Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00402/22.1BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS;
FALTA DE INTERESSE EM AGIR;
AUTOTUTELA DECLARATIVA E EXECUTIVA;
Sumário:
1 - Os Tribunais administrativos são competentes para conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento de renda apoiada, mas já não em matéria de despejo e/ou cobrança de rendas não pagas, por estar essa competência atribuída aos órgãos administrativos.

2 - No âmbito dos poderes que lhe são conferidos no artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH, as entidades referidas no seu artigo 2.º e nas quais se inclui a Autora, ora Recorrente, estão habilitadas a praticar um acto administrativo que determine o despejo, este, com poderes de autotutela declarativa e executiva e um outro, que determine a promoção da execução por rendas em atraso, este, apenas com autotutela declarativa, pois que, nos termos dos artigo 179.º, do CPA, a execução para pagamento de quantia certa corre termos nos tribunais tributários – Cfr. artigo 28.º, n.º 1, do NRAAH e regime previsto no Código Civil, ex vi artigo 17.º n.º 1.

3 - Na situação em apreço, não está em causa qualquer decisão relativa ao despejo dos Réus, pois que resulta dos autos que a habitação já está na posse da Autora.

4 - Tendo presente o disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, a Autora beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de acto administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA, sem necessidade de recorrer previamente aos Tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.

5 - O regime legal estabelecido pelo legislador não se reveste de uma mera faculdade a que a Autora ora Recorrente pode ou não recorrer, pois que atento o princípio da juridicidade, está vinculado por um especial dever de prosseguir na estrita observância da legalidade procedimental disposta pelo legislador, em ordem ao cabal exercício das suas competências, para o que não podem relevar razões de oportunidade ou meramente discricionárias.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


[SCom01...], EM [devidamente identificada nos autos] Autora na acção que intentou contra os herdeiros incertos de «AA», na qual foi requerida a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia global de € 2.907,34 (dois mil novecentos e sete euros e trinta e quatro cêntimos), correspondente a € 2.407,61 (dois mil quatrocentos e sete euros e sessenta e um cêntimos) referentes a rendas não pagas e a prestações não pagas do acordo outorgado, acrescido dos juros de mora vencidos, que ascendem na presente data ao montante de € 499,73 (quatrocentos e noventa e nove euros e setenta e três cêntimos) e vincendos, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, com todas as consequências legais, inconformada com a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pela qual foi julgada verificada a excepção dilatória atinente à falta de interesse em agir, e indeferida liminarmente a Petição inicial, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:


“[…]
EM CONCLUSÃO:
I. Ao ter julgado verificada a exceção dilatória da falta de interesse em agir, colocando assim termo ao processo, sem ter notificado as partes para se pronunciarem quanto à intenção do tribunal de decidir nesse sentido, o Tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa.
II. A inobservância do contraditório com a consequente prolação de decisão surpresa é uma clamorosa nulidade processual, estando, assim, a sentença ferida de nulidade, que expressamente se invoca.
III. Andou mal o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Recorrente por entender que existe falta de interesse em agir desta ao recorrer à ação administrativa comum, sob o argumento de que a Recorrente disporia de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179º do CPA que lhe permite declarar o seu direito a receber rendas e, em falta de cumprimento voluntário, proceder à sua cobrança coerciva.
IV. Decorre do artigo 179.º nº1 do CPA que a cobrança coerciva de obrigações pecuniárias mediante processo de execução fiscal será possível quando se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: i) as prestações pecuniárias sejam devidas por força de um ato administrativo; e ii) estas devam ser pagas a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta.
V. Conforme decorre claramente do artigo 1º dos respetivos Estatutos, bem como do artigo 19º n.º 4 do RJAEL, a [SCom01...] é uma pessoa coletiva de direito privado, possuindo autonomia patrimonial, financeira e administrativa.
VI. O facto de uma entidade privada estar habilitada por um ato jurídico público a exercer poderes públicos de autoridade não a transforma numa pessoa coletiva pública.
VII. A distinção entre pessoa coletiva de direito público e pessoa coletiva de direito privado é relevante na medida em que o próprio Código de Procedimento Administrativa continua, em certos casos e disposições legais específicas (como é o caso do artigo 179º CPA), a referir-se expressamente a pessoas coletivas de direito público, mesmo que tal norma se integre numa parte do Código que à partida será aplicável a entes públicos e entes privados, sendo certo que a referida distinção é essencial na definição da titularidade da capacidade de direito público em sentido formal, isto é, a aptidão de uma pessoa para praticar atos administrativos e para celebrar contratos administrativos.
VIII. As empresas locais apenas podem ser admitidas a exercer poderes públicos de autoridade mediante habilitação legal expressa (diploma legal, estatutos ou contrato de concessão), nos termos do disposto no artigo 22º do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial (DL n.º 133/2013, de 03 de outubro), que elenca taxativamente quis os poderes que as empresas públicas podem exercer, referindo no seu n.º 2 refere que os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constam do contrato de concessão.
IX. A [SCom01...] está legal e expressamente habilitada a celebrar contratos de arrendamento sob o regime de renda apoiada, a receber as respetivas rendas, bem como a proceder ao despejo administrativo em caso de incumprimento da obrigação de desocupação e entrega da habitação à entidade detentora da mesma.
X. A [SCom01...] não está expressamente habilitada a recorrer à execução fiscal para cobrança de valores em dívida, uma vez que inexiste norma legal ou estatutária que a invista nesse poder, que o legislador reservou para as entidades públicas.
XI. O artigo 28º da Lei 32/2016 de 24 de agosto, apenas determina genericamente que “a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo” sem se referir, em parte alguma, à possibilidade de execução coerciva – a qual sempre estaria afastada em concreto, face ao teor do artigo 179º do CPA.
XII. A interpretação extensiva não pode ser utilizada para sustentar interpretações que não tenham um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme decorre do artigo 9º n.º 2 do Código Civil e, muito menos, para sustentar interpretações contra legem, como é o caso da propalada pelo tribunal a quo, que contraria totalmente a letra do artigo 179º CPA.
XIII. Se o legislador pretendesse conceder às empresas locais a possibilidade de execução coerciva de obrigações pecuniárias, tê-lo-ia feito, retirando a expressão “pessoa coletiva pública” da norma inserta no artigo 179.º do CPA, o que não fez porque quis intencionalmente reservar a possibilidade de recurso à execução fiscal às pessoas coletivas públicas.
XIV. A Recorrente não está a atuar por ordem de uma pessoa coletiva pública ou como sua “delegada”, uma vez que as empresas locais, como é a [SCom01...], gozam de autonomia administrativa, financeira e patrimonial e não atuam sob as ordens diretas dos seus acionistas.
XV. O artigo 179.º do CPA configura uma norma geral e abstrata, não se tratando de um diploma legal ou contrato de concessão e jamais poderia ser esta norma a atribuir um novo poder público (o da remessa para processo de execução fiscal): o exercício do poder público é o pressuposto e não o resultado da aplicação do Código.
Sem prescindir,
XVI. O artigo 17º n.º 2 da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei no 32/2016 (regime do arrendamento apoiado para habitação) determina que o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo (e não ato administrativo).
XVII. O artigo 179.º nº1 do CPA, quando consagra o recurso ao processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, faz depender tal possibilidade de as prestações pecuniárias devidas a uma pessoa coletiva pública o serem “por força de um ato administrativo”.
XVIII. As prestações pecuniárias em dívida – as rendas – não são devidas em função de um ato administrativo, mas sim em virtude de um contrato, (o contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e o respetivo inquilino, onde as partes convencionaram direitos e obrigações reciprocas), mais concretamente, do incumprimento do contrato (pagamento das rendas) por parte do inquilino.
XIX. Deixando uma das partes de cumprir os deveres a que contratualmente se obrigou, in casu o dever de pagar pontualmente a renda, verifica-se uma situação de incumprimento contratual que carece de tutela jurisdicional.
XX. O legislado consagrou expressamente na lei determinadas prorrogativas da entidade – como modelar o conteúdo do contrato, resolvê-lo, proceder ao despejo administrativo, – e se esse fosse o seu intento, teria também consagrado expressamente a possibilidade de recorrer à execução fiscal para a cobrança dos valores em dívida, o que não sucedeu.
XXI. Decorrendo a obrigação do pagamento das rendas da celebração do contrato de arrendamento e não de um ato administrativo e não sendo a Empresa Municipal em causa uma pessoa coletiva pública nem estando a agir por ordem de uma, não estão – duplamente – preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 179.º do CPA, que não atribuiu às empresas locais o poder de emitir certidões com o valor de título executivo, com vista instauração dos processos de cobrança coerciva das dívidas.
XXII. De acordo com as regras de interpretação estabelecidas pelo artigo 9º do Código Civil, na fixação do alcance do artigo 179.º do CPA, presume-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, pelo que ao usar as expressões “pessoa coletiva pública” e “ato administrativo”, pretendeu restringir o âmbito de aplicação do artigo 179.º do CPA àquelas específicas circunstâncias.
XXIII. Sendo a entidade demandante uma Empresa Municipal, é inequívoco o seu interesse em agir, sendo a ação nos Tribunais Administrativos o meio idóneo para tal fim;
XXIV. A procedência da exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir determina que a Recorrente veja ser-lhe absolutamente negada a possibilidade de cobrar os valores em dívida!
XXV. A decisão ora em crise que julgou verificada a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir, indeferindo liminarmente a petição inicial, viola o disposto no artigo 179º do CPA, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que a admita, com todas as legais consequências.
Nestes termos e nos mais e melhores de Direito que serão tão douta quanto proficientemente supridos, deve ser declarada a nulidade da sentença recorrida com os devidos efeitos legais;
Caso assim não se entenda, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência ser revogada a douta decisão que julgou verificada a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir, indeferindo liminarmente a petição inicial, substituindo-a por outra que admita a petição inicial, seguido os autos a sua subsequente tramitação, com todas as legais consequências, seguindo o processo os seus normais termos.
Fazendo assim V/s. Exas., como sempre, inteira e sã JUSTIÇA! […].”

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Os Recorridos não apresentaram Contra Alegações.

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O Tribunal a quo proferiu despacho em torno da não ocorrência da invocada nulidade, assim como de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, no sentido da sua improcedência.

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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], sendo que, de todo o modo, em caso de procedência da pretensão recursiva, o Tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida pois que, ainda que venha a declarar a sua nulidade, sempre tem de decidir [Cfr. artigo 149.º, n.º 1 do CPTA] “… o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito.”, reunidos que estejam os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.

Assim, as questões suscitada pela Recorrente e patenteadas nas conclusões apresentadas consistem, em suma e a final, em apreciar e decidir, sobre se a Sentença recorrida padece da invocada nulidade, assim como de erro de julgamento em matéria de direito.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

No âmbito da factualidade ponderada pelo Tribunal recorrido foi considerada a seguinte alegação:

“[…]
Para fundamentar a sua pretensão alega a autora, em síntese, que:
- Celebrou com «AA», em 06/06/2013, um contrato de
arrendamento sujeito ao regime previsto nos decretos-lei nº 163/93 e 166/93 e demais legislação aplicável aos objectivos sociais de alojamento de agregados familiares carecidos de habitação e subsidiariamente o regime do arrendamento urbano, pelo qual lhe deu de arrendamento a fracção autónoma correspondente ao 1º esquerdo frente, Entrada ...4, Bloco ... do Empreendimento..., sito na Rua ..., freguesia ...;
- O referido «AA» faleceu no passado mês de Janeiro de 2020 e a autora não tem conhecimento de quem são os seus herdeiros nem tem possibilidade de os identificar sem o auxílio do tribunal, uma vez que a informação em causa apenas é fornecida pelas entidades competentes mediante solicitação judicial;
- No mencionado contrato de arrendamento foi estipulada a renda anual relativa ao imóvel de 351,24 €, que deveria ser paga em regime de duodécimos mensais de 29,27 €, até ao dia 8 do mês a que respeitasse, acrescendo ao valor da renda, o montante de 2,93 € para comparticipação nas despesas das zonas comuns, a qual, no âmbito do processo de actualização de rendas sociais referentes aos anos de 2018, 2019 e 2020 e de acordo com os critérios legais aplicáveis, foi actualizada, em cada um dos anos referidos, para 5,80 €, 5,91 € e 6,07 €, acrescendo ao valor da renda o montante de 1,00 €, para comparticipação nas despesas das zonas comuns;
- O arrendatário não procedeu ao pagamento das rendas relativas aos meses de Março, Junho, Setembro, Outubro e Dezembro de 2016, Janeiro a Junho e Agosto a Dezembro de 2017, Janeiro a Dezembro de 2018, Janeiro a Maio de 2019 e Abril a Junho de 2020, nem do valor devido a título de indemnização pela mora no pagamento das mesmas, tendo, num primeiro momento, confessado devedor da quantia de 1.949,48 € e, num segundo, da quantia de 2.039,88 €, mantendo-se em dívida a quantia de 2.407,61 €, referente a rendas vencidas e não pagas, acrescidas do valor da indemnização devida pelo atraso no pagamento das mesmas e ainda das prestações, vencidas e não pagas, referentes aos acordos indicados, a que acresce o valor devido a título de juros de mora vencidos, calculados desde a data de vencimento de cada uma das facturas e que neste momento ascende a 499,73 €, e vincendos até efectivo e integral pagamento, num total de 2.907,34 €.
[…]”

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 28 de setembro de 2022, que tendo apreciado a pretensão deduzida pela Autora contra os herdeiros incertos de «AA», no sentido de serem condenados a pagar-lhe o montante global de €2.907,34 relativas a rendas não pagas e a prestações não pagas do acordo outorgado, acrescida de juros calculados desde a citação e até real e efectivo pagamento, veio a julgar procedente a excepção dilatória atinente à falta de interesse em agir, e a indeferir liminarmente a Petição inicial.

Como assim dispõe o artigo 627.º, n.º 1 do CPC, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, para efeitos de poderem ser evidenciadas perante o Tribunal Superior as irregularidades de que a Sentença pode enfermar [que se reportam a nulidades que afectam a Sentença do ponto de vista formal e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade], assim como os erros de julgamento de facto e/ou de direito, que por si são resultantes de desacerto tomado pelo Tribunal na formação da sua convicção em torno da realidade factual, ou da interpretação e aplicação do direito, em termos tais que o decidido não está em correspondência com a realidade fáctica ou normativa.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Aqui chegados.

Cotejadas as conclusões das Alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, delas se extrai que a sua pretensão está ancorada, no essencial, no entendimento que enquanto Empresa Municipal é uma empresa de direito privado a quem não está conferido o poder de autotutela declarativa e executiva, e antes disso, que o Tribunal a quo incorreu em nulidade processual ao não ter observado o direito ao contraditório para efeitos da apreciação liminar da sua falta de interesse em agir.

Em torno da invocada nulidade processual [Cfr. conclusões I e II das Alegações de recurso], a Recorrente sustenta a sua ocorrência, em suma, por violação do princípio do contraditório e prolação de decisão surpresa.

Em torno do invocado erro de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito, referiu que se está perante uma errada aplicação do pressuposto processual inominado do interesse em agir, e dessa forma, que a Sentença recorrida está em violação com o disposto no artigo 179.º do CPA e que enquanto Empresa Municipal tem interesse em agir e que o recurso aos Tribunais Administrativos é o meio idóneo para cobrar as dívidas por rendas não pagas.

Concluiu a final que a obrigação do pagamento das rendas decorre da celebração do contrato de arrendamento e não de um ato administrativo e que enquanto Empresa Municipal, não sendo uma pessoa coletiva pública nem estando a agir por ordem de uma, não estão preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 179.º do CPA, que não atribuiu às empresas locais o poder de emitir certidões com o valor de título executivo, com vista instauração dos processos de cobrança coerciva das dívidas.

Neste conspecto, cumpre para aqui extrair a essencialidade da fundamentação aportada pelo Tribunal a quo, como segue:

Início da transcrição
“[…]
Compulsada a petição inicial verifica-se que, em 06/06/2013 a autora celebrou com «AA» contrato de arrendamento, nos termos do qual aquela deu de arrendamento àquele a fracção autónoma correspondente ao 1º Esquerdo frente, Entrada ...4, Bloco ... do Empreendimento... sito na Rua ..., freguesia ....
Tal contrato foi submetido, nos termos da sua cláusula 1ª, ao regime previsto nos Decretos lei nº 163/93 e nº 166/93, ambos de 7 de Maio. Mais resulta da sua cláusula 11ª que o arrendatário se obriga a respeitar o Regulamento Municipal para o Arrendamento de Habitações Sociais, aprovado pela Assembleia Municipal em 14/10/2004.
Estamos, portanto, no âmbito de uma relação jurídica de arrendamento social, sujeita ao regime jurídico do arrendamento apoiado para habitação, constante da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, que revogou o Decreto-Lei nº 166/93, de 7 de Maio.
[…]
Em primeiro lugar, embora o dever de pagamento das rendas, a cargo do arrendatário, não resulte directamente de um acto administrativo, o contrato de arrendamento apoiado – que é um contrato administrativo, nos termos do artigo 17º, nº 2 da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro – tem objecto passível de acto administrativo.
Efectivamente, a atribuição das habitações em regime de arrendamento apoiado ocorre mediante concurso e o contrato assenta em decisão de atribuição da habitação (que consubstancia um acto administrativo), proferida subsequentemente ao concurso e na sequência de requerimento do arrendatário nesse sentido.
Porém, a entidade que detém a habitação em regime de arrendamento apoiado, em vez de atribuir a habitação exclusivamente através de acto administrativo, celebra um contrato com o arrendatário, por meio do qual ambos acordam os termos em que se conciliam os seus interesses recíprocos no caso concreto, servindo o contrato esse fim.
Tendo o contrato de arrendamento apoiado objecto passível de acto administrativo, é
aplicável o disposto no artigo 179º do CPA quando o arrendatário não proceda ao pagamento das rendas devidas, caso em que está a entidade que detém a habitação em regime de arrendamento apoiado legitimada a recorrer ao processo de execução fiscal para cobrança das quantias devidas a esse título.
Em segundo lugar, apesar de, no caso em apreço, a entidade que detém a habitação em regime de arrendamento apoiado não ser uma pessoa colectiva pública – sendo a autora, diferentemente, uma empresa municipal de natureza privada -, é-lhe aplicável a norma do artigo 179º do CPA uma vez que a mesma se mostra sistematicamente inserida na parte IV do CPA, relativa à actividade administrativa, e, por força do artigo 2º, nº 1 do CPA, as disposições do CPA respeitantes à actividade administrativa são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adoptada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, sendo indubitável que a entidade que detém a habitação em regime de arrendamento apoiado exerce poderes públicos na execução do contrato de arrendamento apoiado, nos termos acima já explanados.
Assim, fazendo aplicação do disposto no artigo 179º do CPA, na falta de pagamento das rendas devidas, a entidade que detém a habitação em regime de arrendamento apoiado tem o poder de recorrer à execução fiscal com vista à concretização do pagamento da dívida.
Deste modo, concluímos que a autora dispõe de mecanismos de autotutela executiva
(execução do despejo e a execução fiscal) aptos a assegurar a tutela que vem requerer na presente acção (pagamento de rendas em dívida), pelo que não tem necessidade da tutela que requer nos presentes autos.
[…]”
Fim da transcrição

Conforme deflui da Sentença recorrida, e com reporte à causa de pedir imanente à Petição inicial, o Tribunal a quo julgou que por dispor a Autora de meios de autotutela executiva, que carecia de interesse em agir para efeitos do pedido formulado nos autos, tendo indeferido liminarmente a Petição inicial.

O Tribunal a quo referiu que a questão de direito em causa já tinha sido tratada noutras Sentenças proferidas, cujos processos identificou, e que até tinham a Autora como demandante, tendo motivado no sentido de que acompanhava a fundamentação nelas vertida.

A Sentença recorrida apoiou-se em dois recentes Acórdãos proferidos por este TCA Norte, cuja jurisprudência a Recorrente não coloca em causa nesta sua pretensão recursiva, ainda que em termos mínimos, embora é certo se tenha reportado a dois Acórdãos do TCA Sul [o proferido no Processo n.º 12034/15, datado de 19 de março de 2015, e o proferido no Processo n.º 10996/14, datado de 28 de maio de 2015], mas que não tem o pendor de fazer inflectir o julgado pelo Tribunal a quo.

Vejamos.

A Recorrente suscita, em primeiro lugar, a ocorrência de uma nulidade processual ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º1 do CPC, por violação do princípio do contraditório e prolação de decisão surpresa.

Conforme dimana da Sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou pela dispensa do contraditório “… atento o princípio da celeridade processual e por manifesta desnecessidade, atenta a simplicidade da solução a dar no caso concreto quanto à falta de interesse em agir …”

Ora, com apoio nos normativos por si convocados, o Tribunal a quo julgou pela desnecessidade em ouvir as partes tendo em vista a apreciação e decisão da ocorrência da excepção dilatória por si identificada, tendo conexionado essa questão a decidir com jurisprudência já firmada de Tribunais superiores da jurisdição administrativa.

Em sede do contencioso administrativo, o princípio pro actione encontra-se expressamente consignado no artigo 7.º do CPTA, tendo o legislador imposto nos termos e para efeitos da promoção do acesso à justiça, que “... as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.“, sendo que, nesse conspecto, o Tribunal está assim vinculado no dever de interpretar o quadro normativo adjectivo aplicável no sentido de criar no processo e no âmbito do atinente enquadramento jurídico as condições que por si venham a ser determinantes da emissão de pronúncia sobre o mérito da causa, ou sobre questão prévia de que lhe caiba conhecer.

Neste domínio, o dever de gestão processual a que se reporta o artigo 7.º-A do CPTA, dispõe que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Tendo o Tribunal a quo identificado a questão a conhecer oficiosamente, e sabendo do seu dever de garantir o direito ao contraditório, decidiu pela sua dispensa, por ter julgado, tendo subjacente o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA estar perante uma situação de manifesta desnecessidade na sua realização, o que julgamos ser de confirmar.

Efectivamente, na presente situação, e como assim apreciou e decidiu o Tribunal a quo, é clara a manifesta desnecessidade de observar o contraditório, em face da jurisprudência [reiterada] em que o Mm.º Juiz se amparou [tendo até invocado a simplicidade da solução a dar ao caso], o que não é assim passível de determinar a ocorrência de uma irregularidade susceptível de influir no exame da causa [Cfr. artigo 195.º, n.º 1, do CPC].

De modo que, porque a juridicidade invocada pela Recorrente não se mostra violada pela decisão recorrida, por aqui tem de falecer a sua pretensão recursiva.

Apreciando agora o invocado erro de julgamento em matéria de direito.

A questão em apreço nos autos não é nova, tendo já sido debatida em vários Acórdãos e recentes, deste TCA Norte [Cfr., entre outros, o datado de 08 de abril de 2022, proferido no Processo n.º 2504/19.2BEPRT, o datado de 15 de julho de 2022, proferido no Processo n.º 02836/18.7BEPRT, o datado de 14 de outubro 2022, proferido no Processo n.º 01216/19.1BEPRT, o datado de 11 de novembro de 2022, proferido no Processo n.º 00906/19.3BEPRT, e o datado de 25 de novembro de 2022, proferido no Processo n.º 02505/19.0BEPRT].

A referência que o Tribunal a quo fez à Sentença proferida no âmbito do Processo n.º 02143/21.8BEPRT, em 04 de novembro de 2021, onde efectivamente foi apreciada e decidida questão similar à que ora se discute, veio a ser objecto de recurso de Apelação para este TCA Norte, que por seu Acórdão datado de 23 de junho de 2022, veio a confirmar a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Nesse processo vinha interposto recurso de Apelação da Sentença por via da qual o Tribunal a quo indeferiu liminarmente a Petição inicial apresentada pela Autora [que também é a Autora nos presentes autos], com fundamento na falta do pressuposto processual atinente ao interesse em agir, e tanto em suma, por ter julgado que aquela não tinha necessidade de intentar uma acção nos Tribunais administrativos, em busca de tutela jurisdicional efectiva, por dispor de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179.º do CPA, por lhe ser permitido declarar o seu direito a receber rendas, e na falta de cumprimento voluntário, o direito de proceder à sua cobrança coerciva.

Ora, desse Acórdão foi interposto recurso de revista para o STA, que em formação constituída para efeitos de apreciação preliminar sumária, decidiu por seu Acórdão datado de 15 de dezembro de 2022, pela admissão desse recurso.

No dia 19 de Outubro de 2023, o STA proferiu Acórdão nesse recurso de revista, onde conheceu do mérito da pretensão recursiva da Recorrente, a cujo julgamento aderimos sem reservas [com as adaptações que mostrem necessárias, designadamente em sede da matéria de facto], e cuja fundamentação também aqui se dá por enunciada tendo em vista alcançar uma interpretação e aplicação uniformes do direito [cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil], como segue:

Início da transcrição
“[...]
33 – O que releva, pois, no caso, é a circunstância de estes contratos de arrendamento apoiado se regerem, como vimos, pelo disposto no NRAAH, pelos regulamentos nele previstos e pelo Código Civil – cf. n.º 1 do artigo 17.º do NRAAH – sem prejuízo de se tratar de um contrato administrativo por força de lei - cf. n.º 2 do artigo 17.º do NRAAH.
34 – À semelhança, aliás, do que resulta do artigo 126.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público do Domínio Público e Privado da Administração, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, ao estabelecer, como regra, que ao arrendamento de bens imóveis do domínio privado das autarquias locais aplica-se a lei civil.
35 – Por isso, quando no artigo 2.º do NRAAH, se reforça que este regime se aplica às habitações detidas, «a qualquer título, por entidades das administrações direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais, do setor público empresarial e dos setores empresariais regionais, intermunicipais e municipais, que por elas sejam arrendadas ou subarrendadas com rendas calculadas em função dos rendimentos dos agregados familiares a que se destinam».
36 – E na secção II, sob a epígrafe «Cessação do contrato de arrendamento apoiado», do NRAAH, se estabelece que:


«Artigo 25.º
Resolução pelo senhorio
1 - Além das causas de resolução previstas na presente lei e nas disposições legais aplicáveis, nomeadamente nos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil, na sua redação atual, constituem causas de resolução do contrato pelo senhorio:
a) O incumprimento de qualquer das obrigações previstas no artigo 24.º;
b) O conhecimento pelo senhorio da existência de uma das situações de impedimento previstas no artigo 6.º;
c) A prestação de falsas declarações, de forma expressa ou por omissão, sobre os rendimentos ou sobre factos e requisitos determinantes para o acesso ou manutenção do arrendamento;
d) A permanência na habitação, por período superior a um mês, de pessoa que não pertença ao agregado familiar, sem autorização prévia do senhorio.
2 - Nos casos das alíneas do número anterior e do n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio opera por comunicação deste ao arrendatário, onde fundamentadamente invoque a respetiva causa, após audição do interessado, cabendo sempre direito de recurso desta decisão pelo arrendatário.
(…)»
37 – Sabendo que o
supra identificado n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil (CC) se refere à faculdade de resolução do contrato pelo senhorio, com o fundamento previsto nos n.º 3 e 4 do artigo 1083.º do CC, que torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, no que para o caso interessa, em situações de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou quando este se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato.
38 – A leitura do invocado artigo 28.º do NRAAH, na parte em que determina que:
«1 - Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.
2 - São da competência dos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, consoante for o caso, as decisões relativas ao despejo, sem prejuízo da possibilidade de delegação.
3 - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo.» (negrito nosso).
4 - (Revogado.)
5 – (…)
6 – (…)».
39 – Deve ser uma leitura integrada, relevando igualmente, ex vi artigo 17.º, n.º 1, do NRAAH, o disposto no Regulamento para o Arrendamento de Habitações Sociais do Município ... (RAHS), n.º 548/2018, publicado no Diário da República n.º156, 2.ª série, de 14 de agosto de 2018, da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal ..., designadamente, no artigo 23.° e 26.º, que, sob a epígrafe «Mora do arrendatário», determina que:
«1 - Ultrapassado o prazo de pagamento referido no n.° 1 do artigo anterior sem que o mesmo tenha sido feito, a [SCom01...] tem o direito de exigir as rendas devidas acrescidas de uma penalização de 50 %.
2 - Excecionalmente, e desde que se encontre devidamente comprovada a insuficiência económica do agregado familiar, a [SCom01...] pode conceder a dispensa total ou parcial das penalizações devidas por mora no pagamento da renda.
3 - A falta de pagamento das rendas, acrescidas da penalização que for devida nos termos do n.° 1, confere à [SCom01...] o direito a considerar resolvido o contrato de arrendamento, salvo nos casos em que esta autorize, a título excecional, um acordo de regularização da dívida, nas situações em que comprovadamente o arrendatário esteja temporariamente impedido de cumprir a obrigação de pagamento da renda.
(…)
Artigo 26.°
Exclusão de elementos do agregado
1 - Verificadas situações de incumprimento do presente Regulamento conforme disposto nos artigos 35.° a 40.° atendendo à gravidade e reiteração das mesmas, pode a [SCom01...] determinar a exclusão de um ou vários elementos do agregado familiar, oficiosamente ou a pedido do titular do agregado.
2 - A decisão de exclusão é notificada por escrito ao titular do agregado e ao elemento excluído, conferindo prazo certo para o seu abandono voluntário da habitação.
3 - O incumprimento do disposto no número anterior determina, por parte da [SCom01...], o competente processo de despejo coercivo, socorrendo-se para isso dos meios necessários.
4 - Por sentença transitada em julgado, nos casos de violência doméstica, o agressor é afastado e, caso seja o titular do contrato de arrendamento, o cônjuge ou equiparado beneficia do direito de titularidade do novo contrato.» (sublinhados nossos).
40 – Resultando, de todo o exposto, que, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos no artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH, as entidades referidas no seu artigo 2.º e nas quais se inclui a Autora, ora Recorrente, estão habilitadas a, por força de lei, praticar um ato administrativo que determine o despejo, este, com poderes de autotutela declarativa e executiva e um outro, que determine a promoção da execução por rendas em atraso, este, apenas com autotutela declarativa, pois que, nos termos dos artigo 179.º, do CPA, a execução para pagamento de quantia certa a corre termos nos tribunais tributários - cf. artigo 28.º, n.º 1, do NRAAH e regime previsto no Código Civil,
ex vi artigo 17.º n.º 1.
41 – Na situação em apreço, não estando em causa qualquer decisão relativa ao despejo do Réu, pois que resulta dos autos que este procedeu à entrega da habitação de livre vontade e por sua iniciativa.
42 – E não havendo dúvidas que a Autora, ora Recorrente, pode promover a execução para pagamento das rendas em atraso, quando estas são a causa da decisão de despejo e resolução do contrato, ao abrigo das disposições conjugadas, supra citadas e transcritas, também é certo que não deixa de o poder fazer quando o não são.
43 – Pois que, o artigo 28.º, n.º 3, pressupõe essa autotutela declarativa referente ao pagamento de rendas em atraso, impondo apenas, nos casos em que seja este o fundamento do despejo, que as duas decisões sejam proferidas em simultâneo.
44 – A decisão de promoção da execução por rendas em atraso, enquadrada como está no NRAAH, de entre os demais poderes de autotutela declarativa em sede de resolução de contrato e de despejo, consubstancia, assim, um título executivo complexo, à semelhança do que hoje sucede no regime do contrato de arrendamento civil,
ex vi artigos 25.º, n.º 1 e 17.º n.º 1, do NRAAH.
45 – No artigo 14.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) determina-se que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário. (Sobre o âmbito deste título executivo no sentido de que comporta a “indemnização” prevista no artigo 1045.º, n.ºs 1 e 2 do CC, v. por todos, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, P. 7285/18.4T8CBR-B.C1, de 04.09.2019 e demais jurisprudência ali citada e, na Doutrina, Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9.ª edição, Almedina, 2019, p. 223, §2.)
46 – O que é exemplo e se mostra coerente, aliás, em ambos os regimes, com a ambiência de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento.
47 – E justifica que o sentido da expressão usada no n.º 3 do artigo 28.º, de «
decisão de promoção da correspondente execução», seja atributivo de uma autotutela declarativa, por maioria de razão, quando esta decisão seja desacompanhada de uma decisão de despejo.
48 – Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, considera-se que a Autora, ora Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de ato administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA.
49 – Sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.

50 – Pois que, também à luz do princípio da irrenunciabilidade da competência, não pode a Autora deixar de exercer os seus poderes de autotutela declarativa, sempre que os respetivos pressupostos estejam definidos na lei, tal como se demonstra estarem no caso em apreço – cf. artigo 36.º, n.º 1, do CPA.
[...]“
Fim da transcrição

Encerrando o âmbito da pretensão recursiva da ora Recorrente [SCom01...] uma base que é comum aqueles referidos Acórdãos deste TCA Norte, e sendo de salientar ainda aquele recente Acórdão proferido pelo STA no Processo n.º 02143/21.8BEPRT, não pode proceder a pretensão recursiva da Recorrente, pois que o regime legal estabelecido pelo legislador não se reveste de uma mera faculdade a que a Autora ora Recorrente pode ou não recorrer, pois que atento o princípio da juridicidade, está vinculada por um especial dever de prosseguir na estrita observância da legalidade procedimental disposta pelo legislador, em ordem ao cabal exercício das suas competências, para o que não podem relevar razões de oportunidade ou meramente discricionárias.

Com efeito, com a entrada em vigor da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, foi aprovado o novo regime do arrendamento apoiado para habitação social, e revogado o regime transitório previsto na Lei n.º 21/2009, de 20 de maio [Cfr. o seu artigo 38.º, n.º 1, alínea a)], tendo passado a prever-se que o mesmo se aplica aos contratos a celebrar após a data da sua entrada em vigor [Cfr. artigo 39.º n.º 1], mas também aos contratos celebrados ao abrigo de regimes de arrendamento de fim social, nomeadamente de renda apoiada e de renda social existentes à data da sua entrada em vigor [Cfr. artigo 39.º n.º 2 alínea a)], e bem assim, à ocupação de fogos a título precário efectuada ao abrigo do Decreto n.º 35 106, de 6 de novembro de 1945 sujeitos ao regime transitório da Lei n.º 21/2009, de 20 de maio, que subsistam na data da entrada em vigor da nova lei [Cfr. artigo 39.º n.º 2 alínea b)].

Na situação a que se reportam os autos, estando em apreço uma relação jurídica de arrendamento social, sujeita ao regime do arrendamento apoiado para habitação, constante da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que revogou o Decreto-Lei n.º 166/93, de 07 de Maio, e prevendo-se no seu artigo 28.º, n.ºs 1 e 3 daquele diploma legal, que quando não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação, cabe à entidade levar a cabo os procedimentos subsequentes, e bem assim que quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo, tal é determinante do nosso julgamento de que bem decidiu o Tribunal a quo pela Sentença recorrida.

Cabendo às entidades que detêm habitações em regime de arrendamento apoiado, o que é o caso da Autora, o direito de proceder ao despejo, caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação [Cfr. n.º 1]; e promover a execução das rendas, encargos ou despesas em dívida [Cfr. n.º 2], não há como obliterar, e assim desconsiderar que as mesmas dispõem de poderes de autotutela declarativa e executiva para prosseguir na execução tanto do despejo do arrendatário como do valor devido pelo mesmo a título de rendas, encargos ou despesas não pagas, e desta feita, que não carecem de tutela judicial para esse efeito.

Aqui renovando a linha jurisprudencial acima enunciada, julgando que por dispor a Autora de meios legais de autotutela [declarativa e executiva] para a necessária e devida actuação visando os contratos de arrendamento por si outorgados [Cfr. artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, na redação conferida pela Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto], e deles [meios] não tendo deitado mão, ocorre assim a sua falta de interesse em agir, por não ser indispensável o recurso à acção judicial para a salvaguarda dos seus direitos e interesses [da Autora], ou seja, por não carecer a Autora de tutela jurisdicional efectiva [Cfr. artigo 2.º do CPTA].

Termos em que, a pretensão recursiva da Recorrente tem assim de improceder na sua totalidade, por ter o Tribunal a quo julgado com acerto em torno da constatada falta de interesse em agir da Autora ora Recorrente, não padecendo a Sentença recorrente dos erros de julgamento que lhe vêm por si apontados, tendo a solução jurídica a que chegou o Tribunal a quo que manter-se, por não ser merecedora da censura jurídica que lhe dirige a Recorrente.

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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Falta de pagamento de rendas; Falta de interesse em agir; Autotutela declarativa e executiva.

1 - Os Tribunais administrativos são competentes para conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento de renda apoiada, mas já não em matéria de despejo e/ou cobrança de rendas não pagas, por estar essa competência atribuída aos órgãos administrativos.

2 - No âmbito dos poderes que lhe são conferidos no artigo 28.º, n.º 3, do NRAAH, as entidades referidas no seu artigo 2.º e nas quais se inclui a Autora, ora Recorrente, estão habilitadas a praticar um acto administrativo que determine o despejo, este, com poderes de autotutela declarativa e executiva e um outro, que determine a promoção da execução por rendas em atraso, este, apenas com autotutela declarativa, pois que, nos termos dos artigo 179.º, do CPA, a execução para pagamento de quantia certa corre termos nos tribunais tributários – Cfr. artigo 28.º, n.º 1, do NRAAH e regime previsto no Código Civil, ex vi artigo 17.º n.º 1.

3 - Na situação em apreço, não está em causa qualquer decisão relativa ao despejo dos Réus, pois que resulta dos autos que a habitação já está na posse da Autora.

4 - Tendo presente o disposto no artigo 28.º, n.º 3 do NRAAH, a Autora beneficia de poderes de autotutela administrativa declarativa que lhe permitem o recurso imediato ao regime para execução do pagamento de quantias pecuniárias, por força de acto administrativo, junto dos tribunais tributários, tal como previsto no artigo 179.º do CPA, sem necessidade de recorrer previamente aos Tribunais administrativos para obter uma sentença declarativa que possa valer, em caso de incumprimento voluntário desta, como título executivo.

5 - O regime legal estabelecido pelo legislador não se reveste de uma mera faculdade a que a Autora ora Recorrente pode ou não recorrer, pois que atento o princípio da juridicidade, está vinculado por um especial dever de prosseguir na estrita observância da legalidade procedimental disposta pelo legislador, em ordem ao cabal exercício das suas competências, para o que não podem relevar razões de oportunidade ou meramente discricionárias.



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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência em NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pela Recorrente [SCom01...] e Habitação, EM, confirmando a Sentença recorrida.

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Custas a cargo da Recorrente – Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique.
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Porto, 30 de novembro de 2023.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Luís Migueis Garcia
Maria da Conceição Silvestre