.° 1 do CIMV só estavam sujeitos a tal imposto as transmissões onerosas de terrenos para construção sendo que o parágrafo 2.° do mesmo diploma legal classificava como tal aqueles que se situavam em zonas urbanizadas OU estivessem compreendidos em planos de urbanização já aprovados OU como tal fossem declarados no título constitutivo.
8) Nos termos do art.° 10 do CIRS ficaram sujeitos a mais valias todos os ganhos que resultassem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
9) Como regime transitório, o art.° 5, n.° 1 do DL 442-A/88 dispôs que os ganhos que não fossem sujeitos a imposto de mais valias também o não fossem em sede de IRS, desde que, os direitos reais sobre bens imóveis transmitidos decorressem de bens adquiridos antes de 01 .01 .1989.
10) O ganho obtido pelos Impugnantes decorrente da venda do imóvel dos autos não está sujeito a IRS porque não seriam sujeitos a imposto de mais valias nos termos do CIMV.
11) A aptidão para construção declarada pelo PDM aprovado em 23.09.1994 não faz alterar a aplicação combinada do art.° 1, nº 1 e parágrafo 2.° do CIMV; do art° 10, n.° 1 do CIRS; e do art.° 5, n.° 1 do DL 442-A/88 de 30 de Novembro,
1.4. Neste Tribunal, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer onde, concluiu, além do mais, que «resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 1.º, n.ºs 1 e 2 do Dec.-Lei 46 373/65, de 09/09 e 5.º do Dec.-Lei 442-A/88, de 30/11 que os ganhos obtidos com a venda do prédio em 30/12/2002, não estão sujeitos a IRS porquanto também não estavam sujeitos a imposto de mais-valias – cfr. neste sentido, Ac.s do S.T.A. de 07/06/2004, 29/03/2006 e 06/06/2007, proferidos nos recursos n.º 659/04, 1213/05 e 179/07. Pelo exposto, somos do parecer que o recurso não merece provimento, devendo manter-se inalterada a douta sentença recorrida».
1.5. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
1.6. São as seguintes as questões a decidir, de acordo com o enquadramento que das mesmas é feito nas doutas alegações de recurso e nas respectivas conclusões:
§ saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento na parte da resposta à matéria de facto em que se deu como provado que «no momento da venda o prédio tinha a natureza de rústico» (cfr. artigos 4.º e 5.º das doutas alegações de recurso e alíneas “A” a “D” das respectivas conclusões);
§ Saber se a correspondente resposta à matéria fáctica está em contradição com outros factos igualmente dados como provados e infra reproduzidos sob as alíneas j) e p) (cfr. em especial a alínea “C” das doutas conclusões do recurso)
§ saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento ao concluir que os ganhos resultantes da transmissão não estão sujeitos a I.R.S. (cfr. artigos 7.º e seguintes das doutas alegações de recurso e alíneas “E” a “Q” das respectivas conclusões.
2. Fundamentação de Facto
2.1. É o seguinte o acervo dos factos que em primeira instância foram dados como provados (sendo a numeração da nossa lavra):
a) Na sequência de urna acção de inspecção levada a cabo pelos serviços de inspecção tributária à ora impugnante, com base na relação de registo notarial de Dezembro de 2002 do Cartório Notarial da Trofa, constatou-se que esta não tinha declarado na Declaração Modelo 3, anexo G, relativa ao ano de 2002 a venda que tinha efectuado em 30 de Dezembro de 2002 do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo … da Freguesia ….
b) O referido prédio denominado “B… e S…” foi vendido no dia 30 de Dezembro de 2002 às sociedades N…, Ld.a, e “I …, S.A.”, pelo preço total de 300.000,00 euros. – cfr. docs. de fls. 30 a 33 do P.A. apenso aos autos.
c) No momento da venda, o prédio tinha a natureza de prédio rústico.
d) Esse prédio foi adquirido pela impugnante por sucessão ocorrida em 25 de Agosto de 1970 – cfr. teor do doc. de fls. 52 do P.A. apenso aos autos.
e) No momento da sua aquisição, o prédio tinha a natureza de prédio rústico.
f) O valor patrimonial da sua aquisição foi de 8,18 euros.
g) Os serviços de administração tributária apuraram o valor de mais-valia para efeitos de IRS de 299.650:80 euros.
h) O valor a tributar foi determinado no montante de 149.825,40 euros.
i) Na sequência da referida acção inspectiva foi emitida pelos serviços de finanças a nota de cobrança n°20061412649 no valor de 60.579,90 euros, que incluiu a correcção de IRS referente ao ano de 2002, acrescida dos respectivos juros compensatórios.
j) Em 23 de Setembro de 1994, o referido prédio foi incluído em zona industrial e de armazenagem do Concelho de Santo Tirso, na sequência da ratificação do Plano Director Municipal - cfr. prova testemunhal.
k) O PDM de Santo Tirso foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.°90/94 de 14 de Julho, publicada no DR série I-B de 23 de Setembro.
l) O Concelho da Trofa foi criado pela Lei 83/98 de 14 de Janeiro e abrangeu algumas freguesias a destacar do Concelho de Santo Tirso, nomeadamente a freguesia de Santiago de Bougado.
m) Antes de 23 de Setembro de 1994, o prédio não estava integrado em plano de urbanização já aprovado, nem estava situado em zona urbanizada.
n) Em 4 de Agosto de 2000, a impugnante requereu na Câmara Municipal da Trofa o licenciamento de operação de loteamento urbano de prédio rústico inscrito na matriz sob o art.° 1539 – cfr. prova testemunhal.
o) O processo foi arquivado sem que tivesse sido concedido o referido licenciamento – cfr. prova testemunhal.
p) Após 23.09.1994, o prédio passou a estar localizado dentro do aglomerado urbano e situa-se numa zona industrial e de armazenagem.
q) Nunca foi concedido alvará de loteamento ou aprovado um projecto ou concedida uma licença de construção para o referido prédio.
r) Em 1 de Janeiro de 1989 o prédio apresentava a natureza de prédio rústico.
2.2. Na resposta à matéria de facto foi ainda consignado o seguinte, relativamente a «Factos não provados com relevância para a decisão da causa»: «Não se apurou no procedimento inspectivo se o prédio vendido estava classificado como terreno para construção em 1 de Janeiro de 1989» e «Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa».
2.3. As razões da discordância da Recorrente com o decido em primeira instância abrangem, como vimos, a resposta à matéria de facto respectiva.
A Recorrente não se conforma que a M.mª Juiz “a quo” tenha dado como provado que «No momento da venda, o prédio tinha a natureza de prédio rústico» [acima reproduzido sob a alínea “c)” dos factos provados]. De um lado, porque não se trata de um facto, mas de uma conclusão; de outro lado, porque essa conclusão é contraditada por outros factos igualmente dados como provados, como sendo aqueles que acima se reproduzem sob as alíneas “j)” e “p)”.
A apreciação do mérito do recurso passa, por isso e antes de mais, pela aferição do que se entende por «facto».
Temos como certo que serão verdadeiros factos as ocorrências concretas da vida real, devidamente enquadradas no espaço e no tempo e que possam ser objecto de um processo de averiguação quanto à sua existência (isto é, de um «juízo histórico dirigido apenas ao ser ou não ser do facto» - Artur Anselmo de Castro, in «Direito Processual Civil Declaratório», Vol. III, pág. 268) e sem recurso à mediação da norma (isto é, sem apelo ou referência a qualquer critério fixado pela ordem jurídica). Podem ser eventos externos ou internos (nomeadamente psíquicos), reais ou hipotéticos.
Quando determinado facto adquire relevância para o mundo do direito, designadamente porque a lei lhe atribui determinados efeitos jurídicos, esse facto ascende ao estatuto de facto jurídico (concreto), isto é, à ocorrência de cuja consubstanciação emerge o direito. Dele se distingue o facto jurídico abstracto, que é a fórmula legal onde a factualidade correspondente se enquadra, a sua previsão normativa, antes mesmo da sua manifestação, isto é, antes de adquirir existência real.
Ensina a doutrina que, em algumas situações, as regras da experiência podem ser consideradas factos. É o que acontecerá quando «a norma legal tomar como elemento constitutivo directo uma regra da experiência ou da vida» (ob. e loc. cit.), prescindindo de qualquer valoração subjectiva. Será exemplo disso a norma que, na estatuição, prescinde da configuração do facto típico, remetendo a sua concretização para os usos e costumes do comércio.
Têm sido equiparados a factos os juízos que contenham a subsunção a um conceito jurídico globalmente conhecido e que, por isso, tenha passado a fazer parte do uso corrente da linguagem comum, como sucede com as expressões «pagar», «emprestar», «vender», «arrendar».
Poderá dizer-se, em jeito de conclusão, que o rigor a exigir na descrição dos factos não deve ser o mesmo em todas as situações. Num processo em que esteja em causa saber se determinado sinistro está a coberto do contrato de seguro, faz sentido exigir que se descreva a causa do abalo de terra que destruiu as instalações e os elementos da escrita que nelas se encontravam guardados, mas tal já não será relevante num processo de impugnação judicial, onde apenas se pretenda averiguar se o incumprimento do dever de apresentação da escrita à A.T. se deveu a caso fortuito ou de força maior. O que parece não dever ser dispensado em qualquer dos casos é o enquadramento espacio-temporal do evento, atento o conceito de causa de pedir conforme à teoria da substanciação, a que o nosso legislador processual civil aderiu (como resulta do artigo 498.º, n.º 4, do Código respectivo).
Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, podemos adiantar desde já que a referência ao «momento da venda» assegura algum enquadramento histórico: de um lado, porque é notório que o «momento» para que remete é o do dia 30 de Dezembro de 2002, a que alude o facto anterior [alínea “b)” supra]; de outro lado, porque a expressão utilizada («venda») é de fácil identificação e enquadramento pelo comum cidadão.
Mas o mesmo não se pode dizer da referência à «natureza do prédio» («rústico»): de um lado, porque para sabermos se um prédio é rústico ou urbano temos que consultar a lei; de outro lado, porque a natureza rústica ou urbana do prédio varia de acordo com a lei a aplicar.
Assim, um determinado terreno não seria havido como terreno para construção para os efeitos do Código do Imposto de Mais Valias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965 (doravante sob a sigla “C.I.M.V.”) e, por isso, teria a natureza de prédio rústico para efeitos tributários (designadamente à luz do artigo 5.º, § 1.º, do Código da Contribuição Predial então vigente, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45 104, de 1 de Julho de 1963) se não estivesse situado em zona urbanizada nem compreendido em planos de urbanização já aprovados nem fosse assim declarado no título aquisitivo. Sendo que para saber, por exemplo, o que se entende por «zona urbanizada», haveria que consultar também a «lei dos solos» e suas sucessivas alterações. Mas o conceito de terreno para construção para efeitos do artigo 6.º do Código de Contribuição Autárquica é parcialmente diverso. E este também difere parcialmente do adoptado, por exemplo, no Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis (seu artigo 6.º, n.º 3).
Do exposto decorre – a nosso ver, com meridiana clareza – que no segmento da resposta à matéria de facto em causa foi inserida uma verdadeira conclusão. E não é sequer uma conclusão de facto, mas uma verdadeira conclusão de direito.
Facto seria afirmar, por exemplo, que no momento da venda ou, mais concretamente, em 30 de Dezembro de 2002, as partes declararam (ou não) que o prédio se destinava a construção urbana ou não existia na área do terreno em causa e a menos de 50 metros das suas confrontações via pública pavimentada nem rede de abastecimento domiciliário de electricidade, água e drenagem de esgotos.
Ora, resulta do disposto no artigo 647.º, n.º 4, do Código de Processo Civil que as respostas do tribunal “a quo” à matéria de facto que tem natureza conclusiva ou são de qualificar como matéria de direito se têm por não escritas, sem necessidade de anulação do julgamento.
Razão pela qual, ao abrigo do dispositivo citado, se decide em considerar não escrito o correspondente segmento da resposta à matéria de facto da douta sentença recorrida, acima identificado sob a alínea “c)”.
Ficando, assim, prejudicado o conhecimento do outro vício apontado a esta parte da decisão (contradição na fundamentação).
Resta acrescentar que poderia ser extraída idêntica conclusão quanto aos segmentos da resposta à matéria de facto da douta sentença recorrida, acima identificados sob as alíneas “e)” e “r)”. Também ali se consignou que, «no momento da sua aquisição» e «em 1 de Janeiro de 1989», o prédio tinha a natureza de prédio rústico», pelo que também na resposta à matéria de facto respectiva foi inserida uma verdadeira conclusão de direito.
Mas a tanto não se estendem os fundamentos do recurso, manifestamente porque não é sobre esta matéria que subsiste o litígio. Quer dizer, não é matéria controvertida (seja ela de facto ou de direito) que o prédio em causa tinha, à data da sua aquisição pela Recorrida (em 1970) e à data da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante sob a sigla “C.I.R.S.”) a natureza de prédio rústico. E também não existem nos autos elementos de prova que, por si só, imponham conclusão diversa. Razão porque decide este Tribunal não alterar a decisão respectiva.
3. Fundamentação de Direito
3.1. A primeira parte da nossa análise será dedicada à delimitação do problema fundamental que divide as partes e que justifica o presente recurso.
Está bem de ver que é um problema de qualificação: a Recorrente não se conforma com o decidido em primeira instância porque, ao contrário do que ali foi entendido, considera que os ganhos obtidos pela Recorrida com a venda, em 2002, do imóvel identificado nos autos estão sujeitos a tributação em I.R.S.. E que, por conseguinte, a M.mª Juiz “a quo” fez errada interpretação das normas de incidência respectivas.
No entanto, as razões da discordância da Recorrente com o decidido em primeira instância desenvolvem-se em dois planos distintos, que vale a pena também aqui distinguir.
Assim a Recorrente não se conforma com o decidido em 1.ª instância, de um lado, porque se recorreu a um conceito-tipo de terreno para construção diverso do que tinha sido adoptado pelo legislador e deveria ter sido considerado na decisão.
E não se conforma com o decidido em 1.ª instância, de outro lado, porque, no entendimento da Recorrente, a norma de incidência em I.R.S. permitia a tributação dos ganhos trazidos por terrenos adquiridos antes da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante sob a sigla “C.I.R.S.”) mas que só podem ser qualificados como terrenos para construção depois dessa data.
É evidente que as questões estão interligadas, mas merecem ser distinguidas. Porque estão relacionadas com diferentes elementos do tipo tributário respectivo.
Com efeito, tem sido entendido que o facto juridico-tributário [também designado de facto jurídico que está na base do tributo, pressuposto de facto do tributo, facto gerador do tributo ou espécie de facto (facti-specie) tributário] é formado por dois elementos fundamentais (ou atributos): o elemento objectivo e o elemento subjectivo. Sendo o primeiro formado pelo reconhecimento, na previsão normativa, do relevo de uma ocorrência da vida real (facto concreto) para o mundo do direito tributário (facto jurídico) e o segundo formado pelo reconhecimento da conexão desse facto com um determinado sujeito.
E tem sido também entendido que o elemento objectivo do facto tributário é também formado por quatro sub-elementos: o elemento material, o elemento temporal, o elemento quantitativo e o elemento espacial. Sendo o primeiro formado pela própria ocorrência (facto natural, facto económico, acto ou negócio jurídico, etc.) que a lei releva como manifestação de capacidade contributiva (no caso dos impostos); sendo o segundo formado pelas referências temporais de que depende o seu reconhecimento, isto é, o período de tempo dentro do qual determinada ocorrência releva para efeitos tributários ou o período de tempo necessário para a formação do facto tributário; sendo o terceiro formado pela realidade a medir (mercadorias, rendimento), pela unidade de medida (peso, dimensão, valor monetário) e pelos critérios jurídicos a que deve obedecer a medição; e sendo o quarto formado pela conexão do facto tributário com um dado território (sobre esta matéria, pode ver-se Alberto Xavier, in «Manual de Direito Fiscal I», 1981, págs. 249 e seguintes).
Ora, a questão de saber qual o conceito-tipo de terreno para construção que releva para a tributação num dado imposto é uma questão que se prende com o elemento material do facto tributário, porque está em causa a própria definição económica do objecto do negócio jurídico que envolveu a sua transmissão.
Já a questão de saber, se os ganhos resultantes da alienação de terrenos adquiridos antes da entrada em vigor do C.I.R.S. e que só ficaram afectos à construção depois dessa data relevam para a tributação nesse imposto é uma questão que se prende com o elemento temporal do facto tributário, porque está em causa o período de tempo dentro do qual determinada ocorrência releva para efeitos tributários.
Vamos, por isso, analisa-las separadamente e por esta ordem.
3.2. Para saber qual o conceito-tipo de terreno para construção que releva para efeitos de I.R.S., importa primeiro explicar porque é que esse conceito é, no caso, relevante para efeitos deste imposto.
Na verdade, e em princípio, a tributação das mais-valias (dos «ganhos trazidos pelo vento»; das «valorizações dos bens que não foram produzidos, comprados ou conservados para vender»; dos «aumentos inesperados, imprevistos, do valor dos bens» - definições do Prof. José Joaquim Teixeira Ribeiro, in «A Reforma Fiscal», pág. 127, e «Lições de Finanças Públicas», 5.ª edição, pág. 303) obtidas com a alienação de terrenos não depende, no C.I.R.S., da sua afectação à construção. O artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do C.I.R.S. reconhece como mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo enquadráveis noutra categoria de rendimentos, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, quaisquer que eles sejam.
O que resulta do facto de o legislador do C.I.R.S. ter aderido a uma noção alargada de rendimento (rendimento-acrescimo), vocacionada para reconhecer e relevar para a tributação todos os acréscimos patrimoniais líquidos, quaisquer que sejam a suas proveniências.
A importância do conceito de terreno para construção para a resolução do caso deriva da interferência de uma norma de incidência negativa, localizada no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30.11, segundo o qual «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965» (doravante identificado pela sigla “C.I.M.V.”), «só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código».
Dele resulta – para o que aqui releva – que quanto aos bens adquiridos antes da entrada em vigor do C.I.R.S., os ganhos obtidos com a respectiva alienação só são reconhecidos como mais-valias tributáveis se o C.I.M.V. os reconhecesse também.
Ora, de acordo com a factualidade provada por remissão para documentos juntos aos autos, o imóvel nos autos identificado veio a integrar o património da Recorrida em 1970, por lhe ter sido adjudicado em partilha nos autos de inventário obrigatório que no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso correram termos, pelo falecimento de M….
Ou seja, o referido terreno veio a integrar a esfera patrimonial do sujeito passivo antes da entrada em vigor do C.I.R.S. Pelo que, por força da referida norma de incidência negativa, os ganhos obtidos com a sua venda só são tributáveis em mais-valias pelo C.I.R.S. se também o eram pelo C.I.M.V.
Sucede que o C.I.M.V. não tributava, na sua realização, todos os «ganhos de capital», mas apenas os ganhos decorrentes dos aumentos de valor de quatro tipos de bens (que não foram adquiridos para revenda): (1) os terrenos para construção; (2) os elementos do activo imobilizado das empresas ou bens ou valores por elas mantidos como reserva ou fruição; (3) o direito de arrendamento dos escritórios e consultórios; (4) as quotas em sociedades ou acções. Entendeu-se, de acordo com o respectivo preâmbulo, que seriam estes «os bens cujas mais-valias se verificam com maior frequência, são de maior vulto ou não oferecem dificuldades sérias de determinação».
E, porque não estava em casa a alienação de elementos do activo imobilizado de empresas, direitos de arrendamento, escritórios ou consultórios, quotas em sociedades ou acções, a tributação dos ganhos com a venda o prédio em causa estaria dependente, à partida, de se tratar de um terreno para construção.
Todavia, o C.I.M.V. tinha o seu próprio conceito de terreno para construção: de acordo com o § 2.º do artigo 1.º do Código respectivo, seriam havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.
Ou seja, o C.I.M.V. oferecia um triplo critério de classificação de um terreno como um prédio urbano (visto que já então os prédios seriam classificados como rústicos ou urbanos de acordo com a sua afectação ou destino – cfr. artigo 5.º do Código da Contribuição Predial ao tempo em vigor): ter potencialidades construtivas (critério da aptidão estrutural ou objectiva); ter sido afectado à construção por acto da administração (critério da afectação administrativa); ou ser destinado a esse fim pelos próprios contraentes (critério da destinação particular).
Sendo que, para o efeito, o terreno teria potencialidades construtivas se estivesse situado em aglomerado urbano, considerando-se como tal (de acordo com o artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 794/76, de 5.11) os que, situados a área envolvente de um núcleo de edificações autorizadas, confinassem com vias públicas pavimentadas e fossem servidos de rede de abastecimento domiciliário de electricidade, água e drenagem de esgotos.
Confrontando este normativo com disposições inseridas em diplomas posteriores, como o artigo 6.º, n.º 3, do Código da Contribuição Autárquica (doravante sob a sigla “C.C.A.”), citado na douta sentença recorrida, logo vemos que não se aderiu ali aos critérios da aptidão estrutural nem da afectação administrativa, visto que não releva a localização em aglomerado urbano nem a existência de um plano de urbanização. O legislador deste último Código limitou-se a relevar índices de destinação particular como o de ter sido requerido e concedido um alvará de loteamento, requerido e aprovado um projecto de construção, de ter sido requerida e concedida licença de construção, ou de esse fim ter sido declarado pelos próprios adquirentes no título aquisitivo.
E é aqui que se centra uma parte do litígio: na sentença recorrida foi anotado que em 23 de Setembro de 1994 foi aprovado o Plano Director Municipal de Santo Tirso e que o referido prédio foi incluído em zona industrial e de armazenagem do Concelho, tendo passado a estar, desde então, dentro de aglomerado urbano. Pelo que seria considerado um terreno para construção de acordo com os critérios da aptidão estrutural e da afectação administrativa, presentes no § 2.º do artigo 1.º do C.I.M.V.
No entanto, a M.mª Juiz “a quo” considerou que o prédio continuava a ser rústico à data da sua alienação (em 2002) e que não era, ainda, um terreno para construção porque – se bem se interpreta – não existiam os tais índices de destinação particular a que aludia o artigo 6.º, n.º 3, do C.C.A..
Temos como certo, porém, que não relevava para o caso o conceito de terreno para construção deste último Código. Para o efeito, o único critério que poderia relevar seria o do C.I.M.V.
Porque, de outro modo, não estaria o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 citado a reportar-se ao elemento material de uma regra de incidência objectiva do C.I.M.V., mas a reportar-se ao elemento material de uma regra de incidência objectiva criada pelo próprio julgador. Cruzando elementos de regras de incidência extraídas de diplomas distintos.
Não há dúvida que o objectivo do legislador, ao criar aquela regra transitória, foi o de sujeitar a I.R.S. os ganhos que estivessem também sujeitos a I.M.V.
E não o de sujeitar a I.R.S. os ganhos com terrenos que fossem considerados como terrenos para construção para efeitos de contribuição autárquica.
Mas se isto nos parece tão evidente, será justo também ressalvar que poderá a M.mª Juiz ter querido dizer algo bem diferente ao aludir ao artigo 6.º, n.º 3, do Código da Contribuição Autárquica: poderá ter-se querido dizer apenas que o legislador não poderia ter pretendido aplicar o conceito de terreno para construção do C.I.M.V. como se ele vigorasse à data da transmissão, porque já não era esse o conceito à data adoptado no ordenamento jurídico-fiscal.
Ou seja, a referência ao artigo 6.º, n.º 3 do C.C.A. poderá não ter sido mais do que um argumento interpretativo (sistemático) a que a M.mª Juiz recorreu para concluir que o legislador não pretendeu a sobrevigência do conceito de terreno para construção de um código revogado (a aplicar a destinações futuras), mas identificar os terrenos que já eram terrenos para construção à data da sua revogação.
Mas essa não é, como vimos, questão que se prenda com o elemento material da regra de incidência respectiva, mas com o seu elemento temporal.
Porque já não está, então, está em causa saber o que se entende por terreno para construção para efeitos do regime transitório da “Categoria G” instituído pelo artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88 citado, mas se o critério legal instituído pelo § 2.º do artigo 1.º do C.I.M.V. pode relevar, por força daquele regime transitório, quanto a factos ocorridos depois da sua revogação.
Sendo essa a questão que se nos afigura verdadeiramente decisiva e de que se conhecerá de seguida.
3.3. Há que reconhecer que a questão não é, à partida, de resposta evidente. O artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88 citado não é, de facto, tão claro quanto seria desejável numa norma de direito transitório.
Mas os factores hermenêuticos disponíveis indicam que a Fazenda Pública não tem razão neste particular. E que a M.mª Juiz “a quo” decidiu bem ao concluir que o momento a atender para efeitos de aplicação daquele regime transitório não é o da transmissão dos bens, mas o da entrada em vigor do C.I.R.S.
Sendo o principal, a nosso ver, o elemento gramatical.
É que o legislador aludiu ali aos ganhos que não eram sujeitos ao I.M.V. O tempo verbal utilizado não nos remete para uma situação hipotética a projectar no futuro. Se o legislador pretendesse verdadeiramente a sobrevigência do conceito de terreno para construção, a sua aplicação a futuras afectações ou destinações futuras de terrenos adquiridos na sua vigência, teria aludido aos ganhos que não seriam sujeitos ao I.M.V. para delimitar o âmbito temporal da incidência respectiva.
E convenhamos que uma coisa é relevar a mais-valia obtida em terrenos que já eram terrenos para construção para os efeitos do C.I.M.V. à data da entrada em vigor do C.I.R.S.; e coisa bem diferente é relevar a mais-valia obtida em terrenos que seriam considerados terrenos para construção para efeitos do C.I.M.V. se este diploma vigorasse à data da sua afectação ou destinação.
No primeiro caso, releva-se a mais-valia latente, a valorização do imóvel operada com a alteração do seu destino ainda quando o C.I.M.V. vigorava. No segundo caso, releva-se uma valorização que terá ocorrido já no âmbito do C.I.R.S., recorrendo para o efeito a uma ficção jurídica, isto é, ficcionando que o C.I.M.V. ainda vigorava à data dos factos que potenciaram a sua valorização (para se poder recorrer ao elemento material da regra de incidência respectiva).
Atendendo, em segundo lugar, ao elemento sistemático, aqui reconduzido ao complexo normativo em que se integra a norma transitória (o contexto da lei).
É que, quer no I.M.V. quer no I.R.S., a mais-valia é um ganho apurado entre dois momentos: o da aquisição dos bens e o da sua alienação ou realização. Algures nesse hiato temporal se formou um acréscimo patrimonial (um ganho) que o titular do bem capitalizou enquanto este se manteve na sua titularidade. E que se prescinde de localizar temporalmente, mesmo no momento da sua realização. O que em muitas situações seria até impraticável.
Ou seja, na tributação das mais-valias não é apurado o momento em que o ganho foi obtido, mas o período dentro do qual foi obtido e o momento em que foi realizado.
Pelo que, quando (como é o caso) a aquisição ocorre na vigência de uma lei e a realização ocorre na vigência de outra lei, não é possível evitar algum grau de retroactividade, na medida em que não é possível, em princípio, acautelar a tributação de valorizações (ganhos latentes) que não ocorreram por inteiro no âmbito da lei que os sujeitou a tributação.
Por isso, e em princípio e nestas situações, o legislador prescinde da tributação. O que já sucedera aquando da entrada em vigor do C.I.M.V.
A sujeição a I.R.S. dos ganhos que já estavam sujeitos a I.M.V. com base em disposição de direito transitório constitui, por isso, uma norma excepcional e deve, por isso, ser interpretada com especial cuidado, reconduzindo-a ao sentido que o texto directa e claramente comporta.
Ora, o sentido normativo mais evidente da norma interpretanda é o de sujeitar a I.R.S. os ganhos potenciais que já eram sujeitos a I.M.V., isto é, que tendo-se formado na sua vigência, já o C.I.M.V. sujeitava a tributação em caso de realização. Porque já existia a expectativa de tributação do ganho, em caso de realização.
O que sucede, notoriamente, se o terreno adquirido já era um terreno para construção para efeitos de I.M.V. e à data em que cessou a sua vigência.
Mas não sucede se o terreno só adquire as correspondentes potencialidades construtivas na vigência do C.I.R.S.
Ora, a Administração Tributária tinha decidido que o terreno em causa nos autos era um terreno para construção porque tinha sido adquirido por uma construtora em 2002 e que, por isso, o pretendia afectar à construção; porque a Recorrida (ali alienante) tinha requerido o licenciamento para uma operação de loteamento em 2000; e porque o prédio se encontra dentro de aglomerado urbano e em área urbanizável (de acordo com o P.D.M. aprovado em 1994).
Sendo notório que todos estes indicadores se reportam a um período temporal em que já estava em vigor o C.I.R.S.
E que, à data em que cessou a vigência do C.I.M.V., o terreno em causa não era ainda um terreno para construção para os efeitos deste Código.
E como o terreno foi adquirido antes da entrada em vigor do C.I.R.S., a liquidação é ilegal por estar excluída a incidência do imposto pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88.
Pelo que o recurso não pode proceder.
Resta acrescentar que a solução encontrada converge com o entendimento jurisprudencial mais recente do S.T.A. (Ac. de 2006.12.12, proc. n.º 01100/05; ac. de 2010.01.27, proc. n.º 0969/09; ac. de 2010.06.02, proc. n.º 0998/09).
4. Conclusão
Os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de terreno para construção adquirido como rústico antes da entrada em vigor do C.I.R.S. e que só adquire a natureza urbana depois da entrada em vigor deste Código, não estão sujeitos a I.R.S. – artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.
5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e assim confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 15 de Dezembro de 2011
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves
Ass. Álvaro Dantas